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História AmorTemQuatroLetras - O fim - Parte 1


Escrita por: Believe8

Notas do Autor


Leiam as notas finais.

Capítulo 34 - O fim - Parte 1


A vida foi, aos poucos, voltando aos eixos após a morte de Davi. Todos sabiam que o primeiro ano seria o mais difícil de todos, e tendo quatro crianças para sentirem à perda do pai, Valéria precisaria de muita ajuda.

Durante os primeiros meses, praticamente, os trigêmeos não dormiram em casa. A presença do pai era muito forte ali, e por mais que tentassem, não conseguiam aguentar. Ravi e Liam quase sempre dormiam na casa das namoradas, vez ou outra ficavam com Enzo ou Luca. Já Sara foi quase de mala e cuia para o apartamento dos Guerra, e não era difícil que Enzo pernoitasse na casa dos tios, lhe fazendo companhia.

Kaue se entregou de vez a fé judaica, com o apoio da mãe, em sua própria forma de lidar com o luto e a ausência do pai. Ravi voltou a escrever com frequência, na sua melhor forma de externar a dor. Se não fosse por Emma para lhe apoiar, teria largado a fisioterapia e se deixado definhar, sofrendo por não ter mais seu porto-seguro dos momentos ruins ao seu lado.

A luz e vivacidade de Sara se apagou como a chama de uma vela, e tinha dias em que Lara quase a obrigava a tomar banho. Liam, por outro lado, se fortificou como uma rocha. Acompanhava o gêmeo à fisioterapia, levava Kaue a todos os lugares possíveis e amparava a irmã em todas as crises possíveis. Mesmo não aguentando ir à sua casa, assumiu o papel de homem dela, sempre conferindo as contas, acompanhando a mãe ao supermercado e inclusive cogitando largar a natação, o que Valéria proibiu enfaticamente.

“Você não tem nem 16 anos, meu filho... Deixe para ser adulto quando chegar a hora, e viva a sua juventude. Por mim.” Pediu a mulher, após uma grande discussão dos dois.

E em meio a tudo isso, os meses passaram e dezembro chegou.

~*~

Emma estava nos bastidores da peça, trêmula. O festival havia acabado de se encerrar, e seu sonho de encarnar Aurora nos palcos era agora uma realidade. E mandando a modéstia as favas, ela havia arrasado sobremaneira!

A prova disso havia acabado de deixar seu camarim. Uma mulher na faixa dos quarenta anos, acompanhada de Raquel, sua professora, viera lhe parabenizar pela bela apresentação e oferecer algo que nem em seus mais loucos sonhos ela imaginaria: uma vaga na companhia de Teatro Bolshoi em Joinville.

“Isso é... Isso é sério?” Gaguejou Emma, surpresa. “Mas... Eu não fiz as audições, não participei do processo seletivo. O tempo de matrícula até se esgotou.”

“Emma, a Raquel é minha amiga há anos. Já tem tempo que ela me fala de você, me mandou vídeos seus, nos deixou interessados. Não é algo comum, mas após discutir com o conselho, eles concordaram que você seria uma aquisição valiosa.” Sorriu a mulher, chamada Andreza. “Você tem muito potencial, menina, até mesmo para um dia chegar ao exterior.”

“Eu... Eu não sei o que dizer.” Emma estava extasiada, assim como Raquel.

“Não precisa dizer nada agora, querida! Converse com seus pais, com a Raquel, pense bem e com cuidado! É uma grande oportunidade, mas também uma grande mudança em sua vida. Você precisaria morar em Joinville, se comprometer mais do que está acostumada... Não é algo para ser decidido de uma hora para outra.” Andreza aconselhou. “Aqui está meu cartão, você tem uma semana para me dar uma resposta.”

Agora ela estava sozinha no camarim, os olhos ainda brilhando de lágrimas e animação. Bolshoi! Nunca havia se imaginado em algo assim, ainda mais tão jovem. Seus pais ficariam loucos, tinha certeza!

“Toc, toc.” Encarou a porta, vendo sua mãe com um sorriso resplandecente. “Posso cumprimentar essa bailarina maravilhosa?”

“Você quem deu a vida para ela, mãe, não precisa nem pedir licença.” Emma correu e se jogou nos braços de Maria Joaquina, que a segurou com força. “Eu fui bem?”

“Perfeita, Emma! Mais do que eu poderia imaginar! Parecia um anjo em cima do palco.” Elogiou a mais velha, sorrindo. “E sei que não fui a única a pensar isso.”

“Como assim?”

“Não se fala de outra coisa, minha filha. Uma vaga no Bolshoi, Emma! O burburinho é interminável do lado de fora, a Raquel parece que te viu ganhar um Oscar de tão orgulhosa.”

“Todos já sabem?” Se chocou a bailarina.

“Seus tios já foram na frente, para comprar champanhe e comemorarmos. Seus primos estão se gabando com as outras bailarinas. Até a Sara e o Liam estão animados, e olha que isso é algo grande.”

“E o Ravi?” Naquele momento, o namorado preencheu sua mente. Pela primeira vez, a ideia de ir morar em Joinville lhe apresentou conflitos. Como deixaria Ravi para trás, especialmente em um momento como aquele?

Maria Joaquina, como que lendo a mente da filha, beijou sua testa e deu um sorriso compreensivo.

“Ele está orgulhoso também, Emma, sabe disso.”

“Ele acabou de perder o tio Davi, mãe... Eu não posso deixar ele sozinho.” Os ombros de Emma caíram um pouco.

“Você tem alguns dias para pensar, não é?” A mais nova assentiu. “Então use-os, filha. Pare, pense, com calma! Agora vamos celebrar sua noite, e deixamos o amanhã para a posteridade. Não se pré-ocupe, meu amor.”

~*~

Era mais um dos dias difíceis de Roberto. Lilian ligou para Paulo e Marcelina assim que o dia amanheceu, avisando que o marido havia saído pela rua de pijamas, bradando que não estava em sua casa e recitando o antigo endereço.

Paulo, então, se dispôs a passar o dia com os dois, para ajudar a conter Roberto se necessário. Levou Gabe junto, para que Alicia fosse para o trabalho, e combinaram de almoçar todos juntos.

A doença de Roberto, infelizmente, progredia muito mais rápido do que tinham imaginado, e não era incomum que ele não reconhecesse os filhos. Por vezes, chamava Lara e Enzo de Alicia e Mário, perguntando aonde Paulo e Marcelina estavam escondidos.

“Precisa de ajuda, mãe?” Paulo entrou na cozinha, encontrando Lilian preparando o almoço.

“Seu pai?”

“Acabei de colocar ele na cama, para descansar um pouco.” O Guerra mais novo se apoiou no balcão, cansado. “Ele me chamou de João, como o irmão dele que morreu. Disse que o Paulo e a Marcelina estão na escola, mas chegam para almoçar.”

“Estive conversando com sua irmã sobre a ideia de contratar alguém para me ajudar. Ou então enviar seu pai para aquelas creches de idoso, para passar o dia. Mas não sei, Paulo.” Os olhos de Lilian marejaram. “Casamento é para a vida toda, na saúde e na doença. Eu não posso simplesmente colocar seu pai em um asilo, ou contratar alguém e seguir minha vida.”

“Mãe, o pai é forte, maior do que você. Se você precisar socorrer ele, não consegue. Se precisar conter ele, menos ainda.” Lembrou o mais jovem, a abraçando.

“Seu pai não é mais violento, meu filho, sabe disso.”

Como que contradizendo o que ela dizia, ouviram um grito na sala. Paulo correu em um átimo, lembrando que Gabe estava sozinho ali.

O pequeno, no auge de seus quase quatro anos, havia desenhado com o giz de cera na parede da avó. Infelizmente, Roberto chegou na exata hora, confuso.

“O QUE VOCÊ PENSA QUE ESTÁ FAZENDO, PAULO GUERRA?” Bradava o homem, irritado. “OLHA O QUE VOCÊ FEZ COM A PAREDE.”

“Roberto, se acalme.” Lilian correu até o marido, enquanto Paulo puxava o filho do chão e o colocava protegido atrás de um sofá.

“Calma nada, Lilian! Esse moleque só apronta, só destrói as coisas. Chega de ter calma! Vai ter um belo corretivo.” Roberto puxou a cinta da calça que havia vestido, começando a caminhar para Gabe.

“Olha, pai! A culpa é minha.” Paulo apanhou o giz e riscou a parede.

A mente de Roberto se confundiu no momento seguinte, tentando assimilar e reconhecer as feições do filho. Então, marchou até ele com a cinta em mãos e começou a desferir golpes na perna.

“Pai!” O grito de Lara o assustou, e ele encarou as duas filhas, Enzo e Beca na porta da sala.

“Se vier proteger seu irmão, apanha também!” Ameaçou Roberto, crente que falava com Marcelina.

“Pega o Gabe e vai para a cozinha. Agora.” Paulo sibilou, tentando não gritar ou reagir a agressão do pai.

Enzo puxou as duas mais novas, enquanto Lara corria e pegava Gabe no colo, os cinco indo chorando para cozinha.

“O que está acontecendo aqui?” Marcelina veio correndo ao ver a mãe chorando, travando ao ver a cena. “Mas...”

“Não.” Lilian a segurou, soluçando. “Ele não sabe o que está fazendo.”

“Paulo...” Alicia parou ao lado da sogra e da cunhada, observando o marido apanhar em silêncio do pai. “Lilian...”

“Ele achou que o Gabe era o Paulo, riscando a parede. O Paulo entrou na frente, mas o Roberto está perdido! Ele ouviu a voz da Lara e achou que era a Marcelina, ameaçou bater nela.” Soluçou Lilian, vendo que o marido se cansava. “Cadê o Mário?”

“Aqui.” O veterinário surgiu, tendo ouvido a conversa, e correu segurar o sogro. “Sr. Guerra, se acalme, por favor.”

“Quem é você?” Roberto ficou novamente confuso, encarando o genro. “Mário, o que você faz aqui? O que... Por que vocês estão chorando?”

Ele olhou em volta, vendo Paulo no chão. A boca do filho tinha sido cortada, assim como algum lugar em sua coxa, que manchava a calça. Os olhos do homem se arregalaram.

“Filho, filho... Quem fez isso com você?” Se desesperou Roberto, o abraçando.

“Foram... Foram uns caras na rua, pai. Tentaram se assaltar.” Mentiu Paulo, tentando engolir o choro que ameaçava vir.

“E vocês já chamaram a polícia?”

“Já, seu Roberto. Já estão cuidando disso.” Prometeu Mário, se aproximando do cunhado. “Vem, cara, vamos para o sofá.”

“Eu vou buscar gelo.” Roberto se levantou.

“Não.” Gritou Marcelina, lembrando das crianças. “Nós pegamos, pai. Ajuda o Mário a pôr o Paulo no sofá.”

As três mulheres saíram depressa, e assim que cruzaram a cozinha, voltaram a chorar. As crianças correram e se agarraram as mães, tremendo de medo.

“Por que o vovó estava batendo no tio Paulo, mamãe?” Perguntou Beca, amedrontada.

“O vovô está doente, filha... Ele está com um problema na cabeça, que faz ele esquecer das coisas e das pessoas. Ele achou que seu tio era malvado, por isso estava batendo nele.” A mentira tinha um gosto amargo na boca de Marcelina.

“Mas o papai não é malvado! O papai é bonzinho, e o vovô não devia fazer isso.” Luna tremia contra os braços da irmã. “Eu não gosto mais do vovô!”

“Eu também não.” Choramingou Beca.

“Lilian, cadê esse gelo? O Paulo está com dor!” A voz de Roberto os assustou e as crianças novamente se encolheram.

“Já vai, querido!” Lilian pegou uma bolsa de gelo no congelador, enrolando em um guardanapo e correndo para a sala.

Lara e Enzo se entreolharam, indo atrás. Viram Paulo deitado no sofá, com a cabeça no colo de Roberto, que acariciava seu cabelo com tristeza. Assim que Lilian entregou o gelo, o homem colocou na perna do filho, que arfou.

“Calma, calma, calma... Já vai passar, filhão. Isso, devagar. Você devia tomar mais cuidado quando for andar de bicicleta, Paulo! Olha como se machucou.” Disse Roberto, suspirando.

“Tenho mesmo, pai... Eu sou um pouco desastrado.” A voz de Paulo era um sussurro baixo, tentando encobrir o choro.

Mário, ao lado do sofá, os vigiava com olhos de águia, pronto para reagir se necessário. Ele encarou os dois jovens na porta, sentindo sua angustia, e tentou sorrir.

“Vai ficar tudo bem.” Ele formou com os lábios, mas os dois sabiam que daquele momento em diante, as coisas nunca mais seriam as mesmas.

~*~

Emma estava inquieta. Por conta dos dias de festival, Ravi não estava dormindo em sua casa, e sim na de Luca. Porém, o namorado estava distante e estranho, e ela não sabia porquê.

Ou melhor, sabia, mas não queria aceitar que ele talvez não estivesse feliz por sua conquista com o Bolshoi.

“Hey!” Sorriu ao vê-lo chegar em sua casa, na tarde de segunda. “Como você está?”

“Bem. E você?” Ele sentou no sofá à sua frente, o rosto uma máscara sem expressão.

“Um pouco cansada ainda, foi uma semana puxada.” Ela colocou o cabelo atrás da orelha, ansiosa. “Ravi, eu queria conversar com você sobre...”

“Eu te trai.”

“O quê?” Ela pensou não ter escutado direito.

“Eu te trai, Emma.”

“Não, você não fez isso.” A voz da menina era um fio, tamanha a sua tensão.

“Fiz, Emma, fiz... Eu... Eu dormi com a Malu.” Os olhos de Ravi marejaram, enquanto ele encarava o colo. “E beijei uma menina da escola.”

“Por que, Ravi? Por quê?” A voz de Emma ergueu de uma vez, enquanto o sangue fervia.

