Se você esta esperando uma linda, surpreendente e comovente história de amor, sinto ter que lhe informar que esta na história errada. Também não é nenhuma melancólica história vampiresca ou apocalíptica ou assustadora, ou seja lá qual for o gênero que esteja em alta no momento. Estou aqui apenas relatando fatos que aconteceram, nada de mais, histórias trágicas sempre emocionam e comovem as pessoas, mas as tragédias não estão apenas no que as emissoras de televisão e rádio relatam, as tragédias acontecem diariamente em pequenas doses, até tomarem uma grande proporção. Mas enquanto não passar no jornal das sete, ninguém irá se sentir triste.
Sou uma garota como outra qualquer. Nenhuma beleza exagerada ou corpo extravagante, posso dizer que sou normal. Meu nome é Prince. Moro com meus pais e tenho dois irmãos mais novos: Gustavo de dezesseis anos e Miguel de nove. Pra quem é filho único pode achar mágico a sensação de ter parentes que são filhos da mesma mãe que você, entretanto quem tem irmão sabe como eles podem ser um pé no saco, principalmente se você for o mais velho e tiver que cuidar deles. O que é definitivamente, o meu caso.
Semana passada foi meu aniversário de dezoito anos, o que isso mudou na minha vida? Definitivamente nada! Não virei baladeira do dia pra noite, nem ganhei a autoridade para fazer o que quiser sem a permissão dos meus pais, também não tenho dinheiro para esbanjar sem pensar no amanhã. Como disse nada mudou. Exceto pelo fato de que depois de anos me dedicando às matérias as quais não gostava e sendo a nerd da sala, finalmente acabei o que se poderia chamar de escola, se não fosse pelos alunos que mais pareciam um bando de animais selvagens no cio. Não estou generalizando, tem casos bem específicos, como um garoto chamado Pedro que adorava atrapalhar os professores e pagar de machão na sala. Ele adorava arrotar na sala até que um dia ele quase morreu engasgado porque engoliu um chiclete quando foi arrotar, depois disso pensava duas vezes antes de fazer aquilo de novo. Além das “lindas” patricinhas que povoavam a escola. Sim, lindas com aspas porque as garotas eram tão lindas quanto um filhote de sapo. Elas não eram magras como se achavam e usavam jeans dois números menores do que deveriam, realçando assim seu “excesso de gostosura”, como as mais ousadas diziam. Além de prenderem o cabelo tão forte que parecia que iam ser arrancados, fio por fio, da cabeça delas, ficava meio metro de testa que até brilhava de tanto creme que elas passavam. Algumas tinham tão pouco cabelo que quando prendia, ficavam parecendo as falsificações da Barbie de barraquinha.
Maravilhoso era acordar às seis horas da manhã, chegar à escola morrendo de sono e dar de cara com os cosplays do Bozo e Coringa, era ótimo pra se assustar e despertar. Elas eram consideradas as mais bonitas da escola, logo sendo populares. Obviamente nunca fiz questão de ser igual elas, talvez por isso tenham me zuado praticamente minha quinta série inteira e um pouco da sexta ainda. Sim, eu sofri o tão temido Bullying, se bem que “Bullying” é uma palavra bem simpática para o que realmente acontece. Por muito tempo eu fiquei mal por isso, eu poderia ter desistido de tudo, poderia ter entrado em depressão, e por muito tempo eu me achava feia e não gostava de me olhar no espelho. Demorei um bom tempo para finalmente perceber que a opinião que eles tinham sobre mim, não era sobre o que eu realmente era. Eles só queriam me ver mal, então comecei a parar de me importar e com isso pararam de pegar no meu pé. Foi uma época bem complicada. Que bom que a escola acabou!
Também sou obrigada a escutar a típica piada “Ah, agora já pode ser presa!”. Como se eu fosse uma assaltante em série e agora devesse temer esse fato. Essa piada é tão boa quanto a do “É pavê ou pra cumê?”.
Outra coisa que preciso decidir... O que eu vou ser? O que vou fazer da minha vida? Roubar não pode porque agora já posso ser presa! E nessas horas que eu queria voltar aos meus sete anos, onde a única preocupação que eu tinha era sobre qual seria a brincadeira que iria ocupar meu dia.
É muito mais difícil a transição de adolescente para adulto do que a de criança para adolescente (ou no caso, aborrecente). Isso porque além de lidar com as mudanças físicas e emocionais, temos que aprender a lidar com as responsabilidades.
Tenho muitas dúvidas sobre o que vou ser, sobre o que eu quero e isso me tira o sono de muitas noites. Será que vou ser bem sucedida na profissão que eu escolher? E se eu não atender todas as expectativas que tem sobre mim? Meus medos me afligem. Medo de falhar e decepcionar a todos que acreditaram em mim. Medo de não realizar os meus sonhos e me acomodar em uma vida com uma pessoa que eu não ame mais e com um emprego que eu odeie.
