— Você é casada?
No primeiro momento ela não disse nada, apenas me olhava como se estivesse olhando para alguém com uma faca na mão claramente disposta a cortá-la em pedacinhos. Seus lábios se abriram algumas vezes, mas não emitiram palavras. As narinas inflavam em cada respiração, e os olhos vidrados estavam desesperados, mas ela estava se agarrando à ultima coisa que lhe era possível no momento para não desabar, fosse em lágrimas ou palavras. Com as costas ela empurrou a porta um pouco mais para trás, e em seguida arriscou um passo à frente, receosa, como se cinquenta por cento das chances fossem de pisar em uma mina enterrada.
— Por que estava mexendo nas minhas coisas...?
— Você não me respondeu. Você é casada?
Ela parou onde estava e piscou nervosa. Pelo seu semblante, estava certa que qualquer coisa que viesse a dizer iria ser usada contra ela mesma.
— Vicky, eu...
— Fala! — eu gritei, e seus ombros saltaram com o susto, fazendo-a voltar o pouco passo que tinha dado — Eu te fiz uma pergunta e eu quero uma resposta. Então, mais uma vez, você é casada?!
Suas costas grudaram à porta, em um ato de defesa, e quando menos esperei, ela soltou em voz alta:
— Não é tão simples assim. Eu não poderia ter te contado!
Não poderia ter me contado?
Meus olhos se abriram um pouco mais, e minhas pálpebras vacilaram, umedecendo os cílios com as lágrimas em cada batida. Meus ombros caíram, derrotados, assim como a minha mão sobre a superfície da mesa, mas a aliança ainda estava presa entre meus dedos, agora quase cerrados.
— Então é verdade... — sussurrei, destruída.
Por um momento ainda tive esperanças de que aquela aliança significasse qualquer outra coisa, e de que April realmente estava brincando com a minha cara, mas nada poderia ser pior do que aquela confirmação. Senti o chão ondular por alguns segundos e minha cabeça girar. Não era possível, não podia ser. Lena estava mentindo para mim por todo esse tempo. Mentindo bem na minha cara, e eu nunca sequer havia desconfiado. O baque da descoberta foi tão forte que até mesmo a raiva se entorpeceu por uns momentos. Meus olhos fitaram o chão e o ar escapava pela boca, um pouco trêmulo, fazendo os músculos da barriga se contraírem. Eu não sabia o que era pior, ver April com Calena, ou descobrir que Lena era casada.
Acho que para mim, as duas situações eram igualmente destruidoras.
— Vicky, por favor... deixa eu me explicar...
Ergui os olhos para ela, incisiva, e toda a raiva que havia adormecido retornou com força bruta. Naquele momento não era exatamente Lena que eu estava vendo, mas alguém que realmente eu provavelmente não conhecesse.
— Você mentiu pra mim, Lena. Mentiu por todo esse tempo que estivemos juntas... Você disse que só era namorada dele. Não esposa, merda!
— Vicky, por favor, você precisa entender — ela tornou o passo que havia dado e gesticulou com as mãos, nervosa — Eu... eu não fiz por mal, eu...
— Porra, Lena! — bati com a mão contra a mesa e mais uma vez seus ombros saltaram.
Larguei a aliança de qualquer jeito sobre o móvel e girei nos calcanhares, nervosa. Escorri os dedos pelas laterais da cabeça e dei alguns passos pelo quarto, lutando para não descontar a raiva em alguma coisa. Eu precisava me acalmar, precisava me acalmar... Mas era simplesmente impossível!
— Vicky, não faz sentido toda a sua raiva. Você estava comigo de todo jeito, mesmo sabendo que eu tinha um relacionamento com o David. O que isso muda agora? Namorada, esposa. Em ambos os casos eu estava em um relacionamento extraconjugal com você. Meus status familiar com ele não muda em nada o que tivemos.
O sangue palpitou na têmpora, não podia acreditar que havia escutado aquilo. Girei para ela, esfumaçando por todos os buracos da cabeça.
