Capítulo X
Estou na empresa desde às 6h30. Adormeci rapidamente ontem à noite, com o diário sobre as cobertas, ao meu lado. Quíron me disse que Percy estará aqui às 9h00, então permaneço em minha sala, a porta trancada, tendo em vista que são 8h30.
Meus dedos tamborilam nervosamente sobre a mesa e, a cada 5 minutos, meus olhos percorrem o caminho até os ponteiros vermelhos do relógio de parede.
O meu serviço como arquiteta nunca foi tão estupidamente exultante.
Levei a xícara de café aos lábios, soprando o vapor que rodopiava acima dele.
Assustei-me quando meu celular apitou, fazendo-me derrubar o café quente em minha roupa.
- Ai, ai, ai! – Afastei a cadeira e dei alguns pulinhos, tentando amenizar a quentura do líquido, apanhei um lenço dentro da bolsa e limpei a mancha escura do tamanho de uma bola de tênis.
Mirei o celular, as sobrancelhas unidas e uma carranca.
“Uma nova mensagem. Thalia Grace”.
Cliquei na tela e a pasta logo se abriu.
“Annie, chegarei ao meio-dia.
By: Thalia”.
Acionei o teclado e pus-me a responder:
“Ok, Thalia, estarei aguardando.
Caso você chegue e não me encontre em casa, vá ao meu trabalho.
Beijos, Annie”.
Fitei novamente o relógio e depois voltei a atenção para a tela do notebook.
O fato de eu ter sonhado com Percy não ajudava em nada. As sensações foram reais, e senti como se estivesse mesmo no local. Também senti meus dedos tocarem a superfície da máscara.
Já disse que tudo que envolve o Percy é estranho?
Entretanto, foi um bom sonho.
❤
Estou subindo uma escada de madeira rústica e grossa. Lembro-me de perpassar o vestíbulo e chegar aqui. Os balaústres estão decorados com fitilhos brancos e dourados. O som dos meus passos ecoa pelo local, e percebo que meus pés descansam em um confortável salto scarpin azul veludo. Também uso um vestido, longo e róseo, a saia é armada e babadinhos adornam a barra e balançam conforme meus passos se aprofundam. Sinto um leve incômodo em meu ventre, onde o vestido me pressiona. O tecido é leve e macio, algo como seda. As janelas estão abertas, por onde entram ventos de outrora, preterindo silvos ao transporem os caixilhos de ferro.
Do teto, pende um longo estandarte azul, amarelo e vermelho, e há um símbolo que, a princípio, não reconheço, mas recorri às aulas de Geografia da infância e concluí que era referente à Romênia. Não há ninguém no vestíbulo, mas ouço burburinhos provenientes do andar de cima, e sons de violinos e uma orquestra atravessam as paredes.
A medida que alcanço o fim da escadaria, vejo um aglomerado de pessoas, presumivelmente da alta burguesia, levando em conta suas vestes à rigor. As damas de vestidos, os cavalheiros de smoking e gravatas borboletas, e todos possuem algo em comum: máscaras. Máscaras diversas. Há uma colorida e pomposa máscara sobre o rosto de uma mulher baixa e corpulenta.
Instintivamente, levo as mãos ao rosto e sinto uma textura diferente. Uma máscara fina esconde o meu rosto até a ponta do nariz. Por algum motivo, sei que ela é escura e que há pedrinhas em suas extremidades, pois toco-as com os dedos.
Alcanço o último degrau. Faz-se silêncio súbito e todos se viram em minha direção. Eles recuam com seus respectivos pares e se curvam, num gesto reverenciador.
Um grande e lustroso lustre de cristal no teto ilumina o recinto, e meus pés me conduzem pelo caminho livre à frente.
Parado a 25 passos de onde estou, há um rapaz elegante e atraente. Ele traja um smoking azul marinho e metade de seu rosto está encoberto por uma máscara branca. Seus cabelos são negros como a noite que afoita os peregrinos nas estradas lá fora.
Fico quase que imediatamente atraída, e caminho até ele. Seus olhos são de um verde esmeralda lascivo, os quais me fitam intensamente e logo percebo que o rapaz é, nada mais, nada menos, que Perseu Jackson.
Então, ele sorriu. Um sorriso de canto e que fez meu coração disparar, eu o odiei e amei ao mesmo tempo.
❤
- Compreendeu o motivo daquilo ter ocorrido? – Os olhos pequenos de Quíron me fitaram através das pálpebras semicerradas.
- Hum... Sim, entretanto, ainda é um pouco confuso. Não há como ingerirmos comida humana. Veja bem, não há relatos de que um Não Morto tenha feito isso e, se me permite dizer – pigarreei, ajeitando a gravata – foi algo estupidamente idiota. – Quíron soltou um riso nasalado.
