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História Goner - Capítulo 5


Escrita por: ALUSIE

Notas do Autor


Oi galera, desculpa a demora, eu estava meio sem criatividade e não queria entregar qualquer coisa pra vocês, eu gosto que tudo fique ótimo. Mas tá aí, demorou mas chegou e eu já comecei a escrever o mistério da fanfic, então fiquem atentos. Dica: o titúlo da fic já ajuda bastante. Enfim espero que gostem <333

Capítulo 6 - Capítulo 5


                                                                                       MIKE 
 
      Escuridão. 
      É tudo o que vejo em um raio de dois quilômetros. Um ar frio me envolve e um arrepio percorre meu corpo. Olho em volta e aperto meus olhos para tentar visualizar ao longe com mais clareza, mas não vejo nada, como o esperado. Umedeço os lábios, lutando contra o nervosismo, que ameaçava me consumir. Não posso deixar este sentimento me vencer, se eu ficar nervoso e com medo não vou conseguir me mover ou fazer alguma coisa útil para me tirar de o que quer que seja aquele lugar.
      E com esse pensamento, começo à caminhar em linha reta. 
      Olho em volta, atento a qualquer detalhe que possa aparecer ali e que me ajude a sair daquela situação e ao perceber que não encontraria nada, senti a angústia e o desespero bater na porta de entrada da minha mente. E para piorar, quanto mais eu andava mais a escuridão parecia se adensar, diminuindo meu campo de visão (que já não era muito grande).
      Depois de caminhar pelo que pareceu algum metros, uma sensação estranha de estar sendo observado me invade e eu me viro, instintivamente. Estreito os olhos tentando, novamente, enxergar alguma coisa além do véu preto que cobria o horizonte. Um som baixo, parecido com um farfalhar, chega aos meus ouvidos e eu os apuro para tentar descobrir o que é. Fecho os olhos e aperto os lábios, em uma tentativa de aumentar o sentido da audição, e ao fazê-lo pude distinguir uma voz humana que sussurrava tão baixo que era quase irreconhecível. Aperto ainda mais os olhos em concentração, mas a voz desaparece, levando consigo as palavras que eu tanto desejava decifrar, deixando apenas um mistério que me consumia por dentro de tanta curiosidade. 
      Noto que meus passos ecoam molhados na vastidão do lugar e eu olho para baixo. À cada passada minha, pequenas ondulações se formam no chão, se estendem até alguns poucos centímetros e depois desaparecem. Observo, confuso, aquele movimento. Eu tô andando sobre a água?, penso. 
      Não. Isso é loucura, ninguém nunca conseguiu fazer isso, é fisicamente impossível. Balanço a cabeça para afastar aquele pensamento insano e volto meu olhar para a escuridão a minha frente.
      Isso é um sonho, disso eu tenho certeza, mais um truque da minha mente traumatizada pelos acontecimentos do último ano para me deixar assustado, mas eu não vou ceder às tentações do medo. Eu preciso ser corajoso para proteger quem eu amo e a mim mesmo. Porém, acabo notando uma coisa que me faz franzir as sobrancelhas em confusão: porque esse não é igual aos outros na Floresta das Trevas? O mais importante, o que é este lugar? 
      Então, como se estivesse esperando sua deixa, um pedaço de papel cai, num movimento de pra lá e pra cá, bem na minha frente e pousa suavemente sobre a água, formando algumas ondulações. Franzo a testa e me agacho para poder analisar o objeto. Ao me aproximar vejo duas palavras grafadas no papel em caneta azul, que começava a se tornar ilegível pela água. Pego-o com as mãos trêmulas e leio o que está escrito. 
             
