J O D I E
Com os lábios entreabertos, não sou capaz de camuflar a surpresa ao deparar-me com a imensidão do quarto de hotel. Todos os móveis pareciam bem alinhados e padronizados para complementar o ambiente ameno e com paredes pintadas em tons claros, com detalhes dourados, muito minimalistas. Caminhando e tocando tudo o que estava ao meu alcance, cesso os passos de frente para cortinas brancas, esvoaçantes e macias. Serpenteando o tecido com as pontas dos dedos, afasto as duas partes, abrindo-a, e sentindo meu peito inflar com a vista da cidade movimentada ainda pela manhã.
Aproveitando a brisa fresca, fecho os olhos.
Inspiro e respiro.
Eram poucas as vezes em meus dias que tinha a chance de parar e contemplar o frescor das manhãs ensolaradas. Até porque, minha casa fica em uma zona distante, quase sempre sombria. Diferente deste quarto bem arejado e rodeado por objetos bem feitos, novos e, possivelmente, luxuosos, sempre vivi em uma casa com cinco cômodos, e, dois deles era praticamente um só, sendo a nossa sala e cozinha. Não tínhamos uma boa televisão como a que resplandecia na parede do outro lado, nem mesmo uma geladeira pequena que, através de filmes e novelas, sabia que guardavam refrigerantes e cervejas. Havia bebidas em minha casa também, mas todas que passavam por nossa porta, eram acompanhadas por pessoas ruins.
— Você gostou? – a voz de Pit faz-me abrir os olhos. — Há um closet e um banheiro naquelas portas.
Viro-me para encará-lo, analisando sua expressão complacente. Vestia-se como no dia anterior, e mantinha sua postura tranquila e receptiva. Tendo as mãos nos bolsos de sua calça, com o queixo, aponta para as portas que, em minha vistoria afoita, não percebi. Eram brancas e tinham maçanetas também douradas.
— Pode fazer suas alterações e buscar seus pertences mais necessários. – volta a dizer. — Se não tiver gostado de algo...
— Não! Eu... – umedecendo os lábios, sobressalto com euforia. — Ficarei nesse quarto até as mundiais?
— Sim. – sorri e retira a mão direita de seu bolso, erguendo o polegar, raspando-o em seu queixo. — Todos nós estamos hospedados aqui, e ficaremos até que estejamos prontos para a nossa última parada. No caso, se você estiver apta e passar nos testes que serão exigidos para um novo membro da equipe participar, virá conosco, e ficaremos em um novo hotel. Dessa vez, será na França.
Anuo, ainda atordoada com tantas informações.
— Quando irei começar com o treinamento? – mordisco o lábio inferior, enquanto giro meu calcanhar direito no carpete sobre o assoalho de madeira.
— Isso está nas mãos de Justin. – torce o nariz. — Sei que não se deram bem, a princípio. Mas, para que isso dê certo, vocês precisam ficar do mesmo lado. Deixem os problemas fora das pistas. E, em algum momento, sentem-se e conversem, gritem, ou, seja lá como planejam resolver suas pendências.
— Nós não seremos amigos. – resmungo, cortando-o sem ao menos perceber.
— Tudo bem. Não precisam ser. – balança as mãos abertas no ar. — Apenas, foquem no trabalho. É tudo o que lhes peço.
— Quando terei o meu próprio carro? – Pit ergue a sobrancelha esquerda, enquanto lança-me um olhar inquiridor. — Eu terei um, não é? Sabe, para correr...
— Terá, no tempo certo. – sorri amarelo. — Sou um cara legal, Jodie. Cada pessoa que trabalha comigo, torna-se parte da minha própria família. O ponto é que, tudo depende de suas ações e da maneira que irá seguir enquanto estiver nessa equipe. – faz uma pausa, e o seu semblante divertido mantêm-se, embora sua voz soasse gravemente séria. — A base é, e sempre será, a confiança.
Abaixo a cabeça, incapaz de voltar a olhar em seus olhos.
Confiança era uma palavra forte demais para lidar.
Família também.
Não era como se estivesse em um acampamento de verão. Não procuro por diversão, mordomias e amigos. Mesmo Pit aparentando ser diferente de seu corredor prodígio, nós dois sabíamos que sua bondade estava submersa por puro interesse, e para mim, tudo bem. Ambos estamos em busca de algo; rápido e prático.
Então, eu assinto.
Estava disposta a seguir suas regras.
Bom, ao menos parte delas.
— Sinta-se em casa, Jodie. – dá um passo para trás ao mesmo tempo em que seu celular começa a tocar em um dos bolsos traseiros de seu jeans. — Não estarei presente pelo resto da tarde. Se precisar de algo, pode telefonar para a recepção, ou procurar pela equipe, ou seguranças. Caso deseje sair do quarto para dar uma volta, não se limite. Não temos um horário para o toque de recolher, mas é importante que seja pontual em seus treinos. Justin odeia atrasos. – franze o nariz. — Só... – balança as mãos ligeiramente. — Tentem viver bem. Estou apostando tudo em vocês.
Sem me dar tempo para respondê-lo, vira-se e alcança a maçaneta da porta, dando-me o vislumbre de seu ato repentino ao puxar o aparelho telefônico, e quando a madeira choca-se ao batente, ouço a sua voz abafada, logo desaparecendo pelo corredor, deixando-me sozinha.