— Não muda em nada? Como não muda em nada?! Uma coisa é você ser comprometida com ele apenas por decisão própria, e outra é ser comprometida em cartório, em papéis, pra sociedade! Céus, se duvidar até no religioso! Lena, pelo o amor de Deus, eu tenho ciência que nunca estive em uma posição ética desde quando aceitei me relacionar com você, mas a verdadeira posição em que você me colocou é muito pior do que a que eu estava lidando. Eu não estou só sendo o seu casinho proibido em um namoro rebelde, eu estou sendo a porra da amante em uma merda de casamento! E você me escondeu isso durante todo esse tempo, e pra quê? O que acha que iria ganhar com uma mentira dessas? Uma fantasia com a qual só você iria se divertir?
— Não, Vicky, não! — algo no que eu disse (ou talvez tudo) a fez assumir a ofensiva também. Desta vez, ela não estava somente assustada — Eu nunca te envolvi nisso pensando somente em mim, eu penso em você também, eu sempre penso em você. Acontece que minha situação não é tão simples o quanto parece, eu tenho os meus motivos pra não ter te contado, e eu não fiz por mal. Só achei que assim seria mais fácil. Evitaria confusões exatamente como essa que estamos tendo agora!
— Seus motivos? — dei um riso sarcástico — Ótimo, então me fale deles. Me explique o que te impediu de ter sido clara desde o início. Talvez assim, quem sabe, eu consiga engolir alguma coisa que está dizendo.
Cruzei os braços sob o peito e a olhei não menos sombria do que antes, esperando por uma resposta. E como eu esperava, ela não veio. Lena se encolheu com o que eu disse e desviou seus olhos do meus. Também cruzou os braços sob o peito e piscou desconcertada, como se estivesse pensando na primeira desculpa plausível para justificar o porquê de não numerar seus motivos para mim. Eu lhe dei alguns segundos, segundos consideráveis, mas ela não mudou de postura. Era inacreditável. Eu olhei para o lado, umedeci os lábios e balancei a cabeça negativamente, inconformada.
— É isso. Você nunca me diz nada.
Dessa vez ela me olhou, e novamente tentou se explicar.
— Vicky, eu...
— Não, Lena! Não tem mais “Vicky, eu...” aqui. Você não só mentiu pra mim, como me esconde coisas, e continua escondendo, na minha cara, mesmo comigo te encurralando — descruzei os braços e dei um passo à frente — Sabe qual é o verdadeiro problema? Você não confia em mim.
— Amor, eu confio em você, eu juro!
— Não, você não confia! Se confiasse, já teria me dito há muito tempo o que realmente rola entre você e o David. Eu sei que não é somente um relacionamento fora da linha. Você esconde alguma coisa entre vocês dois, alguma coisa grande, e por isso não quer me dizer. Porra, Lena! Você sabe tudo da minha vida. Eu nunca te escondi nada, porque você me passou a droga da confiança. Nem quando beijei a Amanda eu escondi, porque eu confiei em você. Mas agora você, eu não sei nada sobre você. Não conheço nem faço ideia dos motivos que te levaram a ficar com o David. Você diz que é coisa de família, mas nunca se disponibilizou a realmente me contar. É sempre por cima, é sempre cheio de mistérios. Mas caramba, ainda assim, eu não te fiz perguntas, eu não te pressionei, eu te deixei ter seu próprio espaço para lidar com isso e não me ver como algum incômodo. Mas isto — peguei a aliança sobre a mesa e a ergui à altura do rosto, dando ênfase ao objeto — É o que eu ganho por não ter perguntado, por não ter insistido. É o que eu ganho por ter me entregado demais a você e não ter recebido em troca o que devia. É o que eu ganho por sentir sua falta todo dia e não receber bons motivos para explicar a porra da sua ausência contínua!!
Meu grito foi mais estridente na última frase. Lena estremeceu, fechou os olhos e abraçou a si mesma no ímpeto. Mas havia um pesar ali. Um pesar quase desproporcional ao seu tamanho. Ela contraiu os lábios e uma lágrima solitária escapou por baixo dos cílios. Se eu não estivesse com tanta raiva, teria sentido por ela àquele momento, ela parecia desprotegida, completamente desarmada, porém, a raiva, pela primeira vez na vida, me fez realmente abrir os olhos. Mesmo que Lena estivesse visivelmente mal, nada justificava a sua conduta no nosso relacionamento. Nada que ela havia dito até o momento ao menos.
