Na sala de danças da universidade de belas artes, os alunos se moviam com passos suaves ao som do piano. A professora Ih Na observava atentamente todos eles, procurando imperfeições a serem corrigidas e acertos a serem exaltados, pois era importante criticar ao mesmo tempo que se elogiava. Os mais esforçados, até aquele momento, eram Kaori e Shin. Kaori era uma menina alta, cabelo curto pintado de azul turquesa, esguia. A professora admirava a sua determinação, mas não gostava nada dos rumos que esta havia tomado, pois a garota começara a comer quantidades insignificantes de comida e vomitar qualquer excesso alimentício que sua mente pudesse ter imaginado, apenas para estar em forma. Kaori também era muito sozinha, seu foco quase completo na dança era um dos grandes culpados disso, fora sua dificuldade intrínseca de interagir. Shin era como ela em termos de foco e força de vontade, mas não tinha problemas de interação ou distúrbios alimentares, era, na verdade, muito popular entre as meninas. Talvez Shin fosse o mais próximo de um amigo que Kaori pudesse chegar a ter, pois não raramente conversavam sobre a coreografia estudada no momento ou até repassavam a mesma juntos. Fora isso, Kaori mantinha-se distante, fazendo seu trabalho, recusando conselhos da professora sobre cuidar da sua saúde e lidando sozinha com suas dificuldades.
- Muito bem, pessoal. Vocês estão ótimos. Minho trabalhe seu equílibrio, Yoon, giros perfeitos. Kaori e Shin, bom trabalho. Estão dispensados, até a próxima aula. - Finalizou a professora. Ouviu-se o comum barulho da dispersão, enquanto os alunos pegavam suas mochilas e se dirigiam aos vestiários para trocarem de roupa.
Quando restava na sala apenas Ih Na e Kaori, a mais velha foi ter com a garota.
- Kaori, você está muito magra. Se tudo isso é pela performance que faremos final do ano, você deveria cuidar de sua saúde. Desmaiar no meio do palco não lhe dará uma bolsa de estudos na França.
- Desculpe, professora. Estou me cuidando, comendo a cada três horas, só estou emagrecendo porque são coisas mais saudáveis do que as que eu comia antigamente. - Argumentou a menina.
- Kaori, você sempre foi magra. Não minta para mim, ou terei que chamar a sua mãe para uma conversa. - Ameaçou Ih Na. Kaori apenas abaixou a cabeça e a professora lembrou que desta ameaça nada poderia ser tirado, já que a mãe de Kaori era uma dançarina famosa , que apoiava e incentivava os hábitos nada saudáveis da filha. - Muito bem. Eu me preocupo com você, é uma das minhas melhores alunos. A quero bem e saudável, certo? - Kaori assentiu, enquanto a outra segurava suas mãos. Nisto, ouviram uma batida na porta da sala.
Um garoto jovem, moreno, de olhos pequenos e indiferentes entrou. Seu olhar tinha algo de cansado, porque estava pouco aberto. Usava um blazer preto com a manga puxada até os cotovelos.
- Ih Na? Podemos conversar? - Perguntou ele. Houve um momento de silêncio e Kaori percebeu um clima diferente. Olhou para o garoto parado na porta e ele lhe pareceu cativante. Dificilmente tinha qualquer tipo de opiniões sobre meninos, mas este tinha algo de misterioso e isso a intrigou. Ele olhava fixamente para a professora, mas por um momento Kaori entrou em seu campo de visão, tendo nele o mesmo efeito que tivera na menina. Ela foi rapidamente pegar a mochila no canto da sala, despediu-se de sua professora e voltou a olhar para o garoto, mas desta vez ele estava concentrado em Ih Na.
- O que você quer aqui? - Perguntou ela, logo após Kaori ter saído. O garoto sorriu.
- Senti saudades. - Respondeu, com um sorriso de canto.
- Yoongi, não brinque. Saia daqui, imediatamente. Se o diretor vir você, será expulso daqui a chutes.
Ele riu de modo debochado.
- O diretor, no caso, seu namorado? Ele ainda não me superou? Ah, por favor.
