Eu saí bem cedo naquela manhã e fui para meu apartamento. Era como se eu fosse abraçado por coisas boas assim que coloquei os pés lá dentro. Eu amava aquele lugar. Tínhamos nos esforçado para conseguir aquele apartamento, meus pais ajudaram com uma parte e o pai de Yuta com outra, o resto tivemos que ir pagando em várias partes, até conseguirmos quitá-lo. Os móveis foram um compilado de presentes de amigos, de parentes e itens da loja de usados que conseguimos encontrar. Estudávamos de dia e trabalhávamos à noite ou no fim de semana. Era cansativo, desgastante, mas nunca reclamávamos por muito tempo porque quando chegávamos em casa, era nos braços um do outro que nos ajeitávamos e dormíamos. Então todos os problemas pareciam pequenos demais. Nos arrumávamos como dava e não tinha tanta importância não termos tanto dinheiro.
Tirei os lençóis que cobriam os móveis e quando parei em frente ao piano, tirei o tecido lentamente. Aquele piano tinha sido algo que compramos juntos, para nós dois, mesmo que eu tocasse mais que ele. Era um piano vertical de mogno usado. Passamos anos juntando dinheiro. Talvez fosse a coisa mais cara naquele apartamento, mesmo que fosse usado. Aquele instrumento significava muito para nós dois, não só pelo esforço, mas por todos os momentos que compartilhamos dividindo a música só para nós dois.
— Yuta, não precisámos de um piano. Posso pegar o que tem na casa dos meus pais — eu disse quando conversávamos sobre aquilo — Podemos usar o dinheiro para outra coisa.
— Mas eu quero o piano! Quero o nosso piano. Quero que seja algo nosso.
— Temos o apartamento, Yuta.
— Nossos pais nos deram boa parte dele, Hansol. Dá para comprar. Só falta mais um pouco.
Tínhamos um pote de vidro grande no fundo do armário da cozinha. Sempre que podíamos colocávamos algum valor ali, por menor que fosse. E no aniversário de 21 anos de Yuta conseguimos comprar. Tínhamos até feito um seguro para aquele piano que eu não sabia se tinha sido cancelado por falta de pagamento. Aliás em todo aquele tempo eu nunca tinha refletido sobre as minhas contas. Provavelmente meus pais deviam estar pagando tudo e me senti culpado por isso.
No começo do ano, depois de uma sessão de fisioterapia quando estava internado, meus pais sugeriram que colocassem o apartamento para alugar, eles ainda tinham tramites legais para resolver e o valor do aluguel poderia ajudar, mas eu me neguei, não quis nem ao menos ouvir ou pensar sobre o assunto. Era uma ideia insuportável que alguém vivesse onde eu vivia, como se eu nunca fosse sair daquele hospital e voltar para aquele apartamento.
O pote de vidro com uma etiqueta escrito "Planos do Yuta e do Hansol" ainda estava no mesmo lugar, do jeito que tínhamos deixado. Havia dois terços do pote cheio. Pensaria o que eu deveria fazer depois.
Sentei em frente aquele piano e fiquei encarando-o durante algum tempo. A porta do apartamento se abriu e por um momento era como antes. Yuta entrou sorrindo e correu para se sentar ao meu lado.
— Não vai tocar, Hansol? — perguntou quando percebeu que eu não o tocava.
— Não... O que faz aqui?
— Idiota, o apartamento é meu também. Eu venho aqui as vezes.
— Onde está morando?
— Em qualquer lugar — e piscou — Não precisa saber.
— Por que não volta para cá? Eu queria poder voltar.
— Eu não. Isso foi a parte de uma história que acabou. Ele é seu se quiser, Hansol. Senão pode vendê-lo, não tem problema.
— Sabe que eu não posso vender sem falar com seu pai.
— Verdade... — seus dedos começaram a tocar e a vontade de chorar me abraçou novamente — Não chore. Você está muito emotivo — a música era conhecida e bonita.
