Sakura entrou no saguão iluminado pelas lâmpadas fluorescentes da Escola Sword & Cross dez minutos atrasada. Uma atendente rechonchuda, de bochechas coradas e com uma prancheta presa sob o bíceps torneado, estava dando ordens - o que significava que Sakura já havia ficado para trás.
Então lembrem-se: PPP, pílulas, pijama e polícia, que carinhosamente chamamos de vermelhos - ladrou a atendente para três outros estudantes de pé à frente de Sakura. - Lembrem-se do essencial e ninguém vai se machucar.
Sakura apressou-se para se juntar ao grupo. Ela ainda estava tentando entender se tinha preenchido corretamente a gigantesca pilha de formulários, se esse guia de cabeça raspada parado na frente deles era homem ou mulher, se alguém ali a ajudaria com a enorme mochila, se seus pais se livrariam de seu amado Plymouth Fury assim que chegassem em casa, depois de deixá-la ali. Eles ameaçaram vender o carro durante o verão inteiro, e agora tinham um motivo com o qual nem mesmo Sakura poderia argumentar: ninguém tinha permissão para ter carros no novo colégio de Sakura. Seu novo reformatório, para ser mais exata.
Ela ainda estava se acostumando com a palavra.
- Você podia, hum, repetir? - ela perguntou à atendente, - O que você disse sobre pílulas...
- Ora, vejam só quem resolveu aparecer - Fora interrompida pela atendente que disse, em alto e bom som, e então continuou, enunciando lentamente: - pílulas ou remédios. Se for uma das alunas medicadas, é aonde deve ir para se manter dopada, sã, respirando, seja lá o que for.
Mulher, Sakura concluiu, analisando a atendente. Nenhum homem seria ardiloso o bastante pra usar aquele tom de voz sarcástico.
- Entendi. - Sakura sentiu o estômago se revirar. - Remédios.
Sakura parara de tomar remédios há anos. Depois do acidente no último verão, a Dra. Shizune, sua médica em Hopkinton - e o motivo pelo qual seus pais a tinham mandado para um colégio interno em New Hampshire -, estava pensando em medicá-la de novo. Apesar de ela finalmente tê-la convencido que estava quase estável, fora necessário um mês extra de análise simplesmente para poder ficar longe daqueles horríveis antipsicóticos.
E essa era a razão pela qual estava começando a cursar o último ano na Sword & Cross, um mês inteiro depois do início do ano letivo. Ser uma aluna nova já era ruim o bastante, e Sakura tinha ficado muito nervosa por ter que se esforçar para alcançar o ritmo das matérias quando todo mundo já estava acostumado a elas. Mas, pelo visto, ela não era a única aluna chegando hoje.
Ela deu uma olhada nos três outros alunos parados em semicírculo em volta dela. Na sua última escola, a Dover Prep, foidurante o tour pelo campus no primeiro dia de aula que Sakura conhecera a melhor amiga, Callie. Num campus onde todos os outros alunos tinham praticamente sido desmamados juntos, o fato de Sakura e Callie serem as únicas que não vinham de famílias tradicionais da escola já era afinidade o suficiente. Mas não foi preciso muito tempo para que as duas garotas percebessem que partilhavam também a mesma obsessão por filmes antigos - especialmente os de Albert Finney. Depois de descobrirem, no primeiro ano, enquanto assistiam a Um caminho para dois, que nenhuma das duas conseguia fazer pipoca sem disparar o alarme de incêndio, Callie e Sakura não desgrudaram mais uma da outra.
Até... até serem obrigadas.
Parados de cada lado de Sakura hoje estavam dois garotos e uma garota. A garota parecia bem fácil de decifrar, loira e bonita, como se saída de um comercial de Neutrogena, com unhas pintadas de rosa claro.
- Sou Temari - disse arrastado, abrindo para Sakura um grande sorriso que desapareceu tão rápido quanto tinha surgido, antes mesmo de Sakura poder dizer seu próprio nome. O interesse passageiro da garota fez Sakura pensar mais em uma versão sulista das garotas da Dover do que em alguém que se esperaria encontrar na Sword & Cross. Sakura não conseguia decidir se isso era reconfortante ou não, assim como não conseguia nem imaginar o que uma garota com essa aparência estaria fazendo num reformatório.
À direita de Sakura estava um garoto de cabelo castanho e longo, olhos brancos como a neve. Mas, pela maneira como ele evitava encará-la, e só ficava mordendo a cutícula do dedão, Sakura teve a impressão de que o garoto, assim como ela, provavelmente ainda estava atordoado e envergonhado por ter ido para ali.
