Rukia encarou as próprias pernas, pálidas como nunca. Levou o dorso do pulso direito aos olhos e passou a esfrega-los em uma tentativa frustrada de trazer nitidez a visão.
Levou alguns instantes até ela concluir que ainda era o meio da noite e que algo a acordara. Enquanto bocejava ainda confusa ouviu mais uma vez o inconfundível barulho.
De sobressalto se colocou em pé ao som dos gritos que vinham se tornando cada vez mais comuns nas madrugadas da mansão Kuchiki. A morena começou a correr em direção a saída do quarto.
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Nas ruas infestadas de escombros e imundície não existia o menor vestígio da grandiosidade que um dia a Soul Society teve. A mente turva e cansada de uma existência tão infinita quanto insignificante de Ichigo, se esforçava em dar outro passo e vagar mais um pouco, motivada pela vã esperança de encontrar vida.
Vida, era isso a única coisa que restava ao não-mais-jovem Kurosaki. Apesar de procurar desesperadamente por outro ser vivente, seja amigo ou inimigo, Ichigo já não fazia questão de manter a própria vida. De que lhe servia todo o poder do universo e a imortalidade, se estava fadado a depressão e solidão nas ruínas da Soul Society?
Parou repentinamente ouvindo o som abafado de seus pés descalços marcando a areia. Olhou fixamente para o que restava da construção branca que sobrevivia às eras no centro da Seireitei.
Quanta nostalgia aquele prédio lhe trazia, das várias aventuras vividas ali e por fim do destino imposto pelo próprio Ichigo a todos que um dia jurou proteger. Olhando para trás parecia até engraçado que ele, o salvador da Soul Society, tenha a destruído e também ao mundo real e ao Hueco Mundo.
Milênios já haviam se passado desde o momento em que o substituto de shinigami decidira criar para si um novo destino, onde ele não precisaria proteger ninguém, onde ele mesmo ceifaria cada existência miserável de cada mundo. Mesmo assim, o milésimo de segundo em que fora um herói mortal vivendo entre humanos, shinigamis, hollows e quincys, ainda dominava a mente do solitário deus ruivo.
Levando os joelhos ao chão ele olhou para as mãos sujas que apresentavam uma ilusória juventude. Só se deu conta do próprio choro quando do as lágrimas silenciosas passaram a pingar em suas mãos.
O grito grave assustou a Ichigo que já há muito havia se esquecido de como sua própria voz era.
Estava em mais um ataque de pânico, aconteciam com frequência nos primeiros séculos de solidão, mas vinham se tornando mais raros à medida que a humanidade desaparecia dele sendo substituída pelo vazio severo da divindade solitária.
Parecia uma grande piada do universo o fato das únicas horas em que o ruivo se sentia ser humano serem nesses momentos de pânico absoluto e desejo de autodestruição. A deliciosa fantasia se rompia com as corriqueiras tentativas de suicídio que lembravam ao Kurosaki que ele não era mais humano e sim uma massa poderosa que vagava pela inexistência.
Os olhos castanhos que já não demonstravam qualquer emoção se alargaram ao reconhecer uma inconfundível voz feminina. As mãos do deus ruivo caíram em terra, ele não ousou procurar pela dona da voz, pois tinha certeza absoluta que ela não vivia mais.
A princípio não podia compreender o que ela dizia, mas, aos poucos, os sussurros se tornaram mais presentes e próximos.
— Ichigo…! — Foi tudo que ele pode identificar, mas bastou para o ruivo erguer a face e passar a correr em direção a ela. — Acorda!
Instintivamente, o deus solitário piscou os olhos que agora passavam a ver uma escuridão profunda, mas que de certo modo, era mais reconfortante que a paisagem devastada da Soul Society pós-apocalíptica.
Uma fresta do dourado apagado se abriu para encontrar o violeta/azul de uma morena desesperada. Ichigo ainda tentava focar na garota que sacudia sua cabeça quando foi instantaneamente despertado por um soco de Rukia.
— Que merda é essa, Rukia? — Ele gritou levando a mão ao rosto e se encolhendo sobre o futon enquanto a tenente se permitia respirar aliviada.
— Acabei de te acordar de outro pesadelo, de nada. — Ela tentava disfarçar seu desespero de momentos atrás com sarcasmo.
— Eu já tinha acordado, sua imbecil.
— Não parecia que tinha acordado, ainda gritava como uma garotinha. — A escuridão da madrugada não podia esconder o sorriso debochado no rosto dela.
— E desde quando isso é jeito de acordar alguém? — Ele esfregava a marca vermelha na bochecha esquerda com o formato exato do punho da garota.
— O importante é que está acordado. — Ela afirmou ainda rindo quando observou a aflição retornar a ele. O sorriso da tenente enfraqueceu até morrer.