Segurando as alças da minha mochila, caminho pelo carpete sob meus pés calçados pelo par de tênis All Star, tão velhos e sujos que escondiam a verdadeira cor que um dia tiveram. Minhas vestes também não eram as mais bonitas e valiosas peças que encontrei em minhas gavetas. A bermuda jeans, a camiseta cinza e o moletom vermelho eram tudo o que eu tive a chance de apanhar antes de sair as pressas de casa, naquela noite.
A minha imagem refletida em um espelho estreito no alto da parede faz-me mordiscar o interior das minhas bochechas, reprimindo o suspiro pouco surpreso. Sabia que as bolsas de olheiras eram visíveis, assim como a palidez da minha pele. Eu parecia doente. Na verdade, sentia-me como se estivesse. Passar parte de uma noite no banco traseiro de um carro moderno de corrida, não era uma das ideias mais inteligentes que já tive. E cochilar no sofá do escritório de Pit também não me rendeu tranquilidade. Contudo, ainda foi melhor que outras noites que tive, e não sinto orgulho ao me relembrar da fome, frio e medo.
Respirando fundo, jogo o capuz do moletom em minha cabeça, e guio-me para fora do quarto, sem soltar as alças da minha mochila. Quando pedi a Pit alguns segundos para ir até o banheiro, despejei tudo o que tinha na bancada de mármore, e quase saltei de alivio por não terem tirado nada de mim, pois era tudo o que me restava.
Espiando o lado de fora do quarto, o corredor vazio alivia-me. Esgueirando-me, deixo a porta bater atrás de mim e, encorajada, firmo meus pés em direção a um dos elevadores e, entro logo atrás de uma senhora bem vestida em um conjunto de calça e camisa de botões, de alta grife, deduzo. Ela desce antes do meu destino, e apertando para descer até o hall do hotel que roubou-me o ar e fala, desvio-me de um grupo de homens que aguardavam pela carona para subir. Abaixando a cabeça, temendo ser avistada por Pit ou alguém de sua equipe, contando com o estúpido Bieber, solto o ar apenas quando ouço a agitação da cidade cercada por pessoas apressadas e veículos em constante movimento.
Caminho pelas calçadas não tão desconhecidas. O hotel não ficava longe da pista de corrida, e andar era algo que ajudava a manter-me viva. Todas as madrugadas, ou, antes de o sol nascer, faço uma corrida de algumas horas, esgotando minhas forças, no intuito de que minha respiração ofegante silencie a minha mente, e o cansaço esgote-me tanto fisicamente, impedindo-me de sentir emoções que me machuquem de maneira verdadeiramente pior.
Consigo chegar a tempo de conversar o senhor Griffin a dar-me um pequeno espaço ao seu lado na minivan que transportava remessas de verduras. Encontrávamo-nos, quase em todas as manhãs e, vez ou outra, ajudava-o a guardar os caixotes na parte traseira, recebendo em troca um transporte seguro, ainda que pouco confortável, próximo ao meu destino.
— Obrigada, senhor Griffin. – murmuro, com as mãos apoiadas em sua janela.
Seus olhos azulados lançam-me uma piscadela e, sem mais, continua o seu trajeto.
Atravesso as ruas e, secando as palmas das minhas mãos no jeans gasto da minha bermuda, ergo meu nariz, a fim de ficar de igual para igual com o grandalhão que fumava um cigarro de maconha na porta da Gale’s.
— Vim falar com Kane. – as palavras saem sem transparecer a minha inquietude.
Seu olhar frio foca em meu rosto, estudando minhas feições.
— O chefe não está recebendo visitas. – traga o resto de seu cigarro, antes de lança-lo no concreto rachado da calçada, esmagando-o com um de seus sapatos.
— Diga que Jodie Atkins deseja vê-lo.
Soltando uma risada zombeteira, o homem calvo, mas de barba cheia, mexe os ombros, despreocupado.
— Acha que esse nome bonito irá lhe dar acesso para dentro?
Sinto as pontas das minhas orelhas esquentarem.
Não demonstro minha irritação. Ergo, o quanto posso meu nariz e queixo, apertando as alças da minha mochila.
— Faça o teste. – desafio-o. — Deixe-me esperando, e perca o seu emprego. – faço uma breve pausa. — Ou termine o dia com uma bala no meio de sua testa.
Seu sorriso desaparece em poucos segundos.
— Fique atrás de mim. – aponta um de seus indicadores para o meu rosto. — Se fizer alguma gracinha, será você que irá terminar com uma bala no meio de sua cabeça.
Dando-me suas costas largas e quase animalescas, empurra os dois lados da porta de chumbo. Seguimos por corredores que, infelizmente, não eram desconhecidos para mim. Estávamos do lado do galpão, e do outro lado, havia um bar sempre frequentado por bandidos, gangues, policiais corruptos e outras pessoas que sabiam bem da sujeira fornecida pelos irmãos Gale.
— Não se mova. – o homem sem o menor resquício de humor avisa-me em um rosnado, e bate uma única vez na porta de madeira que, eu também conhecia. — Chefe, há uma garota que...
Ouvindo-o bem e sem obedecê-lo, atravesso a brecha aberta da porta, ficando dentro do escritório que aterrorizava meus pensamentos, desde a primeira vez que fui jogada em uma das poltronas e conheci a pessoa mais desprezível, com vida. Os olhos curiosos do moreno sentado em sua cadeira, como um empresário ou político importante, estudam-me, e o sorriso mínimo em sua face embrulha o meu estômago, de imediato.