“PORQUE EU QUIS, EMMA! PORQUE EU TO COM RAIVA, PORQUE EU TO TRISTE, PORQUE EU QUERO FAZER AS COISAS!” Ravi levantou, vendo a menina se encolher. “Eu estou cansado, estou sofrendo, e você... Você só quer saber do seu ballet!”

“Claro que não, Ravi! Eu te amo e você é minha prioridade, sabe disso! Eu não vou para o Bolshoi e...”

“Ah, pronto... Eu não vou para o Bolshoi porque meu namorado é um maldito aleijado! Foda-se, Emma! Foda-se! Eu cansei de você! Te trai e te trairia de novo!” Ravi pegou a bengala, começando a caminhar para a porta. “Vá para a merda do seu Bolshoi. Eu não quero mais saber de você!”

“Ravi, volta aqui!” Emma gritou, mas ele já havia batido a porta às suas costas, deixando-a sozinha. “RAVI!”

Braços a envolveram e ela sentiu o calor de sua mãe, que a puxou para seu colo e deixou que Emma chorasse ali em silêncio.

“Se acalma, meu anjo.” Sussurrou Maria Joaquina, trêmula.

“Ele não pode ter feito isso, mamãe... Não pode!” Emma soluçou nos braços da mãe.

“Mas fez, meu amor... Infelizmente, ele fez.”

~*~

“Sai da minha frente, Luca! Eu vou matar o Ravi!” Lara rosnou para o namorado, assim que ele abriu a porta.

“Vamos matar, você quis dizer.” Nina e Sara estavam junto com a amiga, Enzo e Liam mais atrás, confusos.

“Se acalmem e escutem ele, antes de tudo.”

“Não tem o que escutar! Meu irmão... Ele não merece nem ser chamado de meu irmão!” Gritou Sara, entrando no apartamento dos Cavalieri. “RAVI, SEU DESGRAÇADO, VEM AQUI!”

Todos marcharam pelo apartamento até o quarto de Luca, encontrando Ravi na cama do amigo. Encolhido e chorando, inconsolável.

“Chorar não vai adianta em nada, Ravi!” Rosnou Nina. “Como... Como você pôde fazer isso? Como pôde trair a Emma? Dizer aquelas coisas para ela?”

“Nina... Ele não traiu a Emma!” Luca gritou, atraindo a atenção de todos. “Vocês acham que se ele realmente tivesse feito isso, o tio Cirilo não estaria aqui agora, matando ele?”

“Como... O que... Do que diabos você está falando, Luca?” Enzo questionou, encarando os dois.

“Ele mentiu para a Emma.” Disse Liam, encarando o gêmeo. “Para ela ir para o Bolshoi.”

“Como é?” Sara encarou o irmão, novamente sentida, mas agora por ele.

“Ela não ia para o Bolshoi, ela não... Não queria me deixar sozinho, agora que meu pai morreu. Ela disse para a tia Maria que precisava cuidar de mim, me ajudar com a fisioterapia, ser minha base. Mas é uma oportunidade única! Uma oportunidade que vai mudar a vida e a carreira da Emma, para sempre!” Explicou Ravi, ainda soluçando. “Então eu conversei com a mamãe, com a tia Majo e o tio Cirilo... Eles não gostaram da ideia, mas concordaram que a Emma, cabeça-dura como é, não aceitaria ir sem que terminássemos. E ela não aceitaria terminar por outro motivo.”

“Ravi...” Sara correu até o irmão, o abraçando. “Seu maldito... Você é louco! A Emma vai te odiar, talvez para sempre! Você sabe como ela é... Nunca vai te perdoar!”

“Sara, você sabe que... Eu só atraso a vida da Emma! Ela tem potencial e garra para ir tão longe, só precisa se livrar desse peso morto.”

“Você não é um peso morto, Ravi.” Liam abraçou o gêmeo também, encarando os amigos. “Nenhum de nós achamos isso!”

“Sua vontade de libertar a Emma é linda, Ravi, mas... Vocês dois vão sofrer.” Lara disse com bondade, emocionada. “Ela te ama, você sabe disso! Ela está sofrendo muito com o que você fez!”

“Mas a Emma é igual a tia Majo... O sofrimento a deixa mais forte! Vai dar mais garra para ela, e fazer ela ser muito melhor no Bolshoi!” Ravi fungou. “A Emma tem asas grandes demais para ficarem presas à minha bengala, gente.”

“E você, Ravi? Você está pensando na Emma, mas e você?” Nina se ajoelhou em frente ao garoto. “Você acabou de perder seu pai... E agora vai perder a Emma também.”

A resposta não veio, porque Ravi irrompeu em um choro forte, enquanto os irmãos o abraçavam e choravam também, enquanto os demais amigos os observavam com o coração na mão.

~*~

Carmen se encarava no espelho, cansada. Seu cabelo, que até recentemente era negro, longo e vistoso, estava acinzentado e opaco, refletindo o estado de espírito de sua dona. A morte de Davi, a partida de Emma, a dor dos jovens, mas principalmente Malu, a estavam envelhecendo depressa.

Às vezes tinha medo de que ela ou Daniel não fossem mais aguentar.

“Bom dia, amor.” Daniel entrou no banheiro, e ela constatou que ele também parecia bastante acabado. “Dormiu bem?”

“Demorei para pegar no sono, fiquei esperando a Malu voltar para casa.” Contou a mulher. “Quando dormi, ela ainda não tinha aparecido.”

“Ela chegou já passava das 4h.” Avisou o Zapata. “Eu olhei no relógio quando ouvi a barulheira. Acho que ela estava bêbada.”

“Somos péssimos pais, Dan, por estar deixando isso acontecer?”

“Carmen, nós já fizemos tudo o que podíamos. Levamos na psicóloga, pagamos tratamento, mudamos de casa! Mas ainda existe o livre-arbítrio, e o da Malu está levando ela para esse caminho nefasto.” O homem abraçou a esposa. “Nós só não podemos deixar que ela nos destrua, Carmen.”

“Quando elas nasceram, que nós quase perdemos a Malu... Eu jurei para Deus, Dan, eu prometi para Ele que faria tudo, daria minha vida se preciso por elas.”

“Mas nós precisamos pensar na Nina e no Nico também, Carmen.” Ele segurou o rosto da esposa. “Nós temos três filhos que dependem de nós, e enquanto a Malu está tocando o foda-se em tudo, a Nina e Nico estão sofrendo: sofrendo por perder o Davi, por ver os amigos como estão, pela partida da Emma para o sul...”

“Eu sei.” Ela se afundou no peito dele. “Eu só não sei mais o que fazer, Dan.”

“Eu tive uma ideia, recentemente.” Ele atraiu a atenção da esposa. “Mandar a Malu estudar fora.”

“Fora? Fora do país?” Se espantou Carmen.

“Sim. Carmen, a Malu está no quentinho. Ela faz tudo o que faz porque nós protegemos, limpamos as cagadas dela! Talvez, enfrentando o mundo como ele é, sem alguém para limpar as merdas dela e livrar ela das consequências, a Malu amadureça.” Daniel explicou sua ideia, vendo a esposa se afastar, tensa.

“Isso não é sermos omissos, Dan? Entregar nossa filha para o mundo?”

“Nós já estamos entregando, Carmen. A diferença é que não temos deixado que a Malu colha as consequências.” Lembrou o marido. “Não precisa dizer nada agora. O ano escolar nos Estados Unidos só começa no meio do ano, temos tempo para pensar se isso é uma boa ideia.”

~*~

Aquele ano, seria a primeira vez que comemorariam seus aniversários separados. Emma estava no sul, então os pais e o irmão iriam encontrá-la lá. Os trigêmeos estavam sem a menor vontade de celebrar seu aniversário sem a presença de Davi, e muito menos ficar em casa ou empacar a celebração dos amigos, então convenceram Valéria a ir passar o fim de semana na praia, para estarem longe de todos. Carmen convenceu o marido a viajar com as filhas para um hotel fazenda, após ouvir Malu combinar com uma amiga de ir passar o fim de semana do aniversário fora.

Acabou que sobrou Enzo, Lara e Luca em São Paulo, tristes e magoados. Os primeiros estavam abalados, além de tudo, pela internação recente de Roberto em uma clínica de repouso, após sua doença se agravar ainda mais.

“Um ano que o mundo virou do avesso.” Suspirou Paulo, no sofá de sua casa.

“Como assim?” Questionou Marcelina.

“Há um ano, a Malu jogou tudo para o ar e despirocou de vez. Há um ano, o Davi nos avisou que estava doente de novo.” Explicou o Guerra mais velho, encarado pelos demais. “Há 16 anos, as crianças transformaram a nossa vida. E há um, o mundo veio e riu da nossa cara, nos dizendo que não podíamos ser tão malditamente sortudos como acreditávamos.”

“E esse ano, estamos todos quebrados.” Concordou Jorge. “O Luca não queria nem vir aqui hoje. Disse que não estava com vontade de comemorar.”

“A Lara só chorou, o dia todo. Disse que pela primeira vez, está odiando fazer aniversário com os amigos.” Contou Alicia, os olhos marejados.

“O Enzo passou mal a noite toda.” Lembrou Mário.

“Eu liguei para a Nina mais cedo, para dar parabéns. Ela só chorava.” Alicia não aguentava mais também. “Parece que a Malu fez merda por lá, e a Carmen e o Dan tiverem que ir resolver. E ela está passando o dia sozinha, porque o Nico se enfiou na área infantil e não quer saber de sair de lá.”

“Eu não tive coragem de ligar para a Emma ainda. Se ela chorar no telefone, eu desabo junto.” Confessou Margarida.

“Dói na gente como pai, e dói na gente como padrinho.” Resmungou Mário. “Eu só quero colocar a Lara no colo e dizer que vai ficar tudo bem.”

“O duro é não ter coragem de dizer que vai ficar tudo bem, porque a gente não sabe o que vai acontecer no dia de amanhã.” Jorge encarou o sol de pondo, cansado. “E olha que as maiores merdas nem estão acontecendo diretamente com a gente.”

No quarto de Lara, ela estava deitada entre Enzo e Luca na cama, os três sem vontade sequer de ver um filme. Aquele estava sendo, disparatado, o pior dia de suas vidas, para não mencionar o pior aniversário.

E definitivamente não era uma maneira feliz de começar um novo ciclo.

“Lara?” A porta foi aberta, revelando Luna, Beca e Lily, com Gabe agarrado na mão da irmã mais velha.

“Oi, Luna?” A mais velha encarou a porta, tentando disfarçar a cara de choro.

“Vocês estão tristes porque todo mundo foi viajar e vocês ficaram aqui?” Perguntou Lily, envergonhada.

“Não, pequena... Nós só estamos cansados.” Luca tentou sorrir para a irmã.

“Eu sei que não está sendo legal... O tio Davi morreu, a Emma foi morar longe, a Malu fica aprontando, o vovô Roberto tá doente. Mas hoje é aniversário de vocês.” Beca sentou na perna do irmão, que se sentou e a abraçou. “O papai e a mamãe estão tristes de ver vocês tristes, e a gente também.”

“Nós também estamos tristes, pequenas. Vem cá.” Lara sentou também, puxando Gabe para o colo e acomodando Luna entre duas pernas. “Hoje era para ser um dia feliz, mas não estamos vendo motivos para isso.”

“Vocês estão vivos, tem saúde, podem se divertir... E tem um montão de gente que ama vocês. Não é motivo para comemorar?” Perguntou Luna, séria.

“É, pequena, eu acho que é.” Luca sorriu para as mais novas, encarando a namorada e o melhor amigo. “Que tal irmos comer pizza?”

“Pode ser.” Concordou Enzo, se levantando com Beca agarrada em seu colo.

Luca o imitou, e Lara segurou Gabe, com Luna a abraçando pela cintura. Saíram do quarto, encontrando os pais na sala. Os mais velhos os encararam, em expectativa, e sorriram ao ver o pequeno sorrisinho que os aniversariantes lhes dirigiam.

“Podemos ir comer uma pizza hoje?” Pediu Lara.

“Podemos fazer o que vocês quiserem, princesa.” Concordou Paulo.

“Então vamos comer pizza e sair um pouco de casa. Como elas nos lembraram, apesar de tudo, temos bastante coisa para comemorar. Certo?” Perguntou Enzo, encarando a irmã caçula.

“Isso.” Beca deu um beijo estalado na bochecha do irmão, fazendo os pais sorrirem emocionados.

“Então vamos... Porque, para mim, basta um motivo para celebrar: vocês terem chegado no mundo.” Concordou Mário, abraçando os filhos e beijando os dois, antes de todos saírem do apartamento dos Guerra.

~*~

“Eu estava com tanta saudade sua, meu amor.” Majo suspirou, caminhando de mãos dadas com Emma pelo shopping.

“Também estava, mamãe.” A mais nova garantiu, olhando as vitrines. “É legal morar com as meninas, mas eu sinto muito a falta sua e do papai. E do Ryan, então, você nem imagina.”

“Eu e seu pai cogitamos várias vezes de ir para lá, morar com você. Mas além de ser absurdamente trabalhoso por conta dos nossos trabalhos, seria injusto com o Ryan tirar ele do convívio dos amigos.” Majo sorriu triste. “E você já é uma mocinha grande, não é? Pode se virar sozinha... Mesmo que o colo da mamãe esteja sempre aqui.”

“Não me faz chorar, mãe.” Suspirou Emma, a abraçando com força, os olhos cheios de lágrimas. “Eu quero voltar para casa, mãe.”

“Como assim, Emma?” Majo a encarou, confusa.

“Eu não quero mais morar no sul, mãe. Não quero mais estudar no Bolshoi. Só... Não faz mais sentido, entende?” Emma a encarou, chateada. “Não fez sentido desde o dia que eu pisei lá, na verdade.”

“E por que você não me disse antes, Emma?” A mãe perguntou, preocupada.

