Point of View — Shawn Mendes
Ontário, Canadá
Seus olhos castanhos me lembravam as folhas secas que caiam nesse outono. As curvas de seu corpo eram da mesma medida que o violão segurado pelo homem de terno bem alinhado. Sua voz era como o sopro do vento que dançava em meio aquela igreja.
Hoje se fazia exatos dois anos que Catarina Cabello se foi, deixando comigo apenas os sentimentos nunca correspondidos, sinceros e eternos no peito que consumiam toda minha sanidade e minhas noites de sono.
Em meio aquele memorial especial para a garota mais incrível que já viveu nessa misera cidade, eu me lembrava dela com a nitidez de alguém que ainda a via todos os dias.
Todos estavam lá para lamentar a perda dela. Família, amigos, conhecidos. Todos, menos Camila que seria a possível culpada pela morte da própria irmã. A garota que deveria ao menos uma explicação, compaixão ou a droga de uma única palavra para a pessoa que jurou admirar, simplesmente fez como os outros dias e se isolou de todos.
— Agora que todos estão aqui, daremos inicio ao memorial de Catarina Cabello Estrabao...
Mas nem todos estavam ali.
Ajeitei a gravata, virando para trás a procura dela e, como o previsto, ela realmente não compareceu.
— Catarina sempre foi à alma de Ontário. Todos que tiveram a oportunidade de conhecê-la sabiam de seu encanto único, puro, sua extrema lealdade e disposição para ajudar qualquer um que precisasse.
— Como se eles tivessem a conhecido de verdade — Aquela voz sussurrada era conhecida, mas tão pouco ouvida que fui obrigado a me virar novamente para lembrar quem era.
Camila estava escorada na grande porta da igreja. Ela vestia um vestido preto, usava um all star e seus cabelos desgrenhados caiam sob seus ombros magros. Os olhos inchados observavam o discurso que estava sendo dito com desgosto, havia tanto desprezo ali que um arrepio percorreu minha espinha. Ela ainda não tinha notado que eu a observava, então deixou uma lágrima escorrer assim que aquela frase foi pronunciada.
“Mas eu sou grato por minha filha Camila ter sobrevivido”
Alejandro, pastor da cidade e pai de Camila, usou essa mesma frase há dois anos, deixando todos a lagrimas sem fim, antes que descobrissem a possível “verdade”.
— Mentiroso — Foi a ultima palavra engasgada soada por ela até seus cabelos voarem para fora da igreja. Voltei a olhar para frente onde a foto enorme de Catarina estava pendurada e percebendo o pastor chorar ao lado da senhora Cabello.
*
E lá estava eu, novamente sentado na mesa próxima a janela, observando as folhas de outono caindo, vez ou outra a espiando atrás do balcão. Hoje, ainda mais triste que os outros dias.
Logo após o memorial, segui até a lanchonete para ver como ela estava. Mesmo de longe, seus olhos que me lembravam tanto o de Catarina, continham uma transparecia clara de tudo que sentia. Toda sua dor estava naquele castanho sem brilho e aquilo perturbava meu sono.
O sino tocou e os rapazes entraram com seus ternos já amassados, seguindo direto à mesa onde eu estava acomodado.
— Pelo visto a vagabunda assassina não veio te atender nem hoje — Cameron disse alto, encarando a latina que tinha a atenção na pequena televisão no alto da parede — Vai fingir remorso agora? Compaixão? Culpa? — Ele pendurou o paletó na cadeira, mas não se sentou. Seguiu até o balcão e alterou ainda mais seu tom de voz — Não está me ouvindo vadia?
— Cameron — Levantei da cadeira indo a seu encontro, então percebi seus pulsos cerrados. Camila o fuzilava com seus olhos quase desabando em lágrimas, enquanto prendia a mandíbula com tanta força que a veia de seu pescoço saltou.
— Você assassinou a própria irmã e acha que pode ficar sem me servir um café? — Cameron debruçou-se no balcão, agarrando o braço de Camila que começou a gritar. Puxei seu corpo para trás, levando um empurrão que me fez voltar direto para a mesa.
— ME SOLTA IDIOTA! — Ela gritou e então Cameron acertou um tapa tão forte em seu rosto que a lanchonete inteira pode sentir a dor.
