Leo pigarreou e começou a história:
- Houve um tempo, eras atrás, em que Eternidade surgiu. Vocês precisam entender que "Eternidade" é tudo o que existe na matéria: água, ar, plantas, animais, nós. Todos fazemos parte da grande criação, da Eternidade. Cada povo tem sua versão dos acontecimentos, mas é isso que sabemos com precisão; antes era nada, e de repente... tudo.”
“Essa noção de tudo que nós temos é bastante errônea em um ponto; achávamos que éramos os únicos. Que éramos um mundo único, com vida, sabedoria e inteligência. Mas não. Quando Eternidade surgiu, era compacta demais, densa demais, e assim não conseguiria sustentar a si mesma. Subdividiu-se antão em várias seções – ou vários mundos paralelos, para que pudesse existir. Apesar de separado, Eternidade é o tudo, e não pode ser separada definitivamente de si mesma. É por isso que esses mundos são, para sempre, interligados.”
“Agora imagine isso. Cada realidade paralela de Eternidade se constrói à própria maneira, sem contato com as outras. Contudo, todas elas seguem caminhos parecidos, sendo parte de uma única coisa maior. Bem, na maioria dos aspectos é assim.”
“As realidades são inúmeras, e creio que possam ser até infinitas. Entretanto, existiam ao todo três realidades distintas por um aspecto: nestas nasceram uma raça diferente das outras. Os humanos.”
“Os humanos bagunçaram tudo. A harmonia inicial que Eternidade havia conquistado foi seriamente abalada com nossa chegada. E por quê? Simples: porque nós podíamos compreender como ela funcionava. E conhecendo-a, podíamos usar seu poder a nosso favor.”
“Descobrimos que havia magia antiga e poderosa nas paredes de Eternidade, e que rompendo essa parede e passando para outro mundo, alguns humanos de espírito forte – reis e guerreiros, geralmente – podiam usá-la de forma espetacular. Basicamente, essas pessoas podiam usar elementos da natureza – água, terra, fogo, ar – como armas. Eram incríveis. Alguns passaram ao nosso mundo, e ficaram conhecidos como os primeiros Deuses, assim como alguns dos nossos passaram a outros mundos, sendo Deuses nestes, e por aí vai. Vocês devem imaginar a confusão que isso gerou. Guerras eclodiam em vários mundos. Alguns estiveram prestes a desaparecer; felizmente, havia humanos mais sábios nestes tempos. Eles criaram a Ordem dos Guerreiros de Cantchara – que foi seu primeiro líder e idealizador – para combater os humanos sedentos de poder que ultrapassavam a barreira da realidade para conseguir obtê-lo. Felizmente eles venceram; Mataram vários tiranos, e baniram o restante para realidades paralelas, sem humanos, habitadas apenas por monstros e escuridão.”
“Estes guerreiros selaram a maioria das entradas para os mundos paralelos habitados por monstros; é por isso que havia tantas histórias sobre monstros contadas pelos povos antigos. A maioria deles era real. Homens com cabeça de touro, monstros marinhos, esfinges, o que você imaginar: eles existem de verdade. Mas foram banidos do nosso mundo há tempos por estes guerreiros.”
“Eles, no entanto, não podiam selar completamente todas as passagens, pois eram inúmeras, e Eternidade não suportaria se separar das outras partes. A realidade quebraria. Portanto, decidiram manter os três mundos habitados por humanos interligados. E deixaram algumas passagens abertas, pois estas levam a povos amigos dos humanos e a mundos não habitados.”
“Agora chegamos ao ponto principal para você, Alan. Durante os séculos, dois tipos de guerreiros guardavam as portas: O Chaveiro e o Guerreiro Elemental. Você conheceu o Chaveiro. É aquele velho que empurrou vocês a esse mundo. Só dê um desconto a ele, tudo bem? A responsabilidade dele é enorme, e ele viveu sozinho por muito tempo. E agora temos você... o Guerreiro Elemental.”
Leo parou um pouco. Alan e Marjorie estavam tão absortos em sua fala que nada disseram.
- Você possui o poder que os guerreiros de antigamente também possuíam – Leo retomou a fala. – Quando seu espírito cruza o portal para outra realidade, ele ganha uma nova habilidade. A sua, pelo visto, é elemental e poderosa; o poder de controlar o próprio ar.
- Mas só podia ser uma habilidade elemental, não? Perguntou Alan. – Você disse que era só terra, água, fogo ou ar.
- Antigamente era assim – disse Leo. – mas com o passar das eras, com a paz finalmente alcançada e sem muitas batalhas, os guerreiros pararam de lutar. Acho que as próprias barreiras da realidade adaptaram-se a isso, e começaram a dar outros poderes a eles. Poder sobre plantas, animais, físicos e mentais. A guerra não era necessária. Até agora, pelo visto.
