"Ele vai ficar bem?" Uma voz perguntou em tom de preucupação.
"Sim, vai sobreviver." Respondeu alguém rouco.
"Por que ele gosta de se arriscar tanto? Isso ainda vai me deixar louca!" Disse outra voz mais suave. Algo quente e molhando bagunçou os pelos de sua cabeça, fazendo Pata de Alecrim abrir um pouco os olhos, como pequenas lâminas. Ele piscou algumas vezes, esperando que os borrões a sua frente se tornassem nítidos, mas não aconteceu. Apenas enxergava mais e mais borrões.
_Ele está acordando!-exclamou uma voz animada que fez os ouvidos do aprendiz sunirem. Ele franziu a testa. Queria falar alguma coisa mas parecia que seu cérebro tinha esquecido como se fazia para falar, então murmurou algo incompreensível.
_hmm...
_O que foi, querido? Quer algo? Está com fome?- Alguém miou fino com preucupação, o que fez as orelhas do gato listrado girarem para trás. Tantos miados e sussurros o davam dor de cabeça.
_Por favor, vamos deixá-lo descançar, a perna dele ainda está muito ferida! Quanto menos gatos melhor!- grunhiu uma voz rouca e cansada para os outros ali presentes. Agora Pata de Alecrim começava a se recordar, o texugo havia mordido sua perna. Ele arranhou os olhos do bicho para afastá-lo, mas ao invés disso ganhou um belo ferimento na perna esquerda traseira. Na hora a dor era quase insuportável, mas agora sua perna estava dormente e enfaixada. Se ele não podia ver nem falar direito, iria farejar. Com uma boa fungada no ar e pode saber que estava em Siqueiro Oco e que sua mãe, Folha de Erva, Pata Arrepiada e o curandeiro, Passo Apressado estavam lá. Sentiu um cheiro estranho de gato, mas não reconheceu. Alguém cutucou seu ombro com a ponta da cauda e o felino entreabriu um olho tentando assimilar o borrão branco à sua frente. Pelo cheiro, provavelmente Passo Apressado.
_Coma essas ervas.- Com certeza era ele. Sem hesitar, esticou o pescoço e comeu a papa verde de erva. Não era ruim, era um gosto bom, suave e um pouquinho azedo no final. Então encostou a cabeça nas samambaias e começou a sentir sono... tanto sono...
...
_E ele está bem?- perguntou a gata negra para a aprendiz cinzenta ao seu lado. As duas estavam em Floresta de Plátano colhendo ervas e plantas medicinais, à pedido do velho curandeiro, Passo Apressado. Pata Arrepiada iria sozinha, mas Pata da Noite se ofereceu para ajudá-la. Ela ascenou positivamente enquanto colhia algumas ervas.
_Ele vai ficar melhor. A mordida não foi tão profunda, mas machucou bastante. Vai precisar de, no mínimo, uma lua para se recuperar.- respondeu ela cavando o solo em busca de raízes.
_ Puxa! Uma lua é muito tempo! Que pena...Pata Arrepiada, o que você acha da prisioneira Pata de Luz? Eu a acho muito rabugenta!- Pata de Luz era uma gata cor de gengibre do Clã das Rochas que Coração de Noz havia capturado em uma batalha, pouco antes do texugo invadir o acampamento. Ela era rude e tinha uma língua afiadíssima, além de tentar atacar qualquer um que se aproximasse. Pata Arrepiada encolheu os ombros enquanto retirava algumas sementes de papoula da flor.
_Bem... ela não é nenhuma flor que se cheire, mas ponha-se no lugar dela: presa em outro clã, longe da família, amigos e de seus costumes. Ela deve estar apavorada! Sinto um pouco de pena dela.- A pequena aprendiz manchada retraíu as orelhas envergonhada por seu preconceito sobre Pata de Luz. Talvez ela não fosse tão ruim.
_Você tem razão. O que será que Estrela de Granizo vai fazer com ela?- a aprendiz de curandeiro deu de ombros e trocou toques de nariz com a amiga.
_A líder irá fazer o que achar mais correto.- miou sumindo pelas árvores logo em seguida. Pata da Noite suspirou, respirando o ar morno da floresta. Resolveu voltar para o acampamento. Quem sabe alguém gostaria de sair para caçar? Muito improvável, mas o que custa tentar? Não estava muito longe do acampamento então resolveu entrar pelas amoreiras que separam o berçário da toca dos anciãos. Afastou alguns galhos da pata se contorcendo para passar.
_Então você conhecia ela?- As orelhas da aprendiz giraram rapidamente em direção da voz. Agachou-se dentro do arbusto, afastando as folhas para visualizar melhor. Arregalou os olhos. Pé Manso e Perna de Bambu conversavam discretamente ao lado da toca dos anciãos. De quem estão falando?