- Saia daqui, agora. - Ordenou Ih Na, visivelmente perturbada.
- Por quê? Por que ele vem sempre visitar você depois da sua aula? - Yoongi agora se aproximava da professora de dança, falando cada vez mais perto de seu rosto. Ela, no entanto, o empurrou para longe.
- Saia. Por favor. Por mim.
O garoto olhou-a com dor, abaixou a cabeça e andou lentamente até a porta.
- Ih Na, por que faz isso com você mesma? Ele não é para você, você sabe disso. Vou deixá-la sozinha agora, mas voltarei. - Tendo dito isso, saiu. A professora ficou ali, sem saber como reagir, pensativa.
No banheiro do colégio, Kaori vomitava a barra de cereal que havia comido naquela tarde. Mesmo essas barrinhas que eram feitas para pessoas que estavam em dieta eram extremamente calóricas, pensava ela para si. No entanto, o barulho de alguém vomitando fez Yoongi, que passava pelo banheiro, parar. Havia algo de estranho naquele barulho, como se a pessoa estivesse fazendo um grande esforço para vomitar. Decidiu entrar, mesmo percebendo que era um banheiro feminino.
Kaori, na terceira divisória, ouviu o barulho da porta se abrindo.
- Professora Ih Na? Não se preocupe, eu estou bem. Só estou me sentindo enjoada, comi bastante antes de ir para a aula. - Mas não foi uma voz de mulher que a respondeu.
- Olá, está tudo bem mesmo? Não é a professora, sou alguém que estava passando, você fez um barulho estranho para vomitar. - Disse a voz.
Então Kaori lembrou da voz do garoto na sala de dança. Ela ficou envergonhada, sem coragem de abrir a porta.
- Sim, estou bem. Pode ir, obrigada.
- Você é a garota que estava conversando com a professora quando bati na sala? - Perguntou ele. Kaori ficou com muita vergonha e com muito medo também, caso ele contasse para a srta. Ih Na que a tinha pego vomitando no banheiro.
- Sim, você é aluno dela? Pode não comentar nada disso com ela? Não quero que se preocupe, eu sempre estou enjoada, é normal. - Naquele momento, Yoongi entendeu que não era enjoo, mas sim bulimia.
- Não sou aluno dela, não mais. Não se preocupe, não contarei nada, mas você não precisa ficar vomitando o que comeu, já é magra o suficiente. Bem, adeus. - Ouviu-se então um barulho de porta fechando e Koari começou a chorar entre soluços. Ninguém entendia, ninguém compreendia o quanto se sentia bem ao saber que estava cada vez mais magra, ninguém tinha noção do que era olhar-se no espelho e sentir nojo da imagem refletida. Ficou ali durante algum tempo, chorando, então reuniu forças para se levantar e limpar a boca. Então foi embora, sem perceber que junto de seu vomito haviam saído alguns filetes de sangue.
Em casa, lembrou-se do garoto. Ele era bonito, tinha algo diferente. Era novo, ela sabia, mas parecia maduro. Na cama, ela não conseguia focar-se na leitura de "Um corpo na biblioteca", de Agatha Christie. Largou o livro e ligou o som, deixando tocar uma peça de Beethoven. Com os pés doendo e as pernas inchadas, dançou suavemente pelo quarto espaçoso, pensando em olhos cansados e cabelos escuros. Quando deu em si, era meia noite, deu graças por seu quarto ter isolamento acústico, se sua mãe fosse acordada com o som da música faria um enorme escândalo. Afinal, sono de beleza para os artistas é essencial. Foi até a cozinha e fez um café, pois não estava sentindo sono.
Sentou-se em uma cadeira de balanço na varanda da casa, olhando para o tempo fechado que ameaçava chuva. kaori sempre se sentia mal quando o tempo estava carregado, era como se todas as tensões se ampliassem e ela sentisse uma angústia infinda em seu peito. Quando percebeu que as gotas começavam a cair no jardim, deixou a xícara de lado e observou o cair suave delas. Sentiu seu peito ficando mais leve, seus pensamntos menos nebulosos e sua cabeça menos ativa. O sono dera as caras, então guardou a xícara e foi dormir.