— Eu não queria que acabasse.
— Sinto muito.
— Você fica repetindo que sente muito. Você não sente, não.
— As coisas acabam, Hansol. Mas isso não quer dizer que o que passamos seja banal.
— Nós tivemos uma vida linda aqui, Yuta.
— E está na hora de ter uma vida tão linda e incrível como tivemos, sozinho... Ou até com outra pessoa.
Yuta parou de tocar e olhou para mim sorrindo. Seus dedos foram até meu rosto e tiraram as lágrimas que caíam como um carinho. Não falamos mais nada. Yuta ainda tocou mais alguma música que tocávamos antigamente antes de levantarmos, colocarmos os lençóis em cima dos móveis de novo e saí dali sem dizer nada a Yuta. Não precisava dizer nada.
Voltei para casa sem vontade nenhuma. Era um verão quente demais e eu não gostava do verão. Minha irmã brincava na sala e correu até mim, pulando na minha frente.
— Oppa, seu amigo está aí — disse Joohyun sorridente — Ele está esperando no seu quarto.
Eu subi rápido e abri a porta do meu quarto. Taeyong estava sentado na minha cama, segurando um dos porta-retratos que estava dentro das caixas que eu não desfiz. Era uma foto minha e do Yuta em meu último aniversário antes de tudo. Não convidamos ninguém e aproveitámos nosso tempo sozinhos. Nós dois fizemos um bolo de chocolate, a cozinha estava uma bagunça, tinha farinha no cabelo de Yuta e um pouco de chocolate no meu rosto, nós ríamos de qualquer coisa. E então eu tirei aquela foto. Yuta sorria lindamente e eu o abraçava por trás. Nós pareciamos incrivelmente felizes naquela foto. No mês seguinte, estava tudo destruído.
— Olá, Hansol — disse Taeyong colocando o retrato na mesa de cabeceira.
— Oi, Taeyong. O que faz aqui?
Eu não o queria ali, não porque não gostava de Taeyong. Ele era um dos meus melhores amigos, mas isso foi antes. Eu me sentia nervoso e irritado por tê-lo ali. Fazia tanto tempo que não nos víamos e ele parecia distante e perdido em minhas memórias. Nós nunca conversamos sobre aquela época, nunca tocamos no assunto e eu não queria que fosse naquele momento, não podia ser naquele momento.
— Eu vim te ver. Só soube agora que você saiu do hospital e... Seus pais não deixaram que eu o visitasse lá.
— Eu sei. Não queria que me visse daquele jeito.
Me sentei ao seu lado em minha cama e suspirei. Nos conhecíamos há anos e agora ele parecia apenas um estranho para mim.
— Todos estão com saudades de você — parecia que ele começaria a chorar a qualquer momento — Deveríamos sair qualquer dia, se você se sentir pronto.
Taeil tinha dito que eu precisava sair com meus amigos, voltar a me socializar com eles e, mesmo que eu não quisesse, eu assenti.
Taeyong sempre cuidou de todo mundo, era sensível, mas tentava não demonstrar como se assim fosse fazer os outros serem fortes. Taeyong era emotivo e preocupado demais com todo mundo. Ele sempre foi o tipo que cuidava de todos e estava lá por todos, que escondia os problemas para poder ajudar quem precisasse dele.
Taeyong e Yuta eram parecidos nesse aspecto, Yuta guardava muitos sentimentos, evitava dizer coisas que preocupariam ou machucariam os outros. Talvez por isso, Taeyong foi o maior confidente de Yuta. Ele sabia de coisas que Yuta nunca deixou que eu soubesse, eles conversavam muito porque tinham o mesmo jeito de lidar com as coisas e por muito tempo eu senti ciúmes por não ser a pessoa que Yuta poderia contar tudo. Mesmo depois de tanto tempo, eu ainda não era a pessoa que saberia de tudo sobre Yuta.
