"O amor é paciente e benigno, não arde em ciúmes; o amor não se ufana, não se ensoberbece. O amor não é rude nem egoísta, não se exaspera e não se ressente do mal. O amor não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade. Está sempre pronto para perdoar, crer, esperar e suportar o que vier." — Um Amor Para Recordar.
Meus dedos estão apreensivos no volante, e reconheço que, se eu não manter o controle das lágrimas e do meu nervosismo, pode se resultar numa merda muito grande. O volume da música que toca numa rádio local está baixo, isso me lembra Maya, ela sempre gostou de músicas leves e num volume consideravelmente baixo. Droga. Aonde eu fui parar com a cabeça? Quando foi que perdi o controle total da minha vida? Como fui deixar isso acontecer? Antes de refletir, podia ter parado para pensar nas consequências logo cedo, bem antes de tomar a decisão de convida-la para jantar, se eu soubesse que acabaríamos no caos, não teria cogitado a ideia, teria deixado que permanecesse a barreira que ela mesma construiu entre nós. Eu só queria que pelo menos uma vez na vida ela deixasse de pensar nos outros e começasse a pensar mais em si mesma, que pensasse que talvez as pessoas não quisessem o bem que ela tanto deseja, soa doentio, fora do normal, e sou obrigado a concordar. A bondade de Maya é assustadora, creio que esse seja um dos principais motivos pelo qual não demos certo, eu sou o oposto disso, o oposto do bom e do coração mais puro jamais visto na face da Terra, e agora o destino enxergou isso, as forças se repeliram.
Estou com tanta raiva. Minha mente não está no lugar, e quando o sinal fica vermelho percebo que estou quase atravessando a avenida movimentada, piso no freio com tanta intensidade que meus dedos ficam espremidos, paro sobre as faixas brancas onde as pessoas passam com tranquilidade. Encosto a cabeça no banco e suspiro alto, fechando os olhos e mordendo os lábios, deixando que o inevitável viesse e entregasse o meu atual estado espiritual, as lágrimas escorriam por minha face incontrolavelmente, quase que sem fim, sem rumo, como se não houvesse fim e a dor parecia interminável dentro do peito, uma dor pra lá de lancinante. Eu me curvei, comprimindo o rosto contra o volante e tentando respirar sem os pulmões, enquanto o choro baixo transborda por entre os vidros fechados e o ambiente abafado. Desencosto antes do sinal abrir e soco o volante com toda a força cabível em mim.
Olhei pelo para-brisa por um longo tempo, meus pensamentos se arrastavam, não conseguia fazer com que as ideias chegassem a algum lugar. Desliguei o motor, que gemia de um jeito lamentável depois de ficar em ponto morto por tanto tempo. Já está bem tarde, o fluído do vento é inaudível ao entrar em casa. Deparei-me com minha mãe deitada no sofá, no décimo sono, fiquei receoso de acorda-la, para que isso não ocorresse, retirei os sapatos vagarosamente e os posicionei ao lado da porta — ela ficaria furiosa se soubesse que desrespeitei uma de suas regras sobre entrar de sapatos em casa, mesmo limpos —. Subi degrau por degrau, desanimado, usando o corrimão como uma corda automática. Entrei no quarto voando, prestes a quebrar a porta por bate-la tão bruscamente, os quadros tremem com o impacto. Pelo visto, o plano de não fazer barulha tinha ido por água abaixo, daqui a pouco minha mãe aparece para repreender sobre o meu comportamento estridente.
Afundo na cama e fecho os olhos, mas o sono não era meu aliado naquela noite que eu preferia jamais ter registrado na memória. Não conseguia dormir de maneira alguma, e isso me implicava ainda mais irritação. A cada minuto era uma nova posição, inclusive, o chão foi considerado uma opção, por ser gelado talvez esfriasse a queimadura profunda causada em mim. Até o som do relógio estava me incomodando.
Essas foram as vinte e quatro horas mais difíceis e dolorosas da minha vida. Não importa o que eu faça, parece que sempre volto à estaca zero com ela.
Depois de alguns minutos, decido me render ao sono.
Vejo Maya de pé em frente a uma enorme árvore, mais linda do que nunca. O vestido branco deslizava suavemente pelas pétalas de rosa encaminhadas por um pequeno altar de madeira, conforme andava graciosamente, sua silhueta reluzia com o brilho do sol. A grinalda de flores em sua cabeça era o par perfeito para o buquê colorido entre seus dedos.
— Maya... — pronuncio como uma prece sagrada e maravilhosa. Até então não tinha notado que estava de joelhos sobre o gramado esverdeado e úmido.
Abro um sorrio, e ela sorri em resposta.
— Está aí a muito tempo? — suspiro ao olha-la tão de perto. — Desculpe-me pelo atraso. Papai não parava de dizer o quão feliz estava por estarmos nos casando. Ele ficou muito contente por receber o convite de pastor da nossa união.
E bem ali, no longínquo do cenário aconchegante, revejo o reverendo caminhando com sua bíblia entre os braços. Sua vestimenta é formal, como sempre foi, porém, mais elegante.
— Olá, filho.
— Não acredito... — minha voz sai tremida, denunciando o vacilo do desespero.
Travo. Não sei o que dizer, não entendo essa estranha reviravolta e sensação de deslize de um penhasco cabuloso e dolorido. Aos acumular lágrimas nos olhos, deixo-me cair pelo balançar das árvores e despenco de joelhos novamente.
— Me perdoe por tudo, reverendo. Eu fui um inconsequente, nunca havia acordado para a vida como acordei agora. Devia ter dado ouvidos aos seus conselhos sobre integridade, boas intenções, devia ao menos ter respeitado a sua aceitação quanto aos meus maiores pecados. Eu pequei e não nego. Peço perdão ao senhor. Peço perdão por ter sido um moleque que, para saciar a sede de vitória, para não engolir esse maldito orgulho, acabei dando um fim ao seu grande legado na Terra antes que Deus dissesse "está na hora". Mas, quero que saiba, eu mudei, juro que mudei, e aprendi isso com a sua filha, a garota mais incrível que já conheci em toda a minha vida, a melhor pessoa que alguém poderia conhecer.
Não esperava que ele dissesse algo a respeito, quer dizer, não esperava que ele me pusesse de pé e olhasse no fundo de meus olhos. A sua pele estava tão branca quanto antes, e os olhos castanhos brilhantes aconchegavam qualquer um.