“Por que eu estava confusa, chateada, cansada... O Ravi terminou comigo daquele jeito, o tio Davi morreu, estava tudo quebrado por aqui. E então veio o convite do Bolshoi, a animação de vocês todos, da Raquel! Eu estava infeliz, mas quis tentar. Agora um semestre se passou, e eu não aguento mais. Mesmo sabendo que eu vou sofrer de estar aqui, perto do Ravi, depois de tudo o que aconteceu... Eu quero voltar para casa.” Desabafou Emma, chorosa. “Desculpa te decepcionar, mãe.”

“Decepcionar? Meu amor, nunca. Você nunca vai me decepcionar.” Prometeu Maria Joaquina, a abraçando com força. “Eu só quero te ver feliz, filha, sempre! E sua felicidade é você quem sabe qual é.”

“Então você não vai ficar chateada se eu não voltar para o sul, depois das férias?” Questionou a mais nova, mais aliviada.

“Eu vou ficar muito feliz de ter meus dois filhos, juntinhos, bem perto de mim.” Sorriu a mais velha, beijando a testa da filha. “E seu pai também, pode ter certeza.”

Emma sorriu, abraçando a mãe mais apertado. Já fazia meses que se sentia mal, e quase havia ruído no seu aniversário, mas tinha conseguido aguentar o fim do semestre. Agora, passando as férias em casa, não queria ir para longe da família nunca mais.

“Agora vamos para a MJ Medsen, que eu falei para o seu pai nos encontrar lá com o Ryan depois de sair do McDonald’s.” Avisou Maria, segurando a mão da filha e voltando a caminhar.

A grife de Maria Joaquina tinha uma grande e elegante loja no shopping, na qual era vendida sua grife principal, além da Emma Rivera, a grife infanto-juvenil que assinava em conjunto com a filha.

“Olha o Ryan.” Emma apontou o irmão, que corria em direção à loja. “Nós desenhamos roupas lindas, e ele insiste em usar essas camisetas de herói com bermuda e chinelo.”

“Ele é filho do seu pai, querida, não tem o que fazer.” Riu a mãe, lembrando do estilo casual e desleixado que o marido cultivava até os dias atuais. “Mas... O quê?”

As duas viram com espanto quando uma das vendedoras se aproximou de Ryan e começou a gritar com ele, apontando a saída. Apertaram o passo, tensas, e começaram a ouvir a gritaria.

“Sai daqui, garoto, aqui não é lugar para você.” Mandava a vendedora, irritada.

“Mas...” Ryan tentava falar, sem conseguir brecha.

“Ainda por cima com um sorvete. Se você sujar alguma dessas roupas, sua mãe vai ter que vender a casa para pagar. Isso se tiver mãe, né?” Desdenhou a vendedora, o olhando com repulsa. “Molequinho encardido.”

“O que está acontecendo aqui?” Maria Joaquina chegou com a filha, espumando de raiva.

“Maria Joaquina Medsen.” Os olhos da vendedora se arregalaram. “Desculpe, o garoto entrou e eu não consegui impedir. Eu já vou chamar o segurança para colocar ele para fora, fique tranquila. Ele não tocou em nada, nem sujou nada.”

“Mãe...” Ryan encarou a mãe, os olhos cheios de lágrimas de tristeza.

“Vem aqui, meu anjo.” Maria se aproximou do filho, o pegando no colo e deixando que ele chorasse. O sorvete caiu no chão e melecou tudo, mas a vendedora sequer se mexeu. Estava mortificada e desesperada demais para isso.

“O segurança vai ser chamado sim.... Mas para te tirar daqui.” Rosnou Emma, cega de ódio. “Ou talvez seja melhor a polícia.”

“O que está acontecendo aqui? Maria Joaquina? Está tudo bem?” O gerente se aproximou com as demais vendedoras, tenso.

“Ryan? Filho, tudo bem?” Cirilo entrou nessa hora, correndo até a família.

“Essa mulher estava desferindo comentários preconceituosos e racistas contra o Ryan, pai. Destratando ele por sua aparência e cor, sem saber que ele era o filho da dona da loja.” Contou Emma, vendo o choque das pessoas ao redor.

“Perdão, senhora, eu sou nova na loja, não conhecia seu filho. Não sabia que seu marido era... De cor.” A vendedora engoliu em seco.

“Respeito se dá independente do posição que a pessoa ocupa.” Sibilou Maria, segurando o filho apertado. “Que fosse um menino de rua que estivesse aqui, que fosse o Papa... O respeito que você deveria ter é o mesmo, pois se trata de um ser humano, constituído da mesma matéria que você, física e espiritual. Talvez até mais do que você...”

“Eu vou ligar para o padrinho, mãe... Quero essa mulher presa.” Rosnou Emma, vendo a outra arregalar os olhos.

“Eu quero ir embora.” Ryan choramingou contra o ombro da mãe, sendo abraçado pelo pai.

“Vamos, vamos sim, filho.” Concordou Cirilo. “Venha, Emma...”

“Mas pai...”

“Depois nós vamos resolver isso, filha.” Prometeu Maria Joaquina. “Por hora, vamos cuidar do seu irmão, está bem?”

“Sim.” Concordou a menina, se aproximando da família e abraçando o irmão.

“Renan, por favor, eu quero ver essa mulher longe da minha loja. O mais rápido possível.” Mandou Maria, vendo o gerente assentir. “E nós vamos para casa.”

~*~

“Cadê o Ryan?” Daniel entrou na casa dos Rivera possuído.

“Calma, tio, ele ainda está assustado.” Pediu Emma para o padrinho do irmão. “Meus pais estão com ele no jardim, mas ele não está bem.”

“Eu vou lá.” Avisou o homem, marchando para o fundo da casa.

“Seu tio nunca se conformou quando isso aconteceu com o seu pai. Fica ainda pior quando é com o nosso afilhado.” Explicou Carmen, dando um beijo na menina. “Eu vou lá com eles.”

“Pode ir, tia.” Emma abraçou Nina, deixando os mais velhos irem cuidar de seu irmão. “Cadê o Nico?”

“Meus pais deixaram ele com a minha avó, acharam que o clima estaria muito tenso para ele vir para cá.” Explicou a Zapata. “Como alguém pode ser tão cruel com uma criança, Emma?”

“Não sei, Nina... Eu quase voei no pescoço da mulher ao ouvir ela falar com o Ryan daquele jeito. O desdém que ela tinha no olhar, a repulsa. E depois quando ela falou para a minha mãe que não sabia que meu pai era de cor, como se isso significasse algo!” Emma soluçava nos braços da amiga.

Não demorou para a casa dos Rivera estar cheia. Jorge e Margarida estavam no telefone, se informando dos passos legais a serem tomados para denunciar a atitude da vendedora. Os demais se dividiam entre acalmar Ryan, Cirilo, Maria Joaquina e um ainda possesso Daniel.

“Acho que se eu ouvisse alguém destratar a Beca assim, eu quebrava todos os dentes que a pessoa tem na boca.” Suspirou Enzo, largado nos pufes do quarto de Emma com Eevee dormindo em seu colo.

“E isso porque você não é um irmão super-protetor.” Lembrou Luca, apoiado na janela.

“O pior é pensar que isso pode acontecer algum dia, e eu ou meus pais não estarmos por perto.” Desabafou Emma, abraçada com Nina e Lara. “Eu sei que os tempos hoje são diferentes... Sabe, meu avô sofreu muito mais do que meu pai, e infinitas vezes mais do que o Ryan vai sofrer. Mas mesmo assim, me dói pensar que na metade do século XXI, ainda tem gente com essa mentalidade!”

“É gente que tem o rei na barriga, e acha que é melhor do que os outros pela aparência. Como se aparência indicasse muita coisa.” Lembrou Lara, chateada.

“O Liam disse que a tia Val está por conta. Que ela já está em contato com o editor dela, para fazerem uma matéria no jornal. Ela já está cheia de ideias, quer fazer um trabalho bem caprichado sobre racismo nos dias de hoje.” Nina encarou o celular, sorrindo. “É bom ver ela se animar com algo. Mesmo que seja algo ruim.”

“Eles não vão vir para cá?” Perguntou Emma, sentindo o estômago revirar.

“Eles acharam melhor não, por causa do Ravi.” Enzo deu um sorriso amarelo.

“Nós vamos precisar vencer esse problema... Por que eu vou voltar a morar aqui em São Paulo.” Emma anunciou para os amigos, que ficaram surpresos. “Isso já estava decidido antes, e depois do que aconteceu com o Ryan... Eu não vou deixar minha família, nunca mais.”

“Ai, graças a Deus! Então a gente pode contar, porque esse segredo tava me matando: Emma, o Ravi não te traiu.” Anunciou Lara, vendo os olhos da amiga se arregalando. “Ele inventou isso, para você aceitar terminar com ele e ir para o Bolshoi.”

“Como é que é?” A dona da casa gritou. “E vocês sabiam disso?”

“Sabíamos. Seus pais também. Todo mundo, na verdade.” Confessou Enzo, sem graça. “Foi uma escolha do Ravi... Ele sabia que você não iria para o Bolshoi, por causa dele, e não queria te prender aqui. Ele falou com a tia Val e os seus pais, e mesmo não achando isso legal, eles concordaram que seria a única forma de você ir.”

“O Ravi não tinha esse direito.” Se chateou a Rivera.

“A gente sabe, amiga, mas se coloca no lugar dele: nós sempre soubemos que você queria investir na sua carreira, e do nada surge uma oportunidade de ouro. Em tempo, ele havia acabado de perder o pai e estava em uma fossa, e você estava sendo o porto seguro dele em tudo isso. Não é preciso ser um gênio para saber que você iria abrir mão dessa oportunidade pelo Ravi.” Lembrou Nina, sorrindo com tristeza.

“Mas seria uma escolha minha!”

“Da qual um dia você poderia se ressentir.” Emma acabou concordando.

“O Ravi errou, Emma, mas ele fez isso por amor, querendo o melhor para você. Não justifica, mas ajuda a entender.” Luca sorriu para a amiga. “E agora, que você vai voltar, vocês podem se acertar. Com calma, sem pressa... Em alguns dias vai completar um ano que o tio Davi morreu, e nós sabemos o quão difícil está sendo para ele, o Liam e a Sara. Esse último ano foi infernal, para todos nós, e eu estou torcendo para que, ao fim desse ciclo, as coisas voltem a entrar no lugar.”

~*~

Talvez a pior parte daquele dia, era a constatação de que um ano havia se passado. Há 365 dias nenhum deles ouvia a voz de Davi, via seu rosto, sentia sua presença. Talvez, por algum tempo, ainda tivessem a esperança de que tudo fosse uma brincadeira do acaso, de que um dia Davi voltaria rindo e dizendo que estava apenas brincando com todos. Mas agora, um ano depois, era como se a ficha afinal caísse de que ele nunca iria voltar.

Kaue havia viajado com os avós para Israel, berço de sua fé, e juntos estavam realizando o sonho que havia sido de Davi tantos anos antes. Convidaram Valéria e os trigêmeos para ir junto, mas nenhum deles quis. Havia várias formas de lidar com o luto, mas nem todas funcionavam da mesma maneira para todos.

“Uma festa? Vocês estão zoando com a nossa cara, certo?” Os três irmãos estavam no apartamento dos Cavalieri, encarando os amigos como se fossem loucos.

“Não, eles estão falando sério.” Valéria entrou na sala, séria. “Faz um ano que o papai morreu, crianças... E eu sei que dói ainda, e vai doer para sempre! Mas chega de deixarem de viver por isso.”

“Mãe...”

“Vocês têm 16 anos, queridos. Deviam estar indo para festas, dando escapadas com seus namorados e me deixando de cabelo em pé. Mas ao invés disso, se entregaram a dor e ao luto, vivem escondidos de lembranças, chafurdados na dor.” Ela sentou ao lado dos filhos, acariciando seus rostos. “E eu posso garantir que isso não é o que o pai de vocês gostaria.”

“Eu sei, mãe. Mas justo hoje? Sair justo hoje?” Questionou Sara.

“Filha, os últimos doze meses foram horríveis. Não só para nós, mas para toda a nossa grande família. Isso incluir todos os seus primos e amigos.” Valéria indicou o grupinho ao redor. “Vocês todos merecem um recomeço: deixar para trás todas as coisas ruins que aconteceram e curtir essa juventude que tem deixado passar.”

“Isso vai ter fazer feliz, mãe?” Perguntou Liam.

“O importante é que faça vocês felizes, filho.”

“Então nós vamos.” Concordou Ravi, suspirando.

~*~

A tal festa nada mais era do que uma “social” organizada pela turma do terceiro ano do colégio, aproveitando a ausência dos pais de um deles e sua casa razoavelmente grande. Social era o nome primário dado aquilo, mas naquele momento era conhecido como zona.

Álcool, pessoas alteradas, música alta, pegação. A casa parecia saída de um filme clichê adolescente, e totalmente fora da realidade do grupinho que havia acabado de cruzar a porta.

“Ok, acho que essa não foi uma boa ideia.” Comentou Enzo, agarrando a mão de Sara.

“Péssima, na verdade.” Concordou Luca, abraçando Lara pela cintura.

“Relaxa, gente... Vamos dar uma volta, ver a festa. Se não gostarmos, vamos embora.” Prometeu Liam, não querendo que os amigos se sentissem mal pela tentativa. “Nina, vamos procurar algo não alcoólico para beber?”

“Claro.”

“Eu preciso ir no banheiro.” Avisou Sara.

“Então vamos, amiga.” Lara segurou a mão dela, e Emma enganchou seus braços, as três saindo pelo meio da multidão.

“Eu não devia ter vindo.” Suspirou Ravi, atraindo a atenção dos amigos. “Agora vou empacar a noite de vocês.”

“Por quê?”

“Porque eu sei que você está louco para achar um canto com a Lara, Luca. E você com a minha irmã, Enzo, por mais que isso me enoje. E vocês vão ficar com a gente, para não deixar eu e a Emma sozinhos.” Ele explicou.