Alan sentiu um desconforto. Quer dizer que, com a chegada dele, haveria guerra?
- Então.. – Alan começou, mas eram tantas perguntas em sua mente que não sabia o que dizer. – o meu pai.
- Ele provavelmente era um Guerreiro Elemental – disse Leo. – Eu lembro que você me disse uma vez que ele viajava muito, não? Bem.. não era de avião, posso garantir. A herança de espírito não é hereditária, necessariamente, mas um descendente dos antigos guerreiros da Ordem de Cantchara tem mais chances de herdar uma parte do espírito destes antepassados. Seu pai era com certeza um destes.
- Mas o que ele fazia, exatamente? – Perguntou Alan.
- Guerreiros Elementais são responsáveis pela paz nos três mundos. Sempre foi assim. Ele tinha a missão de viajar por todas as portas quando houvesse risco de extinção. – completou Leo.
- Extinção? De que? – Perguntou Marjorie.
- Da humanidade, claro. – Leo respondeu, observando a água.
Um minuto de silêncio tenso pairou sobre os três.
- Extinção da humanidade? – Alan perguntou, confuso. – mas como a humanidade poderia ser extinta?
- Extinta ou escravizada, com certeza poderia – Leo garantiu – vários já tentaram dobrar a humanidade nos três mundos humanos à sua vontade... felizmente sem sucesso – Ele suspirou. – mas isso aconteceu com muitas outras raças antigas.
- Quero ouvir essa história também – disse Marjorie.
Leo ia responder, mas um estrondo interrompeu-o.
- O que foi isso? – Perguntou Alan, levantando-se rapidamente.
- Não sei – disse Leo, levantando-se também – Mas foi no acampamento. Vamos!
Dizendo isso, ele correu na frente, em uma velocidade incrível. Alan ajudou Marjorie a se levantar, pois a perna da garota ainda não estava totalmente curada. Ela, no entanto, jogou o cajado no rio e afastou a ajuda dele, o semblante decidido.
- Você não está bem – ele falou – deixe eu te ajudar!
- Eu estou ótima – ela apoiou-se cambaleante na perna machucada, mas não caiu. – vamos, temos que ir.
Alan não estava disposto a deixá-la caminhar sozinha, mas o olhar dela não deixava dúvidas de que era inútil contestá-la. Ele resignou-se a não correr, mas sim caminhar em um passo acelerado, sempre ao lado dela, que seguia mancando. Juntos, voltaram pela mata até o local onde estava o acampamento – ou pelo menos onde devia estar.
Antes mesmo que os dois chegassem à clareira onde estiveram acampados, sabiam que nada ia bem. Ouviam-se estrondos repetidos à frente, como se alguém jogasse granadas. O barulho era ensurdecedor. Alan e Marjorie viram, por entre as copas das árvores, uma espiral de fumaça negra que subia aos céus, formando estranhas silhuetas demoníacas. Talvez fosse só impressão, mas tinham certeza que o fogo vinha do acampamento. Foi quando chegaram à orla da floresta.
- Meu deus! – murmurou Marjorie, pálida.
A cena era indescritivelmente nauseante. Corpos enfeitavam o chão, tingindo o mato ralo de rubro, as plantas absorvendo o sangue dos rebeldes caídos. Pessoas corriam, espadas entrechocavam-se, flechas voavam, lanças empalavam. Era um massacre. Os inimigos eram homens negros, altos e largos, envoltos em armaduras vermelhas com entalhes de fogo negro, o que causava um efeito aterrorizante. A resistência era forte, e alguns conseguiam até lutar com os inimigos de igual para igual; Vendo-os, Alan teve certeza de que foram pegos de surpresa. Se assumissem uma formação organizada de combate, sem dúvida poderiam vencer. Mas estavam todos espalhados, alguns sem armas, sendo obrigados a lutar com nada mais que as mãos. Caíam como moscas.
Alan sentiu uma pontada de dúvida. Queria correr com Marjorie para coloca-la em um lugar seguro, mas também queria ajuda-los. Se não fosse por eles, ela provavelmente teria morrido. Devia isso a eles.
Mas era aterrorizante o pensamento de entrar em uma batalha tão sangrenta. E não sabia se conseguiria despertar o poder como fizera naquela manhã. Correr até o centro do combate só para ser abatido sem muita resistência pareceria ridículo.
Estava nesse impasse quando Marjorie chamou sua atenção, esgueirando-se por trás das árvores para uma barraca próxima.
- Jo, o que está fazendo? – Alan sussurrou.
Ela colocou o indicador sobre os lábios, pedindo silêncio, em seguida fez sinal para que ele a acompanhasse. Alan seguiu-a por detrás das árvores até a barraca próxima, e eles se enfiaram por baixo da lona.