                      O Vazio
       Inúmeras expressões de confusão passam pelo meu semblante e eu tive que ler o bilhete algumas outras vezes para ter certeza daquilo. O Vazio? Bom, faz algum sentido a relação do nome com o lugar, mas porque isso existe? Como isso existe? Onde fica? São inúmeras questões que preenchem minha mente fazendo com que uma pontada fraca surja no fundo da mesma e eu massageio as têmporas tentando afastar a dor irritante. Pondero por alguns minutos, criando teorias sobre aquilo.
      Quem me deu esse papel com certeza não queria que eu soubesse o significado deste lugar pelo simples fato de haver somente um nome no papel. Mas porque? Uma tentativa de esconder isso tudo? Não faz muito sentido isso, porque não deve ser muito fácil achar um lugar assim. Ou pode ser algum pedido de ajuda. Os sussurros devem ser de alguém preso aqui pedindo para ser salvo e o bilhete talvez fosse o máximo que essa pessoa pode fazer. Isso sim faz sentido. Mas ainda tem uma ponta solta sobre tudo isso: quem iria prender alguém aqui? E porque?
      Ouço o som de passos ecoando molhados pelo vazio extenso e ergo o olhar, assustado. Olho em volta a procura da origem do som e avisto um pequeno ponto branco bem distante.
      - Olá? - chamo. - Olá?! - aumento o tom de voz e com aquilo, tenho a impressão de que o ponto havia se mexido. Aperto os meus olhos e consigo distinguir um corpo humanoide, porém não sei dizer com certeza se é humano. 
      Estranhamente, sinto a aspereza do papel em minhas mãos subitamente desaparecer e eu olho novamente para baixo. O bilhete havia sumido. Me levanto com um pulo e olho assustado para as minhas mãos abertas, as palmas viradas para cima. Como é possível um objeto simplesmente desaparecer? 
      Engulo em seco e ergo o olhar novamente, dando uma passo para trás, assustado ao ver que a figura estava mais próxima. A mão fria e escura do medo me envolve e eu fico paralisado por alguns instantes. O que está acontecendo aqui? Quem é aquela pessoa?
      Porém, só há, infelizmente, dois jeitos de descobrir: me aproximar e tentar fazer contato ou tentar dialogar com ela. Balançando a cabeça para afastar o sentimento do medo, escolho a segunda opção e engulo em seco antes de formar uma concha com as mãos ao redor da boca e gritar: 
      - Olá! Ei! VOCÊ AÍ! QUEM É VOCÊ? 
      Nada.  
      Droga, penso.  
      Grito de novo, repetindo as mesmas palavras, mas não obtenho respostas, novamente. Então, relutante, uso a minha primeira opção, já que dialogar foi inútil, e meus pés voltam a se mover, um pouco hesitantes agora. 
     Mantenho meus olhos fixos na figura durante toda a caminhada, porém um vulto passa rapidamente pela minha visão periférica e eu me viro instintivamente, uma expressão de pavor estampada no rosto. Giro em meu próprio eixo, procurando pela sombra que passou tão depressa que eu mal pude distinguir o que era, e quando direciono o olhar novamente a figura estava ainda mais próxima e eu me assusto, caindo com um baque molhado na água do chão. Olho surpreso para minhas roupas que permaneceram totalmente secas.  
      - Mas o que... - começo, balançando os braços, na tentativa de fazer alguma gota d'água cair. Nada. 
      Isso é muito estranho. 
      Ergo meu olhar para a tal figura, pronto para começar uma discussão, e ao faze-lo minha boca se forma um perfeito "O" e eu arregalo meus olhos.  
      Eleven me olhava de cima, com seus enormes olhos castanhos e a mesma expressão de espanto que eu carrego em meu rosto. Mas a surpresa não foi vê-la, isso eu já havia feito nos outros pesadelos, mas sim a mudança abrupta de visual dela. El não usava mais o vestido de Nancy e nem o casaco azul, ela usava uma calça de moletom velha e uma camiseta branca manchada. Os cabelos estavam maiores e suas feições mais maduras. 
      Fico de pé num pulo e me aproximo dela. Minha garganta estava seca e eu mal conseguia dizer alguma coisa, mas depois de a surpresa passar e minha garganta conseguir se desvencilhar do nó que se formou, consigo chamá-la com a a voz trêmula. 
      - El?
      Eu esperava que ela não me respondesse ou que o Demogorgon aparecesse à qualquer hora e nos atacasse, como nos outros sonhos, mas quando sua boca se abriu e ela me respondeu meu coração quase saiu pela boca.  
      - Mike. - disse com o seu sorriso contido e os olhos marejados.  
      - E-El, onde você está? O que aconteceu? Você está bem? - inúmeras perguntas voavam pela minha mente e eu simplesmente as falava sem nem pensar em escolher alguma. 
      - Lugar bom, Mike. - sinto um pequeno sorriso de esperança surgir em meus lábios.  