Quando dei por mim, as lágrimas também corriam quentes pelo meu rosto, se enganchando nos lábios, escorrendo pelo queixo. Enchi o pulmão de ar e pisquei algumas vezes, no intuito de cessá-las. Deixei a aliança de lado e levei a mão à boca, secando aquela região e a base do nariz, completamente molhadas. Funguei algumas vezes e olhei para os lados, com as mãos agora na cintura. Lena ainda estava na mesma posição, mas desta vez, também olhava para o lado, desconcertada, destruída.
Éramos duas.
— Sabe, Lena, eu — quebrei o silêncio, mas antes de continuar, levei as costas da mão ao nariz para secar novas lágrimas — Eu realmente acreditei que logo, logo, você se livraria do David e a gente poderia finalmente viver juntas. Mas quando se trata de casamento, não existe um “logo, logo”. Existem papéis, advogados, burocracia... Isso se o David te der o divórcio, porque se não, não é só burocracia, é estresse também — eu a olhei, e alguns segundos depois, ela me olhou de volta, mas ainda indefesa. Funguei outra vez — É como a Amanda disse, eu sou realmente retardada com as garotas que amo. Sou como uma criança na Disneylândia quando estou com elas, não existe passatempo melhor, momento melhor. E por conta disso, eu crio expectativas grandiosas e até inocentes demais... É, eu sou como uma criança quando estou apaixonada, e talvez por isso só venha me cortando nos últimos tempos. Primeiro a April, e agora... — não consegui terminar. A garganta doeu, indicando que um choro longo estava por vir.
O olhar de Lena tremulou, assim como todo seu corpo. Seus olhos se arregalaram.
— Está terminando comigo?
Eu olhei para a mesa ao meu lado. A bolsa aberta, o casaco jogado ao lado, a aliança... Comprimi os lábios e enchi o pulmão de ar.
— Eu não sei — em seguida, olhei para ela — O que sei, é que estou recomeçando comigo.
— Vicky, eu...
Mas antes que ela pudesse terminar, peguei o casaco, a bolsa e enfiei a aliança dentro, em seguida, dei tudo a ela.
— Acho que já está mais do que claro que já deu por hoje. Por favor, vai embora.
Ela pegou os pertences quase sem acreditar. Na verdade, até eu quase não acreditava que tudo aquilo estava acontecendo. Que merda! Eu amo tanto aquela mulher parada à minha frente, mas por que Deus, por que elas sempre machucam?
— Me desculpa, mas não vou mais conseguir olhar pra você hoje. É melhor pra nós duas, só... vai.
Ela abriu a boca para dizer alguma coisa, mas, mais uma vez, as palavras não saíram, e quando percebeu que na verdade não haviam palavras que pudessem amenizar toda aquela situação, ela apenas balançou a cabeça, triste e inconformada, e saiu quarto a fora, em passos rápidos e pesados. Escutei o salto baixo ecoar pelo corredor, e por fim, a porta do apartamento bater, com força. O som da porta não só ecoou pelo apartamento, como ecoou na minha alma, no meu ser. Terminou de abalar a minha pouca estrutura emocional e, desta vez, desabei em lágrimas. Minhas costas empurraram a parede e então deslizei para baixo, devagar, destruída, e agora com uma dor muito maior que as fisgadas no meu maxilar.
Uma dor incomparável.
Fiquei encolhida ali no chão, próxima ao pé da mesa, por pelo menos uns dez minutos. O rosto escondido nos joelhos, as mãos sobre a nuca, os ombros pulando com os soluços do choro... e a indignação e a dor me corroendo cada vez mais. Céus, parecia que quanto mais o tempo passava, pior ficava. Quando finalmente as lágrimas começaram a cessar e a secar, frias, sobre meu rosto, levantei-me abrupta e peguei meu celular no criado mudo. Sentei na cama com todo o peso do meu corpo afundando o colchão e abri nas conversas do Whatsapp. Procurei a de April e imediatamente escrevi:
“Como você sabia?!”
Após a mensagem ser enviada, larguei o celular de lado e sequei o resto das lágrimas com um pouco de brutalidade, ainda fruto da raiva. Eu já estava cansada de chorar aquele dia, chorar por uma mentira. Se eu tivesse feito a coisa errada e estivesse devidamente arrependida, eu me daria mais algumas horas de tolerância para derramar as lágrimas que já não tinha mais, mas, ao menos, seria uma boa punição me afogar nas lágrimas e continuar com a dor no peito pelo o que fiz. Mas não, não fui eu que fiz a merda. Eu estava triste? Estava. Mas me recusava gastar mais lágrimas e meu tempo chorando por aquilo. Se alguém tinha que fazer isso era Lena, e não eu, não mesmo.