Lá dentro não havia muita coisa: uma mesa, algumas camas. Marjorie começou a procurar nos cantos.
- Jo, o que está fazendo? – Alan perguntou, dessa vez mais alto. – temos que sair daqui!
Marjorie encontrou o que procurava: armas escondidas sob um monte de trapos.
- Tome – disse ela, estendendo a ele uma espada e tomando uma lança para si. – Temos que lutar.
- Temos que lutar?? – Alan quase gritou. – Não, temos que sair! Você não está bem, sua perna..
- Esqueça minha perna! – Ela falou, ríspida. – essas pessoas nos salvaram, e precisam de nós! Você prometeu!
- Tecnicamente não – Respondeu Alan, mas Marjorie já se virara para a saída da barraca, mancando.
Nessa hora um estrondo muito forte explodiu bem do lado de fora da barraca. Marjorie foi jogada para trás e caiu em cima de Alan. Ele caiu de costas, com uma pontada de dor nas costelas. Levantou-se com dificuldade e ajudou Marjorie a se levantar também. Ela sofrera alguns arranhões, mas parecia intacta. Olharam para fora. A parte da frente da barraca não existia mais, fora substituída por um buraco fumegante. Ali, quando a poeira se dissipou, viram a silhueta de um homem enorme, vestindo uma armadura diferente, em cores vermelho-vivo e os olhos amarelos. Segurava um cajado quase tão alto quanto ele. Alan notou que o cajado brilhava, como se tivesse sido superaquecido. O homem olhou para os dois com fria indiferença, e levantou o cajado, que brilhou ainda mais. Parecia prestes a pegar fogo.
Eles ouviram um grito, e alguém se jogou contra o homem, desequilibrando-o. Foi providencial, pois no instante seguinte o cajado que ele segurava lançou uma bola de fogo, explodindo uma cama no fundo da barraca. Alan e Marjorie foram novamente arremessados de lado com o impacto. Alan tentou se levantar, com os ouvidos zumbindo. Estava tonto demais. Alguém segurou sua mão e o puxou para cima. Quando a visão entrou em foco, viu que era Leo.
- Temos que sair daqui! – gritou ele – agora! Levantem-se!
- Mas as pessoas... – Marjorie tossiu.
- Não podemos fazer nada, fomos pegos desprevenidos! – Leo gritou, com urgência, olhando para fora da barraca, onde estivera o homem segundos antes. – Temos que ir, ou vamos todos morrer!
Alan e Marjorie assentiram, relutantes. Leo os encaminhou para o fundo da barraca, onde agora havia um buraco. A cama que fora atingida jazia aos pedaços, queimando.
- Eles podem lançar bolas de fogo? – Alan perguntou.
- Um deles pode – respondeu Leo. – o Arauto.
Os três seguiram o mais rápido que conseguiam até a floresta, deixando o som do massacre para trás. Alan pensava em todas aquelas pessoas mortas. Se alguma delas não tivesse entrado no caminho do Arauto, ele e Marjorie também teriam morrido.
- Leo – disse Alan – alguém impediu o Arauto com o cajado de nos matar. Você sabe...
- Laila – ele disse, sem parar de avançar. – eu pedi a ela que ganhasse tempo para nós.
- Você o quê? – Marjorie estava furiosa. – porque fez isso? Não podemos pedir que essas pessoas se sacrifiquem por nós! Eles já fizeram tanto...
E ela parou, subitamente as lágrimas escorrendo no rosto. Alan e Leo pararam também, um tanto surpresos com essa reação.
- Ela não poderia esperar honra maior – disse Leo, olhando bondosamente para ela. – ela sabia que poderia morrer. Estamos em guerra! Somos refugiados, perseguidos. Podíamos ser encontrados a qualquer momento.
- E é muita coincidência que tenha sido justo hoje, não é? – Alan disse, pensativo. – Assim que nós chegamos aqui.
Leo o encarou por um momento.
- Sei que vocês não são traidores – disse ele – mas também sei que isso é muito óbvio para ser coincidência.
- Então você está dizendo que...
- Alguém nos traiu – ele baixou os olhos, como se as palavras doessem. – Não sei como, mas havia espiões em nosso grupo. De que outra forma saberiam da chegada de vocês tão depressa?
- Espere um pouco – disse Marjorie, já recomposta – da nossa chegada? Eles queriam a nós?
- Obviamente que sim – Leo respondeu – eles estavam procurando algo, ou alguém valioso – olhou para Alan. - Uma força destrutiva como o Arauto não entra em batalhas sem um bom motivo.
Alan ia perguntar algo, mas ouviram vozes perigosamente próximas.
- Temos que ir, depressa – disse Leo – ou estaremos perdidos.
Dizendo isso, os três correram por entre as árvores.
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