— Eu nunca fui de acreditar em milagres, mas a partir de hoje posso dizer que minha fé cresceu consideravelmente — a enfermeira falou para a médica.
— Pare de falar besteiras, o que essa garota teve foi sorte — a médica resmungou.
— Não seja indiferente, senhora. Ela é sua filha. Você tem que se lembrar que parte da culpa dela estar assim é sua. Você deveria ter sido mais compreensiva.
A médica encarou a enfermeira com reprovação.
— Eu estou aqui tentando me lembrar o dia em que eu lhe dei liberdade para você fazer esse tipo de comentário sobre mim.
— Desculpe, senhora, mas é que...
— Mais nada. Retire-se.
— Pretende ficar sozinha com a Raquel? Isso me surpreende.
— Ora, sua...
A médica bufou e saiu da sala da UTI bastante estressada.
♀♀
A sensação era de estar mergulhada em uma banheira de molho em água e sal. Me sentia como uma azeitona em conserva. Seria essa a sensação da morte?
Sim, eu estava morta. Mas por que ainda me sentia de algum modo ligada ao mundo dos vivos?
Estaria no purgatório? Em julgamento? Ainda não havia alcançado o inferno?
Como lá seria? Tudo o que conseguia enxergar nesse momento era escuridão. Mas estava louca para conhecer o Hades, o submundo. Ficar sentindo tudo queimar ao meu redor. Me sentindo morta.
— Água — minha voz saiu com dificuldade e rouca demais. Como se eu tivesse passado anos sem utilizar minhas cordas vocais e agora não sabia mais como falar.
Uma mão tocou minha testa e outra meus dedos da mão. Seria um demônio?
— Toma — uma voz feminina falou. O capeta era uma mulher?
Não queria abrir os olhos, a escuridão me era muito prazerosa. Queria continuar em meu sono profundo, mas a curiosidade falou mais alto. Eu precisava conhecer meu novo lar após a morte.
Abri os olhos e a luz do recinto me obrigou a fechá-los novamente. Era uma luz muito branca. Não era o inferno. Estava muito bonito para ser. Era o céu? Deus teve piedade de minha alma e me deu a salvação eterna?
— Beba isso — a mulher voltou a falar. Com os olhos ainda fechados, senti minha mão agarrar um copo.
Me sentia um pouco fraca, vagarosamente levei o líquido à boca e bebi. Foi bom beber água novamente. Ela alcançou meu estômago e o preencheu com sua temperatura fria.
Notei que estava com muita fome.
Mais uma vez me forcei a abrir os olhos. Consegui.
Não era o céu.
Não era o inferno.
Era um quarto de hospital.
Eu não morri. Mas que droga!
— Como se sente, menina? — a mulher ao meu lado perguntou. Me virei para ela e percebi que não a conhecia. Tinha longos cabelos negros e olhos verdes. Parecia ter uns quarenta anos.
Estava muito atordoada com meu despertar. Fiquei encarando o nada à minha frente.
— Você se sente melhor? — novamente ela perguntou.
Meus olhos encontraram os dela. Respondi com um sussurro:
— Queria estar morta.
A mulher piscou, pensou em falar alguma coisa, mas eu repeti em um tom mais alto.
— Queria estar morta. — Agarrei o lençol da cama. Minha respiração acelerou, meu coração apertou, fui tomada por um desespero súbito. — Eu queria estar morta! — gritei. — Eu queria estar morta! Morta!
Imediatamente lágrimas escorreram por meu rosto. Chorei. Solucei bem alto. Me sentia perdida. Viva e morta ao mesmo tempo.
— Tente ficar calma, Raquel — a mulher pediu.
— Não! — gritei. — Não! Não! Não! Não! Eu quero morrer! Eu preciso morrer!
Meus gritos saíam de modo estranho porque eu ainda chorava muito. O aperto no meu peito era sufocante, poderia me matar e eu adoraria que isso acontecesse.
Enquanto ainda estava tendo surtos de desespero, duas mulheres entraram no quarto. Uma delas era médica, pois reconheci ser minha mãe. A outra parecia ser uma enfermeira.
— O que está acontecendo com ela? — minha mãe perguntou para a mulher ao meu lado.
— Parece que está tendo uma crise de ansiedade ou ataque de pânico — explicou. — Vou tentar conversar com ela.
— Não! Sâmia — minha mãe chamou a enfermeira —, eu não avisei que não era permitido trazer nenhuma psicóloga até a Raquel?
— Mas, senhora, era preciso! — a enfermeira se defendeu.
— Mas eu disse que não! Suma daqui — ordenou para a suposta psicóloga que estava ao meu lado. — E você, Sâmia, injete algo nessa garota para que ela volte a dormir.
— Acho melhor não fazer isso — a psicóloga opinou.
— Pedi sua opinião? — a médica perguntou. — Não precisamos mais de você nesse quarto, saia.