— Senhor, eu...
— Fora. – dispara, elevando o som de sua voz naturalmente rouca e imponente. — Agora!
Estremeço, pensando ser comigo, mas, o homem apressa-se em deixar o cômodo. E, assim que Kane levanta-se, contornado a mesa de madeira, recheada por papéis, pastas, copos vazios, e vestígios de cinzas de cigarros, eu recuo alguns passos.
— Não devia ter vindo.
Para a, no máximo, dois passos e meio de distância do meu corpo desprotegido. Ele tinha uma arma no cós de sua calça, formando um volume evidente em sua camisa de tecido fino. Quanto a mim, não havia nada que pudesse feri-lo, ou mais que isso.
Seria uma luta injusta.
Sempre seria.
— Você sabe que eu não desisto. – engulo em seco, incomodada com sua aproximação. — E eu tenho algo. Onde está o seu irmão?
— Em uma viagem. – limita-se em dizer, ainda me olhando de maneira assustadoramente intensa e desconfortável, para mim. — O que veio fazer aqui, Jodie? Pensei que tivesse sido claro da última vez que nos encontramos.
— Ameaçar esfolar-me se me visse novamente, não é tão intimidador quanto imaginei que pudesse ser quando me dissesse algo assim. – alfineto-o, não obtendo sucesso.
Era o que Kane Gale sempre seria.
Manipulador. Calculista. Impenetrável.
— Você brinca com fogo. – sorri de escárnio. — É por isso que consegue deixar-me fora de controle.
Ele era responsável por isso, sozinho.
— Irá ouvir o que tenho a dizer, ou não? – desconverso, disposta a ser o mais breve possível.
Levantando as mãos para cima, movimenta-as no ar, e troca o peso de seu corpo para a perna direita.
— Dê o seu show.
Afastando o capuz da minha cabeça, escovo os fios do meu cabelo em um ato de nervosismo, e logo retiro minha mochila, apoiando-a em um dos braços da poltrona. Desço o zíper, odiando-me por ter os dedos trêmulos. Lutando para escondê-los, retiro o relógio em sua direção. Os olhos amendoados de Kane se estreitam, e o vinco em sua testa instiga-me a dizer algo para orientá-lo sobre minha ação.
— Aceite-o. E, diga-me quanto ainda estarei devendo.
Kane não faz o que imaginei que faria.
Seguindo o contrário das minhas mínimas expectativas, sua risada explode, fazendo seu peito vibrar, e seus olhos fecharem, e o único som que ouvimos é o deu seu riso incessante.
— Não está falando sério... – balbucia, assim que engole o riso, parecendo ter dificuldades para isso. — Oh, você está. – limpando a garganta, endireita sua postura e volta ao seu corriqueiro semblante maldoso. — Pensei que fosse mais esperta que isso. Mas essa velharia não paga nem mesmo uma fração da dívida de sua mãe viciada.
— Será como um adiantamento. Estou trabalhando para conseguir o resto do dinheiro. – reforço a minha oferta.
Tornando a empurrar o relógio, ele, finalmente, apanha-o e o avalia como um entendedor de joias.
— Onde conseguiu? – questiona, levando próximo ao seu rosto.
— Isso importa? – umedeço os lábios. — É um relógio de bacana. Deve valer alguma coisa.
— É falsificado. Não vale mais que alguns dólares. – sorri sem mostrar os dentes e, com a mão livre roça a sua barba escura. — Se está se tornando uma ladra, recomendo que escolha melhor suas vítimas.
— Estou dando o meu melhor para quitar a dívida, Kane. – suspiro, visivelmente cansada. Não de falar, mas de tocar nesse mesmo assunto que não me deixa dormir devidamente há dias. — Já trouxe todas as gorjetas que consegui com o meu trabalho no bar. Também, tudo o que obtive com as vendas dos meus poucos bens. Você só... – sussurro, dando uma pausa para um pouco de ar. — Tente entender.
Virando-se de costas, o homem alto e forte vira-se de costas, mas sou capaz de ouvi-lo soltar uma risada nasalada. Jogando o relógio em cima de sua mesa, caminha até o balcão que estendia-se por toda a parte restante da parede, ao lado da janela. Suas mãos trabalham agilmente em uma das garrafas de bebidas, abrindo-a e despejando o líquido âmbar em um copo. Voltando os objetos ao lugar, apanha a sua dose e engole-a em um gole. Um de seus indicadores aponta para mim, segurando o copo já vazio.
— As coisas podiam ser diferentes. – pressiona o maxilar marcado. — Ofereci a você o mundo, Jodie. Minha proposta teria salvado você e sua mãe de qualquer coisa, e ainda teria o que fosse meu, pois também seria seu. – seus olhos fagulham, e a bile pica minha garganta. — Sua ingratidão é tão fodida quanto suas escolhas. Se não fosse por minha piedade, em uma hora dessas, estaria definhando em uma vala, em cima do corpo apodrecido daquela viciada de merda.
Engulo em seco, sabendo que suas palavras eram verdadeiras.