De algum jeito, Taeyong sabia antes de mim que eu gostaria de saber sobre os outros, então ele contou como todos estavam, contou mais ou menos o que tinha acontecido quando estive fora, mas sem muitos detalhes. Taeyong foi embora, me abraçando e pedindo que eu ligasse algum dia.
Demorei uma semana para ligar para Taeyong. E quando o fiz ele pareceu surpreso e animado. Combinamos de reunirmos alguns dos nossos amigos em seu apartamento. Taeyong só chamou poucos amigos. Ten, Jaehyun e Doyoung. Taeyong tinha uma habilidade de entender o que as pessoas precisavam e ele sabia que eu não precisava de muita gente ao meu redor.
Me arrumei sem vontade, eu não queria ir e pensei em várias formas de dizer que não podia ir. Liguei para Yuta já esperando que ele não atendesse como quase sempre, mas ele atendeu.
— Amor! — gritou me assustando como fazia antigamente.
— Eu não vou mais. Eu não posso.
— Não pode ir encontrar nossos amigos? Quer dizer, seus amigos. Pare de besteira, Hansol! Eles devem estar com saudade de você.
— Não pode ir comigo?
— Não, amor... Eu deixei eles também. Taeyong deve ter raiva de mim até hoje — ele disse com um riso triste e quis responder que Taeyong nunca sentiria raiva dele, mas não disse — E além do mais você já é um adulto, Ji Hansol. É só uma visita à casa do seu melhor amigo, não é nada demais. Tem que fazer isso sozinho!
Yuta desligou e eu terminei de me arrumar saindo de casa em seguida. O apartamento de Taeyong não era longe do meu apartamento então mesmo que eu quisesse não podia dizer que tinha esquecido o caminho. Bati na porta e não tive que esperar nem cinco segundos para ela se abrir. Foi Jaehyun que abriu e depois de me olhar por um tempo, me abraçou com força.
— Eu senti sua falta — disse me olhando nos olhos.
Jaehyun me puxou para dentro e todos vieram até mim. Nos sentamos no chão da sala e todos falavam alto demais, brincavam, riam, assim como eu me lembrava que era. Ten ainda revirava os olhos do mesmo jeito, Doyoung ainda olhava os outros com aquela cara de julgamento que todos achavam engraçada, Jaehyun ainda era lento para entender algumas piadas e Taeyong ainda tinha o mesmo jeito debochado. Mas era... Diferente. Tinha algo de diferente e era tão ruim não saber exatamente o que era. E então eu comecei a chorar sem perceber.
— O que foi, Hansol? — perguntou Ten se sentando ao meu lado e me abraçando.
— Está tudo diferente... Eu sinto falta de antes.
Era a única coisa que eu sabia dizer era que sentia falta, que queria que as coisas fossem como antes. Eu não queria uma nova vida e era tão difícil que alguém entendesse. Eu não queria a vida de quem tinha sobrevivido, que estava seguindo em frente. Eu queria a vida de um jovem adulto sem importância, que não sabia muito bem o que estava fazendo da vida e que era absolutamente comum.
— Estamos aqui — disse Doyoung com um sorriso — Ainda somos os mesmos de antes.
E pelo resto da noite conversámos animadamente e eu tentei esquecer tudo. Eu tentei ser feliz naquele momento pequeno com meus amigos. Eles ainda eram os mesmos, mas eu não era, então eu me esforcei para parecer.
Quando já estava tarde demais, Taeyong perguntou se eu não queria dormir lá e eu recusei. Não tinha mais nenhum ônibus circulando naquele horário então fui para meu apartamento. Eu não entrei no quarto, ainda era um passo que eu não podia dar. Fiquei algum tempo olhando para a porta do cômodo sem abri-la. Eu queria entrar, eu queria deitar em minha cama, abrir a janela e olhar a rua dali, queria ver cada objeto deixado lá, ver se ali também tinha mudado. Mas eu não abri a porta.
