Flashback
- Belle, você chegou! – Abby disse abrindo os braços de pele levemente enrugada pela idade para abraçar a neta pequenina que acabava de descer do carro de seu pai após a escola. Mickey acenou para sua mãe de dentro de casa.
- Venho buscar você depois do trabalho. Fique boazinha, Belle! – Ele jogou um beijo para a menina e arrancou com o automóvel. Belle já estava entrelaçada pelos braços flácidos de sua avó, mantendo um sorriso largo.
-Oi, vovó. – A garotinha de olhos azuis e os cabelos escuros presos uma trança apertada depositou um beijo na bochecha de Abby e pegou em sua mão para entrarem na casa antiga, mas confortável e aconchegante.
- Como foi na escola hoje? – Abby pegou a bolsa da menina e pendurou-a no ombro.
- Normal, mas eu tive uma prova de ciências hoje.
- Foi bem?
- Fui sim, tirei 8.
- Ah, essa é a minha menina! Seus primos já chegaram, estão na cozinha almoçando. Vá lavar as mãos e sente-se pra comer.
- Mas eu estou sem fome...
- Belle, Belle, não comece com essa gracinha de não querer comer. Só um pouco, e depois te dou sobremesa.
- Tá bom... –Ela concordou, sem querer concordar realmente e partiu ao banheiro lavar as mãos. Puxou o banquinho de madeira que ficava sempre ao lado da pia azul de louça portuguesa, afinal, era muito alta para ela e os primos quando mais novos. Abriu a torneira e lavou as mãos, olhando interessada nas linhas que a cortavam. Lembrou de sua mãe falando outro dia mesmo que as linhas formavam um M de mamãe na mão de todos os filhos. Quando terminou, recolocou o banquinho feito por seu avô quando eles ainda eram bebês, fechou a a porta do banheiro e foi até a cozinha.
- Oi, Belle! – Os primos cumprimentaram a menina e ela sentou-se ao lado das gêmeas. As três por terem apenas um ano de diferença entre si davam-se muito bem. A avó preparou um prato de comida para a neta que havia acabado de chegar e sentou-se com eles à mesa, esperando todos terminarem por definitivo antes e servir a gelatina com creme de leite. A rotina ali na casa de dona Abby Mills era sempre a mesma e mesmo assim, sempre tinham coisas novas à se fazer. As crianças chegavam da escola, almoçavam, faziam a tarefa coma ajuda da avó – que antigamente era professora- e depois saiam brincar. Geralmente, na sexta-feira, a avó levava os cinco netos ao parque para brincarem, ou ao cinema ou qualquer lugar que pudessem gastar suas energias infantis. Naquele fim de semana especificamente, Abby havia marcado de ir ao médico de manhã e, devido ao fato de ter trocado de remédios, decidiu ficar em casa com as crianças, no caso de algum efeito colateral lhe acometer. Sendo assim, os cinco correram para o quintal. Segundo eles, era um lugar mágico, eles podiam inventar zilhões de histórias. Abby sentou-se na varanda em sua cadeira e levou sua cesta de bordado para vigiá-los, embora soubesse que eles não precisavam de monitoria. Daniel e Regina estavam brincando com a bola, enquanto as três mais novas estavam no balanço que seu avô construíra pouco antes de falecer.
- Ei, vamos brincar de pega-pega? – Belle sugeriu.
- Vamos, Mel começa! – Zelena comentou alto e abaixou-se, assim como os outros irmãos e a prima, enquanto riam.
- Ah, não! Isso não vale! Eu sempre começo, só porque eu sempre perco! – A ruiva cruzou os braços.
- Tá bom, sua chata. Eu começo, então. – Daniel deu de ombros e contou até dez, dando tempo para que elas pudessem se afastar.
- ... Nove, dez! – Ele começou a correr atrás de Zelena, mas a irmã pulou o pequeno muro e entrou dentro de casa.
- Zel, não vale dentro de casa! – Ele gritou e saiu correndo atrás de Belle.
Após um bom tempo brincando, quando o dia começava à dar espaço para o crepúsculo, o carro de Mickey encostou nos fundos e ele entrou apressado.
- Pai? – Belle achou estranho ao olhar no relógio, enquanto ela e os primos bebiam água na cozinha, entre um intervalo das brincadeiras. Seus primos sempre iam embora antes dela porque seu pai trabalhava até mais tarde.
- Belle, vamos. – Ele disse sério, já com a mochila de sua filha enroscada no ombro.
- Mick, o que houve? Aconteceu alguma coisa? – Abby apareceu na cozinha, entrando com sua cesta e um rolo de lã debaixo do braço direito.
-Preciso ir. – As crianças não notaram, tão pouco entendiam, mas o homem de terno deu um olhar significativo à sua mãe e pegou na mão de Belle, que acenou para os primos e saiu com seu pai com pressa.