O pior é ter que aguentar pessoas que nem se importam se você vai fazer faculdade ou virar vendedor de cachorro quente, opinando na sua vida como se fossem seus pais. Sempre com a mesma frase clichê “Essa profissão não dá dinheiro.” Essa é a maneira que eles encontram de ajudar. Mesmo não ajudando em nada.
No momento minha única ocupação é atormentar Gustavo porque ele esta apaixonado. Parece que ele gosta de uma garota da sala dele chamada Samanta. Vi algumas fotos dela, ela é uma garota bonita, mesmo não sendo a mais popular tem alguns meninos que se aglomeram por ela. Concorrentes para Gustavo! Se eu fosse ele tomaria logo uma atitude, antes que tomem a frente dele. Gustavo se apaixona por garotas como quem troca de cueca e considerando que essa paixão esta rendendo mais que quatros meses, isso com certeza é um Recorde! E claro que eu com meu papel de irmã, não poderia deixar de atormentá-lo com esse assunto.
Ao menos ele gosta de alguém, ao contrário de mim. Já gostei de alguns garotos, mas nada mais que um simples gostar. Pra falar a verdade eu nunca consegui ficar com um garoto. Ok, sem risadinhas. “Nossa, ela já tem dezoito anos e nunca beijou ninguém?”, risadas. Pode-se dizer que sou a garota mais azarada que se poderia existir, além de ter um pai super protetor que se pudesse ficaria comigo 25 horas por dia. E juntando isso, acabei não conseguindo ficar com ninguém.
Uma vez tentei ficar com um garoto no cinema. Eu e mais alguns amigos tínhamos ido, e ele pediu pra ficar comigo, era a primeira vez que um garoto havia pedido pra ficar comigo e eu estava mais nervosa do que o homem aranha quando descobriu que tinha poderes e encheu seu quarto de teia e sua tia queria entrar lá de todo jeito (isso foi meio nerd, mas enfim), naquele dia eu havia comido x-bacon e tomado dois sorvetes, além de pipoca e outras misturadas que eu havia feito. Só de lembrar tenho vontade de enfiar minha cabeça no chão. Acho que por causa do nervosismo a misturada não me fez bem e eu acabei ficando com a maior dor de barriga. Óbvio que eu não contei a ninguém, além de Elen, minha melhor amiga. O garoto era muito gato, mas minha dor de barriga falou mais alto, antes que pudesse ao menos dar um selinho nele, senti minha barriga apertar e tive que inventar que minha mãe estava ligando e eu precisava ir embora.
Outra vez tentei em uma festa. O garoto estava se aproximando para me beijar quando em um impulso ele vomitou nos meus pés.
Entre inúmeras tentativas fracassadas, a última foi a pior. Eu havia me encontrado com um garoto em uma rua vazia, mas de algum modo me viram e contaram pro meu pai. Só me lembro dele chegar expulsando o garoto e me deixar de castigo por um mês. O que não era nada de mais, já que as garotas de hoje fazem coisas bem piores do que beijar um garoto. E isso me coloca no caso raro das garotas de dezoito anos que nunca beijaram ninguém. Não sei se isso existe, pra falar a verdade, as garotas de hoje estão perdendo a virgindade com treze anos ou menos. Talvez eu seja a única. Mesmo assim não acho tão importante, já que não sou a única solteira no meu grupo de amigas. Tem minha amiga Luciana também, mas ela já namorou e agora esta afim de um garoto que faz curso com ela, o que me deixa no topo daquela lista.
A impressão que eu tenho é que as pessoas não se conformam de ver alguém solteiro porque sempre vem com aquelas frase de livro de auto ajuda “Você vai encontrar alguém”, o que só piora tudo. Mas eu definitivamente não me importo. Não preciso de alguém. Meus amigos e família são o suficiente para mim. E isso me poupa de entrar em relacionamentos desgastados, como os que eu vejo diariamente.
