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História Ella - É preciso dizer que Ella conseguiu


Escrita por: Believe8

Notas do Autor


Gente, foi o melhor final de fanfic que eu já escrevi na vida. E eu chorei, Deus, como chorei. Então preparem seus emocionais!

Capítulo 4 - É preciso dizer que Ella conseguiu


As gêmeas estavam prestes a completar três anos, e começavam a irritar a irmã mais velha. Ela já tinha esse problema com Danilo, mas ele não morava na mesma casa que ela. As duas, sim, e eram cada vez mais irritantes.

Claro que ainda as amava incondicionalmente, assim como amava o priminho. Os três eram a coisa mais importante do seu mundinho limitado de onze anos, mas conseguiam ser muito irritantes, mesmo quando não queriam. Mal podia esperar para o novo bebê da madrinha nascer no meio do ano e ela ter novamente uma explosão de fofura que fosse silenciosa.

Era noite de sexta para sábado, e como não tinham aula no dia seguinte, os pais deixavam que as três meninas assistissem TV até tarde. Geralmente elas pegavam no sono no sofá e acordavam na cama no outro dia, mas naquele dia Ella acordou assustada.

Caia uma chuva forte do lado de fora, com trovões e relâmpagos. Rebeca e Sabrina estavam capotadas, como sempre, alheias ao que acontecia. Só a mais velha tinha medo de chuva, e só se acalmava na presença dos pais.

Uma vez havia contado para eles a lembrança que lhe vinha na mente durante todas as tempestades, e se surpreenderam ao constatar que era do dia de seu nascimento. A menina dizia que ouvia trovões fortes e muita chuva, e que os pais a seguravam bem abraçadinha entre os dois, cantando “Can’t help falling in love”, do Elvis, que era a música que a avó de Margarida estava ouvindo dias antes no toca-discos.

Saiu depressa em direção ao quarto do casal, o corpinho magrelo tremendo de medo. Chegando na porta, ouviu barulhos estranhos do lado de dentro. Ouviu a mãe falando o nome do pai, mas ela não falava de forma normal. E o pai arfava de um jeito estranho.

Se já estava assustada, os barulhos só pioraram. Abriu a porta de supetão, arregalando os olhos. Por um segundo não conseguiu reagir, até ouvir a mãe gemer um “ai”.

“Para de machucar a mamãe, pai!” Ela gritou desesperada, assustando os dois.

O casal deu um pulo gigante na cama, e por reação puxaram o lençol, cobrindo o corpo. Encararam Ella na porta, os olhos cheios de lágrimas, irritada. A menina correu e pulou sobre o pai, começando a bater nela.

Ella, Ella... Para de me bater.” Jorge segurou os braços dela com cuidado, tomando cuidado para não machucá-la enquanto ela se debatia.

“Não, você estava machucando a mamãe!” A criança chorava desesperada. “Você disse que não é para machucar as pessoas, e estava machucando ela.”

“Filha, ele não estava me machucando, calma.” Os dois estavam assustados com a reação explosiva da criança, que geralmente era tranquila. Até que um trovão forte ecoou pela casa, fazendo Ella estremecer e se agarrar ao pai, chorando mais forte. “Você está assustada com a chuva, pinguinho?”

“Nós nem ouvimos que tinha começado a chover.” Jorge observou. “Você quer dormir aqui, princesa?”

“Eu não quero dormir com você, pai, você estava machucando a mamãe.” Ela o soltou de uma vez, se agarrando em Margarida.

“Ele não estava me machucando, meu amor, calma. Por que você acha isso?”

“Você falou ai e estava fazendo barulhos estranhos, e ele estava em cima de você.” O corpinho da menina tremia de medo.

Ella...” Jorge suspirou, desconfortável. Encarou a esposa, que estava em igual situação. “Lembra que você estudou no final do ano sobre reprodução humana? Sabe, de onde vem os bebês e tudo o mais.”

“Que eles não vêm da cegonha? E o que isso tem a ver?”

“Filha, eu e o seu pai estávamos fazendo sexo.” Explicou Margarida, vendo-a arregalar os olhos.

“Eu vou ganhar mais um irmãozinho?”

“Não, princesa, não é isso.” Jorge acabou rindo. “As pessoas fazem isso para ter bebês, mas também fazem isso por prazer.”

“Prazer?”

“É, porque gostam. Porque isso as deixa felizes, como... Como quando come chocolate ou assiste um filme que você gosta. Isso são coisas que dão prazer, mas de uma forma diferente.” Explicou o pai.

“Então vocês estavam fazendo... A mamãe estava gostando daquilo?” Ella estava confusa.

“É, filha, estava. Aquele barulho não era um ai ruim, era uma coisa boa.” A morena acariciou o rosto dela. “Só não estamos muito felizes que você viu isso... Não é algo que um filho deva ver os pais fazerem.”

“Eu preferia não ter visto.” A menina riu baixinho. Encarou o pai, penalizada. “Desculpa te bater, papai.”

“Não ligo, princesa. Eu fico feliz que você tenha tentado proteger a mamãe.” Jorge segurou a mão dela, sorrindo.

“Agora ficar na sala cuidando das suas irmãs um pouquinho, só para nós colocarmos roupas... E então vamos lá pegar vocês e dormimos todos juntos, tá bom?” Pediu a mãe.

“Mas elas estão dormindo.”

“Será?” Perguntou o pai, ouvindo resmungos. “Não seria legal elas verem a gente assim, pinguinho.”

“É, não seria mesmo. Mas não demora, tá? Eu tenho medo da chuva.” A criança saiu correndo, chamando pelo nome das irmãzinhas. Os pais se encararam, suspirando.

“E eu jurando que nós poderíamos voltar a transar.” Resmungou o homem, ouvindo a esposa rir. “Agora é capaz que tenhamos que pagar terapia para a Ella.”

“Relaxa, Jorge, ela ainda é criança. Logo esquece.”

Mas, claro, ela não esqueceu. Pelos dias seguintes, a menina perguntou sobre o assunto diversas vezes, e não apenas para os pais. Para a professora, para os avós, para os padrinhos, para os tios, para o Google. Logo, a primeira parcela de inocência de Ella havia se extinguido... Só não queriam pensar quando seriam as próximas.

~*~

Ella sempre havia sido uma criança muito ativa e agitada, desde seu nascimento. Mas os pais estavam sempre com o dinheiro contado e sem ter como colocá-la em atividades extracurriculares. Porém, após o nascimento das gêmeas e a descoberta do dinheiro que vinha da empresa de Alberto, seus pais a encheram de atividades.

De segunda e quarta ela fazia ballet, de terça e quinta natação. Aula de violão nas quintas após nadar, inglês de quarta e sexta. Depois de um tempo ela se interessou por futebol, e então por muay thai. E o último acabou sendo sua grande paixão.

Agora, já prestes a fazer 13 anos, Ella se mantinha apenas na luta, com treinos quase diários, no futebol, na natação, no inglês e nas aulas de violão aos sábados de manhã. Seu corpo era bem atlético por isso, suas notas exemplares e seu comportamento exemplar. Quando perguntavam o que queria para o futuro, ela respondia prontamente que seria nadadora, lutadora ou jogadora, mas que deixaria o tempo escolher para qual dos lados iria.

Por conta da prática constante de esportes, sua primeira menstruação veio relativamente tarde, às vésperas do décimo terceiro aniversário. Ella estava saindo do banho quando percebeu a toalha manchada e gritou pela mãe, desesperada. Obviamente que o pai e as irmãs correram para o banheiro também, e ao ver o que acontecia, Jorge tratou de sumir com as gêmeas do apartamento, para que Margarida pudesse ter a famosa conversa “de mulher para mulher”.

Quando foram à médica, a mesma explicou que a garota provavelmente seria bastante alta, considerando a idade com que menstruou, mas que não daria remédios para controlar a menstruação, como o treinador dela havia pedido. Segundo a doutora, e Margarida concordou, Ella ainda estava em fase de crescimento e desenvolvimento, e não seria prudente dar-lhe mais hormônios do que seu corpo já produzia.

Foi mais ou menos nessa época que o interesse por garotos ficou mais intenso. Claro, ela sempre havia tido aquele que fosse sua “paixão”, mas era algo bobo e infantil, inocente. Agora, quase indo para o nono ano, começava a história de namorar e todas as amigas a cobravam porque não tinha beijado na boca ainda. Mas sua preocupação eram os esportes e seu desempenho nos mesmos. Queria ser a melhor, e mais nada importava.

Até aquela noite.

~*~

Ella acordou assustada e ofegante. Não era a primeira vez que tinha falta de ar, elas na verdade estavam sendo constantes e comuns. Sua mãe, inclusive, havia marcado de leva a alergista, acreditando ser alguma alergia despertada pelo tempo seco. Porém, a falta de ar nunca havia sido como aquela.

A garota acendeu o abajur e sentou na cama, mas não tinha forças para levantar da cama, sentia o mundo girando. Tentou gritar, mas a voz não saia. Em uma atitude desesperada, começou a derrubar coisas no chão, fazendo barulho.