- Jovem rapaz – ele começou – se isso nunca houvesse ocorrido, eu não lhe teria dado uma resposta objetiva.
Eu meneei a cabeça.
- Faz sentido, mas mesmo assim...
- Ocorreu com o autor do livro em que estudei sobre vocês – de certa forma, o “vocês” de Quíron me ofendeu.
Ele vasculhou na gaveta de sua escrivaninha, retirando de lá uma chave pequena e prateada. Caminhou até uma estante de livros, ao fundo da sala, e afastou dois dos livros da terceira prateleira. Alteei as sobrancelhas ao constatar que no fundo havia uma fechadura, onde Quíron encaixou a chave e a girou. Uma parte, em formato retangular, se abriu, revelando um livro de capa preta e letras douradas. Era grosso, e deduzi que haviam mais ou menos 300 páginas.
Quíron pegou o livro e tornou a fechar o fundo oco da prateleira. Na capa estava estampado o desenho de duas presas (Quíron passou o indicador sobre elas) e logo acima se lia “Os Não Mortos na sociedade”.
- Creio que já o tenha conhecido – bateu o indicador sobre algumas letras miudinhas no canto inferior direito da capa. – Aristocrata, nascido na Tchecoslováquia, Alucard Byron Dervish.
Eu franzi as sobrancelhas, estupefato.
- Conde Byron?
- Exatamente. Byron o datilografou antes de morrer. E que morte terrível, devo dizer – Quíron meneou a cabeça, uma falsa comiseração avassalou sua face. – Uma estaca certeira no coração. Pobre, ah sim, pobre rapaz. Tentou se esconder, mas já estava na lista de Van Helsing.
Abraham Van Helsing. Nome conhecido e temido entre os Não Mortos.
- Me pergunto porque você não quis seguir o caminho de Helsing – regurgitei a palavra com escárnio. – Seus estudos foram todos calcados na brilhante filosofia do grande caçador de vampiros.
Quíron sorriu de canto.
- Sim, um exímio caçador. – Anuiu com veemência e seus olhos se estreitaram furtivamente. – Morte natural, pelo menos é isso que os livros afirmam. Diferentemente de Helsing, caro Jackson, sou adepto a uma curiosidade incomensurável, e só me oporia aos Não Mortos apenas se eles se opusessem a mim.
- Graças ao Drácula que somos amigos, Quíron – ri e ele me acompanhou. – Senão eu já estaria em um caixão nas profundezas do Tártaro!
- Ah! Ah! Ah! Sossegue, não lhe farei mal algum, Percy. – Houve uma pausa. – Mas, então – ele folheou o livro. – Byron, assim como você, também foi um meio-sangue transformado em puro e, assim como você também, pôde provar comida humana. Ele viajou pelo mundo inteiro, procurando por Não Mortos que tivessem o mesmo sintoma e, após várias pesquisas, concluiu que a coisa mais importante para nós é a que nos move. Lembranças, pessoas importantes... tudo que têm de apreço é capaz de mudar e afetar o consciente de vocês, vampiros – ele apontou o livro em minha direção.
- Mas isso seria afirmar que não somos completamente...
- Não. – Redarguiu, a expressão grave. - Vocês são seres imortais. Isso apenas revela que são adaptáveis aos dois mundos, o meu e o seu – ele fez um gesto em minha e na sua direção. – Isso os torna mais perigosos... – ele murmurou a última parte, mas deve ter esquecido que isso não me impediu de escutá-lo.
_
- Annabeth está aqui? – Indaguei.
- Sim, está em seu escritório. Chegou cedo e não saiu mais de lá. Precisa falar com ela?
Meus ouvidos captaram uma movimentação ao lado de fora da sala de Quíron; o eco de saltos femininos. Este se silenciou abruptamente próximo a porta. Aguardei alguns segundos, achando que ela fosse transpô-la.
Virei-me para Quíron, um sorrisinho assomando meus lábios.
- Ah, sim. Eu e Annabeth – olhei de soslaio para a porta, aumentando propositalmente o tom de voz – temos assuntos importantes para tratar.
Ouviu-se um estampido e o ruído de algo se chocando contra o piso. Soltei um riso abafado.
- Quíron, infelizmente, minha hora chegou. – Levantei-me e caminhei até a saída e, coincidentemente, o barulho dos saltos retornaram, se afastando apressadamente. Abri a porta e vislumbrei um vulto louro virar o corredor em direção à entrada do estabelecimento. – Ah, Annabeth... – ri, tornando a me despedir de Quíron e finalmente me retirando.
❤
11h30. Estava quase na hora de voltar para casa e encontrar Thalia, e nem sinal do Percy. Bom, não tinha como saber, afinal, passara a manhã inteira no escritório.
Não que eu me importe.