Eu estava na minha cama lendo uma de minhas histórias favoritas: A Última Música de Nicholas Sparks. Meus pais estavam brigando pela vigésima vez essa semana e eu ainda não sabia por que meu pai andava tão mal humorado ultimamente. Mesmo me esforçando o máximo não consegui me concentrar na parte em que estava lendo. As vozes dos dois invadiram o quarto com gritos histéricos, impedindo que eu me concentrasse. Fechei o livro e o deitei sobre a barriga, fiquei encarando o teto. Eu não queria ouvir a discussão, não outra vez. Minha cabeça ainda doía por causa da última briga na noite anterior. Geralmente quando eles começam, eu já vou para meu quarto, coloco meus fones e fico ouvindo músicas por um longo tempo. Eu já estava deitada, então só peguei meu celular com meu fone e dei play nas músicas. Aumentei até um volume que eu não pudesse mais escutar a voz do meu pai amaldiçoando tudo e minha mãe reclamando por causa dos palavrões. Após algumas músicas tentando relaxar, adormeci. Quando acordei estava na metade da música “Misunderstood” do Bom Jovi. Dei pausa e tirei os fones, esfreguei os olhos antes de olhar para a tela de luz forte novamente. Eram oito horas. Eu não sabia dizer se ainda eram oito horas ou se já eram oito horas. Levantei e abri a porta desconfiada. Estava tudo em silêncio, exceto pelas vozes da TV que vinham da sala. Fui até lá, minha mãe estava sentada em uma ponta do sofá, acariciando os cabelos de Miguel que estava deitado com a cabeça em seu colo e os pés no colo de Gustavo, que estava sentado na outra ponta.
-Cadê o pai?- perguntei me jogando no sofá menor, talvez nem fosse seguro perguntar.
-Saiu. – Foi Gustavo quem respondeu.
Era comum meu pai sair à noite e voltar tarde. Eu ficava preocupada, mas nunca falava nada. Minha mãe mal conseguia dormir no começo, porém com o tempo isso se tornou cada vez mais frequente e depois de tantas brigas ela acabou deixando de lado, afinal ele preferia ficar com as pessoas na rua do que com sua própria família, era o que ela dizia. Eu tentava não pensar tanto em como o casamento deles se desgastou, eu assisti tudo. Eu ainda me lembrava de meu pai e minha mãe feliz, mesmo com todas as dificuldades que sempre enfrentaram. Mas agora, tudo o que restava era desilusão, e eu sabia que eles só estavam juntos ainda por causa de mim e de meus irmãos. Não respondi nada, apenas fiquei encarando a TV, pensando em como tudo aquilo havia desabado.
Passado alguns minutos de um silêncio incômodo, Miguel começou a reclamar de fome.
-O que você quer comer?- Minha mãe perguntou ao se levantar.
-Pão com manteiga e queijo derretido e leite com achocolatado. – Era o que ele sempre comia desde sempre. Não sei por que ela ainda insistia em perguntar.
Os dois levantaram e foram em direção à cozinha. Suas sombras se misturaram com a escuridão da cozinha. Assim que acendeu a luz o som do telefone ecoou pela sala. Chamou duas vezes até que Gustavo, com toda sua animação de um bicho preguiça para atender conseguisse enfim pegá-lo. Ele atendeu e passou para minha mãe. Era difícil saber sobre o que se tratava, ela só dizia coisas como “Ah, claro.”, “Podemos sim, ela precisa de nós.”
-Quem era?- perguntei quando ela veio deixar o telefone após uma hora de conversa.
-Sua tia. Sexta a noite vai ser o aniversário da sua priminha, Sophie. Ela quer que a gente vá. – Disse meio desanimada.
-E nós vamos? – Perguntei quase que em resmungo.
- Eu sei que eu vou.
Minha mãe não era do tipo que obrigava a gente a fazer o que não queria, mas óbvio que ela queria que fosse toda a família. E não seria eu quem estragaria tudo, o que significava, sim nós vamos.
-Sabe quem vai estar lá?- Ela continuou.
-Quem? – Pensei que seria alguma amiga dela.
-Bárbara. Sua tia Pâmela sofreu um acidente e esta em coma em um hospital e Bárbara virá passar um tempo conosco. – Eu pude perceber a surpresa e tristeza em sua voz e o porquê de ela fazer questão de ir lá.
Mesmo assim ninguém ficou mais surpresa do que eu. Pâmela não é realmente minha tia, ela é minha prima de segundo grau, sendo de primeira da minha mãe, o que faz Bárbara minha prima de terceiro grau. Mas que pra mim era como uma irmã. A vida pode ser tão engraçada e irônica, dando e nos tirando coisas e pessoas que às vezes fico até aborrecida. Mas então vejo o quanto pude crescer me livrando do que me tornava dependente. Ela costumava vir aqui em todas as férias de meio e fim de ano. Nos feriados também nos encontrávamos. Algumas de suas roupas até ficavam aqui para que ela não precisasse ficar levando e trazendo malas. Crescemos juntas, nos falávamos todos os dias. Até que um dia tudo mudou. Algo aconteceu que nos afastou, ou melhor, a afastou. Um dia que nunca mais sairia da minha mente, nem da minha, nem da de qualquer outra pessoa presente naquele momento.