O quarto dos pais era bem ao lado, e não tardou para Jorge estar na porta, preocupado. Ao ver o estado da filha, começou a gritar pela esposa, já correndo para acudir a garota.

“Eu... Não... Consigo... Respirar.” Ofegou a adolescente, já beirando a inconsciência.

Àquela altura, Sabrina e Rebeca já estavam na porta, as duas com 6 anos recém-completos. Seus olhinhos estavam cheios de lágrimas e de pânico, as duas agarrando a mãozinha uma da outra, apavoradas. Margarida correu até elas, sem conseguir controlar suas emoções muito bem.

“Meninas, peguem a chave e vão pro apartamento da tia Alicia, ok? Eu e o papai vamos levar a Ella para o hospital.” Pediu com a voz esganiçada, mas as duas não deram atenção. “Sabrina! Rebeca!”

“A tata vai morrer, mamãe?” Rebeca caiu no choro, assustada.

“Não, meu amor, calma. Ela não está passando bem, e por isso nós vamos com ela para o hospital. Fiquem com a tia Alicia, ok? Acordem ela e o tio Paulo, e peçam para eles nos ligarem.” As duas assentiram, já correndo com a mãe para a sala. “Vamos, Jorge.”

“To indo.” Ele apareceu no corredor com a filha semi-inconsciente nos braços. “Aguenta firme, pinguinho.”

Margarida entregou a chave do apartamento dos amigos para as filhas, e apanhou as duas carteiras e as chaves do carro. Sabrina já havia chamado o elevador, mas ele estava vindo do térreo e ainda demoraria.

“Esperem o elevador e vão para a casa da sua tia.” Mandou Jorge, enquanto eles sumiam pelas escadas, correndo o máximo que conseguiam, especialmente ele. “Força a tosse, filha... Faz seus pulmões funcionarem, está bem?”

Mas ela não respondia, ou talvez não entendia. Tudo era um borrão em frente aos seus olhos, e respirar ficava cada vez mais difícil.

No estacionamento, Margarida se jogou no banco de trás e pegou a filha, enquanto Jorge assumia a direção e saia cantando pneus. As ruas estavam vazias àquela hora da madrugada, e ele já havia ultrapassado todos os limites de velocidade possíveis. Nem dava importância para as multas que receberia, só queria e precisava chegar ao hospital logo.

Assim que embicou o carro na emergência, a polícia embicou atrás, mandando que saísse do carro. Os ignorou, enquanto Margarida chutava a porta e Ella arfava. O policial até tentou avançar contra o loiro, mas ao ver o estado da menina sua atitude mudou e ele mandou o parceiro correr buscar ajuda.

Algum tempo depois, Jorge e Margarida se viam na mesma situação de quase quatorze anos antes, quando encontraram suas mães na sala de espera daquele mesmo hospital, após elas trazerem Ella inconsciente e com os lábios azulados por não conseguir respirar. A polícia já havia ido embora, após pedir que Jorge assinasse um depoimento tomado as pressas para justificar o carro em tão alta velocidade dentro da cidade.

Ficaram surpresos ao ver Paulo e Alicia chegar, os dois aflitos.

“Cadê ela?” Perguntou a morena.

“Lá dentro, com os médicos. Cadê as meninas? O Danilo, o Thiago?” Margarida devolveu a pergunta.

“A dona Pérola acordou com o barulho da Sabrina e da Rebeca, e se ofereceu para cuidar dos quatro enquanto nós vínhamos para cá, ficar com vocês.” As duas se abraçaram, trêmulas.

“É o coração dela de novo?” Paulo perguntou em voz baixa.

“Não sabemos, cara... Os médicos só a levaram para dentro e ainda não deram notícias.” Jorge caiu sentado, massageando as têmporas.

“Vocês avisaram seus pais?” Os dois negaram. “Querem que eu faça isso?”

“Seria ótimo, Paulo, obrigado.” Agradeceu Margarida, sentando com a amiga. “E passa uma mensagem para o pessoal. Eu sei que está todo mundo dormindo, mas é bom avisar.”

“Claro.” O Guerra se afastou com o telefone em mãos, já discando.

~*~

Quando o médico veio falar com o casal, mais de duas horas depois, os avós de Ella já estavam ali, além de Mário, Davi e Cirilo. Os três foram acordados pelas esposas, que foram despertas pelo celular, e foram ficar com os amigos.

“Como a nossa filha está, doutor?” Perguntou Jorge, aflito.

“Ela está fora de perigo por enquanto... Mas está sedada e no respirador.”

“Respirador?”

“A Ella não está conseguindo respirar por conta do coração. Eu vi no histórico médico que ela teve um sopro no coração quando nasceu, e já fez uma cirurgia na época. Estamos terminando os exames, mas o problema provavelmente é o mesmo.”

“Um sopro?”

“Talvez uma recorrência dele, sra. Cavalieri. Sua filha tem apresentado falta de ar há muito tempo?”

“Alguns dias, eu ia levá-la ao alergista. Eram coisas pequenas e rápidas.” Explicou a mulher.

“A Ella é atleta, doutor, está sempre praticando esportes e tem uma saúde de aço.” Contou Jorge, nervoso.

“Vamos esperar o resultado dos exames para ver o que está acontecendo.” Pediu o médico, sereno.

“E nós podemos vê-la?” Pediu a mãe.

“Ela foi levada para a UTI, sra. Cavalieri, não pode receber visitas. Mas lhes manteremos informados, está bem?”

~*~

Parecia que ninguém precisava trabalhar. Os Guerra e os Rivera se responsabilizaram por cuidar de todas as crianças, além dos netos, e assim todos os amigos foram para o hospital, estar junto com Jorge e Margarida.

O diagnóstico veio logo cedo e a solução seria submeter a menina a uma nova cirurgia. A válvula que nasceu com o sopro havia falhado de vez, e novamente ninguém percebeu o que estava acontecendo. Durante a conversa, Paulo lembrou que a afilhada havia lhe contado de um golpe forte que recebeu no peito durante um treino, por erro de cálculo da outra lutadora. Os sintomas começaram depois do acontecimento, e o médico concordou que poderia ter a ver.

Alberto e Rosana não pouparam gastos, e logo após o almoço já tinham tudo o que precisariam para que pudessem operar Ella ainda aquela noite, incluindo a válvula mecânica que substituiria a danificada.

O médico deixou que os pais vissem a menina, ainda sedada e no respirador, antes de ir para a cirurgia. Ele explicou que a cirurgia era mais invasiva que da primeira vez e que ela seria ligada uma máquina pulmão-coração, já que durante o procedimento seu coração estaria parado.

E apesar de ele não ter dito com todas as palavras, os dois sabiam que isso significava que talvez ele não voltasse mais a bater depois que isso acontecesse.

“Oi, pinguinho.” Jorge beijou a testa da filha, largada na cama como uma boneca sem vida. “Não precisa ter medo, tá bom? Eu sei que esse lugar é estranho, tem um cheiro ruim e um monte de coisas que parecem assustadora, mas você completamente protegida.”

“É, é só por um tempinho. Daqui uns dias você já volta para casa com o papai e a mamãe, para o seu quarto, suas coisas. E você vai voltar bem, sem mais nenhum problema.” Margarida lembrava palavra por palavra que havia sido dita anos antes, e as repetiu em uma espécie de mantra de boa sorte. “Nós não podemos ficar aqui dentro com você o tempo todo, mas nós vamos estar o mais pertinho que pudermos, está bem? Nós não vamos deixar você.”

“Nunca, nunca, nunca.” Jorge segurou a mão da esposa, os dois chorando. “Você é tudo para a gente, Ella... Nós não vamos a lugar nenhum sem você, filha. E nem você sem a gente. Vai ficar tudo bem, meu amor.”

~*~

Foram quase oito horas de cirurgia. A sala de espera estava abarrotada de gente, todos esperando por notícias da mesma paciente. Jorge e Margarida não soltaram as mãos por um segundo, mesmo quando os dedos adormeceram e formigaram.

Já era de madrugada quando o médico apareceu, exausto, e encontrou todos firmes ali, juntos, esperando por notícias.

“As próximas quarenta e oito horas são críticas, mas a princípio a cirurgia foi um sucesso.” Avisou o homem, sorrindo para todos. “A Ella está na UTI em observação, e logo vocês dois vão poder entrar rapidamente para vê-la de novo.”

“E agora ela vai ficar bem? Ou o coração pode falhar de novo?” Perguntou Sérgio.

“Agora o coração da Ella não deve mais ter problemas. A correção que foi feita no sopro quando ela nasceu foi primorosa; porém, o médico da época deveria ter recomendado visitas periódicas a um cardiologista, além de exames anuais para acompanhar o crescimento dela e do coração. Que é o que ela terá que fazer pelo resto da vida, para que possamos ter certeza que isso não vai se repetir.”

“E a falta de ar vai deixar alguma sequela?”

“Só saberemos quando a garota acordar, mas os primeiros exames de estímulo e reação não mostram nada. Ela precisara se atentar sempre a esse sintoma, que foi o fator crucial nas duas crises que ela teve. Ella teve falta de ar, é hora de ligar para o cardiologista e ver se está tudo bem.”