“Ravi...” Luca bagunçou os cabelos, encarando Enzo sem saber o que fazer. “A Emma sabe a verdade.”

“O quê?”

“É cara... Ela nos contou que não vai mais voltar para o sul. E nós contamos a verdade, porque ela estava nos matando.” Contou Enzo. “Cara, vocês dois se amam e estão sofrendo separados. Você fez o que fez para a Emma ir atrás do sonho dela. Mas o sonho dela é outro.”

“Qual?”

“Ser feliz com você, seu tonto.” Liam se reaproximou com Nina. “Você sabe minha opinião sobre isso desde o começo, Ravi. E aproveitando o que a mamãe falou, sobre hoje nos recomeçarmos nossa vida... Apaga esse capítulo horrível e começa tudo de novo.”

~*~

Mário estava na cozinha de casa, bebericando um copo de água. Havia comido um lanche no jantar e lembrava do dito até o presente momento. A azia e queimação estavam fortes, e ele não conseguia dormir.

“Amor?” Marcelina apareceu sonolenta. “Passando mal de novo?”

“O lanche está mandando lembranças.”

“Nome disso é idade, amor.” A esposa se aproximou, mudando o semblante. “Mário, você está suando frio.”

“É o mal estar.”

“Sua pele está gelada, Mário.” Se preocupou Marcelina. “Você está sentindo mais alguma coisa?”

“Um pouco de cansaço, só isso.” Ele deu um sorriso amarelo. “Como você falou... Nome disso é velhice.”

“Eu estou casada com um idoso. Deixa eu tentar falar com o Enzo, para ver que horas vamos buscar eles.” A baixinha se afastou, pegando o celular.

Mário se apoiou no balcão, estalando o pescoço e movimentando os braços. Realmente estava parecendo um velho, com o corpo todo travado e dolorido. Começou a pigarrear, sentindo o peito chiar, e algo lhe ocorreu.

“Não pode ser.” Sussurrou, sentindo o corpo tencionar e pesar. “Não pode...”

A visão ficou turva e ele começou a tremer. O copo se espatifou no chão, fazendo barulho e espalhando os cacos por todos os lados.

“Mário?” Ouviu a voz da esposa, mas não conseguia responder. “Mário?”

Seu último vislumbre foram os pés de Marcelina aparecendo na entrada da cozinha.

~*~

Malu estava sentada no balcão da cozinha da festa, com um garoto entre suas pernas e com a língua enroscada na sua. Não sabia seu nome, idade ou de que escola era, mas sabia que ele beijava bem.

“Gatinha, seu celular não para de tocar.” Comentou o dito, sentindo a vibração do aparelho no peito graças a posição em que estavam.

“Meus pais.” A garota revirou os olhos, mas atendeu. “Fala.”

“Malu, eu preciso que você encontre sua irmã e seus primos.” Pediu sua mãe, tensa.

“Para quê?” Ela não estava muito interessada, mais ocupada com os beijos do rapaz em seu pescoço.

“O Mário sofreu um ataque cardíaco. Estamos indo para o hospital, mas não estamos conseguindo falar com o Enzo. Preciso que você encontre eles.”

“Tá, tá... Assim que der eu faço isso.” Malu desligou o aparelho, voltando a beijar o rapaz.

“Alguma coisa séria?”

“Nada que não possa esperar.” Garantiu Malu, ignorando o telefone que voltava a tocar.

~*~

“Hey.” Emma chamou Ravi, que estava sentado na escada. “Entediado?”

“Sem sinal de celular. E o wifi da casa foi jogado na piscina.” Ele contou, lembrando da bagunça de momentos antes. “E você?”

“Cansei de segurar vela. A Lara e a Sara estavam louca para se atracar com o Luca e o Enzo, e seu irmão já deu um perdido com a Nina faz tempo.” Ela sentou ao lado de Ravi, os dois em silêncio. “Eu sinto a sua falta.”

“Eu também.” Ele encarava o colo.

“Eu sei a verdade.”

“Eu sei que sabe.”

“Você não tinha esse direito... Soldadinho.”

“Desculpa, bailarina, eu só... Queria que você fosse livre. Minha prisão é eterna, mas a sua não precisa ser.” Os olhos dele estavam cheios de lágrimas ao dizer aquilo.

“Mas a minha prisão é eterna, Ravi...” Emma segurou o rosto dele, fazendo com que ele a encarasse. “Eu estou eternamente presa a você, pelo fato de você ser o amor da minha vida.”

“Nós só temos 16 anos, Emma.”

“Como se você não soubesse que nossa história é um belo clichê fadado a eternidade.” Os dois riram, os rostos próximos. “Eu sei que não vamos conseguir apagar o que aconteceu, Ravi... Mas vamos tentar voltar a ser felizes?”

“Só de você propor isso, já me faz muito feliz.” Garantiu ele, segurando o rosto de Emma. “Vou te beijar, bailarina.”

“Anda logo, seu soldadinho lerdo.” O sussurro de Emma morreu entre os lábios de Ravi.

~*~

“Graças a Deus, ar fresco.” Sara respirou fundo assim que deixaram o interior da casa, sentindo Enzo agarrar sua cintura. “Hum, fogoso.”

“Você sabe que somos pólvora e faísca, Sara... Nos juntar é sinônimo de explosão.” Enzo a encostou em uma parede, selando seus lábios.

“Você fala assim, parece que...” Sara resmungou, sendo encarada por Enzo. “Esquece.”

“O que foi, Sara?”

“Enzo, você gosta de mim?”

“Que pergunta, Sara, claro que sim.” Ele revirou os olhos.

“E por que a gente não namora então?” Ela jogou na lata, o surpreendendo.

“Porque... Porque... Ah, sei lá o porquê, Sara. Você nunca quis namorar, sempre falou que queria ser livre. E eu também.” Ele se afastou da menina, sentindo o celular vibrar no bolso.

“Ah, claro, joga a culpa para mim. Eu que não quero nada com nada, né?” Ela cruzou os braços, esperando a resposta dele. Mas ela não veio. “Enzo?”

Ele estava encarando o celular com os olhos cheios de lágrimas. Sara se aproximou, curiosa, achando que se tratava de uma ceninha. Começou a ler por cima do ombro dele, sentindo o coração apertar.

“Vamos achar nossos amigos.”

~*~

Valéria estava em frente à máquina de café, encarando a parede. Um dia amaldiçoado, só podia ser. Aquele dia tinha que ser amaldiçoado para gerar tanta desgraça na vida deles. Um ano infernal, que eles juravam que poderiam deixar para trás, até receberem a ligação de que Mário estava no hospital, entre a vida e a morte.

“Val? Você está bem?” Jaime surgiu ao seu lado, preocupado. Sabia que aquele dia não era fácil para a amiga, e um acontecimento como aquele só agravaria mais a situação.

“Só tentando ser forte pela Marce. Já estive nos sapatos dela, sei como é difícil.” A jornalista virou seu copo de café, suspirando. “Um ano.”

“Exatamente um ano depois, e estamos no mesmo lugar.” Concordou Jaime, pegando um colo de café. “Estou torcendo por um desfecho diferente.”

“Você nem imagina o quanto eu estou rezando.” Valéria negou com a cabeça, os olhos marejados. “As crianças não aguentam perder mais uma pessoa. Nenhuma delas.”

“Nenhum de nós aguenta, Val. Vem cá.” Jaime soltou o café, puxando Valéria para um abraço de urso. “Vamos ter fé que o Mário vai ficar bem, ok? Deus não vai nos tirar mais uma pessoa.”

“Deus não deveria ter nos tirado nenhuma.”

~*~

O grupo de adolescentes corria pelo estacionamento do hospital, aflito. Liam e Emma praticamente carregavam Ravi, diante do desespero de Enzo e do fato de Luca quase carregar Lara, que chorava aflita pelo padrinho.

Irromperam na emergência do hospital, avistando seus pais.

“Mãe.” Enzo gritou e correu, se jogando sobre Marcelina e abraçando, aos prantos.

“Calma, meu tesouro, calma.” Marcelina também chorava, mas tentava tranquilizar o filho.

“Padrinho...” Luca chamou Paulo, indicando Lara. O Guerra caminhou até a filha, a pegando no colo e indo se sentar.

“Como o tio Mário está?” Perguntou Emma, agarrada em Ravi.

“O papai está lá dentro, acompanhando ele. Não sabemos muita coisa, filha.” Maria estava ao lado de Marcelina, sendo a mais calma naquele momento.

“Nina, sua irmã... Ela avisou vocês?” Perguntou Carmen, tremendo de raiva.

“Eu nem vi a Malu na festa, mãe.” A mais nova baixou os olhos, irritada.

“Esquece isso agora, Carmen. Depois nos acertamos com a Malu.” Daniel abraçou a esposa, encarando a porta da emergência. “Agora temos preocupações maiores.”

“O papai vai ficar bem, mãe?” Enzo sussurrou para Marcelina.

“Eu espero que sim, meu amor. O papai é forte, você sabe.” Marcelina acariciava o garoto em seus braços, já tão maior que ela.

“Ele prometeu que o coração dele ia sempre bater por nós e pela Beca. O coração dele não pode parar, não pode!”

Marcelina nada disse, apenas abraçou o filho com mais força e deixou que ele chorasse em seu colo. Valéria e Jaime chegaram naquele momento, com alguns copos de café, e logo a jornalista dava colo para os três filhos, enquanto os demais jovens se deixavam ser abraçados pelos próprios pais, em silêncio.

~*~

Cirilo encarava Mário, o próprio coração na mão. Um ano antes, havia visto Davi naquela mesma situação, mas aquele era um fim. Agora, graças a Deus, via um novo começo. Mário tinha um bom prognostico a frente, permanecia estável, e apesar da visão desagradável de estar no respirador, os pulmões mostravam iniciativa. Logo estaria fora dali, Cirilo tinha certeza.

Caminhou para a sala de espera, já recomposto e pronto para lidar com o mar de desespero que o engoliria. O local estava apinhado, como já imaginava, e o maior desespero vinha de Marcelina, Enzo, Germano, Nathalia e Diana.

“Gente?” Chamou a atenção de todos, mas falou especificamente para a família. “O Mário está fora de perigo.”

O suspiro de alívio se tornou quase um grito pela coletividade. Diana abraçou os pais com força, enquanto Enzo e Marcelina se embolavam em uma coisa só. Ao redor, os amigos derramaram lágrimas de alívio.

“Nós podemos ver ele, tio?” Pediu Lara.

“Ainda não, querida. Ele está na unidade semi-intensiva, está sedado, mas está fora de perigo.” Garantiu Cirilo. “Se o Enzo e a Marcelina quiserem, podem ir vê-lo, rápido.”

Marcelina encarou o filho, que apenas assentiu. Os dois se levantaram, abraçados, e seguiram Cirilo. O médico os guiou pelos corredores e explicou que eles precisavam colocar aventais e máscara, mesmo sendo na semi-intensiva.

“Ouçam, não se assustem, ok? Ele está no respirador por uma questão de não forçar o coração.” Pediu Cirilo. “Mas ele está bem, ok? Ele foi socorrido a tempo, e está bem!”

Mãe e filho assentiram, caminhando para dentro do quarto indicado. Cirilo disse que os deixaria sozinho e que depois iria chamá-los, mas que eles tinham tempo.

“Agora eu sei como o seu pai se sentiu, todos aqueles anos atrás.” Sussurrou Marcelina, na porta do quarto. “Quando entrou na sala de cirurgia e me viu assim.”

“É horrível. Parece que... Que ele não está vivo.” Concordou Enzo, de olhos marejados. “Eu posso chegar perto?”

“Claro, meu amor. Vem, vamos juntos.” Marcelina caminhou de mãos dadas com ele. “Oi, meu amor. Nós estamos aqui.”

Ela beijou a mão do marido, a mantendo bem segura entre as suas, como ele mesmo havia feito com ela anos antes. Enzo deu a volta na cama, sentando na beirada e encarando o pai. Seus olhos marejaram ao lembrar da conversa que havia tido com ele, logo que Davi adoeceu, e se inclinou, apoiando o rosto no peito do homem.

“Você me prometeu que seu coração sempre bateria pela gente, pai. E eu sei que você sempre cumpre suas promessas.” Enzo colocou o próprio indicador entre os dedos do pai, que se fecharam de forma inconsciente. “Eu to aqui por você, pai... Sempre.”

~*~

Carmen e Daniel estavam na sala de casa, tensos. Malu não dava as caras desde o dia da festa, e mesmo sabendo aonde ela estava, os dois estavam por conta. A mãe da amiga na qual ela estava dormindo tinha ligado mais cedo, e os dois tiveram uma conversa aos berros com a mulher. Agora, Malu estava a caminho de casa, e eles se preparavam para outro embate.

“Nem começa com discurso, que eu to de ressaca.” Ela avisou assim que viu os dois na sala.

“Malu Zapata, senta nessa merda de sofá, agora.” Daniel disse num tom firme, que surpreendeu a filha.

“Ui, ui... Papaizinho está nervoso?”

“Malu, cala essa boca e senta, antes que eu perca a minha noção e te encha de tapas.” Avisou Carmen, e a menina obedeceu. Queria ver até onde os pais iriam, mas tinha medo de saber qual seria esse limite.

“Qual o drama da vez?”

“Malu, você sabia que o Mário quase morreu?” Rosnou Carmen, vendo a surpresa da filha. “Você não lembra que eu te liguei na festa e pedi que fosse atrás do Enzo?”

“Qual é, eu tava bêbada. E ficando com um gatinho, que olha... Um arraso, mãe!”

“Garota, baixa tua bola.” Avisou Daniel, quase rasgando o braço do sofá com seu aperto.