Na semana seguinte, Koari foi para a aula mais fraca que em outras vezes que aparecera da mesma forma. Fora uma semana difícil, sua mãe estava se preparando para uma apresentação importante, então estivera nervosa e descontara na filha, a qual descontara em si mesma. Ela estava pálida, magra, mas determinada, como sempre. Durante a aula, a professora Ih Na percebeu o estado de sua aluna. Ela executava os movimentos com menos perfeição, parecia cansada, exausta. Por isso acabou terminando a aula mais cedo, alegando que precisava resolver alguns problemas pessoais.
Quando todos os alunos foram embora, percebeu Kaori sentada no chão, fraca. Foi até ela com olhar preocupado, como o de uma mãe.
- Kaori, você está muito pálida. Precisa comer alguma coisa, agora. - Disse ela. A garota, que estava abraçada aos joelhos, não disse uma palavra. - Me espere aqui.
Minutos mais tarde, voltou para a sala com um pote de salada de frutas e um sanduíche natural.
- Por favor, coma. - Pediu Ih Na. Kaori olhou para a comida e sentiu um aperto na barriga, tamanha a sua fome.
- Você pode me deixar sozinha na sala? Eu como tudo, só não quero ir para casa agora. Por favor, fecho tudo depois. - Implorou a garota. A professora estava indecisa, mas percebeu que de nada adiantaria argumentar com uma Kaori exausta. Assentiu, prometeu que ligaria mais tarde e aluna prometeu que atenderia.
- Vejo você semana que vem. Cuide-se, por você, por mim, pelo espetáculo. - Então Ih Na abraçou Koari de lado e foi embora antes de perceber as lágrimas da garota começarem a brotar.
Sozinha, ela olhava para a comida. Sentia fome, mas não tinha coragem de comer. Sentia sono, mas sua cabeça não parava de repassar os xingamentos de sua mãe. Apenas um passo errado de Kaori ao demonstrar a coreografia e uma chuva de sermões jurrou em sua cabeça. Ela se sentia exausta, sem forças sequer para sair da sala.
Então alguém bateu à porta.
- Olá, a professora Ih Na está? - No mesmo momento Kaori reconheceu a voz do garoto da semana passada. Ficou com vergonha de virar-se, pois seu rosto deveria estar enorme por conta do choro.
- Não, ela terminou a aula mais cedo. - Conseguiu dizer apenas. Não percebera que a voz havia saído embargada, mas Yoongi sim.
- Você está chorando? - Perguntou ele, da porta.
- Não, só estou resfriada. - Mentiu. Yoongi percebeu a salada de frutas e o sanduíche na frente da garota, pensou ter entendido a situação. Entrou na sala lentamente e sentou-se no chão, em frente à garota.
- Qual o seu nome? - Perguntou ele.
Kaori não havia percebido a movimentação, tão distante que estava. Levantou a cabeça e viu o garoto que visitara a professora sentado na sua frente, imediatamente sentou-se mais longe. Essa semana ele vestia um suéter preto e seus olhos pareciam atentos.
- Kaori. - Sussurrou ela, a voz rouca.
Yoongi sorriu.
- É um nome lindo, Kaori. Meu nome é Yoongi, Min Yoongi. Posso perguntar o por que de você estar chorando?
- Não quero falar sobre isso. - Rebateu Kaori.
- Escuta, eu sei que você estava vomitando forçadamente aquele dia no banheiro, reconheci sua voz. Posso entender por quê? - Ela estava começando a se sentir desconfortável com aquelas perguntas. Era o tipo de coisa que a professora Ih Na faria, e ela nunca sabia reagir a demonstrações de empatia. Não era o tipo de coisa com a qual estava acostumada.
- Você faz muitas perguntas. Eu havia comido demais naquela tarde. - Respondeu, apenas. Yoongi observava Kaori com atenção, em como ela parecia dura e ao mesmo tempo frágil. Era uma menina linda, não restava dúvidas. E era cheia de problemas, também.