“E quanto aos esportes, doutor?” Perguntou Jorge, preocupado.

“O que tem, sr. Cavalieri?”

“Nossa filha quer ser atleta, doutor. Está em dúvida entre jogadora de futebol, nadadora e lutadora. Esse problema vai influenciar alguma coisa na vida dela?” Questionou Margarida.

“Vocês sabem que esportes são recomendados e essenciais na vida e na saúde das pessoas. Inclusive na da Ella.” Todos suspiraram aliviados. “Mas não esses.”

“Como?” Paulo ficou surpreso.

“São esportes de grande impacto físico. Vocês mesmo falaram de um golpe errado que a Ella recebeu no peito, que pode ter ocasionado a aceleração de toda essa crise. E a natação é ótima para quem tem problemas respiratórios, mas não no caso da filha de vocês. Eu recomendaria à ela yoga ou talvez exercícios de meditação, coisas que ajudassem no equilíbrio e na respiração de forma suave. O coração da Ella não pode sofrer grandes esforços e impactos.” Explicou o médico, penalizado. “Eu sinto muito, Sr. e Sra. Cavalieri... Mas a filha de vocês vai precisar encontrar um novo sonho.”

~*~

Foi quase um mês até que Ella tivesse alta no hospital. Durante todo esse tempo, ninguém disse nada sobre os esportes. Ela saiu da UTI depois de uma semana, mas deixou a sedação e o respirador depois de dois dias.  Como nessa fase foi passada para a área semi-intensiva, os pais passaram a se revezar para acompanhá-la.

Assim que ela chegou no quarto, recebeu a visita das duas irmãs, chorosas e preocupadas. A última que viram a irmã ela estava quase desmaiada por não conseguir respirar, e depois o sumiço dos pais e toda aquela confusão. Àquela altura o curativo no peito já havia sido retirado, deixando visível apenas o corte pelo decote da camisola.

“Você só tinha um risquinho... Agora é um riscão.” Comentou Sabrina, surpresa.

“É, baixinha... A tata agora tem uma parte meio robô aqui dentro.” Brincou Ella, com as duas irmãs abraçadas à ela.

Claro que as visitas não pararam por aí. Além das gêmeas, que iam a cada dois dias, Danilo foi visitá-la duas vezes por semana, apegado como era à prima mais velha. Alicia e Paulo iam todos os dias, assim como os avós, e todos os tios a visitaram pelo menos duas vezes. As amigas de escola e do prédio também foram um dia, em uma pequena “excursão”, e até mesmo seu mestre a visitou, querendo saber quando ela voltaria para o tatame.

Foi recebida no apartamento com festa pela família, o local abarrotado de pessoas. Seus priminhos pequenos, todos mortos de saudade dela, não desgrudavam por um minuto, sempre chamando seu nome e querendo sua atenção. Mas Ella não se importava, tamanho seu estado de graça por afinal estar voltando à sua vida.

Foi só na primeira consulta com o cardiologista que recebeu a dura notícia de sua nova realidade, e começou a sentir os efeitos dela.

“Eu não vou poder mais lutar? E nem jogar futebol ou nadar?” Ela gritou, fazendo os pais se encolherem. Tentaram tanto adiar aquele momento, sabendo que ele seria difícil para a filha, e mesmo assim não se sentiam prontos para confrontá-lo.

“Você ainda pode praticar esportes, Ella, mas que causem menos impacto ao seu coração. Você já é grande o bastante para entender: você tem um órgão doente, querida. Ele foi remendado uma vez e você usou e abusou dele, até que ele se partiu de novo. O remendamos de novo, e agora precisamos cuidar de mantê-lo assim. Ou você quer passar por isso de novo? Quase morrer de falta de ar? Ter seu peito aberto mais uma vez, ficar amarrada em um hospital, longe da sua vida?” O médico era duro, porém gentil, mas ela não queria ouvir.

“Que vida? Minha vida acabou. Tudo o que eu queria, tudo o que sonhava...” Os olhos azuis se encheram de lágrimas. Ela se virou para os pais, possessa. “E isso é culpa de vocês.”

“Nossa culpa?” Perguntou a mãe, confusa.

“Se vocês não tivessem sido dois irresponsáveis e se cuidado direito, você não teria ficado grávida adolescente. Meu problema no coração é uma consequência disso, de você ter me tido muito nova.”

“Não tem como ter certeza disso, Ella.” O médico interveio, mas ela não queria ouvir.

“Mas eu tenho. E mesmo que não seja uma consequência biológica, é uma consequência divina. É fruto de toda a raiva que vocês sentiram de mim quando descobriram que ela estava grávida, do quanto vocês desejaram que eu não existisse.” A menina soluçava com força. “Vocês destruíram a minha vida. Eu odeio vocês.”

~*~

Depois disso, Ella mudou da água para o vinho. A menina doce, boa aluna, brincalhona e gentil deu lugar para uma pessoa grossa, fechada, irresponsável e azeda. Destratava as irmãs e os primos, os ignorando constantemente. Desobedecia os pais e os provocava da forma que conseguia. Não fazia as lições de escola e constantemente matava aula. Deixou as aulas de violão e inglês, jogou coisas fora, rasgou roupas e, pior de tudo, pintou o cabelo de azul e o cortou na altura do queixo sem a autorização de Jorge e Margarida.

Passou pelo nono ano por pena de Helena e dos professores, mas já começou o primeiro ano do Ensino Médio bombando. Os pais a mandaram para a psicóloga, mas a única coisa que ela sabia fazer encará-la em silêncio ou falar todos os palavrões que conhecia, sem parar e repetidamente, até que o tempo se encerrasse.

Ela também começou a namorar. Não um, mas vários meninos. Perdeu o BVL com um garoto de sua sala no nono ano, durante uma festinha. Depois, na festinha seguinte, no final do ano, ficou com mais três. Assim que entrou no Ensino Médio, começou um namoro sério com um menino dois anos mais velho e encrenqueiro. A situação era tamanha que Helena foi buscar os pais da garota.

“O Diego não é um mal aluno, mas tem uma péssima atitude como pessoa. Fuma, bebe e arranja briga. E eu tenho visto ele e a Ella se agarrando pelos corredores constantemente, matando aula.” A mulher contou, horrorizando os pais.

“A Ella está namorando?” Guinchou Jorge, consternado.

“Nós não sabíamos de nada.” Margarida afundou o rosto nas mãos, decepcionada.

“Eu sei que vocês estão passando por uma fase complicada com a Ella, está visível nas atitudes dela que algo a está incomodando. Mas eu estou realmente preocupada com o rumo que as coisas estão tomando, queridos. Ela ainda vai completar 15 anos daqui alguns meses, é praticamente uma criança. E eu sei que o Diego tem atitudes de todo o tipo, menos de criança.”

“Não me fala isso, Helena, pelo amor de Deus.” Implorou o pai desesperado.

“Nós vamos ter que tomar alguma atitude, Jorge. Nós tentamos respeitar o espaço dela, deixar que ela extravasasse a raiva, explodisse, mas isso está indo longe demais. Mais de um ano já passou e olha onde as coisas chegaram.” Margarida virou para o marido, desesperada.

“Longe demais para o meu gosto, Margarida.”

~*~

Quando chegaram em casa, estavam prontos para ir até o quarto da filha e ter uma conversa séria. O que não esperavam era encontrá-la quase se comendo com um menino no sofá da sala.

Ella Garcia Cavalieri, que merda é essa?” Jorge gritou com toda a força dos pulmões, assustando os dois. O rapaz, bem mais velho que a filha e com o cabelo platinado, apenas riu e fez um joinha.

“Fala aí, sogrão... Beleza?”

“Cadê as suas irmãs?” Margarida procurou as filhas mais novas com o olho.

“Tranquei elas no quarto para me deixar em paz.” A garota deu de ombros, desinteressada.

A mulher correu e destrancou a porta por fora, encontrando as duas meninas chorando. As pegou pela mão e foi até a sala, vendo o marido ficar ainda mais inflamado de raiva. Abaixou em frente a Sabrina e Rebeca, forçando um sorriso.

“Vão para a casa da tia Ali um pouquinho, tá bom? Brincar com o Dani e o Thi. O papai e a mamãe precisam conversar um pouquinho com a Ella.”

As duas nem discutiram, apenas saíram correndo de mãos dadas e sumiram pelas escadas. A morena então socou a porta, virando para a filha com os olhos escuros de raiva.

“Você ultrapassou todos os limites, Ella.”

“Que limites, mãe?”

“Todos, Ella, todos os possíveis.” Jorge se segurava para não voar em cima dos dois. “E você, seu vagabundo, tá fazendo o que aqui ainda?”

“Ele é meu namorado e está na minha casa.” A adolescente rebateu, fazendo os pais rirem.

“Você tem 14 anos, depende da gente e nos obedece. E nós não permitimos a entrada desse marginal aqui, muito menos que ele fume na nossa casa.” Margarida viu um cigarro apagado na mesa de centro. “Vaza daqui, moleque.”

“Que grosseria, tia.”