Era um domingo como outro qualquer, estávamos na casa de Bárbara em um grande almoço em família. Tio Pat, era pai dela, um senhor de quarenta e cinco anos, cabelos grisalhos, mas feições de um rapaz de trinta, esguio e charmoso. Sempre dizia a coisa certa na hora certa. Era o tipo de pessoa que sempre tinha algo a dizer. Estávamos todos rindo e brincando quando ele disse que tinha um importante comunicado para fazer. O almoço acontecia na enorme varanda da sua casa, o sol iluminava o contorno firme de seu rosto, seus olhos de castanho escuro passaram a ser castanho mel. Todos o observavam, enquanto ele estava de pé diante de nós. Naquele instante, parecia ainda mais novo. A última vez que ele havia dito que tinha um importante comunicado foi quando descobriu que sua irmã mais velha, tia Beti, tinha diabetes tipo dois e desde então ele ficaria responsável pela alimentação de todos ali, já que ele foi cozinheiro por vários anos. Mesmo ela dizendo que não era necessário se preocupar com ela, ele não mudou de ideia e cumpriu sua palavra.
Depois de alguns segundos ele deu um sorriso sarcástico. Eu já imaginava que fosse algo ruim, mas o que veio foi pior que ruim, foi péssimo. Ele deu a pior notícia que uma família feliz, em um almoço de domingo poderia receber. Tio Pat havia sido diagnosticado com câncer nos pulmões por fumar demais. O irônico era que fazia uma semana que ele havia decidido parar de fumar. Foi um choque para todos, um tiro de canhão contra o peito. Mesmo assim ele não desanimou por nenhum segundo, sempre dizia que tudo acabaria bem. Bárbara ficou inconsolável, era como se tivessem tirado o chão sob seus pés. Ela estava paralisada, as lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto, estava sem palavras. “Se não podemos mudar as coisas, ao menos podemos sorrir e isso já muda alguma coisa”, era o que ele sempre costumava dizer. E foi isso o que ele fez. Enquanto todos choravam e se lamentavam a sua volta, ele se mantinha firme, sempre sorrindo e dizendo que queria aproveitar ao máximo seus últimos dias. Infelizmente o câncer já havia se espalhado e não havia mais o que fazer.
Depois desse dia eu fui vendo Bárbara cada vez menos. Ela dedicava todo o seu tempo livre ao seu pai, o que fez ela se afastar de mim. Eu entendia perfeitamente a situação, mas ainda assim sentia falta dela. De diariamente passamos a nos falar duas vezes na semana e então três vezes no mês. Até que o tão temido dia chegou. Não houve aviso, tio Pat morreu dormindo, sem ao menos ter a chance de uma última palavra. O velório foi na tarde daquele mesmo dia.
Depois daquele dia nunca mais nos falamos. Ela não atendia mais as minhas ligações. Nas férias de inverno daquele ano ela não veio. Nem daquele ano e nem nenhum outro. Eu ainda fui a casa dela, mas ela nunca estava sempre quem me atendia era Pâmela ou Ana, a empregada. Então simplesmente parei de insistir e cinco anos se passaram desde então. Minha mãe mantinha contato, mas eu preferia não saber.
Eu ainda estava boquiaberta quando minha mãe continuou:
-Eu sei. Inacreditável, não?
-Por que aqui? – Eu estava ficando nervosa. Veio-me a cabeça as lembranças do enterro. Cheiro de flores do campo e rosas vermelhas. Uma multidão vestindo trajes pretos e uma garota chorando ao lado do caixão de seu pai. Foi a última vez que a vi. Ela foi embora antes que eu pudesse falar com ela. – Depois de tudo, simplesmente a mandam para cá e acham que esta tudo bem?! – Eu me controlava para não gritar.
Minha mãe fechou os olhos e suspirou. Ela sempre fazia isso quando sentia que estava perdendo o controle da situação.
-Ela perdeu o pai e agora a mãe esta em coma no hospital. Somos a única família que ela tem. Essa é uma boa chance de vocês se reaproximarem. Ana disse que seria bom para ela vir ficar conosco, em vez de ficar na casa dela sozinha, sofrendo.
Se tinha algo em que minha mãe era boa, era chantagem emocional. Mas não dessa vez. Ela melhor do que ninguém sabe o quanto eu sofri. Senti muito a falta dela e isso doeu muito. Mas como tudo na vida, o tempo passou e a dor foi diminuindo, se tornando suportável. Restando no fim, apenas lembranças do que um dia fez parte da minha vida, como uma cicatriz de um profundo machucado.
Ana é empregada na casa de Bárbara a mais de dez anos. Ela sempre dizia como era linda nossa união e de como nossa amizade duraria para sempre. Não era a toa que ela queria mandar Bárbara para cá.