A psicóloga saiu. Sâmia veio até mim com um olhar pesaroso e colocou alguma medicação no meu soro.
— Fique tranquila, Raquel — ela pediu. — Você apenas irá dormir.
Quando a medicação atingiu minha corrente sanguínea, senti meus olhos se cansarem. Minha respiração normalizou e voltei ao meu universo escuro.
♀♀
— Faz duas semanas. Duas semanas que saí do hospital — contei para Maria Luísa.
Depois da minha tentativa frustrada de suicídio, minha mãe permitiu com mais frequência a visita da minha prima Giovanna e de qualquer outro amigo ou amiga que eu tivesse. Mas eu não tinha muitos, nessa tarde convidei Luísa para minha casa. Precisava conversar com alguém. Precisava me sentir menos mal.
— Eu imagino o terror que você passou — Maria falou. — E me sinto um pouco culpada por não ter estado ao seu lado quando passou por tudo isso. Vim te ver durante os dias que você faltou à escola, mas o seu pai não me permitiu entrar. E, quando você ficou na UTI do hospital, sua mãe não permitiu minha visita.
— Tudo bem — falei baixinho. — Meus pais são assim mesmo.
— Eu sinto muito. Queria mesmo ter ficado ao seu lado. Você é uma amiga muito importante.
Maria Luísa se aproximou de mim o bastante e me abraçou enquanto estávamos sentadas no sofá da sala da minha casa.
Seu abraço me transmitiu um pouco mais de vontade de viver. Eu precisava de afeto. De carinho. De amor. E já estava praticamente mendigando o quanto podia para receber alguma migalha de compreensão.
— Eu gosto muito de você, Quel. — Maria fez carinho na minha bochecha e sorriu para mim.
Seus olhos naquele momento estavam azuis, mas eu já os tinha visto em tons bonitos de verde.
— Você é bonita — soltei essa declaração. Maria ficou um pouco vermelha e sorriu de cabeça baixa.
— Obrigada, Quel. Também te acho muito lindinha.
Consegui formar um sorriso fraco. Mas meus olhos arderam e senti minha garganta se fechar. Logo chorei.
Já estava sendo comum para mim ter esses choros repentinos na minha situação pós-suicídio-frustrado. Mas dessa vez minhas lágrimas não rolaram desamparadas. Maria Luísa passou a mão gentilmente em minhas bochechas e enxugou o molhado das lágrimas.
— Eu estou aqui com você — ela garantiu. — Pode chorar o quanto quiser. Estou aqui pra te deixar mais confortável.
Continuei chorando. De vez em quando tinha rápidas memórias, flashbacks dos dias em que fiquei sem comer na cama do meu quarto e do momento em que engoli incontáveis pílulas que quase me mataram.
Doía muito relembrar esse momentos.
Luísa me abraçou mais apertado e depositou um beijo carinhoso no meu rosto.
Ficamos alguns segundos juntas, apenas sentindo a presença uma da outra. Até minha mãe aparecer.
— Raque, eu... — a mulher se interrompeu ao ver a cena de sua filha abraçada com outra garota. Como sempre, o preconceito falou mais alto. — Garota que se diz amiga da minha filha, poderia por favor ficar um pouco mais distante?
Maria Luísa ficou bastante constrangida e se afastou.
— Me desculpe, senhora.
Minha mãe ignorou a fala da minha amiga e se voltou para mim.
— Estou indo para o hospital. Terei muito trabalho hoje. Coma o que deixei para você na geladeira, basta esquentar no microondas. E durma cedo. Amanhã você já voltará à escola.
Apenas assenti. Minha mãe saiu.
— Caramba, dessa vez ela cozinhou pra você — Luísa tentou me animar.
— É, é o que parece — não reagi com a empolgação que ela esperava.
Maria Luísa voltou a me abraçar e ficou assim e calada. Gostei de tê-la ao meu lado.
Aproveitei o momento de paz para dar uma observada geral na sala, eram raros os momentos em que permanecia nela por muitos minutos.
Quadro na parede. Sofá de três lugares. Sofá de dois lugares. Poltrona. Tapete. Mesa de centro. Vasinho de flores na mesa de centro. Envelope fechado na mesa de centro. O detalhe do teto.
Espera. Envelope fechado na mesa de centro?
Empurrei Maria Luísa um pouco para o lado e me levantei.
— Aonde vai? — perguntou.
— Isso estava aqui antes? — perguntei já segurando o envelope.
— Hum... Não sei. Parece importante?
— Não sei. Mas tem o nome do hospital onde minha mãe trabalha.
— Ela pode ter esquecido.
— Talvez. — Continuei analisando o que tinha nas mãos. — Ei. — Encontrei algo. — Tem meu nome nele.
— Deixa eu ver — Luísa pegou o envelope das minhas mãos. — É, tem mesmo. Raquel Oliveira. E também está escrito que é um laudo médico. Vamos abrir?