“Eu vou ter que te pegar pelo pescoço, garoto?” Jorge se aproximou e o puxou pela camiseta, arrastando até a porta. “E para a sua informação, a Helena já nos avisou que você é maior de idade. Minha filha é só uma criança, então eu sugiro que você fique bem longe dela, ou eu te denuncio por pedofilia. Entendido, seu porco?”

“Vai me escoltar até lá embaixo, chefe?” Debochou o rapaz, rindo.

“Não, deixo esse trabalho para o padrinho da Ella.” Paulo apareceu naquele momento, sério. “Guerra, acompanha o ex-namorado da Ella até a saída, por favor.”

“Com prazer.” O advogado estralou os dedos em um soco, puxando o garoto pelo braço e o arrastando até o elevador.

Assim que a porta do mesmo se fechou, Jorge bateu a porta de casa, irritado.

“Vocês não cansam de estragar minha vida, caralho?” A garota levantou do sofá aos berros.

“Você dobra sua língua e maneira o tom de voz para falar comigo, Ella Cavalieri, ou vai perder todos os dentes que tem na boca.” Avisou Margarida, assustando a filha. “Chega, Ella¸ deu a nossa paciência. Nós tentamos ser compreensivos, respeitar o seu tempo, mas você está abusando. Trancar as suas irmãs no quarto daquele jeito? Trazer um garoto desconhecido e de índole duvidosa para dentro da nossa casa? Você perdeu o juízo?”

“Se perdi, não foi a única coisa.” Ela sentou no sofá de braços cruzados, emburrada.

“Enquanto você viver no nosso teto, nos deve respeito, Ella. A nós e as suas irmãs. De agora em diante, suas grosserias não serão mais toleradas. Estamos entendidos?” Jorge ameaçou, a expressão séria. “E a cada nota baixa que você tirar, tiraremos algo de você.”

“Ah é? E o que mais vocês podem tirar de mim que ainda não tiraram?”

“Quer começar assim? Pois bem.” Jorge apanhou o celular dela no sofá e arremessou com tudo na parede, fazendo o mesmo se partir em dezenas de pedaços.

“Você perdeu seu juízo? Você destruiu meu celular, pai.” A garota de cabelos azuis avançou contra ele, que segurou seus pulsos.

“Esse foi só o primeiro, Ella... E você não vai ganhar outro celular, nem de nós e nem de ninguém. A partir de hoje você perdeu sua mesada, e está de castigo por tempo indeterminado. Da escola para casa, de casa para a escola. Eu to no meu limite contigo, garota... Você não queira ver se eu ultrapassar ele.”

~*~

Claro que não adiantou e as atitudes de Ella continuaram terríveis. Nas semanas seguintes ela perdeu o notebook, o tablet, a TV, seus livros. Logo seu quarto era só a cama e as roupas que ela não havia rasgado, porque até isso eles pararam de comprar.

Dois meses depois ela apareceu em casa com um pircing no nariz e tentou desdenhar da mãe quando ela foi repreende-la. Com isso viu seu par de sapatos favorito ser afogado na privada.

A maioria dos amigos não aprovava as atitudes do casal, mas reconhecia que não sabiam mais como ajudar. Claro que era horrível perder um sonho, como aconteceu com Ella, mas nada justificaria as atitudes que a menina vinha tendo. Especialmente em relação aos pais.

Suas atitudes começaram a refletir no comportamento de Sabrina, Rebeca e Danilo. As gêmeas se tornaram arriscas e agressivas, e o primo de consideração começou a responder os pais e aprontar mais do que Paulo quando era criança.

“Eu não sei mais o que fazer, Jorge.” O casal estava sentado no sofá da sala, Margarida aos prantos. “Nós já tiramos tudo o que a Ella tinha, e não surtiu efeito nenhum. Tentamos dar tudo, e não ajudou. Tirar também não. Qual o próximo passo? Privar ela de comer? Bater nela? Deixar que ela faça o que quiser e pedir a Deus que ela não morra?”

“Você sabe que eu estou na mesma que você, meu amor...” O loiro a abraçava com carinho, também triste. “Se eu pudesse dar o meu coração para a nossa filha e trazer ela de volta ao que era, eu morreria com o maior prazer desse mundo.”

“Nem fala isso, amor, nunca mais. Você sabe que eu não conseguiria ficar sem você.” Ela o abraçou com mais força, os dois chorando. “Eu só quero a nossa família de volta, Jorge.”

“Eu também, Marga, eu também.” Ele beijou a testa dela, encarando o nada.

Não deu nem cinco minutos e a porta da sala se abriu, revelando Ella, rindo mole e tropeçando nas coisas. O casal a encarou, sentindo o sangue ferver.

“Você está bêbada?” Perguntou o pai, se levantando e indo segurá-la antes que ela caísse em alguma coisa.

“Talvez. O que você tem a ver com isso?”

“Tudo, Ella. Eu sou seu pai, ou você se esqueceu disso?” Jorge a fuzilou, irritado.

“Eu quero vomitar.” Ela disse de repente, e os dois correram com ela para o banheiro, a segurando enquanto ela colocava todo o conteúdo do estômago na privada. A menina começou a rir. “Eu comi milho ontem?”

“O que você bebeu, Ella?” Perguntou Margarida, tentando se controlar.

“Vodca, mamãe, muita vodca. Vodca é legal, ela é minha amiga.”

“Pelo amor de Deus.” Jorge bufou, abrindo o chuveiro e pegando a menina no colo, a colocando embaixo da água enquanto ela esperneava.

“Você tá molhando minha roupa.”

‘Melhor com água do que com vômito e urina.” O pai estava encharcado também, mas a segurava com força. “Margarida, pega uma toalha, por favor.”

Quando ele sentiu que a água gelada havia desanuviado um pouco a mente da filha, desligou o chuveiro e a colocou no chão. A esposa enrolou a menina na toalha e deu outra para ele, os dois saindo do banheiro.

“Vocês acabaram com a minha maquiagem.” Berrou Ella, se encarando no espelho.

“E você está acabando com a sua vida. Quem está fazendo pior?” Rebateu a mãe, irritada.

“Você vai querer falar sobre vir acabar com a vida? Sério? Os dois maiores exemplos de irresponsabilidade que eu conheço.” A garota desdenhou, rindo. Não soube ao certo de onde veio o tapa, só que a mão da sua mãe ficou marcada em seu rosto.

“Chega, Ella, CHEGA! Eu não aguento mais você nos chamando de irresponsáveis e toda a merda do tipo. Você quer saber o que aconteceu? Então vamos lá: eu e o seu pai transamos duas vezes. Na primeira, quando você foi concebida, a camisinha estourou e eu engravidei. Eu tinha 16 anos quando descobri, seu pai tinha acabado de completar 17, e se nós usamos camisinha é porque somos responsáveis, nos protegemos e não queríamos uma gravidez.”

“E você fala isso assim, na minha cara?” A menina estava abismada.

“Não é o que você queria ouvir, Ella? Que nós não te queríamos, que você foi um acidente?” Perguntou Jorge. “É essa a realidade, você foi um acidente. E nós realmente te odiamos, quisemos que a nossa vida pudesse voltar ao normal. Mas nós te amamos desde o começo, Ella, porque você é nossa filha, sangue do nosso sangue, e por mais que você desdenhe, você é fruto do nosso amor, é por isso, é parte dele. E sabe qual foi o maior medo da sua mãe durante toda a gravidez? Não de perder as coisas, o corpo, a juventude, nada assim... O maior medo dela foi que nós não conseguíssemos te amar como você merecia, por sermos jovens e imaturos, e que você sentisse isso. Então desde o minuto em que você escorregou para as mãos do Mário, no meio daquela tempestade, tudo o que nós temos feito da vida é tentar te fazer amada e feliz.”

“Nós dois nunca tomamos um porre na vida, Ella. No aniversário de 18 anos do seu pai nós estávamos no hospital, porque você estava com tosse e nós tínhamos acabado de passar pela sua primeira cirurgia. No meu aniversário de 18 anos, ao invés de sair para uma balada com os meus amigos, nós fomos em um restaurante cheio de brinquedos, porque era onde você se sentia bem. Eu e seu pai erramos, mas fomos responsáveis o bastante para assumir isso e abrimos mão de tudo por você, ao contrário do que muitos pais adolescentes fazem. Não foi fácil, mas nós cuidamos de você desde o começo, tentamos fazer as escolhas mais acertadas, e até um ano e meio atrás, achávamos que tínhamos conseguido.” As lágrimas escorriam dos olhos de Margarida conforme ela falava, mostrando o quanto ela estava destruída.

“Eu sei que o seu sonho foi arrancado de você, Ella... Advinha, os nossos também foram arrancados de nós quando você nasceu. Quando eu imaginava minha vida aos 32 anos, era bem diferente disso. Aos 32 eu estaria começando uma família, não tendo cabelos brancos e um ataque cardíaco por minha filha de 15 se rebelou contra o mundo e está tornando a vida de todos miserável. Pelo amor de Deus, eu não imaginava que precisaria levar duas meninas de sete anos a um psicólogo porque começaram a agredir as pessoas gratuitamente na escola, um reflexo do que veem a irmã fazendo aqui dentro.” Jorge suspirou cansado. “A diferença é que quando nossos sonhos se foram, nós não culpamos o mundo, mas sim aceitamos nossa nova condição e tentamos encontrar a melhor forma de lidar com ela, e só tínhamos dois anos a mais do que você tem hoje.”