Acontece que eu não me conformo. Estou magoada pelo fato de ela nunca ter me procurado. Nem no meu aniversário, que era quando ela sempre inventava alguma coisa maluca para mim. Teve uma vez em que ela recolheu vários vagalumes e os espalhou pela sala, trancando portas e janelas ao escurecer. O objetivo era pegá-los com a luz apagada. Devo ter batido nas coisas umas cinquenta vezes, mas foi bem legal, só não a parte dos hematomas no dia seguinte. Essa é uma ferida que eu não sei se vai realmente cicatrizar algum dia. Mesmo com tantos pensamentos turbulentos, fiquei quieta enquanto minha mãe continuava a falar. Já era quarta à noite, o que me dava um dia até nos encontrarmos. O que farei quando isso acontecer eu não sei, mas voltarmos a sermos melhores amigas estava fora de cogitação. Definitivamente.
Meus dias eram todos iguais. Eu ia deixar Miguel na escola porque meu pai saia cedo pra trabalhar, enquanto minha mãe vai deixar Gustavo. Ao voltar tomo café com minha mãe e depois volto para a cama, que essa hora já esta gelada, fico até as dez.
Minha mãe trabalha com costura ou como doméstica, tudo para ficar o mais tempo possível em casa ou próximo de casa. Ela até tentou trabalhar fora, mas Gustavo é epilético e sempre que tem crise, apenas ela sabe socorrê-lo.
O dia não demorou muito para passar. Não faço nada além de assistir filmes e séries e tocar violão. Até comecei a trabalhar um dia depois que terminei a escola, mas depois de dois meses em uma rotina de domingo a domingo sai ao completar meus dezoito, o que não faz muito tempo. Mesmo assim a rotina já se tornou enjoativa e eu preciso arrumar outro emprego.
Conforme a noite ia chegando a hora também estava cada vez mais próxima. Eu não sabia o que exatamente deveria sentir. Era uma mistura de raiva e frustração. Por mim eu nunca mais a veria, definitivamente. Eu já estava deitada na minha cama, sem conseguir dormir, as lembranças invadiam meu pensamento sem controle algum. Todos os momentos que passamos juntas até o triste incidente. Não sei bem quando nos vimos pela primeira vez, nos conhecemos quando éramos bem pequenas, só sei disso porque minha mãe contava essa história quase sempre. Não tenho essa lembrança, porém pelo o que ela conta, se tivesse acontecido atualmente teria terminado em briga, com certeza seríamos inimigas mortais.
Era aniversário de três anos dela, dois dias depois do meu, ao qual ela foi e eu não a vi porque, segundo minha mãe e minha tia, tudo o que ela fazia era chorar e não saia de perto da mãe dela. Estava no começo da festa e resolveram distribuir doces para as crianças, todos ganharam exceto eu e ao invés de eu pedir para a tia dos doces eu peguei o de Bárbara antes que ela pudesse colocá-lo na boca, então eu o levantei, balancei na cara dela e comi um pedaço. Obviamente ela começou a chorar desesperadamente, eu fiquei tão assustada com a reação dela que tentei fazê-la parar de chorar. Como ninguém entendia direito o que ela queria dizer, pensaram que outra criança havia roubado o doce dela e eu estava dividindo o meu. O que não era necessariamente verdade.
Depois que ela se acalmou juntaram nós duas para brincarmos com as outras crianças, por algum motivo que nem minha mãe soube, não quisermos brincar com as outras crianças, ficando apenas nós duas, acabamos nos entendendo e dividindo doces. No final eu até assoprei a velinha com ela. Se eu soubesse como tudo teria acabado preferiria ter isso até a moça dos doces.
É realmente engraçado pensar em como o tempo passa rápido e a gente nem percebe. Tentamos nos convencer de que vai demorar, de que não vai chegar a hora, mas em um piscar de olhos já estamos vivendo o momento que tanto iria demorar. Hoje eu tenho dezoito, mas sinto como se fosse ontem que eu estava com sete e acordava cedo só para assistir desenhos. Logo terei vinte, trinta, talvez sessenta anos e o que terei feito nesse tempo? É o que me pergunto todos os dias. Vou realmente conseguir realizar meus sonhos ou a realidade irá despedaçá-los ao passar dos anos? Tenho medo de pensar na garota determinada que eu era e que por algum motivo, talvez, não seja mais. Não quero me acomodar, quero poder fazer o que tenho vontade, sem me sentir presa ou pressionada. Quero fazer algo que eu realmente ame e quando chegar o fim do dia eu possa dizer “Hoje valeu a pena”.
É depressivo pensar nisso, entretanto é inevitável. Não podemos com o tempo, ele sempre correrá mais que nós e quando finalmente o alcançarmos, já vai ser tarde, tarde demais. Esse mesmo tempo que me fará reencontrar com uma das pessoas que mais amei nessa vida. Ainda não acredito que cinco anos se passaram.