Conheci Kane da pior maneira possível. Deixei minha casa para morar no quarto dos fundos do bar da senhora Lilo. Em troca, trabalharia para ganhar apenas as gorjetas que, em algumas noites nem mesmo apareciam pelo pouco movimento, ou pela disputa territorial da maioria das garotas dispostas a tudo para terminarem seus turnos por cima, literalmente. Não era agradável dormir ao lado de caixotes de bebidas e sacos mofados pelo tempo de abandono, também, podendo sentir o odor das caçambas de lixo do lado de fora das paredes que pareciam feitas de papel. No entanto, qualquer coisa me parecia melhor que estar debaixo do mesmo teto que minha mãe e seus namorados drogados.
Limpando o balcão do bar em uma noite movimentada de sexta feira, tinha minha atenção voltada apenas para o pano que arrastava pela madeira envelhecida. Senti a presença de corpos aproximando-se, ainda de soslaio, mas foram os murmúrios que fizeram-me procurar pelos homens que adentram pelas portas, tornando tudo ao redor menor do que realmente era. Movimentando-se em câmera lenta, os sete pares de punhos e semblantes fechados assustaram a maioria dos clientes que, distanciaram-se, ou abaixaram as cabeças, evitando contato visual. Um calafrio se alastrou por minha espinha. De modo instintivo, ligado pela sensação de medo que me afligiu, dei um passo para trás, observando-os caminharem para frente e laterais do balcão, encurralando a mim e todas as outras três garotas que trabalhavam do lado de dentro. Mas, foi o moreno de os olhos escurecidos, e postura carregada por um charme unicamente seu, que derramou em meus ombros palavras que mudaram minha vida drasticamente.
Pouco tempo depois, fugindo incansavelmente da vigilância acirrada de Aspen Gale, tive ajuda de quem menos esperava. Kane salvou-me, diversas vezes. Protegeu-me, e fez loucuras contra a sua própria família para manter-me segura, e viva. Sua companhia me assustava, e eu não confiava em suas ações. Meus olhos nunca se fechavam, ainda que estivesse a uma porta de distância. E foi quando seus lábios colaram nos meus que descobri suas intenções. Ele alegou estar louco por mim, e ofereceu-me tantas coisas que deixou-me zonza. Um de seus comparsas confessou que não passava de uma obsessão, mais uma entre tantas outras, já que suas namoradas acabavam mortas ou implorando por drogas. Suas promessas chegavam a ser tentadoras em todas as vezes que visitava minha mãe, e assistia-a gritar comigo e culpar-me por não ter mais o que usar para controlar as dores que sentia. Ela entrou em abstinência e, mais uma vez, o Gale mais novo me salvou. Ele sempre o fazia.
Contudo, ser dele não era uma opção.
Eu não queria o amor de um criminoso.
Almejava a tranquilidade. E, só talvez, um lar.
Não dava a mínima para a parte do amor.
— Já o agradeci por tudo o que fez por minha mãe... Por nós duas. – franzo o cenho. — Mas, não posso lhe dar o que deseja.
Fitando-me por um instante, olha para a janela.
Evitar me olhar era a sua maneira de esconder sua decepção.
Kane não era tão duro quanto aparentava.
Às vezes, pensava que existia um coração sob sua casca grossa. Mas, tão depressa quanto imaginava-o sendo capaz de amar, meus pensamentos eram levados por suas próprias atitudes grosseiras e sem sentimentos.
— É uma pena. – murmura. — Meu irmão volta de viagem dentro de alguns dias, e tenho certeza que todas as cabeças que trouxer em sua mala não irão suprir o anseio de ter a da sua mãe em uma bandeja para o jantar.
— Ele não pode matá-la. – replico depressa. — Preciso que impeça-o, até eu conseguir o resto. Estou fazendo o que posso para pagar, moeda por moeda. – não tomo fôlego, e isso faz meus pulmões inflarem. — Entrei para uma equipe de corridas. O melhor corredor do país está nas mundiais, e eu estou dentro.
O olhar incrédulo de Kane fita-me como se estivesse fantasiando.
— Você o que? – crispa os olhos.
— Irei correr com os Mercyful Fate. – explico, nervosamente. — Não ainda, mas, serei treinada pelo melhor deles. Sei que o vencedor irá receber uma alta bolada, e tenho absoluta certeza de que irá pagar tudo o que minha mãe está devendo ao seu irmão.
— Não sei como conseguiu isso, mas não vai dar certo, de qualquer maneira. – sorri. — Entrar para uma equipe desse tamanho não é do dia para a noite, Jodie. E, caso tenha se esquecido, você não é uma corredora. Participar de alguns rachas por grana fácil não é uma grande coisa.
— Eu venci em todas as corridas! – vocifero. — Até mesmo contra você.
— Ter sido tolo a ponto de deixá-la vencer para não ser aniquilada em uma aposta idiota, não a torna uma boa corredora. – estala a língua no céu da boca. — Desligue seus pensamentos estúpidos, e caia na realidade. Você pode continuar sobrevivendo como uma fugitiva até o dia em que meu irmão encontrá-la, ou pode simplesmente ver quem está disposto a ajudá-la. Não sou homem de implorar por mulher alguma. Mas, veja bem, não é a primeira vez que rastejo por você.
Meus olhos contraem.
— Não serei sua. – esbravejo.
Erguendo as mãos, solta-as abruptamente, e deixa seu corpo cair em sua cadeira que gira para o lado esquerdo sob seu peso.
— Então, vejo-a no buraco em que Aspen irá jogá-la. – rosna, e folheia alguns dos papéis em sua mesa.
