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História A Quinta Porta - O Bilhete


Escrita por: Dexterfarias

Capítulo 2 - O Bilhete


Alan estava muito, mas muito entediado. Não havia nada para fazer em casa; já conhecia todos os livros que enfeitavam sua prateleira de cor e salteado. Zerara todos os jogos que possuía. Não havia ninguém para jogar com ele os maravilhosos jogos de tabuleiro que tanto amava, pois seus vizinhos de mesma faixa etária – 17 anos – não saíam da internet. Os pequenos preferiam brincar correndo na rua lá fora. E pra finalizar, sua própria internet fora interrompida por problemas no servidor. Deitado em sua cama, entediadíssimo, só lhe restava contar as telhas, esperando o tempo passar. Pegou sua bolinha de pingue-pongue e começou a arremessar contra a parede, vagarosamente, imaginando um modo de escapar daquela prisão de tédio. Pensou em ir até a rua, mas sabia que tudo o que encontraria lá seriam adultos sentados, conversando, jogando damas. Nada contra, mas eles não paravam de falar sobre política, o que definitivamente era uma chatice. Se ao menos eles jogassem xadrez! Seria muito mais interessante. A rua era aconchegante, tinha que admitir, agora olhando pela janela. Bem arborizada, sem trânsito, parecia perfeita, como se ali todos os dias fossem domingo. Contudo, sem algo de interessante para fazer, era apenas mais um lugar bonito.

Sentou-se na cama, olhando seu quarto. Prateleiras com livros bem organizados e alguns action figures estavam posicionadas nos cantos. Um guarda-roupa marrom antigo destacava-se na parede, dando ao local um ar mais robusto. Em outra parede coberta por pôsteres de super-heróis dos quadrinhos ficava uma mesa com o seu notebook personalizado. Um armário embutido guardava os brinquedos que ele não usava mais há muito tempo.

Levantou-se, sem ânimo. Foi ao banheiro lavar o rosto. Olhou-se no espelho e viu o tédio nos próprios olhos. Não se considerava um rapaz feio, mas nem por isso bonito. Tinha cabelos encaracolados, ruivos. Algumas sardas aqui e ali, uma espinha irritante na testa. Era, em geral, um rapaz comum. Isso o irritava um pouco; Não que estivesse insatisfeito consigo mesmo, mas em geral gostaria que sua vida fosse um pouco mais movimentada; Não queria ser somente “comum”. Isso o fazia sentir-se às vezes... Parado demais.

Voltou ao quarto. Nunca sentira tanta saudade da escola. Pelo menos lá ele teria com quem conversar: Leo, seu melhor amigo. Era tão sonhador quanto ele, e em geral os dois gostavam das mesmas coisas. Vez ou outra suas opiniões divergiam – com relação a heróis dos quadrinhos, mais frequentemente. Agora ele estava em alguma praia do litoral com a família, se divertindo mais do que ele, sem dúvidas. Três meses de férias era um saco. E estava sozinho nessa.

Decidiu, por fim, tomar um pouco de ar lá fora. Ficar no quarto se lamentando não iria adiantar nada. Desceu a escada e chegou à cozinha, onde seu avô preparava seu famoso chá. Alan morava com os avós; seu pai desapareceu misteriosamente quando ele tinha apenas três anos, por isso não lembrava bem dele. Alguns flashes era o máximo que conseguia: seu sorriso inconfundível, que o fazia sentir como se não houvesse nada para se preocupar no mundo, além dos cabelos ruivos que eram como os dele. Parecia incrível que não houvesse sequer uma única foto dele em nenhum dos álbuns da família; Alan procurou por dias, mas nada encontrou. Ele suspeitava que o avô tivesse se livrado de todas elas para evitar que sua mãe ficasse muito depressiva, o que não adiantou muito. A mãe ficara doente com o sumiço; definhara de tristeza até a morte. Alan tinha quatro anos quando ela se fora, mas o rosto dela estava gravado fundo na memória. Era uma mulher simples, sem muitas ambições, mas amava profundamente o marido. Alan relembrava seu rosto nas fotografias todos os dias. Não a esqueceria.

O avô ouviu-o chegar.

- Ah, vai sair da toca, finalmente? – perguntou o avô, risonho.

- Esse tédio vai me matar, seu José. – Alan chamava o avô do mesmo modo que todos o chamavam; “Seu José” era famoso.

- Vá sair um pouco. Caminhe. Vai fazer bem. O mundo não é feito só de livros, filho. – Seu José o aconselhou.

- Quem dera fosse. – Alan suspirou, sentando-se. - Aí quem sabe, eu não ficaria tão entediado assim nas férias. Poderia até viver algumas aventuras... Seria legal, não acha?

- Aventuras? – Seu José riu. - Se você quer aventura, procure. Quem procura acha. – ele suspirou, pensativo. - Mas fique ciente de que as aventuras podem ser muito dolorosas às vezes.