“Malu, seu tio quase morreu. Nós ficamos que nem loucos tentando falar com vocês, e você cagou para tudo. Você está fora de casa há dias, e hoje a mãe da Vanessa ligou, nos acusando de abandono e negligência paterna.” A voz de Carmen ia se erguendo. “Eu não sei mais o que fazer com você, garota, realmente não sei!”

“Já ouvi isso algumas vezes.” Desdenhou Malu.

“Você vai para o exterior.” Avisou Daniel, na lata.

“Eu vou o quê?” Gritou Malu, desesperada.

“Você vai ir morar em Washington, com um primo da minha mãe. Ele é militar.” Avisou Daniel. “Chega de nós encobrirmos suas cagadas e te protegermos, Malu. Quer ser rebelde? Arque com as consequências.”

“Você está destruindo a todos nós, filha. Eu, seu pai, seus irmãos... Nós não aguentamos mais.” Carmen tinha os olhos cheios de lágrimas.

“Vocês vão me abandonar?”

“Nós nunca vamos te abandonar, Malu, mas você já nos abandonou.” Lembrou Daniel. “Há dias que você estava fora de casa, lembra? Que diferença faz, afinal?”

“E depois dizem que me amam.” A garota levantou, indo para o quarto.

“Você só vai conseguir entender esse amor quando tiver seus próprios filhos, Malu. E aí vai conseguir entender o quanto está doendo em nós dois termos que fazer isso.” Garantiu Carmen, ouvindo a porta do quarto da filha bater.

~*~

“Como está se sentindo, tio Mário?” Perguntou Sara, sentada na beira da cama do homem, já em casa.

“Bem melhor, querida, obrigado.” O homem sorriu. “Desculpe o susto.”

“Ah, essa família gosta de emoção, né?” Os dois riram. “Ele não sai daqui, né?”

“Tem dormido no chão, todos os dias.” Mário encarou o filho, que naquele momento dormia no local que a mãe ocupava na cama. “O Enzo não é superprotetor, sabe? Mas de uns tempos para cá, virou um leão com todos nós.”

“Desde que meu pai morreu.” Lembrou Sara. “Ele tomou como missão pessoal cuidar de mim.”

“Tem muito a ver com o nome dele, sabe? O príncipe do lar, que cuida de todos nós.” Mário acariciou o cabelo do garoto. “Ele gosta muito de você, Sara.”

“Eu sei, tio.”

“Mas ele também é muito lerdo.” Sara riu ao ouvir aquilo. “Sugiro que você tome uma iniciativa. Se é que me entende.”

“Ele te contou da nossa discussão?” Ela arqueou a sobrancelha.

“Sim, contou. A Marcelina chamou ele de miniatura de Mário. Só porque eu demorei alguns anos para me declarar.” O mais velho fez pouco caso. “O ponto é... Talvez você realmente precise agir, e resolver esse pequeno imbróglio entre vocês.”

“Vocês podiam não falar mal de mim quando eu estou presente.” Resmungou Enzo, coçando os olhos.

“O que posso fazer se você está mais grudado em mim do que o Rabito quando eu era criança?”

“Estou sendo comparado com o cachorro, que fase.” Enzo bocejou.

“Está fedendo como um. Não sei como a Sara te aguenta.” Marcelina entrou no quarto com Beca. “Vai dar uma volta, filho, ver um pouco o sol. Já está quase parecendo um fantasma.”

“O amor da minha família me enche o coração.” Enzo levantou, bagunçando mais os cabelos. “Vamos, Sara?”

“Vamos, Mariozinho.” Ela riu, segurando a mão do garoto e saindo do quarto com ele.

“Tchau cunhadinha!” Gritou Beca, provocando gargalhadas.

“Essa baixinha é terrível”

Os dois foram para a praça perto do apartamento, ocupando a base de uma árvore e começando a simplesmente encarar o céu. Sara não conseguiu evitar se emocionar, lembrando e sentindo o pai tão presente naquele lugar.

“Árvores te lembram dele, não é?” Enzo não precisava que ela falasse, ele sempre sabia.

“Tudo me lembra dele, Enzo, sempre.”

“Eu sei.” Concordou o garoto, encarando o nada. “Eu conversei com o seu pai, sabia? Algumas semanas antes de ele morrer.”

“Sobre o quê?”

“Sobre a gente.” Enzo encarou Sara ao confessar isso. “Ele pediu para eu, a Nina e a Emma irmos na sua casa uma tarde, porque queria conversar com a gente sobre você, o Liam e o Ravi.”

“Eles sempre tiveram muita certeza que acabaríamos todos juntos, não é?” Ela sorriu de lado.

“Nós somos o maior dos clichês, Sara, isso é fato. Nós sabemos disso, nossos pais sabem disso... Até o presidente, se bobear, sabe disso.” Desdenhou Enzo, fazendo a menina rir. “Seu pai me pediu para prometer só uma coisa.”

“Que você ia cuidar de mim?”

“Não, que eu não ia te machucar, nunca. E isso queria dizer que eu só ficaria com você quando soubesse que eu estava pronto para assumir um namoro sério, sem nos machucarmos.” Enzo acariciou o rosto dele. “E eu sei que eu estou pronto, Sara. Mas eu ainda tenho medo.”

“Do quê, Enzo?”

“De quebrar minha promessa. De não ser o homem que você merece, de partir seu coração... De não conseguir ser o homem que seu pai esperava que eu fosse.”

“Enzo...” Sara se virou, ficando de frente para ele e segurando seu rosto. “Você já é muito mais do que meu pai poderia sonhar, tenho certeza. Você tem sido minha rocha e minha fortaleza nesse último ano, me segurou e me deu chão quando eu me senti a deriva, me devolveu o ar quando achei que iria sufocar! Você me faz fez todos os dias, e me faz triste também. Essa inconstância no nosso relacionamento me machuca e causa dor, e eu sei o que quero. Mas você precisa querer também.”

“Como se você não soubesse que eu quero, sua demônia.” Os dois riram, colando as testas. “Você me enredou, Rabinovich.”

“Você fez o mesmo, Ayala. Mas agora cala a boca e me beija, pode ser?”

“Só depois de você me responder uma coisa... Quer namorar comigo, garota?”

A resposta nunca veio em voz alta, porque Sara resolveu ela mesmo acabar com a distância entre eles.

~*~

Valéria estava caminhando pelo mercado, empurrando seu carrinho de compras e analisando as prateleiras. Uma das coisas que sempre havia odiado, mas que agora precisava fazer, eram as compras da casa. Ficando em casa com os filhos e tendo tempo livre, esse papel sempre havia sido de Davi, até o momento em que a doença o impediu.

“Mãe, olha quem eu achei!” Kaue veio animado pelo corredor, puxando Arthur pela mão e sendo seguidos por Jaime. “O padrinho.”

“Que bela coincidência.” A jornalista soltou o carrinho, cumprimentando a criança e indo abraçar Jaime. “Acho que eu te via mais quando você morava fora do estado do que agora que mora na mesma cidade que eu.”

“As coisas estão corridas no trabalho.” Se desculpou Jaime. “Eu e o Paulo estamos analisando a proposta de abrir uma filial da lanchonete, e tentando convencer a Alicia disso.”

“Você passou uma década fora, e quando volta, é como se nunca tivessem rompido a sociedade.” Valéria riu, negando com a cabeça. “Kaue, filho... Quer ir pegando as bolachas para adiantar as coisas? Ainda precisamos ir buscar o Ravi na fisioterapia.”

“Tá bom, mãe. Vem, Tuca!” As duas crianças saíram correndo embaixo do olhar dos pais.

“Como eles estão?” Jaime perguntou, vendo Valéria suspirar.

“É confuso, sabe? Logo que o Davi morreu, nós só queríamos que a dor passasse logo. Agora que ela amenizou um pouco, nós nos culpamos por estarmos seguindo com a vida.” Confessou a mulher. “Sabe, não tem um dia que se passe sem eu pensar no Davi, mas agora isso não está mais em cada passo que eu dou. Nós conseguimos sentar para jantar e rir, deitar para assistir um filme, ser felizes! E eu vejo que, como eu, às vezes eles também se pegam percebendo isso e se sentindo culpados.”

“Você sabe que não há culpa nisso, Val. O que o Davi mais queria era te ver feliz! Você e as crianças.” Jaime segurou a mão dela, sorrindo.

Por um átimo de segundo, Valéria jurou sentir um arrepio na espinha. Tratou logo de mudar de assunto e se afastar.

“E vocês, Jai? Como estão?”

“Ah, agora bem. Me dói um pouco ver que a relação do Arthur com a mãe está cada vez mais distante, mas ela não move um dedo para mudar isso. Ela ligou esses dias para ele, contou que está grávida do novo namorado e que não sabe se vai conseguir vir para cá ou levar ele para lá. E ele nem se chateou.” Contou o Palilo, encarando o filho à distância. “Ele fica me perguntando quando eu vou namorar de novo. Diz que sente saudade de ter mais gente em casa.”

“O Arthur é um menino de ouro.” Valéria sorriu para as crianças, segurando o braço de Jaime. “Você também, Jai. Logo vai arranjar alguém.”

Jaime deu um sorrisinho para Valéria, sentindo o braço formigar no ponto que ela tocava, mas tentando ignorar.

~*~

Lara e Luca estavam sozinhos no apartamento do garoto. Lily estava dormindo com Luna na casa de Beca, e Jorge e Margarida estavam em seu encontro semanal. Os dois, na verdade, deviam estar acompanhados por Emma e Ravi, mas o outro casal resolveu ir ao cinema e os deixou curtir um tempo sozinhos.

“Luca?” Lara chamou o namorado.

“Hum?” Ele estava ocupado em beijar o pescoço dela.

“Amor, tem alguma coisa bem... Animada, nas suas calças.” Ela observou, corando.

“Nós estamos no meio de uma sessão de amassos, Lara, se ele não se manifestar eu vou me preocupar.” Luca acabou rindo, se afastando um pouco da namorada. “Mas se te incomoda, eu vou no banheiro e dou um jeito nisso.”

“Não... Quer dizer, não sei.” Lara cobriu o rosto com as mãos. “Luca, você tem vontade de transar?”

“Você está realmente me perguntando isso? Lara, eu sou homem e tenho 16 anos. Isso já responde sua pergunta?” Ela revirou os olhos. “Vida, nós já conversamos sobre isso... Eu não vou te forçar a nada, fique tranquila.”

“Eu sei, vida, mas eu quero! Tem horas que parece que eu tenho um incêndio dentro de mim, de tanto fogo.” Ele gargalhou da colocação dela. “Mas eu tenho medo de dar algo errado.”

“Com a superfertilidade dos seus pais, até eu tenho medo.” A brincadeira lhe rendeu um tapa. “Amor, nós temos duas opções: ou nos protegemos e corremos os pequenos riscos que ainda assim estão atrelados a isso, ou vivemos de celibato e banho gelado até nos casarmos.”

“Romântico, Luca, realmente romântico.”

“Lara, eu sou romântico... Mas continuo sendo um menino de 16 anos.” Ele deitou por cima dela, enchendo seu rosto de beijos. “Amor, você colocar sua mão aí não vai ajudar muito...”

“Eu sei... Lu, você tem camisinhas?” Ele arregalou os olhos, vendo ela corar ainda mais. “Você me olhando assim não vai ajudar.”

“Eu vendo os olhos se você quiser.”

“Acho melhor você me beijar, porque calado você é um poeta.”

~*~

“Jura por Deus que você está vindo buscar a Lara a essa hora, Paulo?” Jorge ria da cara do compadre, enquanto Alicia revirava os olhos.

“Eu ainda não acredito que ele me convenceu a tirar o Gabe de cara a essa hora.” Ela indicou o filho, que brincava com a cara de Margarida.

“Um pai não pode sentir saudade da filha e querer que ela durma em casa? De preferência no nosso quarto, sob a minha vista e longe do namorado?” Se defendeu o Guerra.

“Eu realmente não sei se te amo ou te mato, Paulo.” Alicia revirou os olhos, enquanto esperavam o amigo loiro destrancar a porta. “Ele está pesado, Marga?”

“Que nada, amiga, está tranquilo. Eu sinto falta de um pequeno assim.” A Cavalieri abraçou a criança, que sorriu e começou a beijá-la.

“Relaxa, amor... Daqui alguns anos, a Lara e o Luca nos arranjam um.” Jorge aporrinhou o amigo.

“Alicia, nossos amigos vão te fazer ficar viúva cedo.” Suspirou Paulo, encarando o ambiente. “Está tudo quieto ou é impressão minha?”

“Não, está quieto mesmo.” Concordou Margarida. “Será que eles estão assistindo filme no quarto do Luca?”

“Se a Emma e o Ravi não estivessem aqui, eu não iria gostar disso.”

“Mas eles não estão aqui. A Majo me mandou mensagem, dizendo que os dois foram no cinema.” Avisou Alicia, vendo a expressão do marido. “Paulo Guerra, você não ouse...”

“LARA GUERRA!”

Paulo foi o primeiro a irromper no quarto de Luca, com Jorge quase no seu cangote. Margarida e Alicia entraram logo depois, os quatro adultos parando em choque ao encarar os dois adolescentes adormecidos.

“Pai?” Lara perguntou, grogue de sono.

“Algum problema, padrinho?” Luca esfregou os olhos, confuso.

“Seu padrinho que é escandaloso, querido. As crianças só estavam dormindo, Paulo.” Alicia beliscou o marido.

“E por que vocês estão aqui? Achei que eu ia dormir aqui.”

“É que o papai ficou com muita saudade, pacotinho, e resolveu vir te buscar.” Paulo se aproximou da cama, querendo puxar as cobertas.

“Paulo, sossega. Lara, troca de roupa, filha... Não quero você na rua de pijama.” Pediu Alicia, puxando o marido pelo braço. “E você, amorzinho... Vamos ter uma conversa séria assim que chegarmos em casa.”

Margarida encarou os adolescentes, piscando discretamente e deixando o quarto ainda com Gabe no colo. Jorge ficou parado na porta, com as mãos no bolso e um sorriso zombeteiro no rosto.