Ela encarou a mão do ruivo que ainda massageava o rosto agredido. Do punho do jovem escorria um sangue vivo, que mesmo no escuro se fazia visível, até mesmo o cheiro de ferro estava presente no ar.
Não era a primeira vez que Rukia acordava com os gritos de Ichigo causados por pesadelos, mas ele nunca havia se machucado antes. Certamente os ferimentos nos punhos do garoto surgiram à medida que ele socava o chão sem se dar conta de que estava sonhando, ao menos era essa a suposição da morena.
Rukia sentou no futon ao lado do ruivo e abraçou os próprios joelhos com força. Estava impotente, tudo que podia fazer pelo amigo era acorda-lo de eventuais pesadelos, mas jamais poderia conforta-lo ou entender o que ele estava passando.
— Esses sonhos estão ficando cada vez mais reais. — Ele disse encarando as mãos respondendo à pergunta silenciosa da Kuchiki. — E cada vez eu tenho mais certeza que não são pesadelos…
— Já disse que não é possível…
— … São lembranças. — O ruivo a interrompeu e os olhos azuis/violetas se alargaram em preocupação.
— O que aconteceu dessa vez?
— Eu estava na Soul Society, mas ela estava destruída e eu estava só… Caralho, foi muito real, eu realmente me sinto como se tivesse passado milênios sozinho.
— Milênios?
— Eu sei que não é verdade… Mas parece tão real. — Ele encarou as mãos mais uma vez se lembrando do sonho. — Eu sinto como se tivesse vivido tudo aquilo, feito todas aquelas coisas horríveis.
Os olhos dourados se alargaram em uma expressão de pavor que Rukia não costumava reconhecer nele. Ela sentiu um gritante desejo de envolver o amigo e tomar para si todas as suas angústias. Em vez disso ela apertou ainda mais seus joelhos magros e respirou profundamente.
— Deite. — Ordenou fria.
— Que? Por quê?
— Apenas deite, seu grande idiota! — Ela se afastou da cama e o ruivo se esticou confortavelmente enquanto a observava questionador.
A morena se sentou ao lado do futon e encarou o garoto de volta.
— Quero que tente dormir, vou ficar aqui, se você começar a ter outro pesadelo eu te acordo imediatamente.
— Que? Não vai dormir?
— Não, amanhã é minha folga. — Era uma mentira, mas ela poderia pedir para alguém a cobrir sua falta. — E eu já dormi muito bem, então estou descansada. — Outra mentira, Rukia chegara tarde por conta de trabalho acumulado e tinha demorado a pegar no sono pensando nos afazeres que teria na manhã seguinte.
Mesmo assim ela tinha a estranha vontade de fazer isso por ele, era o que amigos faziam uns pelos outros, não era?
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Tatsuki apertou os braços ao redor do pescoço do moreno se permitindo aproveitar do calor que emanava dele. A boca da esportista se abriu mais e suas línguas voltaram a dançar juntas como fizeram tantas vezes.
As mãos de Keigo deslizaram pelas costas da garota e se fixaram em sua cintura, apertando em sincronia com os movimentos ritmados que o corpo da jovem fazia em direção ao seu.
A pele clara do pescoço da garota se arrepiou com a mordida que recebeu, certamente ela ficaria furiosa na manhã seguinte ao notar as marcas, mas neste momento ela gemeu em agradecimento enfiando os dedos nos cabelos castanhos do outro e pressionando a cabeça dele contra sua pele.
Os lábios famintos voltaram a se tocar, eles conheciam bem o gosto um do outro, mesmo assim nunca enjoavam da deliciosa sensação de sentir os sabores um do outro misturados.
A destra da morena deslizou pela barriga dele causando uma ligeira contração no baixo ventre do rapaz. Ela tinha tanto êxito em causar prazer quanto dor em Keigo.
Rompendo o prolongado contato, Tatsuki separou sua boca dá dele, permitindo que uma grande quantidade de saliva ainda as conectasse por um tempo.
A garota levantou o pulso esquerdo e cerrou os olhos para conferir o horário em seu relógio de pulso. Sem aviso prévio ela empurrou o corpo do garoto que caiu escandalosamente do sofá em que estavam.
— O que houve, Tatsuki-chan? — Ele questionou ainda estirado no carpete creme.
— Meu treino começa em uma hora, e tenho que passar em casa para comer antes de ir. — Respondeu se colocando em pé ajeitando as roupas amarrotadas e passando a procurar pelo chão as roupas que foram retiradas anteriormente.
— Sabe… — Keigo falava enquanto se arrastava de volta para o sofá. — Pode comer aqui em casa, minha irmã já está chegando e ela disse que traria o jantar da rua hoje.