Olhei no visor do celular. Teria passado muita maquiagem? O cabelo estava bom? A roupa me caía bem, exceto a marca escura e redonda de café em minha calça. Por que raios eu me arrumara tanto para trabalhar? Senti minhas bochechas arderem e bufei, socando o celular dentro da bolsa e saindo da sala rumo ao escritório de Quíron.
Estava prestes a abrir a porta, contudo, a voz de Percy vinda de dentro da sala me deteve, e eu ponderei 57 vezes em um único minuto se entraria ou não.
- Annabeth está aqui?
- Sim, está em seu escritório. Chegou cedo e não saiu mais de lá. Precisa falar com ela?
Quíron, eu tenho um motivo grande o suficiente para ter me feito permanecer a manhã inteira na sala, e este motivo está confabulando com você!
Os dois se aquietaram subitamente e eu me aproximei mais, encostando o ouvido na porta.
Depois de um tempo, Percy prontificou-se:
- Ah, sim. Eu e Annabeth – encostei-me mais ainda – temos assuntos importantes para tratar.
Eu enrubesci, a cena do beijo volvendo minha mente como a um raio. Recuei, esbarrando em uma estatueta posicionada ao lado da porta, e ela tombou para baixo. Segurei-a o mais rápido e silenciosamente que pude.
- Quíron, minha hora chegou. – Era a voz de Percy. Escutei o arrastar da poltrona e seus passos se aproximando. Levantei-me num sobressalto e pus-me a correr para longe dali.
Fitei o relógio de pulso. 12h00. Salva pelo gongo.
_
Na entrada da Arts & Corps, Luke conversava ao celular. Seu semblante era sério e lânguido, e ele fazia aquele gesto de quando estava nervoso: passava a mão freneticamente sobre a testa.
- Entendo, estou indo, Thalia.
Aproximei-me dele.
- Está tudo bem, Luke?
- Santo Deus, Annabeth! – Ele pousou a mão sobre o peito. – Pai amado, quer me matar?! – Ele arfou.
- Relaxa, Luke – ri. – Se eu quisesse eu já o teria feito.
Ele mirou o meu rosto, colocando as mãos na cintura, falsamente indignado.
- Nossa, isso foi animador.
- Obrigada, chamo isso de arte própria – empinei o nariz, rindo.
- A Thalia... – ele começou.
- Sim? – Alteei as sobrancelhas.
- Ela voltou e quer falar comigo. E disse que tem de ser na sua casa – ele me fitou, franzindo o cenho.
- Ela vai passar um tempo lá... – comprimi os lábios. – Eu estou indo para lá agora mesmo, pode me acompanhar se quiser – incuti.
- Hum... tudo bem.
Começamos a caminhada.
- Acho que ela quer terminar comigo...
- Ah... – foi a coisa mais estúpida que consegui dizer.
Nunca passara pelo o que Luke estava passando e, pela expressão em seu rosto, esperava nunca passar. Não sabia o que ele sentia no momento, mas devia ser algo próximo à agonia. Compadeci-me, entretanto, não podia fazer nada para ajudá-lo. Era um problema entre ele e Thalia. Senti um sentimento esdrúxulo que comprimiu o meu peito e fez-me desejar que eu pudesse apagar a história dos dois para voltarmos ao tempo em que erámos apenas Thalia, eu e Luke, os amigos inseparáveis. O que Thalia estava fazendo com Luke... colocava uma barreira nessa hipótese.
O alto do edifício Berkeley Brow despontou aos poucos no horizonte, e o frio que açoitava o meu estômago tornou-se incômodo.
Pegamos o elevador, e o clima parecia quase palpável. Já no meu andar, avistamos Thalia com seu habitual visual roqueiro, recostada em minha porta. Um grande malão de couro (cogitei a possibilidade de ela ter furtado do Harry Potter) jazia sobre seus pés. Assim que nos viu, meneou a cabeça brevemente em nossa direção.
- Olá Annie, Luke.
- Oi – respondemos em uníssono.
Ela me fitou com aquele olhar suplicante, e eu rapidamente compreendi. Apanhei a chave do meu apartamento e lhe entreguei.
- Podem usar o meu.
Ela aquiesceu, um lampejo de complacência perpassou seus orbes incrivelmente azuis.
Luke ajudou-a a carregar o malão e os dois, juntos, adentraram o apartamento, deixando-me sozinha no corredor.
Meia hora depois Luke saiu.
O que eu vi me deixou atônita. Luke estava lívido, as córneas avermelhadas (acho que chorou) e os olhos incrivelmente opacos. Parecia desnorteado e, quando finalmente me notou, caminhou em minha direção.
Suas mãos grandes afagaram meu cabelo e ele disse, num tom fraco e choroso:
- Nunca se apaixone, Annabeth.
Assim que proferiu aquela frase, as portas do elevador se abriram com o costumeiro “plin”. Percy apareceu e, estranhamente, alguma coisa no meu âmago ansiou contrariar as palavras de Luke.
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