Lá estávamos nós. Cinco pessoas carregando o peso da casa nas costas. Iríamos passar a noite lá porque é muito longe e viríamos embora sábado de manhã. Estávamos no ponto de ônibus esperando e só de pensar no trajeto todo até desanimava, mas como minha mãe havia colocado na cabeça que ia, todos iriam também. Miguel era o peso leve, então tudo o que carregava era o pastel que meu pai havia comprado pra ele. Fazia um tremendo sol, e a sensação era de estar assando em um forno. Gustavo era o do contra da família. Quando estava frio ele ficava de bermuda e regata e quando estava calor, ele vestia seu moletom com touca. Eu sentia três vezes mais calor só de ver aquilo. Infelizmente não tínhamos carro o que só piora tudo.
Pra uma família grande se deslocar para lugar longe sem carro, tinha que madrugar. Acordamos seis horas da manhã para que desse tempo de todos se arrumarem, mas àquela hora o sol já estava estalando no couro. Realmente não sei qual o problema do meu irmão que em todo lugar que ele chega quer mijar. Estávamos perto de uma lanchonete ele havia bebido uma garrafa de caldo de cana e comido dois pastéis. Não deu outra, a vontade de ir ao banheiro foi grande e ele não aguentou esperar. Três ônibus passaram até ele voltar e nisso eu já queria mijar também. O ônibus que a gente queria deveria demorar em torno de vinte minutos para passar, dez minutos já haviam passado. O que me dava dez minutos para ir fazer o que tinha de ser feito e voltar. Tentei avisar meus pais, mas eles estavam entretidos demais em uma conversa com Miguel sobre desenhos animados. Aproveitei a distração e fui rápido à lanchonete.
Levei a mochila junto com medo de que não a olhassem. Comprei uns bombons para disfarçar e adentrei o corredor até achar as portas dos banheiros. Devo admitir que mesmo bem limpo algumas coisas ali pareciam bem velhas, tipo a porta e a pia. Não dava tempo de ficar examinando, mijei o mais rápido que pude. Tentei abrir a porta com as mãos ainda molhadas por ter lavado, mas a maçaneta era redonda e minhas mãos apenas deslizavam. Puxei, rodei e nada, bati na porta e chamei e ninguém me escutava. Então coloquei meu pé na porta e puxei com toda a força que tinha nas duas mãos. A maçaneta saiu e não destrancou a porta. Entrei em desespero, meus pais iam sair e eu ficaria ali... Não, teriam que sentir minha falta, mas e se eles fossem procurar no lugar errado? Peguei meu celular para tentar ligar, estava sem sinal. Passaram-se uns dez minutos até que outra garota precisasse usar o banheiro e eu pudesse pedir ajuda. Não demorou muito para que conseguissem abrir. Sai com tudo, arrastando a mochila, que aquela altura, tinha me arrependido de não ter deixado com eles, ao menos seria um peso a menos.
Ao sair meu celular recuperou sinal. Liguei para meu pai.
-Alô?- Ele atendeu.
-Pai? Cadê vocês? - Não estavam mais no ponto.
-Como assim? Estamos no ônibus. Eu não estou te vendo, você sentou na frente?
-Pai, eu nem entrei no ônibus.
-O quê foi?- Escutei a voz da minha mãe de fundo.
-Acho que esquecemos a Prince... - ouvi meu pai falar, a voz parecia distante, acho que ele não queria que eu ouvisse.
-PAI! VOCÊS ME ESQUECERAM!? COMO PODE ESQUECER SUA FILHA!!!
Escutei risadas.
-Calma mulher, você tem um bilhete, sua mãe vai passar as instruções e a gente se encontra lá.
-Eu não acredito nisso.
Minha mãe passou todas as instruções, eu já fui várias vezes, mas nunca decorei o caminho. Até porque era muito tempo pra chegar lá. Eu queria voltar para casa, mas minha mãe me fez jurar que ia, então não tive escolha. O ônibus demorou em torno de uns trinta minutos para chegar, e para a minha surpresa, estava mais lotado do que metrô em horário de pico. Não consegui me sentar tão cedo e quando finalmente havia esvaziado um lugar ao qual estava ao meu alcance, sentei por apenas dois minutos até uma senhora subir para o ônibus e eu ter que levantar pra ela sentar, afinal, todos fingiam que não tinham visto. Acabei indo em pé o caminho todo. Ao chegar ao terminal, estava um inferno de gente, acho que nem em liquidação juntava tanta gente em um lugar só. A minha mochila estava muito pesada e as minhas costas já estavam doendo. Era preciso atravessar o terminal pelo subterrâneo para chegar ao outro lado e conseguir pegar outro ônibus. Ao descer me deparei com vários camelôs, brincos, pulseiras, DVDs, só faltavam os pastéis e a feira estaria completa. Confesso que eu estava com muita sede e parei e um dos últimos para comprar uma garrafa de água. Coloquei minha mochila no chão por alguns instantes, o tempo de eu pegar o dinheiro, pagar e beber a água. Mas antes que pudesse encostar a boca da garrafa na minha, vi um vulto passando e minha mochila sendo levada com ele.