— Não, não. — ele fez um sinal negativo com o dedo indicador, sorrindo. — Você tem uma grande missão na Terra, meu filho. Lembre-se bem, por causa do pecado, nossa vida na Terra é limitada, um dia todos morremos, mas Jesus chegará para nos libertar do poder da morte, oferecendo vida eterna a todos que creem nele. Meu dia não foi o do acidente, foi apenas uma partida, Deus conversou comigo e contou da sua necessidade de conversar comigo, de se redimir, de pedir perdão. Você se tornou um homem bom, Justin. Eu também errei muito em julga-lo como alguém imprestável e deixo-lhe minhas sinceras desculpas. A julgar por suas atitudes na Terra, você é um aliado de Deus, Ele te escolheu para transformar aquilo que tocar. — ele tossiu. — Hoje é o meu dia. Minha vida começa a partir de agora, ao lado de Deus. Vejo a sua luz, ela finalmente chegou até você, algo que você pouco acreditava.
A dor se intensificou, e perguntei-me se os danos seriam irreversíveis a ponto de jamais suportar. As bordas feridas nunca se curariam? Não se atenuariam?
— Não mereço essas palavras. — estou desabando.
— Você merece o mundo. Obrigado por cuidar da minha menina na Terra.
— Eu a machuquei, reverendo.
— São complicações momentâneas. — ele põe a mão em meu ombro. — Vocês têm a minha benção. Não desista.
Vê-lo partir na primeira vez não tinha sido nada legal, na segunda então, foi pior ainda. Fiquei parado por um longo tempo, sozinho, dessa vez, Maya o acompanhava, ainda sentindo seu toque formigando. Não tive chances de me despedir antes, essa foi a chance oferecida a mim, da qual utilizei para pedir perdão por tudo.
Abro os olhos, absolutamente assustado. Vejo um vulto sobre a cama, tentando de todas as maneiras acudir o meu despertar violento.
— Justin! Filho! — é minha mãe. A rigidez em meus braços cedam a minha alma extremamente afetada. — Você está suando.
Olho ao redor. Forçando a respiração a voltar ao controle.
— Que horas são? — pergunto.
— Quase dez da manhã. — reconheço a inquietude em seu olhar indicando que há algo de errado. — Ouvi você chorar do meu quarto.
— Dormindo?
Ela suspirou, e logo assentiu.
Ao longo do mês completo, sempre que eu abria os olhos para a luz da manhã e percebia que sobrevivera a mais um dia, era uma surpresa. E descobrir que a noite anterior fez parte dessa luta pela sobrevivência, é um alívio. Meu coração estava disparado e a palma das mãos suavam; eu não conseguia respirar até que me levantasse e checasse que tudo não passara de um sonho.
Arranquei-me da cama num pulo, dispersando a presença de minha mãe. Fui direto para o banheiro, esperando que ela tenha saído do quarto. Meia hora depois sai do banheiro, deixando uma brecha de vapor quente por onde passava. Se minha mãe ver os respingos do cabelo molhado pelo chão vai ter um surto até o fim do dia, então tratei de seca-los antes que ela surgisse de repente. Talvez eu pudesse ficar na expectativa de um telefonema se não fosse pelo celular que quebrei durante a estadia indesejada na casa do meu pai. Lembro bem que, assim que fui questionado por minha mãe a respeito disso, ela não ficou nada contente, e para falar a verdade, não dou a mínima para essa porcaria de celular.
— Ouviu o que eu disse? — sai dos pensamentos ao estalar de dedos de minha mãe que já servia um copo de suco de laranja para mim.
— Não.
Ela suspirou alto. A jarra tilintou ao ser posta sobre a mesa de vidro.
— O carro está roncando demais, acho que é algum problema com o escapamento ou motor. Pode levar ao mecânico para mim hoje, por gentileza? Estou sem tempo. Preciso ir ao consultório.
— Beleza. Depois do café eu levo. — remexi o pedaço de panqueca fincado no garfo.
O café da manhã foi silencioso, e mesmo sendo apenas nós dois, minha mãe não deixava de exagerar nos sucos, pães, frutas e panquecas. Às vezes sentia a necessidade de alertá-la de seu exagero, é um gasto e tanto, sem contar que, não comemos nem metade, e assim que essa necessidade aparecia, logo lhe descartava. Uma vez ela disse que cozinhar lhe causava um bem estar muito grande, é o lugar dela e ela adora, e que mesmo cozinhando para mais de duas pessoas, não se importava.
— Duas pessoas ligaram essa manhã perguntando por você. — a olhei de canto, com desinteresse. Ela empilhava alguns copos e pratos da noite passada para lavar.
— É?
— Sim. — dessa vez ela se virou para mim, apoiando os cotovelos no mármore da pia. — Ryan quer que você o encontre no iate dele. Eu disse que você ainda estava dormindo e assim que acordasse, lhe daria o recado.
— Legal. Recado dado. — rodopiei o prato no dedo. Ela veio correndo desesperada para acabar com a graça.
— Não faça isso! Este prato tem história, Justin.
Eu a olhei, desaprovando a sua falta de fé no meu talento.
— Quem tem história é museu, mãe...
— Justin! — ela lançou mais um de seus olhares furiosos.
— Tanto faz. — murmurei. — Você disse que duas pessoas ligaram, então pelos meus cálculos, falta uma.
Ela respirou fundo antes de repassar o recado. Enquanto eu ouvia atentamente o nome de Maya ser pronunciado, a expressão de minha mãe mudou para preocupação ao presenciar um ataque de fúria. Não sei exatamente o que sentir, mas não quero mais nada sequer vindo de Maya, ou que qualquer outra pessoa cite seu nome. Quero estar bem longe. Quero viver o futuro infeliz que a vida me reservou, tentar sobreviver até o final.
— Não quero saber! — quase lancei a cadeira para longe ao levantar. — Não quero mais que o nome dela seja citado nessa casa! O anjo que vocês tanto falam, não é mais o meu anjo.
Meu tom deixou claro que não queria mais falar naquele assunto, nem nada que a envolvesse.
Horas depois, depois de deixar o carro na mecânica — o dono, Marvin, conversou comigo durante uma hora e meia, o assunto dobrava de um canto para outro, mas sempre se relacionava a minha mãe. Eu sabia que ele era afim dela, só não pensei que seria tão cara de pau a ponto de expor isso a mim. Sai de lá quase esfolando seu pescoço. — comecei mais uma das minhas caminhadas solitárias a caminho da pequena praia da cidade, rememorei o tempo que passáramos juntos. Chutei algumas pedras no caminho, xinguei alguns moleques que tropeçavam com seus brinquedos espalhafatosos e esbarravam em mim, mesmo sem querer, ainda pensando nela, em seus sermões, no que ela exatamente diria sobre esse vocabulário sujo que carrego.