- Sinceramente não creio que você tenha comido tanto. Está mais magra que a última vez em que nos vimos. Não acha que deveria comer esse sanduíche? Ele está com uma ótima cara. - Ele percebera que a menina ficara ainda mais magra e estava genuinamente preocupado. Sabe-se deus porquê, mas a menina provocava empatia nele, parecia tão sozinha abraçada aos seus joelhos...
- Coma, se quiser. - Disse ela, desejando que ele levasse a comida embora consigo.
Yoongi assentiu.
- Quero. - Deu uma leve mordida no sanduíche, enquanto Kaori assistia. A fome estava cada vez maior e sua barriga não parava de doer. - Está ótimo, você realmente deveria comer. Estendeu o sanduíche para a garota, que estava tendo uma luta interna entre a voz de sua mãe e a voz de seu estômago. - Qual é, vamos lá, só um pedaço. Você não vai engordar de um sanduíche. Na verdade, seria bom que ganhasse qualquer grama que fosse, tenho medo que suma aqui na minha frente.
- Por que você tem medo? - As palavras saíram de Kaori sem um filtro entre o cérebro e a boca. Ela sabia que era só uma forma de se expressar, mas aquilo era tão próximo de uma preocupação genuína que ela não pode deixar de se sentir um pouco melhor.
Yoongi riu.
- Não sei. Coma, apenas um pedaço. - E estendeu a mão com o sanduíche para perto da boca dela, que já não estava mais de cabeça baixa e deixava a mostra seus olhos castanhos.
Mas ela tirou o sanduíche da mão dele e o olhou com estranheza. No entanto, mordeu uma vez. Sentiu-se terrivelmente bem com o sal do frango em sua boca, com a textura macia do pão. Mordeu mais duas vezes e começara a se sentir melhor. Haviam quantos dias que não comia nada e o pouco que comia, vomitava? Quatro?
- Você vai vomitar isso depois? - Perguntou Yoongi, subitamente. Kaori tirou os olhos do sanduíche que devorava e fixou nos do menino sentado à sua frente.
- Tem noção do quanto isso é esquisito? Por que você está sentado aqui, na minha frente, me tratando com intimidade, sendo que você nem me conhece? - Arrependeu-se do modo ríspido com que as palavras saíram de sua boca. Afinal, aquilo era ser humano, sentir empatia, ajudar o próximo. Era completamente natural. Yoongi ficou em silêncio, fazendo ela sentir-se ainda pior. - Me desculpe, só não estou acostumada com esse tipo de coisa.
- Com que tipo de coisa? - Perguntou ele.
- Pessoas se importando comigo. Quanto mais estranhos. - Enquanto ela falava, procurava não deixar o olhar dele encontrar o seu, pois começaria a chorar. Fixava apenas no pote de salada de frutas, agora, já que o sanduíche havia terminado.
- Eu sei como é. E por saber, procuro ajudar sempre que posso. A vida real já é dura demais, não precisamos ser uns com os outros também. - Kaori sentiu admiração por aquele garoto de olhos cansados, Yoongi. Depois de ter devorado aquele pote de salada de frutas, decidiu que ainda estava com fome e que comeria alguma coisa, qualquer que fosse, nem que a vomitasse depois, apenas para se sentir bem durante algum tempo.
- Vou fechar a sala, quero comprar mais comida. - Disse ela, levantando-se. Yoongi também ficou em pé, limpando suas roupas. Pegou do chão o pote de salada vazio e o plástico do sanduíche, que Kaori esquecera. Colocou tudo no lixo enquanto ela pegava seus materiais e se preparava para sair.
Kaori fechou a sala e Yoongi foi andando ao seu lado. Ela entregou a chave na portaria, e na saída virou-se para Yoongi.
- Obrigada. - Disse ela. O garoto sorriu. Ela sentiu um leve incomodo no peito.
- Tudo bem. Coma mais alguma coisa, menina Kaori. E não vomite, por favor. Você é uma moça bonita, não ficará bem numa cama de hospital. Bem, até qualquer dia desses.- E virou-se para ir embora, sem olhar para trás. Kaori ainda ficou ali por alguns segundos, olhando para as costas de Yoongi, sentindo-se estranhamente bem. Desejou que o "qualquer dia desses" realmente chegasse, e se chegasse, que não demorasse tanto.
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