-MINHA MOCHILA!! – Gritei desesperada, ninguém ligou.
Era um garoto magro de camiseta branca e bermuda bege. Não tive tempo de pensar, apenas de agir. Larguei a garrafa e sai correndo atrás. Mesmo a mochila parecendo que tinha dez quilos de concreto, o garoto era ágil e rápido. Desviava das pessoas como um carro de fórmula 1. Eu gritava por ajuda, todos apenas olhavam, comentavam e por assim deixavam. Corri todo o caminho, subi as escadas e acabei do outro lado, por algum motivo que eu ainda não havia entendido como o tempo havia mudado de sol escaldante do nordeste para tempo chuva de novembro, parece até nome de música. O garoto continuava correndo até entrar em um ônibus qualquer que estava partindo. Tentei acompanhar, mas quando cheguei ao ponto o ônibus já havia partido, outro que estava atrás passou em cima de uma poça fazendo a água jorrar em todos que estavam por perto, no caso eu. Aquele com certeza estava sendo o melhor dia da minha vida. Eu havia acordado cedo pra caramba para ir à casa de uma tia que morava no fim do mundo para reencontrar minha prima com que eu não falo há uns cinco anos, fiquei presa em um banheiro tendo que seguir no busão lotado sozinha, logo sou roubada e agora estava no meio do nada sem saber como chegar lá. Eu havia desistido da minha bolsa e peguei um ônibus. Só percebi a burrada que eu tinha feito após duas horas de viagem, onde acabei em um lugar que me parecia muito familiar... Droga! Eu havia ido para o caminho errado e pegado um ônibus de volta, eu estava de volta ao meu bairro, quase perto do ponto do banheiro. Só podia ser brincadeira. Já era bem umas duas da tarde e eu estava morrendo de fome e sem nenhum dinheiro.
Meu celular estava descarregado e eu não tinha mais carregador, minha vontade de voltar pra casa era cada vez maior. Nem esperei chegar ao ponto final, desci antes e peguei o mesmo ônibus de horas antes, desci no mesmo terminal e dei a volta certa dessa vez. Após muitas perguntas e informações erradas consegui chegar até o bairro da minha tia, do ponto em que eu desci era só seguir dois quarteirões à frente, atravessar a avenida e virar a esquerda, depois dez minutos em linha reta e estava na casa dela. A chuva já havia parado e eu estava ensopada, minha maquiagem derretida até o pé e minha escova havia virado mingau. Era definitivamente meu dia de sorte.
Cheguei à minha tia em torno das cinco horas da tarde. Meus pais estavam lá ajudando com as coisas, enquanto meus irmãos brincavam. Minha tia me abraçou e me doou toda sua solidariedade ao saber do ocorrido. Minha mãe ficou desesperada, mas feliz a me ver bem.
Não demorou muito para que acontecesse o inevitável. Eu ainda estava na sala respondendo ao questionário dos meus pais quando ela apareceu. Eu não tinha a visto, ela estava bem atrás de mim.
-Prince? – Até a voz me era estranha, mas familiar ao mesmo tempo, ela sempre teve a voz rouca.
Levantei-me e a encarei surpresa ainda. Eu ainda estava um trapo, não havia tomado banho, nem nada, ao contrário de Bárbara, ela estava simplesmente... Irreconhecível. Um sorriso meio sem jeito veio em seu rosto, seus olhos não escondiam sua dor. Ela deu um passo à frente e me abraçou, eu continuei estática, como estátua viva em meio a uma praça. Ela havia mudado bastante. Estava mais magra, seus cabelos de curtos, lisos e escuros foram para compridos, ondulados e cor de mel, alternando entre tons claros e escuros. Seus olhos azuis como o céu em um dia ensolarado e seu corpo avantajado. Estava bem diferente da garota gordinha, com cabelo chanel que eu me lembrava. Ao me soltar me analisou dos pés a cabeça.
-Nossa! Como você esta diferente!- Eu não sabia se ela estava zombando do meu estado ou estava se referindo ao fato de eu também ter mudado ao longo dos anos. – Esta mais bonita do que eu me lembrava. – Me senti envergonhada por ela estar toda arrumada e eu naquele estado.
-Eu mudei? – Disse por fim, quase que em um engasgo – Olha só pra você! – Eu ainda estava em um estado de choque. Se passasse por ela na rua, nunca a reconheceria, definitivamente.
-Ok. Nós duas mudamos. – Ela riu.