Nem me dei o trabalho de retirar os sapatos antes de pisar na areia a minha frente. Enxerguei o iate de Ryan próximo ao píer, afinal, era a única coisa mais chamativa dali depois do pequeno parque de diversões. Havia algumas pessoas em volta admirando sua maior aquisição das últimas semanas. Lembro da ligação dele para um convite especial em comemoração ao seu iate, a galera toda foi e as fofocas sobre a melhor festa de barco rondaram pelo colégio até uns dias atrás.
— Ei, Justin! Chega aí, cara. — Ryan retirou os óculos escuros e balançou o braço. Ele segurava uma garrafa de cerveja em uma das mãos.
Acelerei os passos até chegar. Realmente Ryan mandou bem. Haja coragem para gastar toda sua economia em um automóvel que se move apenas na água. Não sei para onde ele pretende ir, mas com certeza foi uma ideia fantástica. Eu bem que queria ir para longe. O iate é todo branco, as inicias dele estão grifadas em preto na lateral. Não é tão grande, mas é aconchegante o suficiente para um cara que sonhava tanto em ter um iate. A porta de vidro revela uma cabine de comando redonda, e ao lado há uma porta de metal que presumo ser um pequeno quarto.
— Nossa, Butler! Você se superou, hein? — fizemos nosso toque de mão. — Que beleza.
— Viu só? Dá para ver tudo daqui. Agora tenho noção da imensidão desse oceano. Ele parece infinito. — ele parecia orgulhoso, e era para estar.
— Você não estava brincando quando disse que superaria as próprias expectativas. — soltei uma risada nasalada admirando as ondas se chocarem com a costa.
— É que você ainda não viu essa vista incrível a noite. Só as luzes do barco refletem no oceano, e bum! — ele esticou os dedos. — A mágica acontece.
Ryan está de bom humor, então presumi que se controlaria em bancar o bom conselheiro irritante. Sentei-me no sofá circular e simplesmente me perdi observando as gaivotas lutarem pelo peixe adquirido. Dois minutos depois, Ryan voltou com uma garrafa de cerveja em cada mão.
— Pega aí, irmão.
— Valeu.
A feira que acontecia a poucos quilômetros dali estava tumultuada, atraindo mais e mais turistas para a praia. Os carros estacionavam um ao lado do outro ao longo das ruas, sabia que não demoraria para este lugar lotar. Aquela tarde ensolarada causou uma felicidade nas pessoas que jamais causaria em mim, chegavam animados, pulando para todos os lados até entrar no mar, principalmente as crianças. O calor só me estressa. Como eles podem se divertir tanto?
— Amanhã é o último jogo da temporada. Você vai, não é? — seus olhos se tornaram fendas estreitas devido ao sol quente.
— Nem me lembrava disso. — menti.
Contei ansiosamente até hoje, mesmo sabendo que não compareceria. Mas, não queria que ninguém soubesse. Quero que pensem que superei os Warriors, quando a cada dia da minha vida recordo os bons momentos vividos sendo parte do time.
— Irônico. Justo você não se recordar de um jogo? É como se dissessem que Bill Russell não é a maior lenda do basquete. — ele sublevou os braços para os ares, distanciei-me ao sentir metade da cerveja cair sobre mim.
— E não é. — bufei, sacudindo os braços. — Michael Jordan é a lenda. — retruquei.
É desrespeitoso cometer um erro tão grave como este. Michael Jordan é a lenda do basquete, ainda existem pessoas que comparam outras pessoas a ele ou simplesmente se esqueçam da história deixada por ele. Se não fosse pelo infeliz assassinato de seu pai, ele estaria marcando presença até hoje. Eu jamais perderia a vontade de jogar basquete por qualquer outra coisa, dá até calafrio só de pensar nessa possibilidade. E talvez você pense “E os Warriors?”, não desisti deles, fui chutado por um canalha e não me sinto mais no direito de voltar.
— É, cara. Viu só? Você sabe tudo, isso só prova que está se enganando ao fingir que não dá a mínima. — recebi um murro brincalhão no ombro. — É a despedida do time do colégio. Agora somos formandos e em breve universitários. Dê um adeus ao honrado time.
As palavras de Ryan soam como socos no estômago.
— Não sou mais o responsável. Fale com o atual capitão, o que realmente se importa.
Ryan fitou-me longamente, sem expressão alguma no rosto.
— Qual é o problema? — dessa vez escorreguei até o chão, ficando na altura dos joelhos e os usando como plataforma de sustento de meus braços.
— Nada. — cerrei os dentes, observando o horizonte.
— Quer realmente que eu acredite? É um sufoco saber que ainda esteja abalado.
— Não estou abalado coisa nenhuma! Vê se para de tentar me ler e cuida da sua vida, Ryan! — respondi com agressividade.
Ryan arfou derrotado. Pelo menos, ele pareceu genuinamente arrependido de ter provocado com perguntas estúpidas.
— Certo. — ele evitou olhar para mim, mirando no chão. — Lembre-se do verdadeiro causador das complicações.
Com certeza ele notou a expressão ridícula plantada em meu rosto.
— É. Continue com essa expressão bovina, Justin. Você sabe muito bem do que estou falando. — não respondi. Em vez disso, levantei e virei de costas, olhando para a água.
— Isso não diz respeito a mais ninguém. — rosnei.
Detesto ser contrariado. Uma explosão de maior estrago dominou a minha capacidade de aturar minha sanidade mental, o meu poder de saber controlar tudo, até mesmo as lágrimas que derramo quando necessário, o poder de ter tudo em minhas mãos quando quero, sempre fui tão forte a qualquer caso, mas quando se trata de reviver cada detalhe da minha pequena história com Maya, a coisa inverte. Eu fico fraco, vulnerável e pareço um cão covarde, por conta disso, crio um vínculo tão grande com o meu âmbito psíquico impulsivo. Nunca foi tão difícil pensar sobre a própria vida refletindo cada erro nos mínimos detalhes e querer voltar no tempo para consertar o que já foi. Não preciso de vários lembretes dizendo que estou decepcionando as pessoas que amo sem ao menos notar.