Em menos de um minuto após enviar a mensagem para April, o celular vibrou. O olhei sem acreditar que poderia ser ela, pelo tempo era quase impossível, além de que ela não estava online — mas normal, ela nunca está —, porém, quando verifiquei de quem era a mensagem, a surpresa foi maior, era mesmo ela. E na verdade, não era bem uma mensagem, e sim um link. Franzi o cenho ao visualizá-lo e então cliquei na URL em azul. A página da internet foi aberta e demorou alguns segundos para carregar completamente, e quando o fez, uma notícia do jornal local online do final do ano passado se exibiu. O título era:
COM A NOVA DIREÇÃO, SÃO DIEGO ENTRA NA LISTA DOS CINCO MELHORES HOSPITAIS DE HARTOFORD.
E logo abaixo vinha o longo texto com toda a reportagem. Comecei a lê-lo no ímpeto de encontrar em que linha April havia descoberto sobre o casamento, e não o namoro, de Lena e David. Até que na sexta linha do quinto parágrafo, eu finalmente o fiz. A sentença começava com um:
“Lena Houston, esposa de David Curtis, diretor do hospital, nos deu sua opinião sobre como a nova direção de seu marido pôde contribuir para a mudança no ranque dos hospitais da cidade, deixando para trás Bourbon Medical Hospital e Saint Louis Hospital”.
Em seguida, vinha as palavras de Lena, mas não consegui lê-las. Meu estômago se revirou no “Esposa de David Curtis” e minha tolerância para continuar lendo o artigo não passou de “Saint Louis Hospital”. Fechei a página imediatamente, em seguida, me obriguei a fechar os olhos e respirar fundo. Bem fundo. Eu não podia acreditar, uma notícia como aquela, aberta a qualquer um que quisesse ter acesso, sempre esteve ali, a alguns cliques de mim, e eu nunca sequer pensei em procurar algo sobre Lena na internet. Nem mesmo suas redes sociais, porque ela disse que não tinha, mas àquela altura do campeonato, era muito provável que aquilo também fosse uma mentira, mas eu já estava chateada o suficiente para procurá-las. As lágrimas haviam cessado quase que completamente, e eu não queria correr o risco de provocá-las outra vez. Não, me recusava, ao menos àquele momento.
Então, uma coisa subitamente me ocorreu, e antes que eu pudesse pensar demais sobre, acessei a agenda do celular e liguei para April. Assim como a mensagem que ela havia me mandado, não demorou muito para que sua voz surgisse do outro lado.
— Você ligou para April Laurent. Estou tomando suco de laranja no momento, deixe seu recado após o sinal. Bip.
— Não tem graça, April! — a verdade é que eu nunca em uma vida escutei April atendendo uma ligação com aquele tipo de humor, mas já que era o meu que estava abalado o suficiente àquele dia, não tive paciência para desfrutar de um momento um tanto cômico vindo dela — Como você descobriu? Como achou aquele artigo? Você nem sequer sabia o sobrenome dela! Eu nunca te disse. — não só o humor, eu também estava abalada, mas não me preocupei em esconder isso. Não era hora para me importar com um tom de raiva e choro na linha.
Um som de líquido sugado pelo canudo se cessou, e em seu lugar, uma respiração foi a única coisa que consegui escutar. Uma respiração que indicava esperteza.
— Você não. Mas o broche de metal com o nome dela cravado preso ao blazer sim. — o suco foi sugado mais uma vez — Eu posso ser tudo, Vicky, mas burra e cega eu não sou.
Então tive um estalo. Era verdade, o broche. Lena o usava no trabalho, e April havia ficado internada uma noite no hospital, e nesse mesmo período, Lena lhe fez uma visita, até a trocou de quarto para um melhor. Como eu podia ter esquecido disso? Principalmente de que April era de fato tudo, menos burra e cega? Céus, a única burra naquela história toda com certeza era eu.
Respirei fundo.