“Então chega, Ella. Toma, o cartão de crédito. Vai, compra o que você quiser. Bebe, fuma, se fura toda, destrói a sua vida. Nós dois, honestamente, estamos cansados. Faz o que quiser da sua vida, mas não seja um dementador que suga a alegria de todos à sua volta.” Margarida jogou a carteira para a filha, caminhando para o quarto com Jorge atrás dela.

Ella encarou a carteira em suas mãos por um tempo, antes de sentar no sofá e começar a chorar.

~*~

“Caraca... Sinto muito por isso.” Suspirou Valéria, após ouvirem o relato dos amigos. Todos os amigos estavam no prédio, na área de churrasco. As crianças brincavam na piscina, e Sabrina, Rebeca e Danilo pareciam mais tranquilos naquele dia, estando na companhia de todos os amigos.

“A Margarida chorou até dormir nesse dia. Foi horrível termos dito tudo isso para a Ella, mas parece que era o que ela queria, sabe? Ela queria nos ouvir dizer que ela foi um erro.” Jorge virou um gole da cerveja, cansado.

“E o Danilo, Ali? Como ele tá se portando?” Perguntou Margarida, encarando o afilhado.

“Ele deu uma estourada com a gente outro dia, depois de uma bronca que o Paulo deu nele. Disse que sentia falta da Ella e que estava triste pela maneira que ela vinha agindo, e que achou que se agisse igual, ela ia voltar a gostar dele.” Suspirou Alicia. “Ele só tem nove anos, as coisas ainda não fazem muito sentido para ele.”

“Sinto muito por isso.”

“Hey, a culpa não é sua amiga, pode ir parando. Todos nós estamos fazendo o que podemos pela Ella, principalmente vocês dois. Mas agora ela não é mais uma criança, e está começando a ser dona e responsável das próprias atitudes.” A morena segurou a mão dela, sorrindo.

“Valentina, não deixa sua irmã tão perto da borda.” Valéria chamou a filha mais velha, de seis anos. Ela ajudava a caçula, de um ano e meio, a andar e estava muito perto da piscina. “Hã, Marga... Cadê a Rebeca?”

“E o Danilo?” Paulo procurou o filho, não o encontrando.

“Não sei.” Jorge desceu até as crianças. “Bina, cadê sua irmã?”

“Ela e o Dani foram buscar a bola de piscina, papai.” Sabrina correu até ele, toda sorridente. “Você e os tios querendo jogar com a gente?”

“Claro, vai ser legal.” O pai sorriu para a caçula, lhe dando um beijo no rosto. “Mas antes, acho melhor todo mundo repassar o protetor, que tal?”

“Pode ser.” Ele a colocou no chão, ajudando o resto das crianças a sair da piscina.

Logo todos estavam sendo besuntado de protetor solar pelas mulheres, tantos os pais quanto os filhos, ansiosos para ir brincar juntos na água. Foi quando ouviram os gritos de Danilo e Rebeca, que vinham correndo.

“O que foi?” Paulo e Jorge foram os primeiros a alcançá-los, preocupados.

“Ele vai machucar ela, tio.” Gritou Danilo, enquanto Rebeca só chorava.

“Quem vai machucar quem, Danilo?”

“O namorado malvado da Ella, papai, ele tá aí. Ela tá mandando ele ir embora, falando para ele parar, mas ele não para. Ele bateu na Ella, pai.” Gritou a Cavalieri, assustada.

Os dois homens largaram os filhos, saindo correndo. Pularam na escada mesmo, logo ouvindo os demais amigos atrás. Já estavam batendo recorde de tempo para subir seis andares, e um dia conseguiriam fazer isso voando se as coisas continuassem naquele ritmo.

Conseguiram escutar os gritos de Ella e Diego no corredor, os dela cheios de desespero e os dele cheios de raiva. Jorge e Paulo foram os primeiros a entrar no apartamento, encontrando uma cena que ninguém no mundo gostaria de ver.

“Sai de cima da minha filha, seu desgraçado.” Jorge virou um soco que quebrou seus dedos, tamanha a força aplicada. Diego voou longe, mas tentou revidar, sendo segurado por Paulo e Mário. Cirilo puxou uma toalha da mesa, jogando sobre a adolescente caída no sofá. “Eu te avisei para ficar longe dela, seu marginal.”

“E mesmo assim, ela veio atrás de mim. Estava louca para dar.” O rapaz zombou, recebendo um soco na barriga do padrinho da menina.

“Davi, liga para a polícia, agora.” Mandou Cirilo, jogando o telefone para o amigo. Ele havia assumido uma posição protetora ao lado de Ella e se recusava a sair dali até que Diego estivesse longe da menina.

Ella.” Margarida e Alicia entraram naquele momento, correndo até a menina. Ela se agarrou nas duas, chorando de forma desesperada. “Ele te machucou?”

“Ele me deu um soco.” Puderam ver o olho da menina começando a ficar marcado. “Mas ele não conseguiu fazer mais nada.”

“Você tem umas coxas bem fortes, gatinha. Adoraria ser prensado por elas.” Diego zombou, recebendo um soco de Mário dessa vez. “Eu posso processar vocês por me agredirem, sabiam?”

“Eu e minha esposa somos dois dos melhores advogados dessa cidade, seu bostinha. Você quer mesmo falar sobre processar?” Ameaçou Paulo, dando um riso irônico. “Você acabou de agredir e tentar estuprar uma menina de quinze anos, sendo maior de idade. Eu posso acabar com a sua vida, desgraçado.”

“Danilo, volta aqui.” Ouviram Marcelina gritando no corredor e de repente o jovem Guerra apareceu, se atirando sobre Diego com uma cabeçada.

“Danilo.” Alicia se levantou para ir atrás do filho. Paulo soltou Diego para segurar o garoto, e foi o que bastou para o rapaz conseguir chutar a barriga do garoto, o fazendo cair longe.

“Jaime, me ajuda aqui.” Pediu Mário, recebendo o auxílio do amigo para segurar Diego, enquanto Paulo pegava Danilo do chão.

“Machucou, filho?” Perguntou o pai o segurando no colo, enquanto Alicia erguia sua camiseta. “Você ficou doido? Brigar com alguém maior que você?”

“Ele machucou a Ella, papai.” Chorou Danilo, nervoso.

“A polícia chegou.” Adriano apareceu com os homens fardados, que logo algemaram Diego.

“Nós precisamos que um de vocês, pelo menos, nos acompanhe até a delegacia. Se possível, a garota também.” Pediu o policial responsável.

“A Ella vai para o hospital, ser examinada. Ele bateu e forçou muito as pernas dela, pode ter causado alguma lesão.” Avisou Cirilo, que era ortopedista. “E você também, Jorge... O barulho da sua mão quando socou o Diego foi de ossos quebrando, e sua mão está estranha. É bom levar o Danilo também, ver se o chute não machucou nada mais sério.”

“Ali, vai com eles. Eu vou para a delegacia e faço a queixa contra esse infeliz.” Paulo pediu para a esposa, que concordou.

“Vem, filha, vamos colocar outra roupa em você.” Margarida enrolou a menina na toalha, cobrindo as partes rasgadas da roupa. As duas se levantaram, mas a mãe se afastou. “Antes de tudo...”

E deu um soco nos testículos de Diego, que gritou de dor.

“Nunca mais chegue perto da minha família, ou eu arranco essa merda do meio das suas pernas.”

~*~

“Acho que nossos amigos vão parar de atender nossas ligações logo. Toda vez que os chamamos, é alguma coisa ruim acontecendo.” Comentou Margarida, assim que entraram em casa à noite.

“Na verdade isso deixa a nossa vida mais emocionante, então não vamos parar.” Marcelina estava com André adormecido em um sofá, e Sabrina e Rebeca capotadas no outro. “Eles finalmente dormiram.”

“Cadê a Luiza?”

“Aqui.” Mário apareceu com a filha caçula no colo. “Ela tinha sujado a fralda, fui trocar no banheiro.”

“E o Thiago?”

“O Paulo veio buscar ele logo que voltou da delegacia. Ele falou para deixarmos as meninas com ele, mas achamos melhor ficar com elas e dar um tempo para o meu irmão se acalmar.” Marcelina pegou a filha do marido, deixando para ele pega o filho mais velho. “Você está bem, Ella?”

“Estou sim, tia. Vou ficar com o olho inchado do soco e a perna dolorida por um tempo, mas não aconteceu nada mais sério.” A menina disse baixinho, envergonhada.

“É isso o que importa, querida. Na hora certa vai aparecer um bom rapaz, e você vai ficar feliz por ter dito não para esse imbecil.” Marcelina lhe deu um beijo, indo se despedir dos amigos. Mário também abraçou a menina, se despedindo dos amigos e saindo.