— Se tratando do meu melhor amigo, me diz respeito. Por que não confia em mim? Não sou como o Chaz ou o Chris, não sou ninguém que irá julga-lo e distribuir a notícia de que está sofrendo por alguém que ama.
— Não estou sofrendo porra nenhuma. — estávamos cara a cara, pela primeira vez Ryan e eu nos peitávamos de frente. Nessa batalha da vida entre amigos, um dos soldados sairia ferido e estava disposto a não ser eu. Não é simplesmente porque somos melhores amigos desde o jardim de infância que deixarei a razão pessoal de lado.
— Pare de ser tão recluso, mano. Por que é o único que não enxerga?
— Estou determinado a esquecer, e agradeceria muito se respeitasse a minha escolha.
O evitei durantes dias para não correr o risco de ser questionado, o restante das pessoas bancavam os psicólogos agindo como se me conhecessem e eu não gosto disso. Não gosto que tentem se infiltrar na minha vida devido as brechas que os problemas deixaram.
Ele se deu por vencido e apoiou os braços nas grades, sacudindo a cabeça negativamente.
— Por que vai fazer isso?
— Não tenho escolha.
— Todos têm escolhas, cara. E você escolheu a pior de todas dando um fora na Maya e seguindo com o casamento.
— Ela não me ama. Não se importa comigo.
— Você está errado. — declinou-se sobre a grade. — Ela fez isso por ama-lo, se não amasse, teria o acompanhado nessa ideia louca de traição. Pensei que a conhecesse, Maya não desvia dos bons caminhos e também não deseja que o próximo faça o mesmo.
— Até você, Ryan? — mostrei indignação.
— Não. — protestou. — O único egoísta aqui é você. Ela só pensou no seu bem, no que as pessoas pensariam de você sabendo que vai se casar em breve, vai ter um filho e ainda sim, trai a esposa.
— Não fui egoísta. — me opus a possível verdade. Ser chamado de egoísta é comum para mim, mas pelo meu melhor amigo? Devo expressar o quão irritado fiquei? Nunca o julguei. — Eu a amo, Ryan.
— Se ama, compreenda. Você se sentiria bem se fosse com ela? Se ela estivesse prestes a se casar e traísse o noivo com você? Pare e reflita a respeito.
Nunca parei para pensar nisso.
— Não importa, não se trata dela. Fui enfiado nisso, pelo menos queria a opinião dela.
— Você teve, ela permitiu que você prosseguisse para o seu bem. Ela pensou em você.
Pensou em mim. Por que essa frase soa tão desagradável? Tão errônea?
— A Maya é um desafio para você, não?
— Não. O meu desafio é a Andrea, Maya é um enigma a ser decifrado.
Por um instante, enquanto Ryan adentrava a sala de monitoração, senti uma onda de memórias inundar-me: a morte do reverendo e o subsequente funeral, a minha prisão, o retorno do namoro com Andrea e o término. Pensei em Chaz, o cara que confiara tanto de olhos vendados. Eu estava prestes a completar dezoito anos, ir para uma universidade caso fosse aceito. Perdi os Warriors, a minha maior fonte de confiança. Pensei também na primavera que apaixonei-me, desde então é uma sombra mista de escuridão e claridade. Não tinha sido há muito tempo atrás quando descobri a gravidez de Andrea. Estou diferente da pessoa que não tinha medo, que vacilava e ria no final, hoje passo a maior parte do tempo refletindo e questionando: como uma pessoa com menos de dezoito anos pode ter enfrentado – e enfrenta – tudo isso? Um adolescente normal viveria a vida no limite, mas com respeito a si mesmo e ao próximo, não ultrapassaria as estribeiras como um rebelde ingrato.
De última hora, antes de despedir-me de Ryan, o mesmo anunciou sobre a festa que daria no final da tarde, fez questão de que eu aparecesse, disse que não precisava curtir o momento, mas que exigia no mínimo uma cabeça branda para enxergar o que acontecia em volta. Concordei sem animação, dando de ombros. Voltei para casa pela praia até dar de cara com o aviso prévio do fim da areia branca e o cheiro do mar.
Ao chegar em casa, minha mãe sorria para a TV, sorria tanto que tive a impressão de marcas infinitas dominarem seu rosto. Eu estava tão envolvido com a minha miséria, que levei alguns segundos para reconhecer o Buzzer Beaters que marquei. Esse dia foi ótimo, passei a ser idolatrado após marcar o ponto no estouro do cronômetro e dar a vitória aos Warriors. Apertei os punhos e cerrei os dentes, logo estendi a mão e desliguei a TV. Provavelmente ela aproveitou a minha ausência para voltar a rever os vídeos de todas as minhas jogadas dentro de anos durante a participação nos Warriors. Eu simplesmente odiava quando fazia isso, principalmente depois que fui terrivelmente chutado.
— Por que você fez isso? — ela perguntou, franzindo a testa. — Eu gosto de vê-lo jogando.
— Eu não.
— E se eu abaixar o volume da TV? — sugeriu.
— Apenas pare, mãe, tudo bem? Não estou com humor para isso! — encarei o quadro da equipe toda na parede próxima ao armário de artefatos familiares, sabendo muito bem que os lábios dela tinham acabado de virar uma linha apertada. Ela fazia muito isso ultimamente. Era como se seus lábios estivessem magnetizados.
— Você nunca está de bom humor, querido. — ela riu sozinha. — Por que não se senta e assiste comigo? Você adorava, lembra? Eu posso fazer uma limonada e curtimos os vídeos.
— Adorava. Não adoro mais. — retruquei, faiscando pelos olhos. — Pare de assistir, valeu? Estou indo para o meu quarto.
Subi os degraus de dois em dois rapidamente. Minha mãe odiava que eu fizesse isso. Fechei a porta do quarto com brutalidade sem ao menos dar importância com os chiados dela mais tarde. Arrastei-me até a cama ao pegar o notebook, após verificar a caixa de e-mail mais de dez vezes, também visitei a caixa de correio na esperança de ter recebido uma certa carta para a Universidade de Stanford. A aprovação talvez estivesse longe, agora que não faço mais parte dos Warriors as chances de ser aceito diminuíram em cinquenta por cento e é assustador pensar que talvez não consiga entrar por isso.
Fiquei trancado durante horas no quarto que mal vi o dia indo embora. Bocejei, senti que a energia que me restava estava acabando, adormeci quase que imediatamente, mas acordei meia hora depois com batidas na porta.