— Merda, eu... eu tinha esquecido disso. Eu... — então percebi que nem sequer sabia o que dizer. Sentia como se as palavras estivessem prestes a pular de qualquer jeito, sem sentido algum. Eu queria falar algo, sentia que precisava falar algo, mas não sabia o quê. Nem sequer estava pensando direito.
April descobriu, em prováveis alguns minutos, o que eu em quase dois meses não me atrevi a fazer, e agora a verdade havia explodido como uma bomba. Estava brigada com a minha atual namorada (na verdade, nem sabia mais se ainda era atual), ajudada pela minha ex. Lena estava arrasada, eu estava arrasada, e April estava aparentemente feliz com seu suco de laranja. Como tudo havia se distorcido daquela maneira? Como... o mundo havia brincando tão injustamente comigo? Com a gente? Céus, eu só precisava de um espaço para espairecer da maneira devida. Não queria ver Lena tão cedo, e April... bem, eu ainda a amava, eu sabia, mas não é como se naquela situação ela fosse a pessoa mais adequada para se procurar abrigo depois de tudo. Era quase escroto da minha parte fazer isso.
— Vicky? Você está ai?
Sua voz me tirou dos devaneios em um súbito, e de repente, tudo a minha volta pareceu ganhar forma outra vez.
— Eu tô. Tô sim...
— Como você está?
Tudo bem, Vicky. Respira.
— Sinceramente, April, como você acha que eu estou? Eu acabei de brigar com a minha namorada, caramba! Ela saiu daqui arrasada. Eu estou arrasada. Não sei nem o que pensar direito e você vem me perguntar como estou? Caramba, não tô muito diferente de quando te peguei com a Calena não, merda!
— Ei, não me envolva na história. Eu não tenho nada a ver com a sua relação com a Lena. Só te ajudei a abrir os olhos. Quanto à Calena, aquilo é passado, e você sabe que estou suficientemente arrependida pelo o que fiz. A questão aqui não é isso, eu só...
— Tudo bem, me desculpa — disse antes que ela pudesse terminar.
Era verdade, ela não tinha nada a ver com a história, não podia trazer o nosso passado para comparar a minha raiva. A situação ali era comigo e Lena, April apenas me ajudou a enxergar o que provavelmente eu jamais seria capaz sem a ajuda dela. Eu deveria estar agradecida — e na verdade estava —, mas a raiva não estava me permitindo olhar muito por esse lado. Eu só precisava descontar em algo, mas sob hipótese algum poderia ser nela, e na verdade, em ninguém! Espairecer era o mais adequado, mas... como, Deus?
— Eu só... — continuei.
— Está com raiva, eu sei — dessa vez ela me interrompeu. E para minha surpresa, havia compreensão em seu tom — Está tudo bem, Victorie. É normal querer descontar em tudo e todos nessas horas. Só disse aquilo pra você não se desviar da situação. Mas eu sei como está se sentido. Está tudo bem.
Ergui uma sobrancelha.
— Sabe? Sabe como? Não creio que tenha ficado puta com alguma namorada sua por, um acaso, ter te traído. Você nunca ligou pra elas...
— Não mesmo. Mas não foi com alguma delas que fiquei com raiva quando perdi a pessoa que mais amei. E... ainda amo.
Meus olhos se abriram mais e um aperto comprimiu meu peito. Merda, ela estava falando dela mesma... Droga, April...
— April, eu...
— Sai comigo um dia desses?
Sua pergunta foi repentina, e imaginei que ela estava querendo cortar o clima que subitamente se instalou entre nós. Mas não deixei de franzir o cenho.
— Ah... o quê? — que idiota. Eu havia entendido muito bem o que ela havia dito, mas por algum motivo agi como se houvesse escutado grego.
— Sair comigo. As únicas vezes que nos vimos foram em situações completamente incondicionadas por nós duas. Ou foi fruto do destino, embora eu não acredite muito nisso, ou foi alguma visita surpresa para tratar de alguma coisa, mas nada que realmente fosse um momento de lazer. Sinto falta da sua companhia, Victorie. A gente podia, sei lá, assistir um filme ou comer algo. Prometo que não vou tentar te agarrar em nenhuma das situações, se por acaso você se preocupa com isso.