A família ficou sozinha, em silêncio.

“Eu vou acordar elas.” Avisou Margarida. “E nem discuta, Jorge... Você está com metade da mão quebrada, não vai carregar as meninas.”

“Eu levo a Sabrina.” Ella caminhou até o sofá, pegando a irmã menor e saindo para o quarto das gêmeas. Os pais se entreolharam, dando de ombros. Margarida foi até Rebeca e a pegou, segundo a filha mais velha.

Chegando no quarto das meninas, viu que Sabrina havia acordado e estava agarrada no pescoço da irmã mais velha. Colocou Rebeca em sua cama, encarando Ella.

“Eu vou ficar aqui mais um pouco.” Avisou a adolescente, sem coragem de encarar a mãe.

A mulher apenas assentiu, saindo do quarto e encontrando o marido no corredor. Foram para o próprio quarto e tomaram banho, colocando o pijama e retornando para ver se as três meninas estavam bem.

As encontraram conversando baixinho, as duas mais novas abraçadas com Ella, as três sentadas no tapete felpudo.

“O Diego vai ser preso?” Perguntou Sabrina para a mais velha.

“Vai sim, Bina... O tio Paulo já está cuidando disso.” Ella afagava os cabelos escuros das irmãs. “O Diego não vai mais incomodar a gente, eu prometo.”

“O que ele queria fazer com você, Ella?” Questionou Rebeca.

“Algo muito ruim, Beca... Quando vocês ficarem maiores, vão entender.” A garota abraçou as duas irmãzinhas. “Desculpa a tata por ter agido mal com vocês duas, tá bom? Eu fiz muita coisa errada nos últimos tempos.”

“É, você não estava sendo legal. Nem com a gente, nem com o papai e a mamãe.” Concordou Rebeca.

“Com o Danilo também. Ele ficou muito triste com você, porque você não foi no aniversário dele.” Contou Sabrina.

“Eu sei, baixinhas. Eu vou conversar com o Dani também, eu prometo. Mas primeiro que quero saber se vocês duas me desculpam por ter agido mal.”

“Claro que sim, Ella.”

“É, você é nossa irmã... A gente ama.”

“Eu também amo vocês duas.” As três sorriram umas para as outras. “Meu melhor presente de aniversário.”

“Que bom saber disso.” Margarida disse da porta, atraindo a atenção das filhas. “Não quero acabar com o clima, mas já está tarde.”

“Ah, mamãe, deixa a gente ficar com a Ella mais um pouquinho.” Rebeca fez biquinho.

“Por que vocês não dormem as três na sala?” Propôs Jorge, sorrindo. “Eu e sua mãe ajudamos vocês duas a arrumarem as coisas enquanto sua irmã toma banho.”

As meninas, é claro, concordaram na hora. Ella foi para o chuveiro, sentindo o corpo relaxar na água quente. Tomou o analgésico que o médico prescreveu para ajudar com a dor no olho e nas pernas e colocou seu pijama preferido.

Encontrou a sala cheia de edredons e ursinhos, e os pais tentando conter a animação de Sabrina e Rebeca.

“Para que esse monte de ursinhos?” Perguntou, atraindo a atenção dos quatro.

“Eles são nossos guardas. Vão cuidar da gente.” Avisou Sabrina, sorrindo.

“Bom. Proteção é sempre bom, não é?” Ella sentou no amontoado de edredons, sorrindo.

“Então, todas deitadas. Hora de dormir.” Pediu Margarida, ligando um dos filmes preferidos das meninas.

“E você e o papai?”

“Nós vamos ficar aqui até vocês dormirem, Bina. Depois nós vamos para o quarto.” Jorge sorriu para a caçula, ele e a esposa as ajudando a se acomodarem.

As duas pequenas deitaram ladeando Ella, que as abraçou. Não demorou para que as três estivessem adormecidas.

~*~

No dia seguinte, Ella se desculpou e conversou com Danilo, além dos padrinhos. Também recebeu a visita dos avós e conversou com eles, pedindo desculpa por suas atitudes nos últimos tempos.

Os únicos com quem ela ainda não havia conversado eram seus pais. E apesar de ser os que ela mais queria conversar, era também os que ela mais temia.

Naquele dia, após sair do banho, encontrou todas as duas coisas de volta no lugar em seu quarto. Colocou o pijama e foi para a sala, vendo que as irmãs estavam distraídas vendo TV. Ouviu os pais conversando no quarto e tomou coragem, rumando para lá.

“Mãe, pai... Eu posso entrar?” Bateu de leve na porta, atraindo a atenção dos dois.

“Pode, filha.” Os dois se ajeitaram na cama, deixando os pés para ela sentar. “Algo errado?”

“Eu acho que a gente precisa conversar.” Ela disse baixinho, extremamente sem jeito.

“É, precisamos. Mas só se você se sentir pronta para conversar.” Avisou Jorge.

“Acho que já devíamos ter conversado há muito tempo. Teria evitado essa confusão toda, não é?” A menina abraçou os joelhos, envergonhada. “Primeiro de tudo, eu preciso pedir desculpa para vocês.”

“Pelo o quê, exatamente?”

“Por tudo, pai. Pelas besteiras que eu disse à vocês, que não foram poucas. Pelas atitudes grotescas que eu tive, com vocês e com as meninas. Por ter trazido aquele imbecil para dentro da nossa casa...” Ella mexia nos pés, evitando encarar os pais.

“Filha, olha para a gente.” Margarida segurou a mão dela, fazendo-a erguer os olhos. “Por que você não começa há um ano e tanto atrás, quando tudo isso começou.”

“É... Por que você não diz o que te fez ficar assim. Nós sabemos que você ficou triste por não poder mais praticar os esportes que você amava, mas não ao ponto em que você chegou.” Concordou Jorge.

“Eu já suspeitava do que o médico ia dizer antes da consulta. Eu ouvi a vovó falando para o vovô um dia, e fui pesquisar. Eu vi que não poderia mais fazer grandes esforços, mas eu ainda tinha esperança que isso fosse mudar. Na hora da consulta, eu... Eu estourei, fiquei fora de mim. E descontei em vocês dois algo que eu tinha de ressentimento.”

“E de onde saiu isso, filha? Essa raiva por você ter nascido quando nós erámos adolescentes?” Perguntou Margarida.

“Todo mundo fala disso, mamãe. Vocês dois são tão novos, é fácil perceber que me tiveram antes dos 18. Todos os meus amigos viam vocês, me zoavam... Falavam que eu fui rapidinha, ou uma rapidinha. Na aula de cidadania, falaram sobre gravidez na adolescência e que não é raro haver sequelas nessas crianças, pelo fato da mãe ainda estar em formação enquanto o bebê se forma na barriga.”

“E seus amigos te enchiam o saco por isso.” Deduziu Jorge.

“Eu nunca liguei para isso, os esportes me ajudavam a descontar a raiva e a frustração. Mas eu estava meio amarrada na cama, sem poder fazer as coisas que gostava... Cabeça vazia, oficina do diabo, não é?” Ella riu pelo nariz. “E naquela hora, que meu mundo desmoronou de vez, eu deixei tudo vir. Joguei a merda toda no ventilador e nem liguei para as consequências.”

“E depois?”

“Ah, mãe, eu estava meio perdida. Você sabe que eu sempre tracei meu futuro pensando nos esportes, era o que eu queria. E quando isso deixou de ser uma realidade possível, eu queria me reencontrar, estava perdida. E acabei me envolvendo com pessoas erradas no caminho.” A menina confessou com um suspiro.

“E elas influenciaram tanto a sua personalidade?” Perguntou o pai, recebendo o silêncio como resposta. “Ella... Por que você começou a nos tratar mal? A tratar toda a nossa família mal?”

“Por vergonha, pai. Porque eu achava que estava decepcionando vocês.” Admitiu Ella, começando a chorar.

“Nos decepcionando?”

“Antes da bisa morrer, ela me disse que eu tinha que deixar vocês dois orgulhosos. Que vocês tinham aberto mão de tudo por minha causa, porque eu nasci, e que o mínimo que eu devia fazer era dar orgulho para vocês. E eu sabia que eu conseguiria isso sendo uma atleta. Vocês adoravam me ver competindo, ficavam tão orgulhosos... E quando eu perdi isso, eu não era boa em mais nada. Eu sentia que estava decepcionando vocês, e por isso, me afastava.”

“Ah, pinguinho... Vem aqui.” Margarida estendeu os braços e a filha pulou para lá depressa, aproveitando o aconchego daquele abraço do qual tanto sentia falta. Jorge também as abraçou, os três se escorando nos travesseiros. “Sabe a única coisa que nós esperamos de você, filha? Que você seja feliz. Que você encontre o que te faça feliz.”

“Nós abrimos mão de muita coisa quando você nasceu sim, filha... Mas não de tudo. Porque, desde que você estava na barriga da sua mãe, você passou a ser tudo para a gente, Ella. Claro que tinha horas que eram difíceis, cansativas e nós queríamos poder voltar no tempo. Mas no minuto seguinte quando você ria para a gente, piscava os olhos ou chamava nós dois de papai e mamãe, nós esquecíamos qualquer coisa, filha. Hoje em dia a gente só agradece, princesa, porque você, e as suas irmãs, são a melhor coisa que nós temos na nossa vida. E nós passaríamos por tudo de novo, sem reclamar, por vocês três.” Prometeu o pai, beijando seu cabelo e fazendo ela sorrir.