— CAMERON — Agarrei seu corpo jogando direto no chão.
Todos observavam. Apenas observavam a situação.
Camila, com a mão no rosto vermelho e molhado pelas lágrimas, me olhou novamente como se pedisse misericórdia, agarrou seu casaco e seguiu para fora da lanchonete.
— Você é um idiota — Disse, querendo cuspir todo meu ódio em Cameron, mas pela primeira vez eu decidi ir atrás dela.
Agarrei a porta antes de ela terminar de fechar, deixando o sino novamente soar e corri para alcançá-la. Ela estava parada na esquina, escorada na parede de tijolos laranja desgastado, segurando um maço de cigarros e um isqueiro com a bandeira do Canadá.
Eu não sabia o que dizer e porque de fato estava fazendo isso. Eu sentia raiva por ela tratar a morte da própria irmã com desgosto e ódio, agindo como se não fosse nada e só lamentando por si mesma. Mas era como se devesse isso a Catarina, por todos os sentimentos que alimentei durante esses anos, eu sentia que ela gostaria que eu fizesse isso por Camila da qual sempre disse tão bem.
Pelas palavras de Catarina, Camila não era esse monstro que todos diziam. Ela era doce, amável e muito engraçada. Lembro de todas as historias que contava na roda de amigos sobre a irmã, as piadas e o companheirismo. Eu queria enxergar isso e, se fosse verdade, salvar essa Camila que já existiu, por ela.
— Você está bem? — Assim que cheguei mais perto notei o quanto chorava e a marca vermelha em seu rosto. Primeiro ela se assustou, mas assim que percebeu quem era me olhou com desprezo.
— E você se importa, por acaso? — Ela acendeu o cigarro com dificuldade deixando a primeira cinza cair no chão. Julgando pela maneira que o segurava, eu diria que Camila não fumava regularmente ou era a primeira vez que estava fazendo isso.
— Ele te bateu é claro que eu me importo Camila — Engoli a seco, sentindo minhas mãos tremulas soarem. Ela levou o cigarro na boca, puxando a fumaça com força, logo se engasgando e a soltando desesperadamente. Ri de seu desespero e ela me encarou enjoada.
— Todos aqui já me bateram ou tem vontade de fazer isso, é algo que eu já aprendi a lidar — Minha garganta formou um nó gigante, impedindo que o ar saísse dos meus pulmões. Notei a naturalidade que aquelas palavras foram ditas, fazendo meu peito doer.
— Você deveria prestar queixa ou sei lá — Tentei soar natural, mas aquilo estava me deixando nervoso e angustiado — Eu sei que ele é meu amigo, mas ele bateu em você.
Camila soltou um riso, jogando o cigarro no chão e apagando a chama com a sola do seu all star. Ela cruzou os braços, puxou o ar para dentro de suas narinas e fechando os olhos.
Observei-a de perto. Seus traços latinos eram fortes. Sua boca carnuda era chamativa, sua pele tinha o tom ideal para completar toda sua beleza e ela continha uma inocência na maneira que se expressava. Camila é tão linda que eu temeria dizer ainda mais que Catarina.
— Quem defenderia uma assassina? — Seus olhos se abriram e o pedido de misericórdia estava ali, ainda mais nítido que antes. Um soco atingiu minhas entranhas, fazendo uma gota de suor escorrer pela minha testa.
— Camila — Eu quase sussurrei seu nome em desespero — A culpa não foi sua — Tentei soar firme, mas a voz saiu falha, engasgada e muito baixa.
— O que você sabe sobre isso, Shawn Mendes? — Ao contrario da minha, sua voz soou firme e alta — Você não conhece os boatos? As histórias? Quer dizer, a verdadeira história sobre o “acidente”? — Camila esperava minha resposta, mas eu não tinha coragem de dizer que não só conhecia como ajudei para que todos soubessem — É claro que você conhece, não é? Shawn Mendes foi um dos garotos que Catarina transou, manipulou e me acusou de assassinato na frente da cidade toda.
— Camila...
— Quer saber Shawn Mendes? Talvez uma coisa nessa história tenha sido verdade — Ela aproximou-se de mim, deixando nossos rostos a centímetros de distancia — Eu desejei a morte dela naquela noite.
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