O caminho até sua casa foi silencioso e rápido. Os sinais vermelhos que podia, Mickey acelerava e não esperava o tempo sinal verde chegar.
- Papai! Vai devagar – Belle estava agarrada no cinto de segurança que a prendia, totalmente confusa com o jeito que seu pai estava agindo diferentemente do homem carinhoso, cuidadoso e feliz que era. Quando ele estacionou e puxou o freio com irritabilidade aparente na garagem de sua casa, encostou a cabeça no volante e chorou. Chorou como uma criança perdida dos pais no meio da cidade em época de Natal. Ele sempre se preocupava em não demonstrar os problemas para sua filha, mas não conseguiu evitar. Não daquela vez.
- Pai... O que aconteceu? Você tá com enxaqueca de novo? Ou dor? O que aconteceu? Foi algo que eu fiz? – Belle se desesperou no banco traseiro e pousou sua pequena mão nas costas de seu pai. Ele limpou as lágrimas já caídas, mesmo que as novas lhe manchassem o rosto novamente, e pegou a menina de nove anos em seu colo, abraçando-a com força. – Eu nunca tinha visto você chorar, papai...
- Eu sei. Eu sei, me desculpa. Me desculpa, filha. Eu não queria isso, eu não queria que me visse assim. Mas... Eu não consegui e não vou conseguir sozinho. Eu preciso de você. E eu não queria precisar de você agora, mas eu preciso.
- O que foi, pai? Eu posso ajudar! – Ela afrouxou a gravata que o homem usava e limpou as lágrimas dele com suas mãos delicadas.
- Sua mãe... ela está doente.
- A gripe dela ainda não passou?
- Nunca foi uma gripe, meu amor. Ela estava doente, e nós mentimos pra você, porque não queríamos que você se preocupasse com isso. Mas, tivemos uma consulta hoje, e ela está muito, muito doente. É uma doença ruim, que custa caro. Eu preciso trabalhar e pagar os remédios, mas ela precisa de ajudar.
- Mamãe... Mamãe vai morrer?
- O médico disse que não, mas pra isso precisa do tratamento.
- O que vai acontecer com ela? – Ela abaixou o olhar.
- Ela vai... perder alguns movimentos.
- Porque isso aconteceu com mamãe, pai?
- Ela pegou uma infecção, meningite, mas se agravou. Belle, minha princesa, me desculpa. Eu queria poder não ter que te contar isso, mas eu não posso falar disso com a sua mãe, ela já chorou porque sabe que não vai poder se manter sozinha, e eu não tenho mais ninguém. Eu preciso de você, meu bebê.
- Tudo bem, papai. Eu vou ajudar você e mamãe. Ela vai ficar boa, não é? Eu sei que vai, nós vamos cuidar dela.
Os dois se abraçaram por um longo tempo dentro do carro sem trocar palavras, e a mente de Belle tentava assimilar o que era a morte e a doença de sua mãe, uma vez que não havia conhecido seu avô e não tinha passado por nenhuma situação parecida antes.
À partir daquele dia, Belle parou de ir à casa de sua avó, ia imediatamente para casa após a escola, cuidar de sua mãe. Alguns dias, a mulher chorava em seu quarto sozinha tanto por dor quanto por saber que estava arrancando a infância de sua filha, e em outros conseguia levantar-se devagar e até mesmo fazer cafuné nos cabelos de sua garotinha. A doença de Marly era forte, e quando um mau estágio lhe acometia, ela mal podia abrir os olhos, seus movimentos limitavam-se de tempos em tempos, e ela permaneceu naquela situação por dois longos anos. Belle desdobrava-se em mil para fazer as tarefas da escola, cuidar de sua mãe e de sua casa. O pai ajudava quando chegava do trabalho, mas as contas de remédios aumentavam, modulando assim a extensa carga horária na empresa. Ela não tinha tempo para brincadeiras, não tinha tempo de pintar, desenhar ou passear com suas bonecas pelo jardim e muito menos de ver seus primos ou a avó. O resto da família não sabia de toda a história, apenas sabiam o essencial: Marly estava doente.