— Filho? — minha mãe me fez abrir os olhos e olha-la na entrada do quarto. — Sinto muito por acorda-lo, mas tenho algo importante para mostrar a você.
— Haja coragem para acordar uma pessoa impaciente.
— Não seja grosseiro! — sibilou estridente ao repreender-me com um tapinha no braço. Ela colocou uma caixinha branca e dourada sobre a cama, o laço estava perfeitamente intacto, apesar de bonito, as marcas do tempo denunciavam os anos guardados dentro de um armário.
— O que é isso?
— É da nossa família, foi passado de geração em geração. Sua avó deixou para mim e agora quero dá-lo a você. — ela sorriu gentilmente, consequentemente sorri junto a ela e logo depois o desfiz.
Peguei a caixinha de sua mão e desfiz o laço desfiado para ter acesso a tampa, ao abri-la revelou um anel. O aro é banhado em ouro branco clássico, há uma pequena pedra cintilante de cor que se situa entre o verde e o violeta tendo o realce do azul safira, as garras de metal branco que se estendem do aro e prendem a pedra estão surradas devido ao tempo, mas quase imperceptível.
— Que pedra é essa? — extrai o anel do suporte almofadado, admirando a pedra reluzente.
— É a tanzanita. Seu trisavô trabalhava em uma mina de ouro para o governo, então ele encontrou a tanzanita e a levou para casa, sem levantar suspeitas do governo. Seu trisavô era esperto, estudou sobre diversas pedras até descobrir o nome dessa, em tempo integral ele trabalhava em uma joalheria, então todas as noites depois do estabelecimento fechar e os funcionários irem embora, começou a desenhar um específico modelo de anel, disposto a montar um extremamente especial, ele gastou muito dinheiro com o ouro para banhar em ródio e deixa-lo realmente branco. Após o anel ser feito, o guardou nessa caixinha já que sua esposa falecera há poucas semanas. Antes de morrer fez um último pedido: gostaria que fosse repassado por todos os seus familiares, assim que alguém encontrasse seu verdadeiro amor, que chegasse ao dedo da amada ou amado.
— É realmente muito bonito.
Ela concordou com a cabeça.
— Mas, não tenho motivos para ficar com ele. — empurrei a caixa e o anel para o seu colo.
Seria um erro ficar com um anel tão único e caro. Do jeito que estou avoado, capaz de perde-lo em questão de semanas. Gostaria de ter um motivo especial para tê-lo, mas não tenho.
— Ah, querido. — ela soltou uma risada nasalada. — É claro que tem. Sei que saberá o que fazer com ele. — ela abraçou-me de lado, esfregando meu braço com carinho. — É seu.
Hesitei. Meus olhos ardiam com desanimo. Fracionado em dois pedaços melancólicos, não pude entender o que meu coração desejava, corroía-me, eu fraquejava com a minha vontade de continuar sendo forte. Eu sei que preciso de uma benção e para isso preciso ajoelhar-me diante os pés de Jesus e implorar por uma segunda chance, implorar para convencê-lo de que eu admito meus erros e que paguei o meu preço, aprendi a lição. Sou um psicopata em todos os sentidos.
— Valeu, mãe. — finalmente disse. Deslizei os dedos pela caixinha e a guardei no bolso da calça. Soltei o suspiro pesado instalado em minha garganta e elevei o olhar até o relógio sobre o criado-mudo, as horas voaram.
(...)
O sol estava se pondo no longínquo, dando ao oceano um resplendor quase dourado. Algumas poucas famílias estavam sentadas em toalhas próximas a água, registrando o momento com fotografias e comemorando com risadas. Os convidados se estendiam entre calouros da universidade, colegas de colegas e formandos do último ano, todos conversavam como se fossem amigos há muitos anos, claro, sob o efeito do álcool é fácil agir fora de si. Embora puxem conversa comigo, seja servido de bebidas por garotas universitárias esbeltas, não municiava um expressão afável àquela situação, sinto pena de dar o fora nelas, mas estou de saco cheio e não quero ninguém esfolando a pingo de paciência que me resta.
Mais convidados subiram para o iate, em meio aos cumprimentos vi a última pessoa que sonhava em ver, Maya. Quase engasguei e cuspi a bebida guardada nas bochechas, e então parei para olha-la fixamente ao perceber que estava sendo acompanhada por um cara de camisa polo branca. O que diabos ela está fazendo aqui? A essa hora? E com um cara totalmente estranho para mim?
— Puta merda. — resmunguei.
Está vendo só? É difícil tentar seguir em frente quando o futuro te reserva o maior encontro inimaginável. Essa festa está cheia de bebidas, garotas extravagantes e caras abusados, não é lugar para ela. Por mais que eu finja não me importar, eu me importo. Me importo a odiando por ter causado a maior bagunça no meu coração. Recostei-me na grade do iate. De fato, uma pontada de ciúmes cutucou meu interior, o brilho do olhar de Maya era confiante e ocultava quaisquer sinais de sofrimento pelo rompimento. Essa partida já tinha um vencedor, infelizmente longe de ser eu, mas era a mulher que distribuía sorrisos por aí, o raio de sol ambulante e a pessoa mais acolhedora que já conheci.
— Preciso de mais uma bebida. — simplesmente arranquei da mão de um cara do qual se assustou imediatamente pelo ato nada sorrateiro.
Contemplava-a a pouca distância. Seus trajes são evidentemente minuciosos, a calça branca podia ser alvo para gracinhas por parte dos outros, alguém podia derrubar uma bebida e tirar fotos, assim como uma linha de seu moletom preferido poderia enganchar num prego e deixa-la seminua. São inúmeras possibilidades. Mas, por que penso tanto nisso? Tão negativo? Creio que as pessoas não cheguem mais a esse nível de maldade com a filha do reverendo, não comigo aqui, não quando posso atropelar qualquer um que ousar chegar perto dela.
— Foi mal, cara. Ele está um pouco alterado. — Ryan murmurava calmamente para o cara na esperança de evitar confusão. — Tem mais no frigobar, pode ir lá pegar.
Não conseguia tirar os olhos daquele cara com Maya.
— Justin, você ficou louco? E se o cara não fosse alguém de bom entendimento? Teria causado a maior farra aqui, e eu não quero meu barco destruído! — Ryan impôs sua postura de um arrogante e pretensioso proprietário.
— Quem é aquele cara? — desprezei seu comentário.
— Quem? — suas sobrancelhas uniram-se em dúvida.