Depois fui até a sala e me deitei no sofá. Sorri com a memória do dia que aquele sofá havia chegado. Yuta quase expulsou o entregador, ansioso demais até me empurrar no sofá e sentar sobre mim com um sorriso malicioso.
— Eu quero estrear esse sofá.
E me beijou enquanto suas mãos afoitas tiravam minha roupa. Foi desajeitado, mas tão bom. Ao mesmo tempo que lembrar dos momentos de antes me deixava feliz, machucava meu peito com tanta força que parecia me tirar o ar.
Eu olhei para o teto da sala e quis respirar novamente, eu me assustava com meu próprio sentimento de frustração e saudade.
É lógico que meus pais brigaram comigo por ter sumido. Era como se eu tivesse voltado aos meus 15 anos, mas eu os entendia. Eu tinha sumido e eles tinham todos os motivos para se preocuparem. Mas isso irritava e me sufocava. Eu estava o tempo todo sufocado por tudo e todos.
— Por que não voltou para casa? — perguntou Taeil quando contei o que tinha acontecido.
— Porque aquela é minha casa. E eu estava com saudade — disse sendo sincero.
— Conseguiu dormir?
— Não. Chorei a noite toda.
— E se sente melhor?
— Não sei.
— Quer voltar para lá?
— Muito.
— Então volte — ele falou simples e me encarou esperando que eu entendesse.
Taeil queria que eu experimentasse buscar o que me fazia bem, o que me tirasse do estado de apatia e frustração constante.
E assim que eu saí daquele consultório, fui para meu apartamento. Ficar sozinho ali era como se agarrar à uma boia em alto mar, mas a sensação nunca durava o tanto que eu gostaria.
Já fazia alguns dias que todos voltaram a falar comigo e eu tentava não ser rude. Eu me sentia mergulhado naquela tristeza e desanimo. Era como se eu não conseguisse viver mais, eu não sabia mais como se fazia aquilo. E apesar de todos meus amigos começarem a me ajudar, eu queria que me deixassem em paz. Ficar sozinho naquele apartamento me dava a sensação boa e breve de que eu estava preso em um universo alternativo. Eu podia fingir que era domingo, que eu tinha trabalhado no dia anterior, que eu estava ignorando os trabalhos da faculdade, que Yuta ainda estava dormindo no quarto no fim do corredor. As vezes a realidade me pegava e eu tinha que fechar os olhos me esforçando para não pensar. Mas era impossível e eu estava chorando de novo, contemplando no teto da sala todos os fatos inegáveis.
Quando Yuta chegou, apenas o observei abrir a porta e caminhar até o piano na sala e começar a tocar. Eu estava deitado no chão da sala, olhando para o teto e tentando me concentrar na temperatura do piso de madeira abaixo de mim. Não me importei que Yuta visse minhas lágrimas.
— Eu não gosto de te ver chorar — disse Yuta ainda olhando para o piano e tocando uma melodia bonita — Desde que éramos pequenos... Eu odiava vê-lo chorando.
— Você me faz chorar.
— Você se faz chorar. As coisas são simples, amor, você que não quer perceber. Quando notar o que eu estou fazendo por você, tudo ficará melhor.
— Como as coisas podem ficar melhor?
— Não seja dramático, amor.
Yuta era as notas bonitas que ele tocava.
Yuta era o vento refrescante do verão que entrava pela janela aberta.
Yuta era minha respiração irregular por causa do choro incessante.
Yuta era o abraço acolhedor que eu recebi dele naquele momento.
Yuta era meu anjo.
Yuta também era meu demônio.
Yuta era meu passado, meu presente e meu futuro.
Eu era aquele acidente.
Eu era minhas cirurgias.
Eu era todas as dores que eu senti.
Eu era os remédios sem fim.
Eu era o desespero.
Eu era as lembranças que não me deixavam.
Eu era meu choro.
Eu era a magoa, o rancor e tristeza.
Eu era minha saudade.
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