Sabendo que não poderia relutar contra sua impetuosidade, como um raio, deixo sua sala, batendo a porta atrás de mim. Ajeito as alças da minha mochila, e erguendo novamente o capuz, dobro a primeira esquina e caminho sem uma direção decidida. Faço uma parada em frente a uma pequena feira ilegal, e com as notas emboladas de algumas notas em dinheiro que consegui manter nas minhas meias há alguns dias, comprei um pouco de verduras e frutas, e carreguei-as em sacolas até a minha casa.
As ruas calmas do bairro mais afastado da cidade não era tão perigoso quanto relatado em noticiários. Ao menos, não para os moradores que acostumaram-se a dormir sempre com medo, depois de trancar bem as portas, janelas e quaisquer outras brechas. A criminalidade era assustadora, mas comum até mesmo na zona nobre. Não vivíamos nos esquivando de balas, ou impossibilitados de sairmos na porta de casa. Apesar de tudo, conseguíamos ser felizes. As lembranças ruins que afetaram parte do meu subconsciente não ofuscavam completamente as risadas e momentos de diversão que tive com crianças de casas vizinhas.
Subindo os poucos degraus da escada de frente para a porta da minha casa, utilizo a mão livre para alcançar o molho de chaves no bolso traseiro da mochila. Retirando-a, sopro os fios do meu cabelo e deixo o capuz cair, encaixando a chave na fechadura, girando a maçaneta e empurrando a ponta que nunca abria sem ranger ruidosamente. Colocando os pés no velho tapete de boas vindas, desfaço-me dos sapatos, balançando-os até estar calçada apenas por minhas meias cinzas. Os barulhos que ecoavam do assoalho de madeira antiga era irritante, mas distraio-me ao ouvir o som de vozes no andar de baixo, sofrendo interferências pelos chiados, dando-me certeza de que vinham da televisão.
Não demoro em avistar o corpo quase cadavérico largado e encolhido no sofá desgastado. Seria uma cena de alivio se não doesse tanto conseguir contar os ossos que saltavam da carne pálida. Caminho até o próximo cômodo que não possuía uma divisão por paredes, facilitando a minha passagem. Deixando as sacolas pesadas em cima da pequena mesa redonda, sigo até a lavanderia e, por um golpe de sorte, encontro uma toalha limpa, enquanto todas as outras peças de roupas encontravam-se jogadas no chão, e o odor entregava que estavam do mesmo modo a dias, podendo estar servindo de morada para animais de esgoto.
Com a toalha em minha mão, curvo-me no tanque e molho as pontas, encharcando-as com a água fria que, por alguma razão ainda não havia sido cortada, e eu teria que agradecer ao senhor Gilbert por estar segurando as pontas com empecilhos como esses para mim.
Retornando até a sala, abaixo-me de modo em que fico de frente para o rosto levemente escondido pelos fios castanhos, tendo rastros de algumas linhas grisalhas pela idade, e afasto-os da melhor maneira que consigo. Encostando as pontas frias em suas maças expostas e testa, aguardo-a abrir os olhos, depois de murmurar praguejares e lamentos inaudíveis.
— Sou eu, mamãe. – resmungo baixo, aproximando meu rosto do seu. — Você precisa levantar.
— Eu não quero. – seu olhar não se sustenta no meu por mais que um segundo, e cobrindo o rosto com as mãos, encolhe-se um pouco mais, fazendo com que a sua camisa suba por inteiro, expondo um pouco mais suas pernas magras e ossos aparentes.
As marcas roxas em sua pele não me impressionavam mais. Não eram causadas apenas pelo uso incessante de drogas, mas também por todos os homens covardes que ela acolhia na casa que um dia foi nossa, tornando somente sua após ter me mandado sair para não irritar o mais covarde e babaca de todos eles. Devon era odioso e repugnante. Sete anos mais jovem que minha mãe, aproveitava-se da mulher que criou uma filha sozinha depois de ter perdido o seu marido para um câncer, usando a sua estupidez e atitudes bruscas para fazê-la se sentir única.
Alertei-a tantas vezes que me cansei, mas foi no dia que encontrei-o enforcando-a por uma discussão que iniciou na rua, tendo chegado em casa gritando um com o outro e alegando ter acontecido uma traição da parte dele. Não pensei duas vezes antes de saltar todos os degraus e acertá-lo com o abajur. Minha força não se comparava a sua, e o seu lampejo foi levado pela ira, e quando correu até mim e me ergueu do chão com uma mão, pensei que fosse meu último instante com vida. Minha mãe colocou-se entre nós dois. Contudo, não me abraçou, agradeceu ou expulsou o grandalhão que tinha a cabeça sangrando, seus passos a guiaram até ele, e seus ferimentos foram curados, enquanto os meus rasgaram o meu peito, tanto quanto ouvi-la me mandar sair.
— Porque está aqui? – sua pergunta abafada faz-me franzir o cenho.
— Vim cuidar de você. – balbucio baixo, incerta de que estaria sendo ouvida. — Vá para o banheiro e lave-se. Está fedendo a bebida e comida podre.
— Eu não quero... Vá embora. – uma de suas mãos tenta espalmar a minha que continua arrastando a toalha por sua pele gélida, mas suas forças eram quase nulas.
— Irei depois que me certificar de que não irá definhar nesse sofá. – levanto-me, mas puxo-a comigo, erguendo-a pelos braços, sentando-a e ignorando seus xingamentos. — Consegue chegar sozinha ao andar de cima?
— Não preciso de você.