— Aquele ao lado da Maya, o engomadinho de camiseta polo. — apontei com a traseira da garrafa.
Ele riu alto, chamando a atenção da movimentação ao redor.
— Quem vem de camiseta polo para uma festa? — caçoou.
Normalmente eu completaria com uma crítica a mais, no entanto, faltam-me palavras para tudo que está rolando por aqui. Tive a sensação dos olhares de Ryan sobre mim, com o seu sorriso de canto pra lá de irritante. Ele está pensando em algo e suponho que esteja convencido de toda razão.
Os dois conversavam atentamente sobre algum assunto intrigante, ela ria como se nunca tivesse rido antes. O sangue subiu. Queria ser impassível a tais sentimentos. Forças suficiente não seriam capazes de apagar aquela imagem da mente, ele a tinha em seus braços num caloroso ato de carinho, e por mais que meus nervos estejam à flor da pele, não movi um músculo, não falei nada, apenas continuei parado, a encarando com tanta fúria que podia jurar que minha alma suplicava por socorro. De repente perguntei-me quanto tempo ficamos separados e por que havia ocorrido. Tão errado. A vida é realmente cruel. Expressei descontentamento ao notar a retribuição, ainda mais com um sorriso brilhante.
Nossos olhares se cruzaram. Ela agarrou a ponta do moletom de cashmere envergonhada e de forma literal. Se não fosse por sua atitude de expressar surpresa, podia jurar que ela sabia da minha presença.
— Ai, galera! Uma atenção aqui. — Ryan convocou o silêncio de todos, inclusive dos demais convidados na praia, ao subir na beirada do iate. — É o seguinte, preparei um jogo para esta noite. Para algumas pessoas, pode-se considerar um jogo caliente... — geral se animou com a ideia. Revirei os olhos e continuei na minha. — Um cara está passando e entregando o crachá de cada um, com suas respectivas fotos e nomes. É como se fosse uma caça ao tesouro, mas no caso, o tesouro de vocês é a vida e quem pegar o máximo de crachás, vence.
— E o que ganhamos com isso? — um no meio de várias pessoas perguntou, já serviria para sanar a dúvida mais importante.
— Um dia inteiro no meu iate, totalmente livre, à vontade para fazer o que quiser e com quem quiser. — ele olhou para mim. O prêmio possuía uma ideia positiva muito elevada para um prêmio "qualquer". Sua intenção é totalmente outra.
— E quais são as regras?
Diferente de todos, mostrei indiferença. Ryan se movimentou, cruzando os braços sobre o peito. Ele carregava um sorriso malicioso.
— Essa é a parte mais intrigante, não há regras. Só tentem não matar uns aos outros, beleza? — a sua garrafa foi erguida. — A praia é o cenário de vocês, assim como metade da rua.
Enquanto Ryan descia do alto do iate, um cara distribuía os crachás inclusos dentro de uma caixa de madeira branca.
— Que palhaçada é essa, Ryan? — antes que ele pudesse passar por mim, agarrei seu braço e o puxei para trás.
— Não deixe que nenhum otário vença e destrua meu querido iate. Faça sua parte e tenha o prêmio que merece. Estou lhe concedendo uma chance, então não a destrua!
Bom, que assim seja. Não seria tão difícil, levando em consideração que conheço os pontos exclusivos dessa praia e suponho corretamente onde a maioria tentará se esconder, sou um estrategista, tenho facilidade em jogos, não é à toa que eu fora escalado para capitão. Os convidados dissiparam-se apressadamente ao primeiro sinal indicativo de início do jogo, ao longo das areias brancas avistei um cara de cabelos espetados na parte posterior de uma duna de areia, aproximei-me cautelosamente e arranquei sua foto, erigindo-o com orgulho.
— Perdeu, mané.
— Droga! Não tenho sorte com essas porcarias. Esse iate seria a chance de comemorar um dia do meu noivado. — bateu o pé na areia.
— Hm, que pena. Quem sabe tenha mais sorte da próxima vez?
Continuei o jogo. Apesar de quase perder a minha foto inúmeras vezes, sobrevivi às tentativas de ataque e contornei a situação, roubando a foto de um por um. Agi às escondidas tão bem que alguns jogadores não se atentaram já a estar fora do jogo pelo roubo de suas fotos.
Senti alguém tentando se aproximar de mim pelas costas, virei-me tão determinado a vencer o jogo que quase derrubei a vítima. Não seria tão ruim assim, o culpado por perder a própria foto era o acompanhante de Maya.
— Pode vazar. Perdeu sua vida, o tesouro é meu. — segurei a foto por entre os dedos.
Ele examinou a maré subir freneticamente.
— Valeu, cara. Você é bom.
— Bom até demais. — vangloriei-me.
Ele estreita os olhos, agindo como se tivesse visão de raio-x para observar através da minha alma, então simpatiza com a cabeça. Esse cara é sinistro.
— Está bem. — ele dá as costas.
— Ei! — o cara se vira. — Só por curiosidade, de onde conhece a Maya?
— A Maya? — há uma expressão divertida em sua face. — Ah, não... — ele dá uns dois passos para trás. — Você é o cara, não é? — soltou uns risinhos irritantes.
Será possível que toda família Bennett seja tão sorridente quanto Maya?
— Cara? Que cara? — cruzo os braços, curioso com esse tal cara.
Será que Maya anda tendo um encontro às escondidas com outro cara e está dando um bolo em nós dois? E agora esse cara, nesse exato momento, esteja confundindo-me com o outro cara? É impossível, tem que ser muito tolo para confundir alguém como eu com um carinha qualquer por aí, sou totalmente de um nível supremo. Pensando assim soa ridículo, Maya não tinha coragem nem de admitir para mim que me amava no começo, tinha vergonha de olhar nos meus olhos quando eu a encarava, quem dirá sair com outro cara.
— O cara por quem ela está apaixonada. — sorri com a maneira que fui mencionado. Então é assim que sou apresentado por ela? O cara por quem ela está apaixonado? — A propósito, meu nome é Jay. Na verdade, é Jonah, mas prefiro que me chamem de Jay. — ele estende a mão para um cumprimento. Eu o ignoro totalmente.
— Como sabe disso? Anda tentando se aproximar e ela deixou bem claro que o coração dela já tem dono, não? — seria bom deixar claro que o coração de Maya só tem coração para uma pessoa, no caso, eu.
— Não seja tolo. — ele riu. — Incesto é pecado, sabia?