O garoto à esquerda, por outro lado, se encaixava no estereótipo desse lugar até um pouco demais. Ele era alto e forte, carregava um case de DJ pendurado num dos ombros, tinha cabelo vermelho repicado e grandes e profundos olhos castanhos claro. Na nuca, uma tatuagem preta no formato de um sol, subindo pela gola da camiseta preta.
Diferente dos outros dois, quando esse garoto se virou para olhá-la, encarou fixamente seus olhos e não se moveu. Os lábios numa linha séria, mas os olhos eram quentes e vivos. Ele a contemplou, parado como uma escultura, fazendo Sakura congelar também. Ela prendeu a respiração. Aqueles olhos eram intensos, sedutores e, bem, um pouco desconcertantes.
Com alguns pigarros, a atendente interrompeu o olhar hipnotizador do garoto. Sakura corou e fingiu estar muito ocupada coçando a cabeça.
- Aqueles que já aprenderam as regras estão livres para ir, assim que jogarem fora seus objetos perigosos. - A atendente indicou uma grande caixa de papelão sob um cartaz que dizia em grandes letras pretas MATERIAIS PROIBIDOS. - E, quando digo ir, Neji - ela pousou a mão com força no ombro do menino de olhos brancos, fazendo-o saltar -, quero dizer para os limites do ginásio, encontrar seus guias previamente escolhidos. Você - continuou, apontando para Sakura -, descarte seus materiais perigosos e fique comigo.
Os quatro se acotovelaram até a caixa e Sakura assistiu, estupefata, os outros alunos começarem a esvaziar os bolsos. A garota jogou na caixa um canivete suíço de sete centímetros. O garoto de cabelo vermelho relutantemente se livrou de uma lata de spray de tinta e um estilete. Até o infeliz Neji descartou várias caixas de fósforo e uma pequena embalagem de fluído para isqueiro. Sakura se sentiu quase envergonhada por não estar escondendo nada perigoso também, mas, quando viu os outros alunos enfiarem as mãos no bolso e jogarem também seus celulares dentro da caixa, engoliu em seco.
Inclinando-se para a frente para ver um pouco mais de perto o cartaz de MATERIAIS PROIBIDOS, ela notou que celulares, pagers e walk-talkies era estritamente contra as regras. Já era ruim o suficiente não poder ficar com o carro! Sakura tocou, com a mão suada e grudenta, o celular em seu bolso, a única conexão com o mundo lá fora. Quando a atendente viu a expressão em seu rosto, Sakura recebeu uns tapinhas de leve no rosto.
- Não vá morrer aqui na minha frente, garota, não me pagam bem o suficiente para ressuscitar alguém. Além disso, você tem direito a um telefonema por semana no saguão principal.
Uma ligação... Uma vez por semana? Mas...
Ela baixou os olhos para o celular uma última vez viu que tinha recebido duas novas mensagens de texto. Não parecia possível que essas fossem ser suas últimas mensagens de texto. A primeira era de Callie.
"Liga logo! Vou esperar ao lado do telefone a noite toda, então pode ir se preparando pra contar. E lembre-se do mantra que te falei: você vai sobreviver! Aliás, se é que faz alguma diferença, acho que todo mundo já esqueceu completamente sobre..."
Bem no estilo de Callie, havia tantos caracteres na mensagem que a porcaria do celular de Sakura cortou a frase depois de algumas linhas. Por um lado, Sakura quase se sentiu aliviada. Ela não queria saber como todo mundo de sua antiga escola já tinha esquecido o que acontecera, o que ela fizera pra vir parar num lugar desses.
Sakura suspirou e passou para a segunda mensagem. Era da sua mãe, que tinha aprendido como se mandava mensagens há algumas poucas semanas, e certamente não sabia dessa história de uma ligação por semana, ou nunca teria abandonado a filha ali. Não é?
"Querida, estamos sempre pensando em você. Seja boazinha e tente comer bastante proteína. Conversamos quando der. Com amo, M & P."
Com outro suspiro, Sakura percebeu que os pais provavelmente sabiam. De que outra maneira poderia explicar as expressões sofridas quando ela se despedira nos portões da escola naquela manhã, com a mochila na mão? No café da manhã, ela tentara fazer piada, dizendo que finalmente perderia aquele horrível sotaque da Nova Inglaterra que tinha adquirido na Dover, meus pais não tinham nem mesmo sorrido. Sakura achou que ainda estavam com raiva dela; eles nunca faziam escândalo, o que significava que quando Sakura fazia algo muito errado, simplesmente davam um gelo nela. Agora entendia o comportamento estranho dessa manhã: seus pais já estavam lamentando a perda de contato com sua única filha.