“Foi por pouco, hã?” Perguntou o loiro.

“Se ele puxasse as cobertas, estávamos mortos.” Concordou Luca, vendo que Lara estava mortificada. “Valeu por enviar mensagem, pai.”

“Deus sabe o trabalho que deu para te fazer, Luca, melhor não abusar da sorte e da sua vida. Ah, e escondam essa camisinha usada direito... Sorte que seu padrinho é tapado.” O Cavalieri fechou a porta ao sair, deixando os adolescentes roxos de vergonha.

~*~

Era noite de Natal, mas Carmen não estava nem de longe feliz. Era a primeira vez, em dezesseis anos, que não teria os três filhos juntos de si no Natal. E mesmo que o ano anterior tivesse sido miserável com as provocações e ofensas de Malu, todos os seus rebentos estavam ali.

E agora, era como se uma parte sua faltasse.

“Mãe? Está tudo bem?” Nina parou ao seu lado na cozinha do Rivera, recebendo um aceno vascilante. “Você não me engana, mãe... Você está assim pela Malu.”

“Ah, filha.” Carmen abraçou a garota, que se aconchegou a ela. “Apesar de tudo, a Malu ainda é minha filha, sangue do meu sangue, fruto do meu ventre. Assim como você e o Nico.”

“Eu sei, mãe... Apesar de tudo, ela ainda é minha irmã.” Sussurrou a menina. “Mas ela fez as escolhas dela, mãe... E ela escolheu a si mesma, acima de tudo. E eu vou escolher eu mesma também.”

Carmen suspirou, acariciando os cabelos da menina. Mesmo passado mais de um ano, os cabelos de Nina nunca tinham voltado a ser o que eram antes de Malu cortá-los no susto, no meio da noite. Nem Nina era mais a mesma pessoa daquela época.

“Amor?” Daniel apareceu na cozinha, com o celular na mão. “Eu liguei para o Samuel, ele está chamando a Malu.”

“O Nico?”

“Não quer falar com ela.” Daniel suspirou, colocando o aparelho entre eles.

“Alô?” Ouviram a voz de Malu após algum tempo, totalmente desanimada.

“Oi, filha.” Carmen disse com a voz embargada, mas o que recebeu como resposta foi o silêncio. “Feliz Natal, meu amor.”

“Feliz Natal, filha.”

“Feliz Natal, Malu.”

“Vão para o inferno, vocês todos.” Mandou a garota, encerrando a ligação e deixando a família na cozinha, com o coração apertado.

“Eu falei que isso ia acontecer.” Viraram para a porta, encarando Nico ali. “A Malu não ama mais a gente, e nem quer ser parte da nossa família.”

 “Nico...” Nina se afastou dos pais, indo até o caçula e o abraçando. “Isso não importa, ok? Não importa o que a Malu sente ou pensa... Nós quatro temos uns aos outros, e vamos estar sempre juntos. Certo, mãe? Pai?”

“Nada no mundo nos faria deixar vocês, nem mesmo a morte.” Prometeu Daniel, abraçando os filhos e encarando a esposa.

Carmen suspirou, caminhando até os três e os abraçando com força, beijando a testa dos dois filhos e os lábios do marido.

“Vocês são a minha vida... E nada no mundo vai nos separar.” Ela fez eco ao marido, os quatro ficando ali em silêncio por algum tempo.

~*~

“Como você está, Mário?” Cirilo perguntou para o amigo.

“Tendo alucinações com um saleiro.” Confessou o veterinário. “Minha comida não tem gosto há meses.”

“Mas seu coração está batendo, e acho que uma coisa compensa a outra.” Marcelina ralhou com o marido, fazendo os presentes rirem.

“Relaxa, cara, logo você volta a comer as coisas de forma moderada. É que tem só seis meses, e mesmo que você esteja bem, todo cuidado é pouco.” Lembrou o médico.

“Eu sei, cara, to só brincando. Prefiro comer gororoba sem gosto pelo resto da vida, se isso significar não sentir aquele pânico de novo e nem deixar minha pequena e meus filhos para trás.” Garantiu o homem, recebendo um beijo da esposa.

“E vocês, amiga? Como está o Ryan?” Perguntou Valéria.

“A psicóloga ajudou bastante, Val.” Suspirou Majo, encarando o filho brincando com os primos ao longe. “Ele ainda não conseguiu compreender a atitude daquela vaca, mas já entendeu que algumas pessoas, infelizmente, até os dias de hoje, ainda tratam os outros mal pela cor da sua pele ou pelo status social... Igual eu fazia.”

“Maria, você era uma criança. Não justifica, mas ainda assim, te dá uma colher de chá. Os tempos eram outros também.” Lembrou Cirilo, segurando a mão da esposa. “Mais de 30 anos já se passaram, o mundo mudou muito... E além do que, ali tínhamos uma adulta com o coração repleto de maldade. E assim como ela, existem muitos outros adultos, e que infelizmente ainda envenenam crianças com essas atitudes.”

“E por saber disso, e por ter agido como eu agi, e acima de tudo, por ser mãe e esposa de duas pessoas que sofrem com isso, que meu propósito maior na vida é combater o racismo e a discriminação, Cirilo... Para que no futuro, nossos netos e bisnetos possam viver em um mundo livre dessa praga.”

“É um belo pensamento, Majo, e um belo propósito.” Concordou Valéria. “E vocês sabem que sempre podem contar conosco, não é?”

“Saber disso é ótimo. É o que tem nos feito sobreviver a todas essas loucuras, não é?” Sorriu a estilista, estendendo a mão e segurando a da amiga. Um a um, os demais amigos foram estendendo suas mãos e segurando a delas, o grupinho todo sorrindo.

“Ah, esses eternos santos diabinhos.” Suspirou Paulo, causando risos.

~*~

Lara e Enzo estavam no banco traseiro do carro, enquanto Paulo e Marcelina iam na frente. Tinha semanas da última vez que tinham visitado o avô, mas tinham resolvido acompanhar os pais naquele sábado. Os filhos visitavam Roberto três vezes por semana, mas não forçavam os netos a irem também. Sabiam que o estado do homem não era dos mais agradáveis, e no fundo preferiam que as crianças mantivessem as boas lembranças do avô babão que ele costumava ser.

“Paulo, Marcelina.” A recepcionista da casa de repouso sorriu para os dois. “Hoje ele está em um bom dia. Já perguntou por vocês.”

“Obrigado, Cris.” O Guerra sorriu, caminhando abraçado com a filha. “Meninos, o vovô está em um bom dia, mas isso não quer dizer que ele lembre exatamente quem nós somos. Então não se chateiem, ok?”

“Relaxa, padrinho, a gente já sabe como funciona.” Enzo estava de mãos dadas com a mãe, que levava um arranjo de flores.

Entraram no quarto de Roberto, o encontrando em uma cadeira de balanço próxima à janela. Estava com um cobertor no colo e muito magro, com o rosto abatido e cansado.

“Papai?” Marcelina parou ao lado da cadeira, se abaixando. “Chegamos.”

“Marcelina, querida.” O homem sorriu, segurando a mão da filha e deixando um beijo ali. “Cadê seu irmão?”

“Estou aqui, pai.” Paulo abaixou do lado oposto, segurando a outra mão de Roberto. “Viemos te levar no jardim, dar uma volta.”

“Ah, o jardim está muito bonito, você viu? Por que não trouxeram as crianças para brincar comigo? Eles iam gostar de rolar na grama.”

“Nós estamos aqui, vô.” Enzo puxou Lara, os dois aparecendo no campo de visão de Roberto.

“Quem são esses?” Estranhou Roberto.

“São o Enzo e a Lara, pai... Nossos filhos, lembra?” Perguntou Marcelina.

“Não, querida, você está confusa. O Enzo e a Lara são bebês! Olha, eu tenho foto deles em algum lugar.” Roberto tentou levantar mas fraquejou, sendo amparado por Paulo. “Desculpem, eu estou um pouco indisposto esses dias.”

“Tudo bem, pai... Eu vou pegar uma cadeira de rodas para irmos no jardim, e você pode ficar nos mostrando as fotos lá. Que tal?” Propôs Paulo, vendo o Guerra mais velho se animar.

Algum tempo depois, amparados pela sombra de uma árvore, Roberto mostrava para Enzo e Lara fotos deles mesmos quando pequenos, contando histórias que os dois já conheciam bem.

“E aqui, eu fui dar papinha para o Enzo. Mas ele é tão terrível quanto o meu filho, o Paulo... Virou todo o prato em mim e depois gargalhou.” Contou o homem, indicando uma foto em que ele aparecia coberto de arroz, feijão e legumes, enquanto Enzo gargalhava no cadeirão.

“Você ama muito os seus netos, não é?” Perguntou Lara, emocionada.

“Ah, netos são a maior fonte de amor do mundo! Eu amo muito meus filhos, mas acho que não fui um pai muito bom. Eu era muito bravo, briguento, batia neles. Mas meus netos... Meus netos são dois anjinhos, mesmo com as peraltices." Roberto deu um sorriso distante, não percebendo os olhos marejados de Lara e Enzo. “Eles são as melhores coisas que eu tenho na vida! Eu até gostaria de ter mais netos, mas já seria o homem mais feliz do mundo se tivesse só a Lara e o Enzo!”

“Tenho certeza que eles te amam muito, seu Roberto. E que ficam muito felizes de ter você como avô.” Garantiu Enzo, segurando a mão do homem.

“E que você será um grande avô para seus outros netos também.” Concordou Lara.

“Obrigado, meninos. Espero que, quando crescerem, o Enzo e a Lara sejam que nem vocês: bonitos por dentro e por fora.” Roberto sorriu para os dois, antes de pegar outra foto. “Aqui, o Enzo quis brincar de Superman... Ele quebrou o braço e eu tive que escalar a caixa d’água para pegar a Lara, porque ela estava com medo de descer.”

Alguns metros para o lado, Paulo e Marcelina os observavam com os olhos marejados. A baixinha estava agarrada no irmão, tentando não desmontar no choro com aquela cena, sabendo que em breve nem aquilo seria possível. Cada vez menos seu pai os reconheceria, sequer se lembraria dos netos pequenos, e logo viveria em uma prisão de esquecimento e solidão.

“Eu queria que Deus o levasse logo, Paulo, antes que ele sofresse mais.” Confessou a mais nova.

“Eu também, Marce, eu também.” Concordou o mais velho. “Eu peço isso todos os dias... Que Deus poupe o papai de sofrer mais.”

Deus, de certa forma, atendeu aos pedidos dos dois. Roberto faleceu três dias depois, enquanto dormia, cercado pelas fotos de sua família e após ter caído no sono contando para uma enfermeira sobre o aniversário de um ano do caçula da família, Gabe.

~*~

“Terceirão! Nós estamos no terceirão!” Gritou Luca, pulando no banco da escola. “Só mais esse ano, e então nós vamos estar livres!”

“Livres do que, criatura? Ainda temos a faculdade pela frente.” Lembrou Liam, com os braços ao redor dos ombros de Nina.

“Foda-se, cara! Faculdade são outros quinhentos... Muitas festas, bebida, curtição.” Sorriu Enzo, com o olhar longe.

“Tá querendo ficar solteiro para ela, querido?” Sara arqueou a sobrancelha.

“Claro que não, bebê.” O garoto abraçou a namorada pelas costas, beijando seu pescoço. “Quero você curtindo todas as festas, juntinho comigo.”

“E vocês já sabem que faculdade vão querer fazer? Sabe, o curso, pelo menos?” Perguntou Ravi.

“Não faço ideia.” Sorriu Enzo, pulando novamente em cima do banco. “Em último caso, vou fazer faculdade de comédia e viro palhaço.”

“Amiga, ainda dá tempo de você arranjar coisa melhor.” Lembrou Lara, mas Sara suspirou.

“Ah, amiga, quando cortaram nossos cordões umbilicais das nossas mães, já pegaram e amarram com o dessas criaturas.” Ela indicou Enzo e Luca em cima do banco, encenando uma lutinha. “O que resta é aceitar, né?”

~*~

Ela desconfiou que isso poderia acontecer, mas não se afastou. Eles haviam conversado sobre isso quando Davi adoeceu novamente, e por mais que repudiasse a ideia na época, ele lhe deu sua benção.

“Valéria, você merece ser feliz. É jovem, tem tanta vida pela frente.” Lhe disse o judeu na época. “Merece encontrar alguém que te faça feliz e que te ajude a criar nossos filhos! Vocês merecem uma família.”

Ela só não imaginou que isso ia acontecer tão rápido e com alguém tão inesperado quanto Jaime Palilo. O padrinho de seu filho caçula, um dos melhores amigos que ela e Davi tinham desde crianças, e que assim como ela, estava tentando aprender a seguir em frente sozinho.

Kaue e Arthur eram apegados, adoravam brincar juntos, e com isso os pais compartilhavam da companhia um do outro. Só percebeu que estava se apaixonando por ele quando o homem já estava enraizado no seu coração.

“Eu não posso fazer isso, meu Deus.” Ela estava sentada no sofá da sala, encarando a tela do celular e vendo as fotos que tinham tirado no zoológico, dias antes. “Eu não posso me apaixonar por Jaime Palilo.”

“Não só pode, como já está.” Ela se virou no sofá, encarando os quatro filhos no corredor. “Podemos?”

“Claro.” Ela deu espaço para os quatro sentarem ao seu lado. Kaue sentou em sua perna e Liam no chão, deixando o resto do sofá para Ravi e Sara. “Há quanto tempo vocês perceberam?”

“Eu e os meninos começamos a desconfiar que isso poderia acontecer no final do ano, quando você e o tio Jaime começaram a passar muito tempo juntos.” Confessou Sara. “O Kaue foi recentemente.”