Fiz meu melhor para manter a expressão neutra e não estragar os pensamentos obscuros que formulei a respeito do cara, mas era muito difícil.
— Nós somos primos. Sou filho de Annellize.
— Ah... — ele deve estar rindo de mim agora.
Acho que quebrei a cara.
— Eu estava ansioso para conhecê-lo, mas você não é o cara mais simpático do mundo. Talvez cheio de si, mas nada simpático. — engraçado que mesmo jogando insultos consegue sorrir como se fosse a coisa mais normal do mundo.
— Ou, cuidado aí. — o adverti. Não seria nada legal socar o primeiro familiar de Maya – depois de sua tia, é claro – que conheço.
— Relaxa. Você é o primeiro cara que consegue deixar minha prima nas nuvens. Desde criança ela acredita no amor, mesmo nunca tendo um, mas claro... antes de você aparecer. É o primeiro amor dela.
Esse cara fala de uma maneira muito estranha.
— Sem ofensas, mas você é gay? — afinal, que tipo de homem fala como se tivesse saído de um conto de fadas?
— Não, e se fosse, qual seria o problema? Sou inglês, deve ter notado o sotaque. Eu sei que não é muito comum um cara da minha idade falar tão romanticamente assim. Me considero um cara romântico e me expresso de tal maneira.
Porra, ele fala demais, tudo embaraçado. É impossível de acompanhar seu raciocínio e falava quase que infinitamente. Eu não tenho tempo o suficiente para que ele compartilhe tudo o que queira, mas mesmo assim fiquei assentindo a todas as suas histórias. O assunto saltava de um ponto a outro, desde a infância em Bournemouth até a adoção de Maya; compartilhou mais de suas memórias de quando tocava piano e seu relacionamento com Maya; ele admitiu que em alguns momentos sentia-se ressentido com o fato de ter que sentir a pressão de se tornar o tipo de pessoa que sua mãe, Annellize, precisava que fosse com a recente vinda do falecimento de seu pai. Para ele, o futuro estava planejado: quatro anos em Portsmouth, e após a graduação ele ganharia experiência trabalhando em outra firma, depois voltaria para Bournemouth e assumiria os negócios deixados pelo pai.
Depois de dar tchau a ele, faltava uma última participante, Maya. Devido a sua altura as pessoas não a encontram escondida pelos cantos, acho que é a primeira vez que ela se diverte socialmente. Enquanto caminhava, refletia sobre meus respectivos planos, admitindo a mim mesmo que o meu destino está incontrolável. Ouvi vagamente alguém respirando alto, mas antes de dar mais alguns passos, senti a pessoa tropeçar comigo, tirando meu equilíbrio por um instante. Amaldiçoei o culpado por aquele acidente – ou não –.
— Droga! Está querendo levar um murro, infeliz? — meus cotovelos ardiam com o atrito dos pequenos grãos de areia.
— Oh, meu Deus! — reconheceria aquela voz de longe. — Você se machucou? Minhas sinceras desculpas. Eu tropecei e...
(Coloquem I'm In Here versão piano da Sia para tocar)
Ela cessou o pedido de desculpas ao olhar para mim. Agora ela já não estava mais sobre mim, mas estava ajoelhada sobre a areia.
Que belo encontro, não?
— Desculpe, eu... — as palavras saíram tremulas. — Uma garota tentou pegar minha foto, não tive outra escolha a não ser fugir, não vi quem estava na minha frente. Acho que a despistei. Espero não ter te machucado.
— Está tudo bem. — minha mandíbula contraiu, eu a fitava de forma contundente.
— Mesmo? Eu sinto muitíssimo. — ela estava realmente preocupada.
Aproveitei de seu momento de desperção e grudei em sua foto sorridente no moletom. Posso ter agido de má fé roubando a foto numa situação como aquela, mas esse é o jogo.
— Venci, como sempre. Você está morta. — fingi não ouvir as palavras e detonei com a última jogadora. Eram palavras de duplo sentido.
Sua boca ficou entreaberta, a ponto de dizer algo quase incompreensível, repleta de perplexidade, mas não o fez.
— Isso parece um jogo para mim. Um jogo muito doloroso. — disse entre os dentes, entregando seu cansaço. — Eu me sinto muito vulnerável. — virei-me de frente para ela. — Você me devasta por completo e eu fico desamparada, porque uma hora você diz me amar e na outra age como se me odiasse, diz que quer ficar comigo e depois parece ter se esquecido de mim. Você se colocou uma armadura. — seu corpo ficou recolhido com o vento. A todo instante encarava a areia abaixo de seus pés, com as mãos unidas.
— Essa armadura me ajudou a ganhar o respeito das pessoas, talvez me tornar uma pessoa que alguém possa amar sem ser por status.
— Alguém te amou, ainda ama. Não se esconder por trás de uma máscara sombria, que é o que está fazendo, lhe deixaria mais seguro. Mas, preciso de um caminho, um caminho que dessa vez só você pode ditar, depende unicamente de você.
— É, dependeu de mim e eu fiz tudo que estava ao meu alcance. Você renegou, lembra? Agora não me venha falar sobre segurança no que sinto. Nunca estive tão seguro em toda a minha vida quando disse te amava, enfrentei os meus piores pesadelos, e quer saber de uma coisa? Valeu a pena, valeu a pena até aquele presente momento que você insinuou o erro de prosseguirmos, depois desconfiei. Se eu pude passar por todos os meus pesadelos, por que você não pode passar pelos seus por mim?
— Só porque não podemos ficar juntos, não significa que eu não te ame. Muito pelo contrário, fiz por você. Não quero que cometa erros que o façam se arrepender depois. — as lágrimas brilhavam em seus olhos.
— Não pedi que fizesse nada por mim, Maya. — esbravejei. — Só pedi que ficasse ao meu lado. O seu jeito de agir é tão... incontrolável. Você não pode simplesmente invadir a vida das pessoas, virar o coração delas de cabeça para baixo e depois fugir como se nada tivesse acontecido. — soltei o ar dos pulmões, devolvendo o choro ao seu devido lugar. — Não pode simplesmente fazê-la viver uma realidade mais parecida com um sonho e depois deixá-la esperando feito um idiota para que depois dê um fim àquilo.
Meu coração não batia com tanta emoção, agora ele tomou a forma mais lenta e dolorosa. Eu tinha uma obsessão tão grande por nós dois que acabou dando tudo errado.