Seu José também era leitor assíduo. Muitos diriam que a grande experiência que o cercava viera em grande parte dos livros. Era um idoso com mais energia e vivacidade do que muitos jovens que Alan conhecera. De tanto ler, sua mente e memória não vacilavam.

- Eu não me importaria com dores – respondeu Alan, mais risonho. – faria de tudo por uma boa aventura como as dos livros.

- Eu não me referia a dores físicas, Alan. – Seu José fechou os olhos enquanto provava o chá, concentrado.

Alan não ligou muito para o comentário.

- Bem, vou poder me preocupar com isso quando minhas aventuras chegarem – disse ele. - Agora me dê um pouco desse seu chá, Seu José.

- Eu sabia que você ia pedir! – disse o avô, rindo. – Tome.

Ele ofereceu uma xícara fumegante ao neto. Alan pegou-a e bebericou lentamente. O chá de seu José não era famoso à toa: era magnífico. Bebeu ainda outra xícara intervalada com biscoitos sob os risos de aprovação do avô, e em seguida saiu à rua. Inspirou profundamente o ar fresco e puro do jardim, espreguiçando-se. Olhou em volta: as pessoas pareciam estar saindo também justo naquele momento, o que era uma raridade, pois toda vez que ele saía a rua já estava cheia. Caminhou sobre os ladrilhos bem colocados do jardim até o portãozinho branco de sua casa, que ele repintava a cada seis meses. As crianças menores começavam seu pique-esconde. Os mais velhos montavam os tabuleiros para jogar dama. Alguns acenaram para ele, que acenou de volta.

- Olha só quem resolveu aparecer – disse uma voz já conhecida de Alan. Ele se virou, já ficando vermelho.

- Ah, olá Marjorie. Pois é, resolvi sair um pouco. – disse Alan, um pouco surpreso. A menina vinha saindo da casa ao lado.

Marjorie e Alan eram vizinhos há muito tempo, mais precisamente desde que ele tinha quatro anos, e viera morar com os avós. Ela era três meses mais velha que ele, e como eram vizinhos, sempre se deram bem. Contudo, um ano atrás Alan resolveu que sentia algo mais que amizade por ela. Como não sentir? Era linda. Bochechuda e de cabelos castanhos, era altamente segura de si. Forte e encantadora, exatamente como as heroínas dos livros que costumava ler. O sentimento forte que ele tomava por amor estava deixando-o louco. Não conseguia ler, pensar, estudar, nem se distrair com nada. Só pensava nela. Uma noite resolveu declarar-se, num lampejo insano de loucura. No meio da chuva foi bater à porta da casa dela, todo ensopado e com flores encharcadas nas mãos. Ela abriu a porta de pijamas e sonolenta, e como estava linda! Alan praticamente despejou em cima dela tudo o que sentia, e ela, pasma, disse apenas: “é, eu já havia percebido”. Foi um baque. Como ela não disse mais nada, ele foi embora, e desde esse dia ele não voltou a tocar no assunto. Viram-se cada vez menos depois disso. Alan estava decidido que, se não a visse mais com tanta frequência, acabaria por esquecer esse sentimento. Por sorte eles estudavam em escolas diferentes. Ele ficava visivelmente constrangido toda vez que se lembrava da cena que protagonizara.

- Então, o que o traz até nossa humilde rua, Sr. Alan? – disse ela, brincalhona.

- Er.. ham... eu estava... entediado. – gaguejou Alan.

- Entediado? Você? Com aquela quantidade de livros e jogos que você tem? Impossível.

- É que já li... sabe... todos. – Alan não sabia onde colocar as mãos. E quando começara a suar tanto?

- Impressionante. – disse ela, pegando um chiclete para si e oferecendo outro para ele, que recusou o mais educadamente possível. Tinha medo de se engasgar de tão nervoso.

Os dois ficaram ali, sem assunto aparente, num clima um tanto constrangedor, observando a tranquilidade das pessoas na rua. Alan buscava desesperadamente um assunto interessante para conversar, mas ao que parece todo e qualquer dos milhares de assuntos possíveis lhe escapara da mente ou parecia-lhe idiota demais para falar, como “sabe por que os pinguins não tem hipotermia?”. Nesse instante, porém, seu avô vinha saindo da casa, com duas garrafas térmicas cheias de chá para oferecer aos vizinhos durante as partidas de damas. Alan abriu o portãozinho branco para ele, que estava com as mãos ocupadas com as bandejas de chá e as xícaras.

- Bom dia Marjorie!  - disse ele quando viu a menina. – Como vão seus pais?

- Vão muito bem, seu José! Obrigada. – disse ela, sorrindo. – isso por acaso não seria seu famoso chá, seria?

- Ah, mas é claro que sim! Pegue um pouco! – disse ele, radiante.

Ele ofereceu a ela a bandeja das xícaras para que ela pegasse uma. Ela se serviu do chá fumegante com uma expressão de prazer.

- Maravilhoso como sempre, seu José! – disse ela.