Sem abrir muito os olhos, apoia-se nas próprias mãos para conseguir colocar-se de pé, mas suas duas tentativas são falhas, enquanto a terceira é realizada, não com muito sucesso, pois seu corpo cambaleante a deixa a pouco de ir com tudo ao chão, mas sou rápida e enlaço um braço em sua cintura, e dou-lhe sustento para que caminhe. Subindo um degrau por vez, chegamos ao andar do banheiro e, empurrando a porta, faço menção de entrar para acompanhá-la, por segurança, mas a madeira é lançada de encontro ao meu rosto, e o barulho da tranca sendo movida é a confirmação de que não sou bem vinda.
— Não há de que. – ironizo e rolo os olhos.
Seguindo pelo corredor, entro em seu quarto e não me surpreendo com a bagunça semelhante a que encontrei na lavanderia. As roupas espalhadas, móveis virados, e até mesmo tombados, como se alguém tivesse procurado por algum de forma minuciosa. Puxo uma das gavetas da cômoda e retiro peças íntimas, e abrindo a de baixo, apanho um vestido azul folgado e sem marcações ou zíperes, sendo possível dela vestir-se. O ambiente pequeno e abafado exalava o cheiro forte de nicotina e erva pura.
Balançando a cabeça, salto alguns frascos pelo caminho e deixo o lugar que entrei poucas vezes em todos os anos que vivi sob esse teto, sabendo que avistaria o que meus olhos não suportariam, e minha mente não era forte o bastante para memorizar sem me causar vertigens para me sondar pelo resto da minha vida. Os ruídos e sons que ecoavam pelas paredes, soando quase inaudíveis já eram aterrorizantes o bastante. Umedecendo os lábios, resolvo espiar o meu antigo quarto.
A maçaneta ainda estava quebrada depois da minha briga com Devon, pois assim como dito, ele arrombaria a porta se não fosse aberta por conta própria. A minha cama, o roupeiro, minha mesa de estudos e o espelho quebrado ao lado do meu baú ainda estavam em seus devidos lugares. As cortinas esvoaçavam devido a fresta aberta da janela, do mesmo modo que deixei no dia em que consegui escapar, aproveitando os gritos da discussão em que eu era o alvo, logo no quarto ao lado. O silêncio da minha mãe foi tudo o que precisei ouvir enquanto ponderava a ideia de dizer-lhe adeus.
Fecho a porta tão rapidamente quanto olho para cima, piscando e fitando as rachaduras e furos no telhado mofado e muito velho. Suspiro, e forço-me a continuar, sem derramar nenhuma lágrima, como prometi que nunca mais faria ao sentir medo por estar sozinha.
Fazer pausas para chorar é sempre perda de tempo.
Sou uma sobrevivente. E isso basta.
O resto será enterrado, assim como o meu passado. Eu sei que sim.
Acredito que sim.
Solto todas as peças em cima do tapete azul e desço a escada. Ergo as mangas do meu agasalho e, jogando o meu cabelo para trás, começo a retirar as verduras de dentro das sacolas. Antes de começar, lavo todas as louças sujas que estavam na pia para conseguir usá-las. Não demoro em picar uma variação de cores e sabores, jogando tudo em uma panela com temperos. Aproveitando a espera para até que ficasse pronto, limpo os armários recheados por teias de aranhas e alguns alimentos vencidos, e repito o mesmo na geladeira, retirando restos apodrecidos, deixando apenas os frascos com água que lavei e renovei-as.
Assim que conseguisse um pouco mais de dinheiro, faria compras para abastecer os armários. Enquanto isso, pediria ao senhor Gilbert para alimentá-la.
Respirando pesadamente, endireito a única cadeira de frente para a mesa, e sobre a base, coloco uma tigela e uma colher, com auxilio da concha que mexia na sopa, despejo os legumes fatiados e cozinhados junto ao molho que tinha um cheiro agradável. Erguendo o olhar ao ouvir o som sorrateiro de passos lentos, a figura encolhida, tendo os braços abraçando o próprio corpo fazia-me sentir um misto de raiva e pena.
— A sopa está pronta. – aviso-a, acabando de servi-la. — Coma o quanto conseguir.
Volto a panela e concha para o lugar, deixando tudo em cima do fogão.
Observando-a se aproximar, vagarosamente, como se fosse um cordeiro e eu um lobo feroz. Seu cabelo estava molhado, e pingavam algumas gotículas de água que escorriam pelo vestido folgado em todos os cantos. Arrastando a cadeira pelo encosto, senta-se e apanhando a colher, arrasta-a por cima de algumas fatias de cenoura, mas não tarda para afundá-la e abocanhar as colheradas com vontade.
Encosto-me na bancada da pia e assisto seus movimentos. Em silêncio, assim que percebo a primeira rodada estar sendo limpa de sua tigela, sirvo-a com mais um pouco e, sem retrucar, devora com mesmo vigor. Não demora muito para que termine, e mesmo que tenha insistido para que tomasse um pouco mais, parecia estar satisfeita com a repetição. Levantando-se, caminha até estar ao meu lado e beberica um pouco de água da torneira que despeja em um copo de vidro.
Dando-me as costas, segue até a sala e deita-se no sofá, do mesmo modo que a encontrei quando cheguei. No entanto, sua aparência resplandecia um pouco mais de humanidade e, principalmente, sua essência ainda viva, mesmo que muito apagada. A televisão ainda estava ligada, e no mesmo canal de telenovelas de mais cedo. Sua atenção foca-se na tela pequena e com distorção nas imagens, mas sei que sua mente não está se importando com isso, pois algo além das cenas românticas e dramáticas a confundem.