— Eu não dei fim...
— Eu mudei por você como nunca mudei por ninguém antes. — não a permiti que terminasse. — Eu te amo como ninguém jamais a amou. Eu enfrentei tudo para convencê-la de que queria realmente ficar você.
— Eu também! Você não faz ideia do que se passa dentro de mim, dentro da minha cabeça. É tudo muito novo para mim e só uma força divina está sendo capaz de me fazer suportar. É tão confuso. — seus olhos estão inchados e vermelhos. — Pela primeira vez não sei o que fazer para consertar.
— Tudo que sei, é que não é isso. Você fez tudo errado e só terminou de estragar o que construímos. Eu passei por cima da sociedade que te julgava tanto, passei por cima de amigos e os perdi por isso. Os sentimentos não são como uma corda onde se pode dar diversos nós e assegurar de que não se arrebentará tão cedo, mas ainda sim, frágil.
— Você está certo, e fico contente que pense tão profundamente, isso significa que não deixou os problemas apodrecerem o seu interior. — sei que a chateei, mas não queria que ela fosse embora quando ameaçou se levantar..
— Espere, não... não vá. — estendi a mão para detê-la de voltar para o resto do pessoal no iate. Ela suspirou e voltou a sua posição anterior. — Eu sinto muito... não quis dizer essas coisas. Eu só... eu... vi seu pai. — seu olhar ergueu em minha direção, os olhos brilhavam em emoção. Minha cabeça baixa e meus dedos entrelaçados.
— Meu pai? — sua respiração agora está descompassada. Ela está tão em choque quanto eu.
— Em um sonho. Era como se ele ainda tivesse um propósito antes de partir verdadeiramente para o reino do céus, senti uma vibração tão intensa e majestosa, tão... verdadeira. Ele parecia real. — ela estava atenta a todas as minhas palavras. — Você também estava lá. — nos olhávamos no fundo dos olhos. — Você sorria o tempo inteiro, como sempre faz.
Eu tinha um radar muito aguçado para saber quando estragaria os planos e mesmo assim não hesito quando percebo que vou fazer merda. Planejei uma coisa e não saiu do jeito que pensei, a ideia era ficar ao máximo possível distante dela, odiá-la sem odiá-la de verdade para convencer-me de que estava errado com quando o assunto é preferencialmente ela. Estou em uma pacata rua sem saída e não tem mais ninguém que eu pudesse confiar para relatar o encontro com o reverendo no sonho. Ela tinha se tornado parte da minha vida, de muitas maneiras, a melhor parte. Mesmo que eu nem sempre a entendesse, nossas diferenças pareciam fazer o nosso relacionamento, de alguma maneira, mais forte.
As palavras do reverendo passavam por minha cabeça sem a clareza perfeita da alucinação da noite anterior enquanto explicava a ela cada detalhe. Eram só palavras, sem som, como se estivessem impressas numa página, mas são essas palavras que abrem ainda mais o buraco profundo do meu coração.
Com a benção do reverendo, a certeza de não desistir de Maya habituou em mim.
— Sempre ajudando os outros, como um verdadeiro anjo. — ela mordeu o lábio inferior e ergueu o olhar para o céu, libertando mais lágrimas presas. Através de seu gesto pude notar que agradecia em sussurros.
— Eu sei... — sibilei, puxando sua mão para o meu colo. — Posso confessar uma coisa?
— Claro. Eu adoraria.
— Senti um bem dentro de mim, mesmo estando tão devastado e em meios às lágrimas.
Apenas com um ligeiro movimento dos lábios, ela sorriu.
— É a presença de Deus. Ele sabe confortar um filho num momento de apuros ou angustia.
O que ela quis dizer quando disse que é a presença de Deus? Como alguém poderia explicar uma coisa dessas? As palavras podem ser entendidas, mas o conceito permaneceria misterioso e privado, alguns religiosos dizem que é necessário o coração puro para experimentar este milagre. Conversamos sobre muitas coisas, descobri que sua tia conversou muito com ela e permitiu que viesse a festa para acertar as coisas. Ela quer ficar comigo, se recusa a ter o laço mais íntimo de um relacionamento a base do respeito, não gostei da ideia de não poder beija-la sem que pedisse, mas fiquei contente com as demais condições. Eu poderia abraça-la e dirigi-la com adjetivos carinhosos sempre que quisesse. Havíamos conversado sobre a oferta de acompanha-la no baile, ela recusou, flexível, dizendo que seu primo a acompanharia, mas me surpreendeu ao confessar que adoraria dançar uma música comigo.
Lembrei do anel feito por meu trisavô, as indiretas de minha mãe faziam total sentido para mim agora.
“— Ah, querido. É claro que tem. Sei que saberá o que fazer com ele. É seu.”
Sorri comigo mesmo, a ideia é esplêndida. Como minha mãe tinha tanta certeza? É verdade quando dizem que as mães pressentem tanto coisas boas, quanto coisas ruins.
— Feche os olhos. Tenho uma surpresa para você.
Ela fechou os olhos, lançando-me um sorriso. Ela e seus sorrisos me encantam.
— O que é? — ansiosa, acabou pegando um bocado de areia e deixando escorrer pelos seus dedos.
Na beira da água, as tartarugas marinhas surgiram com as ondas à procura de tranquilidade para depositar os ovos que, em breve, quebrariam e relevariam pequenos animais marinhos que voltariam para seu habitat natural. Inclinei-me um pouco para trás e enfiei a mão no bolso da calça, retirei a caixinha quase que intacta e depositei-a sobre sua mão, imediatamente ela abriu os olhos e se maravilhou sem ao menos ter visto a joia. É fácil impressiona-la, e por ser tão fácil, gostaria de fazer mais e mais para ter a certeza de que ela jamais se esqueceria daquele momento.
Não obtive sucesso em tentar esconder a ansiedade de ver sua reação. Ela puxou a tampinha aveludada com carinho, juro que a vi quase cair para trás. A pedra combinou com a água escura do mar e refletiu-se com as frestas luminosas da lua no céu.
— Oh, meu Deus. — com delicadeza prendeu-se ao meu braço. — Não sei o que dizer. É... é realmente muito lindo! — emocionou-se.
— Este anel é a prova do meu amor. Peço que fique com ele até o baile, se você ficar, saberei que está disposta a lutar por nós dois, e então, também saberei o que fazer quanto ao casamento. Eu vou dar um jeito, prometo! Vou salvar nós dois.
CONTINUA
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