- Ainda estamos esperando alguém - cantarolou a atendente. - Quem será que é? - A atenção de Sakura voltou para a caixa dos materiais perigosos, que agora estava transbordando de coisas contrabandeadas que ela nem reconhecia. Podia sentir os olhos negros do garoto de cabelos escuro sobre si. Ao levantar os olhos, porém, percebeu que todos a estavam encarando. Era sua vez. Sakura fechou os olhos e lentamente abriu os dedos, deixando o telefone escorregar e cair no alto da pilha, fazendo um som triste. O som de estar completamente sozinha.
Neji e a robô Temari foram para a porta sem nem olhar na direção de Sakura, mas o terceiro garoto se virou para a atendente.
- Posso explicar as coisas pra ela - disse, indicando Sakura com a cabeça.
- Não faz parte do nosso acordo - respondeu a mulher automaticamente, como se já estivesse esperando esse diálogo. - Você é novo aqui mais uma vez, e isso significa ter as mesmas restrições que os outros alunos novos. De volta ao começo. Se não ficou feliz, devia ter pensado duas vezes antes de violar a condicional.
O garoto ficou imóvel e sem demonstrar nada, enquanto a atendente puxava Sakura - que tinha congelado com a palavra "condicional" - para o final do corredor amarelado.
- Continuando - prosseguiu ela, como se nada tivesse acontecido. - Cama. - Apontou pela janela oeste para um distante prédio alvenaria. Sakura podia ver Temari e Neji se aproximando de prédio devagar, com o terceiro garoto andando lentamente, como se alcançá-los fosse a última coisa em sua lista de prioridades.
O dormitório era grande e quadrado, um bloco cinza e sólido cujas grossas portas duplas não revelavam nada sobre a possibilidade de haver vida atrás delas. Uma grande placa de pedra estava plantada no meio da grama morta, e Sakura lembrou-se de ter visto, no website, as palavras DORMITÓRIO PAULINE gravadas nela. Parecia ainda mais feia no sol nebuloso da manhã do que na sem graça foto em preto e branco.
Mesmo a distância, Sakura podia ver o limo preto cobrindo a fachada do dormitório. Todas as janelas eram obstruídas por fileiras de barras grossas de aço. Ela apertou os olhos. Aquilo era arame farpado em cima da cerca que dava volta no prédio?
A atendente baixou os olhos para uma lista, folheando a ficha de Sakura.
- Quarto sessenta e três. Deixe a bolsa na minha sala com o resto das malas por enquanto. Poderá se acomodar durante a tarde.
Sakura arrastou a mochila vermelha até os outros três baús pretos indistintos. Então, instintivamente, tentou pegar seu celular, onde geralmente anotava coisas que precisava lembrar. Mas, quando sua mão tocou no bolso vazio, Sakura suspirou e tentou memorizar o número do quarto em vez disso.
Ela ainda não entendia por que não podia ficar na casa dos pais; a casa em Thunderbolt ficava a menos de meia hora da Sword & Cross. Era tão bom estar de volta a Savannah, onde, como sua mãe sempre dissera, até o vento soprava de forma preguiçosa. O ritmo mais tranquilo e lento da Geórgia tinha muito mais a ver com Sakura do que a Nova Inglaterra jamais tivera.
Mas a Sword & Cross não parecia ficar em Savannah. Não se parecia com lugar nenhum, na verdade; era somente um lugar sem vida e sem cor para onde o juiz a tinha mandado. Ela ouviu o pai no telefone com o diretor no outro dia, assentindo com seu jeito de professor de biologia confuso e dizendo: "Sim, sim, talvez fosse melhor que fosse supervisionada o tempo todo. Não, não, não gostaríamos de interferir nos seus métodos."
Claramente seu pai não sabia das condições de tal supervisão sobre sua única filha. Esse lugar parecia uma penitenciária de segurança máxima.
- E a outra coisa, como foi que você disse, os vermelhos? - Sakura perguntou à atendente, pronta para ser liberada do tour.
- Vermelhos - apontou a atendente para um pequeno aparelho pendurado no teto e ligado por fios: uma lente com uma luz vermelha piscando. Sakura não tinha visto antes, mas, assim que a atendente apontou para a primeira, percebeu que estava por toda parte.
- Câmeras? - Disse Sakura.
- Muito bem - congratulou a atendente, com a voz escorrendo sarcasmo. - Deixamos todas bem óbvias para vocês não esquecerem. O tempo todo, em qualquer lugar, estamos de olho em vocês. Então não faça besteira, isto é, se conseguir evitar.
Toda vez que alguém falava com Sakura como se ela fosse uma total psicopata, a garota acreditava mais um pouco que isso era verdade.
Durante todo o verão as lembranças a assombrara, em seus sonhos e nos raros momentos em que seus pais deixavam-na sozinha.
CONTINUA...
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