Subo a escada rapidamente e, vasculhando o seu quarto, carrego para fora uma manta fina, e sem avisá-la, cubro-a com a mesma. Distancio-me, não conseguindo deixar de olhá-la. Faziam semanas que não nos víamos, e era como se um século inteiro tivesse se passado, e não era por sua imagem ser tão diferente ao que eu preferia me apegar para lembrar-me dela de outra maneira, mas sim por não termos mais a conexão que tínhamos quando éramos nós duas. Uma pela outra. Sem terceiros, drogas ou dívidas com bandidos.
— Irá ficar? – sua pergunta pega-me de surpresa.
Seus olhos não buscam os meus.
— Não. – sou breve e sincera. Sempre seria. — Mas ficarei até você dormir. – garanto-lhe.
Nenhuma reação é devolvida, e isso não me afeta.
No fundo, ainda acreditava que quando a realidade lhe atingisse, tê-la-ia de volta.
A minha companheira. Tudo o que um dia eu tive.
Sem uma resposta, apenas sento-me no braço do sofá, ficado um pouco atrás de seus pés aquecidos pela manta.
Não tarda para que suas pálpebras pesem, e o sono vença. Sua luta foi dura, e percebi que, de soslaio, seus olhos procuravam por mim, e quando notava o meu olhar, tratava de disfarçar, crispando-os. Assim que certifiquei-me de fechar todas as janelas e portas, abaixei o volume da televisão e afaguei os fios de seu cabelo, dando-lhe uma última olhada antes de cobrir-me com meu capuz, e girando os calcanhares, saio da minha casa, torcendo para que seu namorado estúpido não desse as caras para estragá-la novamente.
Caminhando pela calçada, abaixei-me na varanda da casa do senhor Gilbert e empurrei por debaixo da porta um envelope com um bilhete escrito as pressas e o resto do meu dinheiro. Pedi para que cuidasse da minha mãe e aguentasse até o meu retorno, e se ouvisse qualquer som suspeito, ligasse para o telefone público que memorizei do outro lado da rua para o hotel em que estava hospedada. Quem atendesse, devia me procurar na recepção e dizer que era urgente, dando o seu nome. Apenas eu saberia e trataria de resolver.
Prometi, silenciosamente, que voltaria para buscá-la e que não precisaria mais ter medo de ser procurada pelos homes de Aspen.
Acelerando meus passos, nem mesmo percebo quando minhas pernas vacilam pelo cansaço. Corri por todas as quadras e ruas mais vazias, apreciando a brisa suave da tarde com céu parcialmente nublado. Na rua do hotel, parei a alguns centímetros, somente para puxar um pouco de ar para meus pulmões que pareciam secos. Meu corpo estava cansado e sem sustento por todo o dia. Não tive apetite para comer, ou dei-me um minuto para um copo de água, e isso não era bom. Todavia, finalmente poderia descansar. Ainda era cedo, e eu não queria voltar até que anoitecesse.
Andando para trás, procuro por uma lanchonete pequena, e sento-me em uma mesa vazia. Revirando todo o cardápio, antes de pedir, revisto minha mochila e conto algumas moedas, podendo pagar por um sanduiche e um copo de suco natural. Estava bom para mim. A senhora que atendeu-me, gentilmente, me ofereceu um copo com água e não neguei, bebi até a última gota e, sem querer abusar, não pedi um pouco mais. Esperta como aparentava ser, estendeu-me mais uma vez, com ainda mais do líquido transparente, tão gelado que descia por minha garganta revigorando-me.
O lanche estava incrível, ou a minha fome era tanta que, se haviam defeitos, não notei nenhum. Enquanto comia, espiava as pessoas caminhando do lado de fora. Quando era mais nova, nos dias em que me arriscava com meus colegas em fugir da sala de aula, gostava de sentar-me no alto de um prédio abandonado que descobrimos e fizemos o nosso lugar secreto, e bem do topo, observava a cidade e tudo o que alcançava com meus olhos curiosos.
Vez ou outra, fechava os olhos e imaginava como seria a minha vida alguns anos mais a frente. Imaginei-me como professora em um colégio renomado. Também como uma arquiteta para erguer edifícios bonitos e muito grandes. Ou, uma médica. Sem deixar de lado a curiosidade de conhecer o mundo, atravessando as fronteiras e limites, a fim de absorver um pouco de cada canto. De todas as vezes que permiti minha mente viajar, nunca imaginei no ponto em que estava. Sentada em uma lanchonete pequena e vazia, sem mais dinheiro para comer ou beber. Tendo na mochila apenas um isqueiro prata que não iria me desfazer, ainda. E correndo contra o tempo para salvar a mulher que me deu a luz.
Ao menos em algum momento, fui capaz de sonhar.
Com um breve sorriso, aceno para a senhora que foi tão gentil. Havia anoitecido. Na verdade, fiquei tempo demais dentro do ambiente estreito e sem fluxo de clientela. Subi os degraus da escadaria tão chamativa quanto toda a construção do hotel. Esquivo-me de algumas pessoas que pareciam alheias no início do hall. Ainda de cabeça baixa, aguardo por alguns segundos a chegada do elevador e, dividindo-o com um homem que tinha um aparelho celular e dedos ágeis trabalhando a todo vapor, faço uma viagem tranquila até o andar em que estava o meu quarto que, não tinha certeza de qual era o número.