Minhas bochechas coraram nessa hora, e não pude evitar a vergonha açoitar meu estômago por um segundo. Céus, acho que no fundo eu realmente pensava naquilo, mas o que realmente me assustou, foi perceber que talvez eu não me preocupasse pelo motivo óbvio, mas pelo fato de que, no fundo, querer que ela fizesse isso...
Amar duas pessoas ao mesmo tempo é realmente entrópico!
— Então? — ela continuou quando não disse nada — É uma ideia muito ruim?
Pisquei algumas vezes e respirei fundo, então disse:
— Não. Na verdade, não é, eu só...
— Ótimo — ela deu uma pausa, como se estivesse pensando em algo — Quando é aquela sua prova?
— Quarta.
— Que tal sairmos quarta à noite? Tente manter a cabeça pra estudar até lá, e à noite a gente sai pra espairecer. Acredite, vai ser bom pra você.
Pensei um pouco sobre o assunto e, pelo mais que de alguma forma soasse errado por eu ter recém brigado com Lena, não era uma má ideia. Eu realmente precisava daquilo. Precisava... esquecer Lena um pouco. Aquela dor tinha que amenizar.
Então me decidi.
— Tudo bem, quarta à noite.
— Posso ir te buscar?
— Bem, por mim.
— Estarei aí às sete. Vai te dar tempo de tomar um banho e se arrumar.
Sorri. É, ela estava mesmo pensando em tudo.
— Tudo bem, April. Às sete. Eu te espero.
— Ótimo! Mas agora tenho que desligar. Foi bom falar com você. Quarta vai ser melhor ainda — e como se ela pudesse ler meus pensamentos assim que ergui a sobrancelha, ela completou: — Sem pegações. Sou apenas sua amiguinha do peito.
Mas não evitei outro sorriso.
— Espero que isso não tenha um duplo sentido.
— Ai é com você — ela deu uma pausa, e pude perceber que ela também estava rindo — Fique bem, Vicky, de verdade. Amo você.
E então desligou. Ela nunca me esperava responder, e pela primeira vez na vida me perguntei o porquê. Talvez, fosse porque não queria esperar para saber o que eu diria, já que muito provavelmente não seria um “amo você também”. Respirei fundo e deixei minha mão cair com o celular sobre o colo. O aperto voltou ao meu peito. Um sorriso se comprimiu em meu rosto, mas minha feição ainda estava triste.
— Amo você também, April — murmurei a mim mesma, me perguntando o que ela diria, pensaria ou faria se escutasse aquilo.
Por fim, larguei o celular na cama e me levantei para tomar outro banho. Eu realmente precisava novamente de um. E um bem demorado, em água quente. Meus músculos estavam tensos, minha cabeça pesada. Na verdade, até enjoo sentia. Depois do banho planejei tomar outro analgésico e dormir, até meu corpo não querer mais. Mas claro, rezei para que as turbulências do dia não afetassem meus sonhos. Isso era a última coisa de que precisava àquele momento.
Acordei por volta da 18h30, mas completamente diferente do que eu pensava, eu estava pior. Não das dores físicas, mas das internas. Acordar para a vida real e perceber que nada daquilo havia sido um pesadelo, era relativamente pior do que ter continuado acordada, porque o peso da dor parecia aumentar uns trezentos quilos depois que se desperta. E para completar, o analgésico deixava meu corpo um pouco mole, e após acordar, até a moleza parecia se enfatizar.
— Que merda... — murmurei, ainda deitada na cama, com o braço dobrado sobre os olhos.
Meu corpo todo pesava, mas eu precisava levantar, precisava espertar, nem que para isso eu tomasse outro banho. Eu estava em um dia ruim, um dia muito ruim. Nem cinco banhos seriam suficientes para aliviar toda a angustia, toda a dor. Na verdade, acho que nem mil. Por isso um a mais não faria mal, não àquele dia.
Tomei mais alguns segundos para recobrar as forças que me faltavam e então levantei. Sim, tomei outro banho, porém, mais curto dessa vez, e depois troquei de roupa. À tarde eu havia vestido o camisolão do Homem-Aranha para dormir, mas não era como se vesti-lo de novo fosse mudar alguma coisa, e eu não queria me sentir mais para baixo do que já estava, e o camisolão só me ajudaria nisso. Vesti roupas casuais e fui até a cozinha preparar algo para comer. Não havia nada bom para meu dente além de Cup Noodles, lâmem e sorvete. Optei pelo Cup Noodles, era mais prático e serviria como uma janta já que estava no início da noite.