Eu estava claramente curiosa para saber o que aquele papel significava, mas era um documento da minha mãe, não podia abrir assim. Só que tinha meu nome nele, o que o tornava meu também.
— Ah, que se dane, vamos abrir — falei.
Abri o envelope e li seu conteúdo atentamente.
Dizia que eu havia sofrido um envenenamento por drogas lícitas e que isso me deixou em estado crítico na UTI. Com isso eu teria algumas sequelas como ansiedade, falha na memória recente e provavelmente problemas gastrointestinais. Bem, já era de se esperar. Li meu resultado do enxame de sangue e a página de trás.
— Essa parte aqui está bem mais detalhada — eu disse para Maria Luísa. — Não sei se consigo entender muito bem.
— Deixa eu ver — Maria pediu. Entreguei o documento e a garota leu atentamente. — Meio estranho... Aqui diz que seu corpo foi violentado. Parece um laudo de... — Maria Luísa se interrompeu e ficou pálida.
— De...? — insisti para que falasse.
— Leia você mesma.
Li o papel. Mais uma vez entendi pouca coisa, mas as últimas linhas consegui entender muito bem.
— Aqui diz — comecei a falar com a voz tremendo. — "Raquel Oliveira foi abusada sexualmente na noite da última quarta-feira. Estupro comprovado através de exames".
Minha boca se abriu. Senti que iria desmaiar.
— Sua mãe deve ter recebido isso logo após você tentar se matar, faz umas duas semanas — Luísa falou.
Fui abusada sexualmente em uma noite de quarta-feira. Tinha algumas lembranças de momentos estranhos, mas devia estar muito mal e fraca para registrar memórias concretas.
Nesses últimos dias tentara eu lembrar de alguma coisa que passei ou fiz nos dias que antecederam minha tentativa de suicídio, mas meu cérebro me pregava peças e acabava tendo só umas memórias esquisitas.
Mas agora, lendo o meu laudo médico, conseguia recordar da noite em que meu pai se posicionou sobre mim enquanto eu dormia e eu senti muitas dores na minha região abaixo do ventre. Conseguia lembrar da manhã seguinte quando vi minha cama e calcinha manchadas de sangue, minutos antes de ingerir os remédios.
Conseguia me lembrar, mas estava impossibilitada de acreditar que eu realmente havia sido estuprada por ele, meu próprio pai.
Fiquei estática por um tempo. Não sabia o que fazer de imediato.
— Ela já saiu? — perguntou Luísa. — Veja se sua mãe não está na garagem. Tire logo essa história a limpo.
— Tem razão.
Corri para a garagem, mas com certeza minha mãe já havia ido trabalhar. Me aproximei de seu carro que estava ligado. Bem, incrivelmente ela ainda estava em casa.
Não sabia como abordá-la, muito menos como perguntar qualquer coisa sobre o que descobri. Pude escutar que estava falando ao telefone com alguém.
— Não seja idiota — ela dizia. — Fiquei aí onde está, nem pense em voltar. — Fez uma pausa para escutar quem estava do outro lado da linha. — Mas ela não se lembra que isso aconteceu, o envenenamento mexeu um pouco com a cabeça dela. Se ela tentar perguntar algo, direi que está inventando, que não está raciocinando bem. Já falei, fique aí. Se mais alguém souber do que você fez, a polícia vai te caçar.
Logo compreendi. Ela estava falando com meu pai. Então era por isso que fazia semanas que não o via, ele fugiu porque sabia que cometeu um crime ao abusar de mim.
Não sabia se ficava imensamente chocada, triste ou com raiva.
Minha mãe desligou o telefone e saiu do carro. Paralisou ao me ver.
— R-raquel — falou. — Está aí há muito tempo?
— O suficiente — respondi. Mostrei o envelope dos exames para ela. De início ficou sem entender, mas logo percebeu.
— Ah, era o que eu ia buscar porque tinha esquecido. — Observou o lacre violado. — Você... Você leu? — Assenti devagar. — E entendeu?
Senti o medo em sua voz.
— Infelizmente sim — falei. — E consequentemente me lembrei de tudo o que aconteceu naquela noite. — Lágrimas começaram a inundar meus olhos. — Como pode encobrir esse criminoso assim, mãe? Como pode?!
— F-filha, calma. Você está ainda atordoada com o que aconteceu alguns dias atrás, você...
— Não tente me enganar. Eu sei de tudo! Esse homem não presta! — gritei.
— Não fale assim do seu pai!
— E ainda o defende? Quer saber, mãe? Eu cansei. Se você não faz nada por mim, eu terei que fazer.
Tomei o laudo médico de suas mãos e saí de perto daquela mulher. Muito atordoada eu estava, confesso, mas a vida só me provava que eu conseguia ficar cada vez mais.
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