“E se você tivesse falado isso para qualquer um, nós ou seus avós, seus tios, seus padrinhos, nós teríamos te dito isso naquela época. Você não precisava ter feito tudo o que fez, ter dito tudo o que disse.” A mãe suspirou, a encarando. “Sabe o que mais doeu nesse tempo todo, filha? Ter você tão longe da gente, sentir que você nos odiava.”

“Eu nunca odiaria vocês, vocês sabem disso.” A menina disse baixinho. “As pessoas têm medo de um diabo vermelho e chifrudo cercado de fogo que vai nos pegar depois de morrer, mas nem imaginam que os piores demônios são os que moram dentro da gente.”

“E agora você sabe que não precisa enfrentar os seus sozinhos, pinguinho.” Avisou o pai, ouvindo-a rir.

“Eu senti falta de vocês me chamando assim.”

“Nós vamos te chamar assim enquanto você deixar. Você é nosso pinguinho, viu... Só você.” Jorge sorriu para ela. Pouco depois, suspirou. “Ella, você sabe que terá que ir até a delegacia prestar depoimento sobre o Diego, não sabe?”

“Sei, pai, sei sim.” A garota abraçou os pais com mais força. “O padrinho fez ele ser preso?”

“Sim, ele está preso por diversas acusações, mas ele entrou aqui com a senha, e por isso não podemos alegar invasão de domicílio. Por que você deu a senha para ele, filha?”

“Faz muito tempo que eu dei a senha para ele, pai, meses. Foi quando nós começamos a namorar e vocês avisaram o porteiro que não era para deixar ele subir. Eu dei a senha do portão e nós nos encontrávamos no parque ou na piscina.” Explicou a garota. “Mas eu terminei com ele uma semana atrás.”

“Como?” Os pais perguntaram, sem esconder a surpresa.

“Depois daquela discussão de semana passada, foi a primeira coisa que eu fiz quando cheguei na escola. Sei lá, eu estava um pouco mais calma. Mas o Diego não gostou, não largava do meu pé... A diretora Helena até repreendeu ele. Aí ele me ligou ontem, falando que queria conversar, e eu disse que não, porque vocês estavam na piscina e iriam nos ver. Ele desligou e algum tempo depois a Beca e o Danilo entraram pegar os brinquedos. Eles deixaram a porta aberta e o Diego apareceu. Ele me agarrou e começou a rasgar a minha roupa. Eu fui tentando segurar ele, e as crianças apareceram. Ele foi em cima dos dois e eu segurei ele, e foi quando eu tomei o soco. O Danilo puxou a Beca para a escada e o Diego fechou a porta e voltou para cima de mim, e eu fiz o possível para segurar ele até vocês chegarem, e foi nesse ponto que ele terminou de rasgar minha roupa e me deixou toda marcada.” Ela indicou os roxos pelo corpo todo.

“Eu não tinha reparado nisso.” Jorge começou a tremer de raiva. “Eu vou pedir para o Paulo fazer esse cara ficar preso o resto da vida.”

“Estamos no Brasil, amor, você sabe que isso é bem difícil.” Suspirou Margarida.

“A última pessoa que mexeu com a Ella prestou serviço comunitário por três anos e pagou uma multa tão grande que a faliu.” Ele lembrou da antiga professora de inglês da filha. “Além do que o Diego fez com a nossa filha, ele mexeu com o Danilo. Você pode ter certeza que o Paulo não vai deixar barato.”

“E o que a gente faz enquanto isso, pai?” Perguntou a menina, cansada.

“Volta a viver e ser uma família, pinguinho... Afinal.” O pai beijou sua testa, os três sorrindo.

~*~

Não teve como Ella recuperar as notas, sendo outubro, e a menina acabou repetindo de ano. O isso foi bom, porque voltou no ano seguinte com vida nova. O azul dos cabelos havia sumido totalmente, retomando os fios loiros e a atitude de boa aluna. Claro que ainda ficou o estigma de suas atitudes, mas a garota conseguiu passar por isso com a ajuda da família.

Ella retomou as aulas de violão, voltou para o inglês, começou a fazer yoga e decidiu começar a fazer pintura como um hobbie para se distrair. Na escola de artes se interessou por teatro, e foi lá que conheceu Guilherme. Nessa altura já estava para completar 16 anos, e o garoto tinha 17. Ao contrário de Diego, ele a levou para um encontro antes de beijá-la, nunca colocou a mão em lugares indevidos e a tratava com carinho.

Mas isso não impediu a garota de surtar quando ele quis conhecer sua família.

“Está fazendo um ano desde que o Diego me atacou, e agora o Guilherme quer conhecer vocês. Eu não estou com um bom pressentimento, mãe.” Comentou a garota, se encarando no espelho do quarto.

“Não deixe as cinzas do seu passado com o Diego encobrirem o sol do seu futuro com o Guilherme, meu amor.” Margarida a abraçou pelos ombros e beijou seu rosto. “Por tudo o que você disse até hoje, eu tenho certeza que ele é bem diferente daquele marginal.”

“Espero, mãe. Odiaria chegar à conclusão que tenho dedo podre.” A menina riu, ouvindo a campainha. “Ele chegou.”

“Então vai lá receber ele, querida.”

Rebeca e Sabrina quicavam no sofá, loucas para ir abrir a porta. Jorge, porém, as impedia. O certo seria que fosse Ella a recepcionar o namorado e, consequentemente, a apresentá-lo para o pai. Estava se preparando para isso há dezesseis anos, afinal.

“Papai, a Ella vai ter um bebê com o namorado?” A pergunta de Sabrina o fez arregalar os olhos.

“Que pergunta é essa, menina?”

“Ah, sabe... A mamãe não tinha 16 anos quando engravidou da Ella?”

“Sim, tinha. Mas a sua irmã não vai fazer a mesma coisa, meninas. E nem vocês, está bem? Eu só tenho 33 anos, não estou pronto para ser avô.” Resmungou o homem, massageando o peito. “Será que isso é um ataque cardíaco?”

“Por que ele está surtando dessa vez?” Perguntou a esposa, aparecendo na sala com a filha mais velha.

“Ah, a Bina perguntou se a Ella vai ter um bebê, que nem você teve na idade dela.” Explicou Rebeca, sorrindo.

“Vocês querem matar o pai de vocês do coração, só pode.” Margarida gargalhou alto, enquanto a filha mais velha abria a porta. E a primeira coisa que viram foi um mar de rosas. “Meu Deus.”

“Guilherme?” A adolescente perguntou, sem enxergar o rosto do namorado.

“Ah, oi amor.” Ele apareceu entre as flores, sorrindo. “Posso entrar? Está meio pesado.”

“Claro.” A menina deu passagem para ele, abismada. “Para que tantas flores?”

“Bom, essas são para você.” Ele entregou o maior buque para ela, de rosas vermelhas.

“E os outros?” Ele indicou a mãe e as irmãs da menina. “Ah sim, que falta de modos. Gui, essa é a minha mãe, Margarida.”

“É um prazer conhecê-la. Isso é para a senhora.” Ele estendeu um buquê de rosas brancas, que ela pegou sorrindo.

“Obrigada, querido. É um prazer te conhecer. A Ella fala muito bem de você.” Dedurou a dona da casa, vendo a filha corar.

“Espero que sim.”

“Bina, Beca, venham aqui.” A garota chamou as irmãs, que correram e seguraram suas mãos. “Essa é a Sabrina, e essa a Rebeca. Não liga se você confundir elas no começo, isso acontece sempre.”

“Vou me esforçar para não.” Prometeu o rapaz, se abaixando em frente as duas. “Isso é para vocês, meninas.”

“Obrigada.” Elas pegaram os dois buquês de rosas amarelas, rindo para a mãe.

“Venham, meninas, vamos colocar as flores em vasos. Filha, quer que eu coloque as suas também?” Margarida perguntou.

“Por favor, mãe.” A mais velha apanhou as flores, saindo com as gêmeas.

O casal se encarou sem graça, virando para Jorge. O loiro estava sentado no sofá, impassível, encarando o rapaz à sua frente. Era bastante alto, mais do que Ella, tinha cabelos castanhos e olhos escuros. Viu que ele segurava uma garrafa de vinho e reprimiu o riso enquanto se levantava.

“Bom, Gui... Esse é o meu pai, Jorge Cavalieri. Pai, esse é meu namorado, Guilherme Furlan.” A jovem apresentou, sorrindo.

“É um prazer conhecê-lo, Sr. Cavalieri. Trouxe isso para o senhor.” O garoto estendeu a garrafa, apertando a mão do sogro logo depois.

“Tentando puxar o saco da família toda, hã?” Perguntou na lata, vendo o rapaz assentir, vermelho como um tomate. “Fez bem. Você sabe, a primeira impressão é a que fica, não é?”