Depois do longo ano de Marly debilitada, sendo alimentada por sonda, e passando os últimos e mais difíceis dias de sua vida numa maca de hospital, ela faleceu. O médico lamentou à família, mas explicou que quando descobriram a infecção, esta já estava avançada demais, e tomando partes do corpo onde nem uma cirurgia de urgência seria capaz de resolver. Foi quando viu sua mãe no caixão que Belle sentiu o peso da morte, foi quando entendeu as lágrimas quentes de seu pai no carro quando ele lhe contava sobre a doença: A morte era algo massacrante, que tira o ar dos pulmões e não devolve, que amarra todos os seus membros muito apertado para te esmagar aos poucos, que faz sua memória parar de funcionar e necessitar imediatamente um lembrete constante da pessoa que se foi. Vovó Abby estava agarrada à menina no velório, ninava uma Belle de olhar perdido para um lado e para o outro, entoando uma música de ninar, a mesma que cantava à ela quando era um bebê, e a neta não sabia fazer outra coisa, senão olhar fixamente à mãe no caixão e manter-se agarrada à aliança de Marly, que agora estava em seu dedo. A família toda estava ali no pequeno cômodo da funerária, velando o corpo de Marly French, vestindo preto, mas nem a mais negra cor representaria toda a tristeza que permeava o mundo de Belle e Mickey. O homem estava em pé, ao lado do caixão, chorando sem cessar, com uma mão agarrada ao cadáver e a outra apoiada em Henry, seu irmão. Quando o coveiro tampou o caixão e enterrou o corpo da mulher, Belle chorou tudo o que havia segurado todo esse tempo. Nunca mais veria sua mãe, nunca mais ouviria sua voz, nem sentiria seus dedos finos trançando seus cabelos, nem levaria broncas, ou mesmo veria pela fechadura a mulher se arrumando fantasticamente para uma noite de jantar com o marido. Nunca, e essa palavra era a pior do mundo. Zelena, Melena, Regina e Daniel tentavam acalmar sua prima, mas era em vão.
- Belle, vai com seu tio agora, por favor.
- Mas pai... eu quero ficar com você. – Ela pediu, com os olhos cheios d’água.
- Belle, por favor. Eu preciso ficar sozinho. Por favor. – Mickey implorou e Belle não respondeu, apenas segurou a mão que sua tia Cora oferecia com cuidado, limpou as lágrimas, recobrou o fôlego e saiu com o casal, deixando seu pai para trás, olhando fixamente ao túmulo.
Não houve conversa no carro, Marly era uma mulher tão doce e feliz, sempre ajudava todos da família quando precisavam e com certeza faria muita falta. Quando chegaram na casa de Henry, almoçaram todos em silêncio e os primos tentavam animar a menina enquanto estavam na sala, mas não conseguiam.
- Meu bem, se quiser descansar um pouco, pode ir para meu quarto, tudo bem? Tenho algumas roupas suas aqui ainda, ou pode pegar alguma de Mel ou Zel. – Cora passou a mão pelo rosto inchado de Belle. – Vai ficar tudo bem, querida. Eu sei que vai.
- Pode ficar no meu quarto também, se quiser. – Regina ofereceu e Belle assentiu. Não conseguiu responder que sim ou não, mas subiu as escadas devagar e ficou no quarto de Regina.
- Mãe, será que não é melhor deixar a festa das minhas irmãs pra amanhã? – Daniel perguntou, sensato.
- Mas já está tudo combinado! E nossos amigos vão chegar logo... – As gêmeas reclamaram.
- Tudo bem, tudo bem. Eu entendo você, Daniel, e entendo vocês meninas. Não vamos mudar nada, mas tenham respeito pela tia de vocês, ok? Não gritem, não façam muita bagunça.
Durante toda a tarde então, Cora e Henry prepararam a festa das meninas. Encheram alguns balões, penduraram decoração de cães e gatos por todo lado, arrumaram a mesa da cozinha e próximo às cinco horas, os convidados apareceram. Não havia ninguém da família, só amigos da escola e uns colegas de Henry. Os adultos sabiam do acontecido na família, então mantiveram a compostura, falando o mínimo possível, enquanto as crianças só queriam saber de brincar. Corriam de um lado para outro, gritavam, cantavam e o barulho todo acabou por acordar Belle no andar de cima. Ela tomou um banho e arrumou-se com a roupa que sua tia gentilmente havia separado ao pé da cama com ela dormia. Quando desceu as escadas e se deparou com tudo arrumado e feliz, demorou alguns instantes para assimilar o que estava acontecendo ali. Sua mãe acabara de morrer durante a madrugada, tinha sido velada poucas horas antes e seus tios davam uma festa?
- Zelena? – Belle chamou, quando a prima passou sorrindo com uma amiga pelo pé da escada.
- Hãn... Belle. Você acordou.
- O que está acontecendo?
- É... minha festa de aniversário e a de Mel. Desculpe, eu sei que você não está no clima, mas nossos amigos iam chegar cedo, e não dava tempo de remarcar tudo.
- Vocês estão comemorando no dia que a minha mãe morreu? – Belle preferiu as palavras carregadas de ódio e com a voz embargada, indicando o choro que estava por vir.
- Desculpa.
- Belle, sua mãe deve estar feliz de onde estiver. – Melena apareceu. – E é claro que estamos tristes por ela, mas é nosso aniversário também. Nós temos o direito de estarmos felizes e comemorar isso, né?
A menina não respondeu, apenas deixou um olhar de fúria e voltou para o andar de cima. Usou o telefone do corredor e ligou para seu pai, pedindo que ele fosse buscá-la imediatamente. Sua gengiva doía de tanta pressão que ela fazia, guardando sua raiva pela falta de caridade e compaixão dos tios e dos primos.
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