“Quando estávamos no zoológico, você olhou para o padrinho e sorriu da mesma forma que você sorria para o papai.” Contou o menino, fazendo os olhos da mãe marejarem. “E eu fiquei feliz com isso.”

“Ah, querido.” A jornalista beijou seu rosto. “Eu não quero que vocês pensem que eu estou esquecendo o papai.”

“Nós não pensamos, mãe, e nem o papai vai pensar isso.” Liam segurou a mão de Valéria. “Mas já fazem quase dois anos, e parece que já vivemos outra vida! Parece que faz décadas que o papai não está aqui, mesmo ainda parecendo que ele vai entrar pela porta a qualquer momento.”

“Por mais difícil que seja pensar isso, mãe, o papai se foi e não vai mais voltar. E nossa vida tem que continuar apesar disso.” Concordou Ravi. “No fim do ano, nós três nos formaremos e talvez logo estejamos indo embora de casa. E o Kaue também. E nenhum de nós quer te ver sozinha.”

“E o tio Jaime é um cara incrível, que tem te feito muito feliz.” Sara segurou a mão da mãe junto com Liam, sorrindo.

“O Arthur também acha que o padrinho gosta de você, mãe.” Sorriu Kaue. “E vocês não nos disseram, sempre, que padrinhos são como pais substitutos? Se o papai escolheu o tio Jaime para isso, é porque confiou que ele poderia te ajudar a me criar se ele não estivesse aqui.”

“Eu acho que vocês quatro são espertos demais. Principalmente você, mocinho, que deveria ser ainda meu bebê.” A jornalista fez cócegas no caçula, mas os quatro riram. “Se vocês estão em paz com isso, acho que me sinto melhor. Assim que possível eu vou conversar com o Jaime, está bem?”

“Tá, pode ser hoje? Ele e o Arthur vem comer pizza.” Avisou Liam, surpreendendo a mãe. “Nós chamamos eles, agora há pouco, quando viemos conversar com você.”

“Vocês são meus filhos... Eu não deveria estar tão surpresa por serem assim.” A mulher suspirou.

“Exato. Agora vem comigo, mãe... Vamos te arrumar para encontrar seu crush.” Riu Sara, puxando Valéria pela mão.

~*~

Diferente do ano anterior, quando 23 de maior chegou naquele ano, foi recebido com animação e alegria. O aniversário do grupinho cairia em uma segunda-feira, mas os pais os autorizaram e faltar da escola e passarem a noite todos juntos, talvez querendo apagar todo o sentimento ruim que tinha marcado aquele dia nas vezes anteriores.

Passaram a noite na sala dos Cavalieri, e acordaram já passando das 10h. Encontraram o lugar repleto de balões e uma mesa cheia de guloseimas para o café da manhã.

“Assim eu acostumo mal.” Riu Enzo, escondendo o rosto na nuca de Sara e dando um beijo. “Feliz aniversário, amor.”

“Feliz aniversário, lindo.” A Rabinovich se virou nos braços do namorado, lhe dando um selinho.

“Eu podia não acordar no meu aniversário vendo minha irmã trocando bafo com o namorado.” Resmungou Liam.

“Então vem trocar bafo comigo e deixa os dois em paz.” Nina se apoiou no peito do garoto, lhe dando um selinho. “Feliz aniversário, anjo.”

“Feliz aniversário, princesa.”

“Feliz aniversário, soldadinho.” Emma sussurrou para Ravi, encolhida contra seu peito.

“Feliz aniversário, minha bailarina.” Ele beijou a testa dela, a apertando com mais força.

“Todos os anos, minha mãe ficava deitada do meu lado, porque queria ser a primeira pessoa que eu visse ao acordar. Ela dizia que faria isso enquanto pudesse, porque um dia, você seria a primeira pessoa que eu iria ver ao acordar.” Lembrou Luca, ouvindo Lara rir. “No final, ela estava certa.”

“Minha sogra é muito esperta.” Lara sorriu para o namorado, lhe dando um selinho. “Parabéns, vida.”

“Para você também, vida.” O loiro sorriu, olhando ao redor. “17 anos de vida, 17 anos de amizade. Isso não é para qualquer um.”

“Nós somos os malditos mais sortudos do mundo, cara.” Concordou Liam. “Nascemos ao lado dos amores das nossas vidas e dos nossos melhores amigos. Se isso não é nascer com o cu virado para a lua, eu não sei o que é!”

“Claramente, meu irmão é um poeta.” Suspirou Sara, sentando e se espreguiçando. “Caramba, eles capricharam no café.”

“Comida!” Enzo pulou do colchão, fazendo todos rirem. “Mas antes... Falta uma coisa.”

“O quê?” Perguntou Ravi.

“Abraço de parabéns em grupo!” O Ayala pulou por cima dos amigos, começando a puxá-los. O grupo todo gargalhou, começando a se empurrar e se embolar em um grande abraço.

Foram interrompidos por alguém fungado, e encararam a porta de entrada, encontrando suas mães.

“Margarida, eles acabaram de acordar e você já está chorando pela décima vez no dia. Contenha-se.” Implorou Alicia, entregando um lenço para a comadre.

“Você sabe que esse dia me arrasa, Alicia, me deixa.”

“Eu estou aliviada pelos meninos não estarem aqui. Se eles tivessem visto como eles dormiram, o Paulo, o Dan e o Cirilo tinham cometido um impropério.” Suspirou Maria Joaquina, secando os olhos discretamente.

“Nós estamos fazendo 17 anos, e elas continuam nos observando dormir como se fossemos bebês.” Suspirou Sara, negando com a cabeça.

“Ah, vem logo abraçar seu bebezão, mãe! Eu sei que você está louca para isso.” Enzo pulou de onde estava, indo se jogar em cima de Marcelina.

“Cuidado para não me derrubar, bebezão.” Riu a mulher, enchendo seu rosto de beijos. “Parabéns, meu anjo.”

“To me sentindo desamado, tá sabendo?” Resmungou Luca, segundos antes de Margarida e Alicia se jogarem sobre ele e Lara, separando os dois. “Agora to me sentindo esmagado.”

“Venham aqui, amores da mãe.” Valéria sentou com os trigêmeos, enquanto Nina e Emma corriam abraçar as mães. “Dormem todos juntos, mas eu sei que ficam esperando o carinho das mamães, hã?”

“Nada nunca vai superar o abraço e o beijo de vocês no dia de hoje.” Garantiu Nina, sendo apertada por Carmen.

“Por favor, continuem com esse pensamento para sempre.” Implorou Maria Joaquina.

“Deixa os meninos crescerem, gente.” Riu Alicia, com Lara enfiada entre suas pernas. “Agora sigam o exemplo do Enzo, que está abraçado com a mãe e roubando comida da mesa. Tomem café e vão se trocar. Seus pais vão pegar as crianças na escola e nós vamos para o sítio dos Garcia, passar o dia!”

“O sítio da bisa?” Os olhos de Luca brilharam, encarando a mãe.

“Já mandei deixar o Tornado preparado para você, filho. Pode levar a Lara passear à cavalo.” Sorriu a mais velha, vendo o filho pular do seu abraço e correr para a mesa. “Eles nos trocam tão fácil, tão rápido...”

“Eu to merecendo essa crise de meia idade de vocês.” Alicia se afundou nos travesseiros das crianças. “Jesus, tomem um banho também. Que catinga de peido que está aqui.”

~*~

O clima gelado de maio não era empecilho. Os aniversariantes corriam como crianças, acompanhados dos irmãos e primos mais novos, indo dos cavalos para os balanços nas árvores, brincando de pegar e assustando os pais de tempo em tempo.

“Eles estão fazendo quantos sete anos mesmo?” Perguntou Mário, parado com os amigos na churrasqueira. “O Enzo veio me mostrar que ralou o joelho. O moleque já tem pelo na cara e namorada e veio choramingar joelho ralado!”

“Deixa, Mário. Nós vamos sentir falta quando eles ficarem maiores e não fizerem mais essas graças.” Cirilo sorriu na direção dos filhos. Ryan estava tentando ficar no colo da irmã, mas já era muito grande para isso.

“Você está bem, Dan?” Perguntou Paulo, vendo que o amigo estava calado.

“Estou.” O homem sorriu, mas não convenceu os amigos.

“A Malu continua se recusando a falar com vocês?” Perguntou Koki.

“Pior, acho... Recebi uma ligação do Samuel, o primo da minha mãe. Ele disse que a Malu foi expulsa da escola, e que ele não sabe mais o que fazer com ela.” Contou o Zapata, chocando os amigos. “Ela deve voltar por esses dias. A Carmen e os meninos não sabem. A Nina entraria em desespero.”

“Deus, é horrível ter que pensar isso de alguém. Ainda mais de uma filha, ou no meu caso, afilhada.” Suspirou Cirilo, virando as carnes. “E o que você vai fazer?”

“Eu não sei, cara. Essa foi a minha última esperança. Eu achava que, estando longe e sem nós para encobrirmos as cagadas, a Malu ia criar juízo. Mas ela conseguiu ser expulsa de um colégio militar, vocês têm noção do que é isso?”

“Vamos tentar não pensar nisso hoje.” Propôs Jaime. “Eu percebi que a Nina já está chateada; não deve ser fácil ter a irmã gêmea longe e nessa situação no dia de hoje!”

“O Jai está certo. Vamos curtir o dia de hoje e fazer as crianças felizes. Afinal... É o primeiro evento oficial do Jaime como namorado da Valéria.” Atiçou Paulo. “E esse é um casal que nem nos meus mais loucos sonhos, eu imaginaria.”

“Acho que ninguém nunca imaginou a Val com outra pessoa que não o Davi, né?” Jaime deu de ombros, sem graça. “Acaba sendo uma pequena pressão.”

“Jaime, o Davi está feliz, aonde quer que ele esteja. O maior medo dele era a Val ficar sozinha e triste, e você tem colocado um sorriso enorme no rosto dela. Pode acreditar em mim: nosso amigo está feliz e abençoando o amor de vocês dois.” Daniel sorriu para o amigo, recebendo acenos de concordância dos demais. “Vocês dois e as cinco crianças serão uma família muito feliz.”

“Só cuidado para não rolar um seus, meus e nossos. Sabe, especialmente um tal de nosso.” Sugeriu Paulo. “É assustador ter uma filha com o pé na faculdade e um filho que ainda não consegue limpar a bunda sozinho.”

“Em outras palavras, aprenda a usar camisinha.” Mário aporrinhou o cunhado, que lhe mandou o dedo do meio.

~*~

“E como está o namoro, Val?”

“Isso é conversa que mulheres da nossa idade tem?” Resmungou a jornalista, sem jeito.

“Quando uma mulher da nossa idade e nossa amiga está namorando, sim.” Laura disse o óbvio. “Qual é, eu estou faltando do trabalho para estar aqui... Pelo menos faz minha ausência valer e conta algo divertido.”

“Amiga, Adriano não tá comparecendo? Tá necessitada de emoção?” Perguntou Bibi, enchendo a boca de carne com farofa.

“Carol deu de ficar entrando no nosso quarto no meio da noite, tá foda conseguir alguma coisa.” Suspirou a mulher, ouvindo risos. “Por isso fico torcendo para minhas amigas estarem melhor do que eu.”

“Tenho um filho de cinco anos, ser interrompida é parte da rotina.” Alicia revirou os olhos.

“E eu tenho um marido que continua tendo turnos em horários terríveis.” Maria Joaquina fez bico. “A vida sexual da minha filha é melhor do que a minha.”

“Te entendo.” Concordou a Guerra.

“Sua filha namora o meu filho.” Resmungou Valéria.

“E a sua namora o meu.” Lembrou Margarida.

“E eles com certeza transam mais do que todos nós juntos.” Marcelina fez cara de desgosto. “O duro é saber o fogo que meu filho tem nas calças.”

“Você acredita que eles ainda não transaram? Fiquei chocada quando a Sara me contou.” Confessou Valéria.

“Mentira?” Se surpreendeu a Ayala. “Jurava que a gente vivia na corda bamba de ganhar netos. Que o Enzo é cheio de fogo e vive com a cabeça no mundo da lua; para dar uma de Mário e esquecer da camisinha, é um abraço.”

“Tranquilizador, realmente.” Suspirou Valéria.

“Vocês perceberam que a Val deu o maior migué da história e tirou o assunto dela, não é?” Riu Bibi.

“Claro que sim, mas a gente volta o assunto para ela.” Carmen sorriu para a amiga. “E então, minha querida... Já chegou aos finalmentes com o Jaime?”

“Me sinto com 17 anos.”

“Não tem essa idade, mas é mãe de três que tem. E por isso nem adianta querer ser recatada nesse momento, querida. Conta tudo.” Pediu Marcelina, vendo a outra suspirar.

~*~

Voltaram para a cidade logo que o sol se pôs, pois ainda iriam jantar com os avós das crianças na lanchonete. As crianças estavam misturadas entre os carros, os se encaixavam para ir juntos, mesmo com os olhares feios e resmungos dos pais das meninas.

Foram recebidos com festa e bagunça na lanchonete, com o grupinho logo sendo abraçado e paparicado pelos mais velhos.

Como tinham passado a tarde comendo churrasco, nenhum deles tinha fome. O encontro, realmente, era para cantar os parabéns. Como era dia de semana e na terça todos tinham compromissos, não se alongaram muito e logo posicionaram os aniversariantes atrás do bolo.

Todos sentiram, claro, a ausência de Malu. Era a primeira vez em 17 anos que, estando todos juntos, eram oito velas, não nove. Era a primeira vez que Nina apagaria suas velas sem a gêmea do lado, e apesar de tudo, era algo que sentia profundamente.

“Muito bem... Todas as velas foram apagadas. Prontos para cortar o bolo??” Perguntou Jaime.

“Quase.” Todos viraram para a porta, surpresos. Ao ver quem estava ali, e como estava, os queixos quase foram para o chão de vez. “Chegou a última aniversariante.”

“Malu...” Quem falou foi Nico, já que os pais e Nina pareciam em choque. “Você está grávida?”