“Pretendo fazer com que ela seja sempre a melhor possível.” Prometeu o menino.

“Tenho certeza que sim. Bom, vou abrir isso na cozinha. Seus pais te deixam beber uma taça?”

“Deixam sim, senhor.”

“Pode me chamar de Jorge, garoto. Não sou velho o bastante para ter um garoto com metade da minha idade me chamando de senhor.” Jorge riu, indo para a cozinha.

“Foi melhor do que eu esperava.” Confessou Guilherme.

“Eu falei que eles não eram bichos de sete cabeças, amor.” Ella riu, segurando a mão dele. “Vem, vamos ajudar a arrumar a mesa e melhorar a sua já bela impressão.”

~*~

“Mamãe? Posso conversar com você?” Ella parou na porta do quarto de Margarida, mordendo o lábio inferior.

“Pode sim, filha.” Margarida deixou o livro que lia de lado, encarando a menina. “Senta aqui.”

A menina sentou na cama, ansiosa. A mãe percebeu isso e riu.

“O que você aprontou, mocinha?”

“Nada, nada... Ainda não.” A mulher arqueou a sobrancelha. “Mãe... Como você soube que estava pronta para transar com o papai?”

“É o quê?” Margarida arregalou os olhos, chocada. “Como assim, Ella?”

“É, como você soube que era a hora.” A menina estava sem graça. A mãe suspirou, tão sem jeito quanto.

“Ah, filha... É algo difícil de explicar. Nós nunca tínhamos conversado sobre isso, sabe? Era nosso aniversário de namoro e nós estávamos na casa de praia dos avós do seu pai, sozinhos. Ele preparou um jantar à luz de velas e depois nós estávamos nos beijando. E na hora as coisas foram tomando o rumo que você imagina e nós transamos.”

“Vocês nunca tinham conversado sobre isso?”

“Para não falar que nunca, nós conversamos quando chegamos na praia. Sabe, nós íamos dormir no mesmo quarto e eu fiquei meio nervosa. Eu disse que nunca tinha ido à ginecologista, e que eu queria estar tomando anticoncepcional quando fossemos transar, para não corrermos riscos.” Relembrou a mulher.

“Olha o risco aqui.” Ela brincou, fazendo a mãe rir. “Obrigada por não terem esperado.”

“Às ordens, querida.” As duas riram. “E você está me perguntando isso porque...”

“Eu e o Gui estávamos na sala ontem e começamos a nos beijar. E o clima esquentou um pouco, sabe? Ele colocou a mão por dentro da minha blusa.” Explicou a menina, corando. “E foi diferente do que eu senti quando o Diego fez isso no passado. Quando ele fazia isso, eu queria sair. Quando o Gui fez... Eu quis continuar.”

“Bom, se você veio falar comigo, é porque você acha que está pronta.” Ella assentiu e a mãe sorriu. “Então vamos fazer diferente do que eu fiz no passado, que tal? Eu vou marcar médica para você. Pode ir até sozinha, se quiser.”

“Não, eu quero que você vá comigo.” A garota sorriu para Margarida. “Você se importa?”

“Eu ficarei muito feliz.”

“E não conta nada para o papai, mãe, por favor. Acho que ele iria surtar se descobrisse.” Pediu a adolescente, recebendo um aceno da mulher.

“Você sabe que eu não gosto de esconder as coisas do seu pai, pinguinho.”

“Eu sei, mãe... Eu prometo que quando rolar, eu mesma vou contar para ele. Mas não quero essa pressão por enquanto.” Explicou a menina. “Além do que, ainda vai demorar, não é?”

~*~

Rolou logo depois do aniversário de 17 anos da garota. E como prometido para a mãe, ela contou para o pai logo depois. A reação do homem foi meio explosiva, um pouco ciumenta, mas Margarida já estava preparado o terreno com antecedência.

Ele ficou mais feliz e tranquilo em saber que a garota já estava sendo acompanhada por uma ginecologista e tomando os devidos cuidados para não repetir o acidente dos pais, e que Guilherme havia respeitado seu tempo e esperado que ela estivesse pronta. Especialmente depois do que havia acontecido com Diego.

E mesmo que os dois tenham terminado quando ela estava no final do terceiro ano, não houve ressentimentos ou chateações. Guilherme estava se mudando para o Rio de Janeiro, onde iria começar a investir na carreira de ator, e Ella estava terminando o ensino médio, já com planos para a faculdade.

Após muito tempo pensando e deliberando, a garota escolheu o que faria de seu futuro: seria médica cardiologista pediátrica e faria de tudo para que nenhuma criança tivesse que passar pelo mesmo que ela passou e abrir mão de seus sonhos.

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E é preciso dizer que Ella conseguiu. A criança indesejada, o erro odiado, o bebê que quase morreu, a criança amorosa, a adolescente rebelde... Tudo isso culminou em uma bela mulher, uma adulta madura e responsável, com grandes planos e sonhos.

Se matou de estudar para conseguir entrar em medicina, e o fez na USP. Estudou como uma condenada, fez todos os cursos extras que pôde, foi a todas as palestras. Fez sua especialização em cardiologia pediátrica nos Estados Unidos com um dos maiores especialistas do mundo.

Voltou ao Brasil com emprego garantido no melhor hospital particular de São Paulo, mas não pretendo ajudar apenas quem tinha dinheiro. Uma coisa que aprendeu com seu avô, e depois com seu pai, é que tiveram sorte de ter tido muito dinheiro, mas muitas pessoas não.

“Quando você quase morreu da primeira vez, o Miguel disse que nós tínhamos sorte de ter dinheiro para fazer a operação rápido. Muitas crianças morrem por problemas mais simples, devido à falta de condição para o tratamento.” Contou seu pai certa vez.

Hoje, mais do que nunca, sabia que essa era a realidade. E seu objetivo de vida seria lutar contra ela.

“Ficou lindo, filha.” Elogiou Margarida, sorrindo.

“Mais do que lindo, deve ser útil.” A jovem mulher sorriu para a mãe.

“Nós adoramos o nome, de verdade.” Comentou Paulo, o grupo de amigos dos pais ali, a acompanhando naquele momento histórico.

Naquele dia, estava sendo inaugurada a Associação Pinguinho de Gente, uma iniciativa criada por Ella e apoiada por seu avô Alberto e o tio Miguel, e graças a eles, por diversos outros ricaços da cidade.

E eles não sabiam ainda naquele momento, mas que salvaria milhares de pinguinhos de gente e seus sonhos.

“Você conseguiu, pinguinho.” Elogiou Jorge, abraçando a filha. “Você nos deixou muito mais do que orgulhosos, filha.”

“Você era o pinguinho de luz que faltava nesse mundo, Ella... E agora, vai iluminar o caminho de muita gente.” Concordou Alicia, sorrindo para a afilhada.

A jovem apenas sorriu para aqueles que a criaram, sentindo pela primeira vez que merecia todo o esforço pelo qual eles passaram. Foi quando seus olhos brilharam ao focalizar uma pessoa e ela pediu licença para se afastar.

“Você veio.” Ela sorriu para Guilherme, que estava com um buquê de rosas na mão.

“Eu não perderia esse momento por nada, Ella. Afinal, é o seu momento de glória.” Ele entregou as flores para a mulher.

“Não, Gui... Ainda tem muita coisa para acontecer até eu poder considerar que atingi a glória.” Ela o abraçou, sendo retribuída.

“Ouço sinos de igreja.” Brincou Rebeca, se aproximando dos pais.

“Será que afinal seremos tias, Beca?” Perguntou Sabrina.

“Por que vocês duas não vão cuidar das suas vidas, hã?” Mandou a mãe das meninas, segurando a mão do marido e sorrindo para ele.

Em momentos como aquele, mais do que nunca, viam o quanto tinha válido a pena tudo o que deixaram, lutaram e enfrentaram pela filha. Mas, afinal, nunca tinham duvidado que ela conseguiria ir longe. Seu nome era o pronome que se usavam para referir a tudo, bom ou ruim, e seu significado era “a outra”. Quando o escolheram para a filha, sabiam que era jogar uma moeda para cima. Ela poderia ser a outra de todas as maneiras possíveis, mas escolheu ser a outra faceta do mundo. Em meio a podridão, Ella escolheu ser luz.

Ela foi um acidente inesperado. 

Ela foi o erro mais detestado. 

Ela era o inferno, mas também era o céu. 

Ela se tornou o centro do mundo deles. 

Ela era tudo quando devia ter sido nada. 

Seu nome, afinal, era Ella.


Notas Finais


Chorei? Para caralho.
Essa shortfic demorou duas semanas para ficar pronta, e foi uma dos meus melhores trabalhos. Abordar tantas temáticas diferentes, tantos momentos, de tantas vidas... Exigiu muita pesquisa também, especialmente na parte de problemas e cirurgias cardíacas. Fiquei quase duas horas ontem para escrever essa parte do capítulo.
Espero que vocês tenham gostado, de coração! Obrigada por terem embarcado nessa curta jornada comigo.
Um beijo cheio de luz para vocês! <3


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