- Ora, que é isso – ele estava visivelmente radiante. Tinha orgulho dos elogios ao seu chá. – Nada de mais. Receita de família.

- Deixe que eu leve as bandejas para você – disse Alan.

- Não, não, não precisa. – seu José foi firme, olhando os dois juntos. - Vocês não se veem muito, devem ter muita coisa para conversar. Eu cuido disso. – e saiu com as bandejas para a mesa onde os vizinhos jogavam damas. Foi recebido com vivas.

Mas parecia que os dois não tinham muito o que conversar, afinal. Alan continuava sem saber o que dizer. Na verdade, foi Marjorie quem quebrou o silêncio:

- Ele tem razão, sabe? – disse ela, agora com os olhos baixos. – seu avô. Nós costumávamos ser tão próximos... E agora já faz quase um ano que você tem um novo melhor amigo. Qual é o nome dele mesmo? Mel?

- Leo. – disse Alan. – Você sabe, pare de caçoar – ela estava rindo.

- Isso. Leo. – ela estava um pouco vermelha. – sabe, poderíamos voltar a ser amigos, como era... Antes? Sinto falta disso.

E aí está, pensou Alan. Então era isso. Ela não queria nada com ele. Não sentia o mesmo que ele. Porque doía tanto? Apenas amizade. Ele queria dizer que não, que ainda a amava, que queria algo mais.

- Sim, claro, vai ser ótimo. – disse ele, por fim.

Ele virou-se para fechar o portão de madeira – e eventualmente esconder a mágoa que deixava transparecer no rosto - quando percebeu que seu avô havia deixado a porta da frente aberta, provavelmente porque não conseguira fechá-la com as mãos ocupadas.

- Um instante, vou fechar a porta – disse ele à Marjorie.

Enquanto caminhava sobre os ladrilhos, pensando tristemente em seu azar, ele percebeu que havia algo sobre o tapete da entrada que não havia reparado ainda. Chegou mais perto e percebeu que era um papel enrolado em formato de pergaminho. Era pequeno, e não havia sinais de ser uma correspondência oficial. Pegou-o, desatou o nó e abriu. Ao ler, ficou pasmo:

Ao Sr. Alan Dutra

A Rua Perfeita, Nº 4.

Gosta de aventura? Emoção? Histórias fantásticas?

Sua vida tem sido só tédio e tristeza ultimamente? Nada tem dado certo para você?

Eu posso ter a solução que procura!

Pode ter aventura! Emoção!

E quem sabe as coisas não comecem a dar certo?

Basta comparecer à Rua 12, casa 8, amanhã às três da tarde!

Sua aventura espera por você.

Atenciosamente,

N.W.

P.S. pode trazer a garota com você, se quiser.

 

Ele teve que ler e reler várias vezes para compreender. Chegou à conclusão de que aquilo era estranho de várias maneiras. Um bilhete realmente muito misterioso. Em primeiro lugar, como poderiam saber como ele se sentia? “Sua vida tem sido só tédio e tristeza ultimamente? Nada tem dado certo para você?” Será que seus avós estavam pregando-lhe uma peça? Muito improvável. E aquilo no final... “pode trazer a garota com você, se quiser.” Sinistro. Como saberiam que Marjorie estaria ali, se a carta fora deixada antes deles se encontrarem? Presumindo que estivessem se referindo a ela, claro. Mas não conhecia nenhuma outra “garota”, ou pelo menos nenhuma que tivesse tanta importância para ele. Pensou em rasgar a carta, mas algo o deteve. “Pode ter aventura! Emoção!” quem quer que tenha escrito, sabia como prender sua atenção. Estava intrigado. E, lá no fundo, realmente queria um pouco de aventura. Dobrou a carta e colocou-a no bolso de trás. Fechou a porta e voltou para a calçada, onde Marjorie ainda o aguardava.

- O que foi menino? – disse ela, ao notar sua expressão. – parece que viu fantasma! Está branco!

- Bem, é que... – Alan titubeou. Deveria contar a ela? – bem, recebi um convite para um evento... literário, amanhã. Gostaria de saber se... se quer, de repente, ir comigo? Posso levar você. – A mentira saiu sem muita convicção, mas a garota não reparou.

- Ah, vai ser ótimo! – ela disse, radiante. – era exatamente disso que eu estava falando, voltar aos velhos tempos. Quero sim! Onde vai ser?

- Na Rua doze, às três da tarde.

- Ótimo. Então nos encontramos aqui amanhã duas e meia. Combinado?

- Combinadíssimo. – ele disse, com um sorriso amarelo.

- Então vou indo. Tenho que comprar algumas coisas ainda. Até! – ela disse, e saiu andando.

Alan observou-a caminhar até que dobrou a esquina. Para ele, era perfeita. Lembrou-se do bilhete:

E quem sabe as coisas não comecem a dar certo?

Pois é... quem sabe? Pensou ele.

Mas não criou muitas esperanças.



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