Perdida pelo extenso corredor, procuro me lembrar de alguma decoração que pudesse clarear minha mente para que assim, recordasse-me de qual era a porta que eu deveria abrir. Mas não fazia ideia de qual era o número da porta. Tenho certeza de que Pit citou-a durante a nossa subida, porém, não estava prestando atenção em suas palavras.
— Droga... – giro os calcanhares depressa, e com isso, meu corpo esbarra com o de alguém que saia de um dos elevadores.
Cambaleio dois passos para trás.
— Está perdida, princesa? – o moreno murmura, estreitando os olhos e erguendo os lábios em um sorriso carregado de intenções.
— O que faz fora do seu quarto?
Meu olhar sobe, e, por cima dos ombros do garoto malicioso, além de uma cabeleira ondulada e loira, um par de olhos muito verdes e lábios carnudos pintados de vermelho vivo, reconheço o dono da voz que conhecia bem, embora desejasse veementemente nunca ter cruzado o caminho.
Percebendo o nosso atrito sem precisar de muito, o moreno distancia-se, olhando-nos curiosamente. A loira, por outro lado, se pudesse, estava perfurando minha pele com seus olhos tintilando o centro da minha testa. Justin estava vestido como em muitas fotos que já vi em capas de jornais, revistas e em noticiários de fofoca na televisão de vários lugares, inclusive do bar em que trabalhava. Nunca parei para olhá-lo e suspirar, como a maioria das mulheres e garotas que não conseguiam se controlar quando seu nome era anunciado, como tietes de cantores famosos.
Era apenas incrível e inegável como uma jaqueta de couro, um jeans escuro, uma camisa básica e preta e um par de botas lhe caiam bem. Como se fosse o ideal, feito exclusivamente para torná-lo bonito demais. Charmoso demais. Arrogante demais. E ele sabia de tudo isso, e parecia orgulhar-se. Um de seus braços rodeada a cintura fina da mulher vestida em uma blusa curta, deixando seus seios voluptuosos saltando para fora, uma saia de couro combinando com o tom de seu batom e ao fim de suas pernas longas, calçava sapatos altos. Ela era irritante por ser bonita e sensual.
— Não venha com essa de não ter o que dizer. – rosna. — Contou suas mentiras muito bem para chegar até aqui.
Eu pisco, e sinto as faíscas saltarem.
— Parece estar acontecendo algo quente entre vocês dois. – o moreno murmura, e, sorridente, olha-me com as sobrancelhas arqueadas. — Mas, antes que se matem, permita-me saber o seu nome, princesa.
— Não me chame de princesa. – rebato mais depressa do que consigo controlar a minha língua. — Jodie.
— É um prazer conhecê-la... – estende-me uma de suas mãos, mas não faço nenhum movimento que mostre que irei receber sua saudação. Mexendo os ombros, leva-a ao seu cabelo, dando-lhe uma ação útil para executar. — Chamo-me Holder, se quiser saber.
— Estou indo para o meu quarto. – informo, e olho para Justin que encarava-me com ira resplandecente.
— Eu não gosto de você. – murmura sem alto e bom som.
— Não faço questão de que se apaixone por mim, de qualquer maneira. – rebato, encarando-o de mesma maneira. — Pit me quer na equipe, e eu irei entrar, quer você queira ou não. Se quiser me treinar, seja bom fazendo isso. Caso não, posso aprender sozinha.
— Sem minha ajuda você não irá passar da linha de partida. – zomba, sorrindo de forma maldosa.
— Pague para ver. – solto entre dentes. Meu sangue já corria em brasa por minhas veias. — Não preciso de você.
Seus olhos escurecem, assim como seu semblante.
— Não farei nada por você. Mas até que Pit recobre o juízo, não a deixarei manchar o nome da minha equipe. – solta o corpo esguio ao seu lado, e loira olha-o como se tivesse sido ofendida. Com passadas largas, o espaço que nos mantinha longe era tão mínimo que era possível sentir sua respiração e quase ouvir sua pulsação estalar suas veias. — Irei descobrir quais são seus truques, garota. Portanto, aconselho-a a ter cuidado.
Não respondo-o, mas não permito-o saber que arrepiei-me sob sua ameaça.
— Esteja pronta às cinco.
— Não irei ser treinada por você.
— Se eu tiver que vir buscá-la, será pior. Não lido bem com atrasos.
Sentindo o sangue ser drenado completamente para o meu rosto, não reluto contra sua imposição. E quando seu corpo alguns centímetros mais alto dá-me as costas, sinto um imensurável desejo de atingi-lo com socos fortes, mas não o faço. Mantenho-me em meu lugar.
A loira suspira quando é puxada bruscamente para ficar ao seu lado, e, tropeçando em seus saltos, segue pelo corredor, pendurada em seus ombros, sorrindo para o rosto que parecia concentrado apenas em seu destino. Holder acena para mim e sorri, logo fazendo o mesmo caminho.
Abaixo o olhar, mas ouço a voz odiosa voltar a preencher o extenso corredor vazio.
— Quatrocentos e noventa e seis. – replica. — Esse é o número do seu quarto, garota.
Não lhe agradeço.
Mas também não o praguejo.
Estava cansada demais para isso.
Resolveríamos nossos problemas nas pistas.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.