~*~

O bolo acabou sendo esquecido. Seus pais levaram os caçulas embora, para que pudessem estar ao lado de Carmen, Daniel e Nina naquele momento. E era muito claro que eles precisariam de muito apoio.

Malu estava diferente da última vez que a viram, em agosto do ano anterior. Os cabelos estavam mais longos, o rosto mais magro, havia feito alguns piercings e podiam ver uma tatuagem em seu braço esquerdo.

Além, é claro, da barriga protuberante denunciando uma gravidez.

“Confesso que esperava uma recepção mais efusiva... Especialmente de vocês, papai e mamãe.” A adolescente estava sentada na mesa, dando garfadas no bolo. “Tanto tempo que não nos vemos, viviam me ligando para matar saudade... Achei que no mínimo me dariam um abraço. Ou os parabéns pela gravidez.”

“Chega, eu vou quebrar essa menina.” Gritou Daniel, se levantando e avançando na filha, sendo contido pelos amigos.

“Uou, que agressividade, papai. Isso não é um bom exemplo, nem para mim e nem para o bebê.”

“Malu, não brinca com fogo, garota.” Avisou Emma, a expressão ainda um misto de choque e raiva.

“E vocês... Nem me chamaram para a festinha do pijama, né?” Ela encarou os demais aniversariantes. “Aposto que rolou suruba de casal, hã?”

“Daniel, daqui a pouco eu que vou voar na sua filha.” Rosnou Paulo, fechando a cara.

“Entra na fila, Paulo, entra na fila.”

“Chega! Vamos todos nos acalmar.” Mandou Carmen, se levantando. Ela encarou a filha, ainda uma profusão de sentimentos, e suspirou. “O que você está fazendo no Brasil, Malu?”

“Achei que o Samuel tinha avisado o papai que eu estava voltando.”

“Ele disse que você voltaria em breve, mas não que te enfiaria em um avião sem prévio aviso.” Garantiu o Zapata.

“Ah, quis vir de surpresa. Não aguentava mais a casa dele e os olhares de reprovação daquele povo quadrado. Ele decidiu me mandar de volta só porque eu falei que não sei quem é o pai do bebê.” Ela continuava comendo seu bolo, tranquila.

“Como é que é?” O grito de espanto foi coletivo e na maior variedade de tonalidades possível.

“Como assim você não sabe quem é o pai dessa criança, Malu?” Perguntou Nina, os olhos arregalados.

“Sabe o que é, maninha... Eu fui passar uma semana na praia, com alguns amigos, e tinha um grupo de intercâmbio por lá.  E eu gosto de provar de todas as línguas do mundo, se me entende.” Ela deu piscadela para a irmã. “Esse filho pode ser de um francês, um russo, um sueco, um mexicano ou um africano. Definitivamente não do venezuelano e nem do canadense. Talvez daquele gatinho da Guatemala.”

“Carmen, sua filha vai me matar do coração.” Gritou Daniel, pálido como cera.

“Matar todos nós, isso sim.” Suspirou a Zapata, massageando as têmporas. “Como você não nos contou isso antes, Malu?”

“Ah, sabe como é... Tava sem vontade, né? Eu engravidei em janeiro, acho... Fui descobrir só no começo de março, mas tava com preguiça. Além do que, os carinhas não querem pegar uma mina grávida, né?” Foi explicando a garota. “Aí eu fui enrolando o quanto deu. A escola me pegou transando com um garoto no banheiro, uns dias atrás, e eu fui expulsa. Aí eu joguei a merda toda no ventilador e contei para o Samuel que estava grávida. Ele disse que eu era um demônio e que ia mandar essa “bucha” de volta para vocês.”

“Talvez ela precise mesmo de uma sessão de exorcismo.” Resmungou Sara.

“E como você foi fazer uma besteira dessas, Malu? Engravidar, minha filha?”

“Ué, vai dizer que vocês não sabem como se faz filho. Orra, cada um teve pelo menos dois. Não sabem como se transa não?” Riu a menina.

“Já ouviu falar de camisinha, garota?”

“Eu já, tia Ali, mas você e o tio Paulo me ensinaram que ela não serve para bosta nenhuma.” Ela deu um sorriso angelical e precisaram segurar Alicia, antes que avançasse na adolescente. “Da mesma maneira que eu e a Nina fomos teimosas e agarramos na nossa mãe, contra a vontade dela, esse pestinha resolveu se agarrar em mim. E podem acreditar, eu tentei de tudo para acabar com ele.”

“Você... O quê?” Gritou Carmen, chocada.

“Não faz a hipócrita não, mamãe, que você também queria se livrar de nós duas.” Lembrou Malu, fazendo um biquinho. “Comi uma porrada de canela, fumei algumas drogas, bebi uns gorós... Até pensei em ir numa clínica de aborto, mas to afim de tirar um bebê, não morrer de hemorragia.”

“Meu Deus, eu não acredito que estou ouvindo isso.” Sussurrou Margarida, chocada.

“Então, agora eu voltei. Vocês vão ter que me aguentar, e que aguentar essa coisinha aqui. Porque, basicamente, eu to cagando para ela. Então, parabéns, vocês vão ser pais-avós. Viva!” Malu bateu palmas, segundos antes de Carmen despencar no chão. “Olha, já está até tendo sintomas de gravidez.”

“Carmen, amor.” Daniel se jogou ao lado da esposa, a puxando para o colo enquanto os demais se aproximavam. “Acho que ela desmaiou.”

“Também, com tudo isso que está acontecendo, até eu desmaiava.” Garantiu Valéria, enquanto Alicia trazia o álcool para despertar a amiga.

“Acho que a noite, realmente, acabou.” Suspirou Liam, abraçando a namorada.

“Não, cunhadinho querido... As coisas só começaram a ficar divertidas.” Avisou Malu, sorrindo e arrepiando a nuca dos demais.

~*~

“Hey, amor...” Liam entrou no quarto de Sara, encontrando Nina. “Aqui, trouxe minha coberta para você. Assim você pode dormir sentindo meu cheiro.”

“Obrigada, amor. E agradeça sua mãe, de novo, por me deixar ficar aqui essa noite.” Pediu a menina, puxando a coberta e se enrolando nela.

“Todos nós achamos melhor seus pais ficarem sozinhos com a Malu por hora, pequena.” Suspirou o rapaz. “Para entender tudo o que está acontecendo.”

“É bem claro, né Liam? Minha irmã ficou louca de vez e jogou tudo na merda.” Suspirou Nina. “Engravidar, Liam? De algum cara que ela não sabe nem quem é? O que ela vai fazer com a criança?”

“Bom, ficou bem claro para mim que nada, né?” Ele sentou ao lado da namorada, segurando sua mão. “Acho que ela só está fazendo isso para confrontar seus pais.”

“Eu tenho certeza disso. Você ouviu o que ela falou, sobre minha mãe não ter conseguido tirar nós duas quando engravidou. A Malu está tentando se vingar dos meus pais.” Os olhos da Zapata marejaram. “E isso é horrível da parte dela, Liam, realmente horrível!”

“Eu sei que é, pequena... Mas suas irmãs fez as escolhas dela, e infelizmente nós todos vamos ter que arcar com isso, de certa forma.” Liam beijou sua testa. “O importante é essa criança ficar bem e segura. E isso, eu sei que seus pais vão fazer acontecer!”

~*~

“Grávida, Carmen?” Daniel estava agarrado na bancada da cozinha. “Nós a enviamos para os Estados Unidos, torcendo para que ela amadurecesse. E o que conseguimos foi uma adolescente rebelde, sem consequências e, acima de tudo, grávida!”

“Eu sei de tudo isso, Daniel, não precisa me lembrar.” Carmen massageava as têmporas. “Eu não sei o que faremos.”

“Não sabe? Eu sei: nós vamos ganhar outro filho, Carmen, e continuar enlouquecendo e adoecendo com a Malu. Ela está no país há doze horas, e a Nina e o Nico já fugiram daqui, com medo do que ela pode fazer com eles.”

“Eu não vou fazer nada com os seus preciosos, podem ficar tranquilos.” Malu apareceu na porta da cozinha, vestindo um short e sutiã, deixando a barriga aparecer. “Esse bucho não cabe mais nas minhas roupas.”

“Você... Você está de quase cinco meses, filha. As roupas, realmente, vão começar a apertar. Vamos precisar comprar novas.” Carmen tentava ser doce, mas Daniel continuava exalando fogo.

“O que você está pensando, Malu? Que merda tem na sua cabeça?” Perguntou o pai, a encarando. “Você acha que ter um filho é brincadeira?”

“Eu estou fazendo vocês pagarem pelo o que fizeram, pai.”

“E o que nós fizemos, Malu... Cometemos um erro, claro, e passamos a vida toda tentando compensar. Tentando dar todo o amor possível para você e a Nina, fazê-las se sentirem queridas e felizes! E tínhamos conseguido, até você decidir queria que o mundo pagasse por algo que você assimilou como verdade na sua vida.”

“Não adianta discurso, pai, sério... Agora já foi, toda a merda já está feita, não é? Você começaram a cagada, eu só dei o toque final.” Malu apanhou um copo de água, sorrindo.

“Como nós sempre dissemos, filha... Você só vai conseguir entender tudo o que eu e seu pai passamos, quando tiver seus filhos. E agora, essa hora chegou.” Os olhos de Carmen marejaram ao dizer isso. “Você vai ver que esse amor é enorme, Malu, e que ele é transformador.”

“Talvez, mãe... Vamos aguardar os próximos meses.” A mais nova deu um sorriso frio para os pais, antes de sumir para seu quarto.

~*~

Se tinha algo que Emma gostava, realmente, era de acompanhar Ravi à fisioterapia. Parecia estranho que dissesse isso, mas era o momento em que se sentia mais próxima e conectada a ele, mais até do que quando se beijavam ou transavam.

Ela sabia que ele nunca seria 100% funcional, mas conseguia ver pequenas melhoras nele a cada dia. A fala do namorado, por exemplo, tinha melhorado muito depois que começaram a namorar. Antes ele gaguejava muito, costumava arrastar as palavras; agora, conseguia falar sem intercorrências e só com um suave arrastar, como se fosse um dialeto.

Sua autonomia e mobilidade também pareciam aumentar a cada dia. Era como se, afinal, Ravi acreditasse em si mesmo. Talvez por ter entendido, afinal, que sua vida não estava fadada a ser um pobre coitado, dependente dos pais para tudo.

“Eu tenho muito orgulho de você, soldadinho.” Suspirou Emma, o observando em um exercício de fortalecimento com a bola. “De tudo o que você fez ao longo da vida, e principalmente, nesses dois anos desde que começamos a namorar.”

“Eu também, bailarina.” Ele parou o que fazia, a encarando. “Sabe, você... É meu combustível.”

“E por que?”

“Porque eu quero ser o meu melhor para você, para te merecer. Eu quero ter capacidade de tirar habilitação, e dirigir um carro adaptado. E mais do que isso, quero poder descer do carro e abrir a porta para você. Quero dançar com você no nosso casamento, e conseguir ninar nossos filhos. Talvez eu não consiga fazer isso como a maioria das pessoas, mas quero fazer o meu melhor para chegar perto.” Ele explicou, fazendo-a se emocionar. “Quando nós estávamos separados, eu dava um duro danado aqui, sabe?”

“Ah é? Estava querendo ficar bonitão para as solteiras?”

“Não. Eu queria conseguir ser independente, Emma, poder me virar sem minha mãe e meus irmãos. E até sem você. E então, eu poderia ir atrás de você aonde quer que sua carreira te levasse, porque eu não precisaria de ninguém para cuidar de mim.”

“E por isso, eu te amo mais do que tudo, Ravi.” Ela sentou ao lado do namorado, lhe dando um beijo. “Você está sempre vencendo seus limites, e me lembrando que a vida é... É boa, sabe? Você tinha tudo para ser revoltado, mandar tudo a merda. E mesmo assim, continua lutando, continua em frente! Você é luz, Ravi, pura luz!”

“Assim eu fico sem jeito, bailarina.” Ele corou, beijando a mão dela. “Emma, eu já sei o que eu quero fazer, no futuro.”

“O que, amor?”

“Eu vou ser escritor.” Ele contou, vendo-a sorrir. “Você sabe que eu sempre escrevi fics e no meu blog, mas eu quero fazer disso uma profissão. Não ser jornalista, como a minha mãe, mas transformar a escrita em profissão. Eu, na verdade, já estou escrevendo um livro.”

“Sério?” Os olhos de Emma brilharam. “Sobre o que é?”

“Um soldadinho de chumbo e uma bailarina.” Ela sorriu com doçura ao ouvir aquilo. “Acho que você vai gostar.”

“Como se houvesse jeito de eu não gostar de algo que você faz, Ravi.” Emma revirou os olhos, se aproximando e beijando o namorado. “Eu te amo.”

“Também te amo, bailarina. Mas agora preciso voltar para o exercício, ou o João vai vir brigar comigo.” Ele indicou o fisioterapeuta, causando risos em Emma.

“E com razão. Vamos lá, soldadinho... Bora fortalecer essas perninhas, porque ainda tem um mundo de coisas para fazermos.”


Notas Finais


Olá, amores, tudo bem? Quanto tempo.
Eu sei que disse que não ia terminar essa fic, mas esse ciclo aberto estava sugando minhas energia. Eu queria dar um fim para esses personagens que tanto aprendi a amar, e vocês também! Então decidi fazer um último capítulo, gigante, que nem em FTLOMF. Mas além de demorar muito para escrever, depois fica difícil de vocês lerem. Então resolvi dividir esse último capítulo... Aqui está a parte um dele!
Em breve trago o resto. Espero que fiquem felizes!
Sinto saudades de vocês! Sigam lá no insta, @waalpomps_escritora e conversem comigo, acompanhem minhas novas histórias online! <3
Um beijo e até logo!


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