_Conhecia... ela era uma... amiga.- respondeu o guerreiro manchado achatando as orelhas na cabeça. Os pelos dos ombros arrepiados e o cheiro de nervosimos indicavam que ele estava tenso. Ele estava sentado e mesmo sendo mais alto que Pé Manso, ele fitava o chão.
_Quer dizer que você conhecia a mãe de Pata da Noite e nunca me contou?! Que tipo de gato você é?!- sibilou a gata prateada dando um passo a frente. Perna de Bambu se encolheu como um filhote recebendo uma bronca.
Pata da Noite entrou em estado de choque. Milhõesvde perguntas invadiram seu cérebro rapidamente. Perna de Bambu conhecia sua mãe? Por que ele nunca contou?
Quem era sua mãe?
Por que ela a abandanou?
Aonde estava seu pai?
Ela chacoalhou a cabeça tentando afastar esses pensamentos. Dúvida e incerteza nublavam seus olhos, seu corpo se tornou tenso e, com um movimento involuntário, voltou a escutar a conversa.
_Tem mais algo que eu não saiba para me contar?- silvou Pé Manso. O guerreiro lambeu o focinho, nervoso e deu um olhanda na gata cinza claro a sua frente antes de continuar.
_Eu... eu sei quem mandou matar a mãe dela...- A aprendiz tensionou os músculos, cavando o solo com as garras. Mordeu o lábiu inferior com tanta força que o cortou. Lambeu rapidamente o sangue de sua boca, totalmente focada em seu mentor.
_Quem foi?- a guerreira cinza e branca deu um passo à frente, quase tocando o focinho de Perna de Bambu. O gatão hesitou, tremelicando as orelhas e movendo nervosamente as patas.- Diga!- insistiu Pé Manso.
_O pai dela!- as palavras seguintes cortaram Pata da Noite como os dentes afiados de uma raposa. Seu corpo tremelicou por inteiro, todos os músculos tensos.
Meu pai... meu pai é um assasino... o assasino da minha mãe.
Travou os dentes e fechou os olhos com tanto força que doía. Tentava, tentava não chorar, mas seu cérebro era totalmente contra ela. Logo as lágrimas quentes desceram como um riacho fluindo agitadamente. Ela arqueou as costas, cada pelo estava arrepiado, as garras cravaram no solo sem piedade. Ela conteve os soluços que desejavam arduamente sair, conteve sua vontade de gritar, sua vontade de chorar alto. Então, sem seu comando, seu corpo saltou do arbusto e correu para a floresta. Ela nem sabia para onde ia, apenas deixou suas patas a guiarem. Precisava de um tempo para assimilar tudo o que tinha acabado de acontecer. Pulou um tronco caído, encontrando uma pedra média e pontuda perto do Caminho Bagunçado. Encostou-se na superfície gelada, chorando silênciosamente.
"Por que você está fazendo isso?"
As orelhas da aprendiz giraram para trás junto de seu pescoço. Por um instante se esqueçeu que estava triste. Levantou e subiu na rocha. Agachou assim que percebeu quem eram os dois gatos que sussurravam. Estrela de Granizo e Vento Frio conversavam perto de Caminho Bagunçado. Muito perto. A testa da gatinha negra se franziu. Aquela não se parecia com Estrela de Granizo. A líder estava encolhida, tão encolhida que se parecia com um filhote. Ela olhava para as patas brancas, seus olhos amarelos tremiam. As orelhas achatadas na nuca como as de Pata da Noite. A felina manchada arranhou a rocha com suas garras e rosnou baixinho. Qualquer coisa que Vento Frio estivesse fazendo, era errado, disse ela tinha certeza. Sua intuição felina nunca errava.
Então o representante miou mais algo e a líder se encolheu mais ainda. A aprendiz balançou a cabeça tentando assimilar o que estava vendo. Estrela de Granizo, a grande e respeitada líder do Clã das Nuvens, encolhida, com medo, tremendo. Por um momento ela pareceu velha e cansada.
Pata da Noite... cuidado com quem não pode confiar.
A estranha gata negra havia dito isso no sonho mas... seria esse Vento Frio? O orgulhoso representante de seu clã?
Um grito de puro horor a acordou de seus pensamentos. Olhou para frente e teve de se segurar para não ter um treco. Vento Frio estrangulava Estrela de Granizo que se debatia, tentando escapar.
Cuidado com quem não pode confiar...
Não! Era Vento Frio esse tempo todo em quem ela não podia confiar! Agora, congelada pelo pavor, horror e surpresa, não conseguia sair do lugar. Chacoalhou a cabeça para por as ideias no lugar. Tinha que avisar a alguém, a qualquer um! Pulou da rocha para o chão, correndo mais rápido que conseguia para chegar ao acampamento, mas ela tinha certeza de que um par de olhos verdes a fulminavam enquanto corria.
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