— E o que diríamos para ela? — A morena falava enquanto tentava ajeitar o cabelo revolto. — Agora que nos formamos não dá para dizer que estávamos fazendo um trabalho da escola.
— Então, podemos dizer que estamos namorando… Quem sabe… — Keigo respondeu fazendo um bico especulativo sobre o que a morena acharia da ideia.
— De jeito nenhum! — O olhar severo deixava claro que ela não cederia.
— Mas nós já estamos nisso há mais de um ano… — Keigo choramingou escandalosamente recebendo um olhar furioso da garota.
— Já falamos sobre isso, não estamos, nem vamos namorar.
— Por quê, Tatsuki-chan? — Ele passou a chorar em um volume mais alto e saltou em direção a ela abraçando suas pernas.
— Porque eu gosto de garotas, o que nós fazemos é só para passar o tempo. — Com uma joelhada no rosto, Keigo foi arremessado a alguns metros. — E já te disse para não grudar em mim sem motivo.
— Se gosta de garotas, por que fazemos isso? — O moreno virou o rosto com sua expressão emburrada mais forçada.
— É uma diversão momentânea, você concordou com isso, não venha querer mudar as regras agora. — Ela caminhou para a porta de saída da casa do moreno. — Jya ne.
Os olhos castanhos preguiçosos acompanharam a saída da jovem. Keigo sentou no sofá assumindo uma expressão séria de pesar que jamais era vista no em seu rosto.
Ainda no mesmo lugar, cobriu os olhos com as mãos e assim ficou enquanto entardecia e a escuridão tomava conta da sala, apenas quando sua irmã entrou trazendo o jantar e acendendo as luzes que ele voltou a estampar o seu habitual sorriso exagerado.
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Os dedos de Uryuu percorriam com velocidade o teclado do celular, releu a mensagem antes de enviar e apoio o celular na mesa aguardando a resposta. Desviou o olhar para os livros que repousavam sobre a mesma mesa, sabia que deveria estar estudando, mas, além do conteúdo ser enfadonho, estava muito mais interessado nas mensagens trocadas com a amiga.
Alguns instantes depois sentiu a vibração do aparelho e desbloqueou a tela em um instante para conferir a resposta de Orihime.
Mais uma vez lhe respondeu instantaneamente e se esticou para pegar um dos livros que serviam mais de enfeite e peso de papel do que para estudos. Abriu na página que estava marcada como conteúdo que cairia na prova da manhã seguinte e passou os olhos pelo conjunto de palavras que nem precisava ser lido para dar sono.
Ishida Uryuu sempre fora um aluno exemplar, com notas perfeitas, por isso não teve dificuldade em ser aceito em uma das mais renomadas faculdades da província, onde cursava administração.
Infelizmente para o moreno conhecido como CDF no ensino médio, a escolha de curso fora, no mínimo, errônea. Por isso não tinha qualquer entusiasmo em estudar, passava mais tempo no clube de corte e costura da faculdade do que se aplicando em aprender os conteúdos.
Sentia falta da adolescência, dos amigos e da vida de quincy. Depois do fim da guerra, o jovem Ishida decidiu seguir o exemplo do pai e se aposentar deixando na mão dos shinigamis o extermínio de hollows e qualquer outra ameaça que aparecesse.
Não foi uma decisão fácil, mas após se passar por traidor e ter que virar as costas a aqueles de quem mais gostava, percebeu que não poderia lidar com outra guerra. Havia perdido seu orgulho quincy.
Depois de ler o mesmo parágrafo três vezes, sem êxito em compreender as informações ali apresentadas, ele voltou a pousar o livro sobre a pilha e encarou o celular onde outra mensagem da jovem ruiva já o aguardava.
Estavam em cidades diferentes, já que a faculdade de Uryuu não ficava em Karakura, mesmo assim ele e Inoue nunca estiveram tão próximos. Passavam praticamente o dia todo enviando mensagens de texto, não que tivessem muitos assuntos, mas conversavam sobre suas rotinas e os planos para o futuro.
Graças a essa proximidade, o moreno sabia que Orihime não estava bem, embora a garota se esforçasse ao máximo para parecer feliz. Mais apática do que um dia fora, Inoue dava seu melhor no trabalho e nos estudos, para preencher o vazio que sentia.
O moreno suspirou observando a foto da tela de bloqueio de seu celular, observando ele e Inoue tomando sorvete na última vez que se encontraram, quando o garoto voltara a cidade natal para uma visita.
Ele sabia o motivo da tristeza de Orihime, tinha nome, sobrenome e um horroroso cabelo ruivo espetado. Mas jovem Kurosaki, que atualmente habitava na Soul Society, não fazia ideia da dor que estava causando na colega. Uryuu não podia ajudar a amiga nisso, essa era uma batalha que ela deveria lutar, esquecer Ichigo ou aprender a viver com a falta dele.
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