Eu forcei um sorriso que mais parecia uma expressão de dor. De fato eu também mudei. Comparado a quando eu estava no ensino fundamental dois, estou bem melhor agora. Cabelos longos, no meio das costas, volumoso, quase nada de corpo, além de usar óculos, o que fazia eu me sentir mais feia ainda. Agora eu o cortei um pouco acima dos ombros, um corte degradê, repicado nas pontas. Parei de pintá-lo, então ele esta no tom natural, castanho escuro assim como meus olhos. O pequeno período que trabalhei serviu para ganhar corpo, ainda assim algumas coisas não mudam como o fato de eu ainda precisar de óculos, mesmo que só pra descanso.
Percebi que eu ainda estava parada sem me mexer quando minha mãe chamou minha atenção.
-Prince, vai tomar um banho que logo as pessoas começarão a chegar.
-Eu não tenho mais nada meu. – Suspirei.
-Eu posso te emprestar, vestimos o mesmo tamanho agora. – Ela passou a mão na barriga, como se quisesse mostrar que emagreceu.
Não tive outra escolha além de aceitar. Ela me emprestou uma saia de cintura alta preta de renda, um cropped de manga longa listrado de preto e branco e botas sem salto. Não refiz a maquiagem, não tive paciência de ficar pedindo, ficaria sem maquiagem mesmo.
Ajudamos a levar as comidas para o terraço da casa, já havia cadeiras e uma enorme mesa com algumas coisas como saladas, doces, arroz, carne com batata entre várias outras coisas. O meu tio estava acendendo a churrasqueira para começar assar as carnes. O sonho da minha tia era ter um terraço, após juntar dinheiro para fazer como sonhava, demorou três meses para ficar pronto.
Sophie era a mais animada, corria com Miguel para todos os lados. Ela estava fazendo nove anos, era meses de diferença entre ela e Miguel.
Os convidados começaram a chegar e logo a festa estava lotada, com pessoas comendo, bebendo, rindo e conversando. Eu não havia trocado nenhuma palavra com Bárbara além do essencial. Mas podia perceber ela me olhar de soslaio sempre que eu passava ao lado dela. Na verdade todos pareciam se divertir menos eu. Eu estava em um canto com um copo de refrigerante assistindo Miguel brincar com as crianças da idade dele, Gustavo conversa com um garoto que ele havia feito amizade, minha mãe estava na roda das mulheres mãe de família e me pai tocava violão com alguns amigos. Bárbara também havia se enturmado rápido, dom que ela sempre teve, aonde chega todos gostam dela, eu era a única isolada.
Estava cansada de vê-los se divertirem, virei na sacada para ver o bairro quando percebi de canto de olho alguém se aproximar. Uma brisa veio entre meus cabelos e um cheiro de amêndoa e gardênia acompanhou.
-Gosto de noites assim. – O céu estava bem estrelado e a lua cheia, iluminando bem as ruas e ali onde estávamos, ainda assim não seria o suficiente sem as luzes acesas.
Olhei para o lado. Era um garoto bem arrumado, porém nada formal, ele segurava um copo enquanto se mantinha apoiado no parapeito do muro olhando o céu.
-Meu nome é Sebastian. – Ele tinha cabelos cor prata, mas que combinavam perfeitamente com sua pele branca, realçando-a. Curtos e bagunçados, seus olhos eram de um azul quase cintilante, mais escuro do que os de Bárbara. Ele me lembrava um personagem de um filme de animação que vi tempos atrás... Jack Frost de “A Origem dos Guardiões”. Ainda assim algo nele o tornava atraente, talvez o sorriso, o olhar, eu não sabia ao certo. A voz dele era calma, confiante e marcante, parecia de um locutor de rádio.
-Prince. – Respondi tomando um gole de refri e olhando para frente.
-Então Prince – Ele se virou para mim, ainda apoiado – O que uma garota linda como você faz aqui sozinha? – Seu olhar era definitivamente sedutor.
Mordi meu lábio inferior de leve, analisando e escolhendo as palavras cuidadosamente.
-Estou pensando apenas, nada de mais. – Respondi por fim.
Ele soltou uma risada fofa, talvez confusa.
-Você vem pra uma festa pra ficar pensando ao invés de se divertir?
-Não queria estar aqui, mas era importante para uma pessoa que amo, então... – Não terminei a frase, mas eu só estava ali por causa de minha mãe que tanto queria esse reencontro de merda.
-Entendi. – Deu-se uma pausa por alguns segundos - Esta a fim de descer um pouco?
Meu coração acelerou. Olhei a minha volta e todos estavam distraídos. Olhei para seus encantadores olhos azuis como safiras. Dei um leve sorriso após ver Bárbara me encarar e respondi que sim.
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