Afundei no sofá enquanto comia e liguei a TV. Nada de bom passava, nada que me distraísse, nada mesmo. Na metade do Cup Noodles, meu estômago começou a rejeitar. Eu ainda estava tão mal que nem a comida descia direito. Olhei para o copo com o macarrão pela metade e, mais uma vez, tive vontade de chorar. Minha garganta doeu e as lágrimas ameaçaram marejar meus olhos, mas assim como antes, eu estava decidida a evitar o máximo que pudesse. Me acabar em lágrimas mais uma vez não seria bom, iria me fazer mal, e eu não queria ficar mais mal do que estava. Naquele momento, eu só precisava de alguém para conversar, me distrair, alguém que me fizesse rir ou pelo menos me acalentasse. Mas... quem? Então, olhando para o Cup Noodles, uma única pessoa me veio à mente.
Quando irrompi no quarto de Amanda, ela me olhou surpresa. Desde quando ela havia melhorado, eu não a visitava aos domingos. O quadrinho que estava lendo caiu sobre seu colo e seus olhos assustados fitaram os meus quando perceberam que estavam cheios de lágrimas.
— Vicky, o que foi?
Mas eu não disse nada. Apenas andei até sua cama em passos rápidos, sentei na beira, e enlacei meu braço em volta do seu pescoço, a puxando para um abraço. Escondi meu rosto em seu ombro e, pelo mais que eu houvesse evitado o caminho todo, não me contive ali, e desabei em lágrimas. O choro quente esquentou meu rosto, meus ombros saltaram com os soluços e as lágrimas umedeceram a camisola hospitalar de Amanda, mas ela não se importava, e eu sabia disso.
— As pessoas sempre me decepcionam. Menos você, você foi a única até hoje que nunca me magoou, pelo contrário, sou eu que te machuco. Me perdoa por isso, Linguado, mas é que... eu preciso tanto de você hoje...!
Ela não disse nada, apenas abraçou-me com um braço e, com a mesma mão daquele braço, me fez cafuné.
Solucei e funguei mais algumas vezes, ainda com o rosto escondido em seu ombro.
— Merda, eu... — tentei falar algo — Eu realmente não estou bem hoje, eu...
— Você pode dormir aqui se quiser — ela disse, por fim — Tem espaço pra nós duas nessa cama. Eu não sei o que aconteceu, mas acho que hoje você precisa mesmo de alguém.
Devagar, ergui o rosto para ela e deparei-me com uma Amanda quase tão abalada quanto eu. Não, não havia lágrimas em seus olhos, ou uma tristeza corrosiva na face, mas ela estava triste sim, triste por mim, e mesmo que não soubesse o que havia acontecido, ela sempre canalizou meus sentimentos de uma maneira que ninguém mais fazia. Deve ser porque somos muito próximas, e ela é bem mais sensível do que eu. De repente, me senti um pouco mal por preocupá-la, mas não era pior do que a dor que eu estava sentido, além de que, eu conhecia Amanda, e sabia que ela jamais se sentiria bem se eu a escondesse minha dor ou o tamanho dela. No fim, o melhor era compartilhá-la com ela, por isso, sorri agradecida, e aceitei seu convite.
Ainda era cedo, mas não tive vontade de sair do seu lado na cama. Eu a abraçava como uma criança abraça a mãe quando está triste ou com medo, e ela continuava me fazendo cafuné e lendo seu quadrinho. Em momento algum ela me perguntou o que aconteceu. Me conhecia bem o suficiente para saber que quando estou naquele estado, a última coisa que preciso é falar sobre. E isso é uma das coisas que eu mais amo em Amanda, ela sabe respeitar meu espaço, e ao mesmo tempo, me confortar quando preciso.
— Linguado — eu a chamei, algum tempo mais tarde.
— Hm?
— Eu amo você. Obrigada por tudo.
Ela sorriu, e também riu, de uma maneira amena, cheia de amor. Em seguida, me deu um beijo na cabeça.
— Eu também amo você. Boa noite, Vicky.
Então eu adormeci, sem ter certeza de que horas eram.
Continua...
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