      - Você está em um lugar bom? Quer dizer, viva.  
      Ela acena afirmativamente com a cabeça.  
      - Você tá com alguém? Cuidando de você, claro. - e ela repete o movimento anterior, fazendo meu sorriso se alargar em meu rosto.  
      - Isso é ótimo! Com quem você está? Ele ou ela é bom? É o Brenner? 
      Dessa vez ela acena negativamente com a cabeça, me dando mais esperanças.  
      - Bom. 
      - A pessoa com quem você tá é boa?
      Sua cabeça balança novamente para cima e para baixo, fazendo os fios de seus cabelos pularem e eu sorrio involuntariamente.
      - Qual o nome dele? Ou dela?
      - B... - Eleven começa, mas para e arregala os olhos ao ver algo além de mim e eu me viro para ver o que é. Com um pouco de dificuldade, avisto outro ponto, dessa vez mais escuro, quase se misturando a escuridão. Franzo as sobrancelhas, claramente mais confuso do que antes.  
      - O que é isso? - murmuro. - Você sabe o q... Não. Não, não, NÃO! - me viro no exato momento em que a imagem de El se dissolve no ar e desaparece. Estico a mão, numa tentativa, falha, de segura-la e impedir que se fosse. Grito em frustração e passo as mãos pelos cabelos. Sinto a raiva começar a florescer em mim e eu me viro. Como aconteceu com Eleven, a pessoa estava mais perto de mim e seu rosto é tão familiar que faz com que o ar dos meus pulmões seja sugado para fora. 
      - Will? 
      O garoto não responde. Olho-o de cima a baixo e sua aparência me deixa ainda mais assustado. Ele não era aquele garoto sensível e legal que eu costumo conversar, ele parecia... outra coisa. Ele parecia mais pálido, com olheiras escuras se projetando abaixo dos seus olhos e suas roupas, também escuras, pareciam se misturar ao pigmento preto que cobria suas mãos. O olhar de Will parecia fixo em alguma coisa além de mim, porque, mesmo eu balançando minha mão a frente de seus olhos, ele não desvia o olhar ou sequer pisca.  
      - Will? Cara, O que você tá fazendo aqui? - toco seu ombro e finalmente o garoto pareceu me notar. Porém, eu desejei muito que ele não tivesse. Ao virar seus olhos para mim, um sorriso louco surgiu em seus lábios e ele pareceu dez vezes mais medonho do que antes. 
      - Olá, Mike. - ele diz, a voz firme e assustadoramente fria, assim como o olhar que ele me lança. 
      - Hã, o que é isso, Will? - pergunto dando um passo para trás e ele me segue, dando um para frente. E não importava, quanto mais eu me distanciava, mais ele aproximava de mim.
       - Isso o quê? - pergunta, fingindo confusão. 
      - Isso. - aponto para suas roupas e as manchas pretas. 
      - Ah... Não é nada. Agora venha cá, parceiro, não fuja do seu amigo. - o sorriso em seus lábios cresce é algo no fundo da minha mente grita para eu sair dali. 
      Aquilo certamente não é normal e como eu prezo pela minha vida, começo a correr, meu passos molhados ecoando com mais intensidade. 
      - Você não pode fugir de mim, Wheeler. - a voz de Will ecoa por todo o lugar e eu acelero a corrida, tentando me afastar o mais rápido possível dele. O som do meu coração pulsando invade meus ouvidos e preenche o silêncio assustador do tal Vazio. A adrenalina corre pelas minhas veias e me incentiva a continuar correndo. 
      Quando eu sinto que já estou distante o suficiente, me viro para trás e o alívio me preenche quando eu não o vejo. Sinto vontade de garhalhar na cara dele e dizer "Há! Eu não posso fugir é?". Mas a vontade morre quando olho novamente para frente e o vejo parado lá, com o mesmo sorriso insano. 
       Tento parar, porém ele estava próximo demais e eu muito rápido. Eu pensei que iria trombrar nele e jogar nós dois no chão, mas o que acontece é bem mais surpreendente e bizarro: eu passo por dentro dele e o garoto faz como Eleven e se transforma em fumaça, sendo absorvido pelo ar. Paro de correr e caminho para tentar recuperar o fôlego e organizar os pensamentos.
      Isso não é real, Mike, penso comigo mesmo, isso é só um pesadelo. 
      - Será que é? - a voz de Will volta e eu grito a plenos pulmões ao cair no que parece ser um buraco.
      A escuridão me envolve e penetra meus ossos lançando um ar tão frio que meu corpo congela e permaneço paralisado. Tento mover meus membros ou gritar, mas está tudo imóvel e nenhum som sai de minha garganta. O medo retorna com maior intensidade, me deixando tão apavorado quanto no dia em que o Demogorgon apareceu na escola. 
      A figura baixa do que parecia ser meu amigo surge das sombras, se aproximando de mim em um passo descontraído e volta a sorrir ao ver a minha situação. A angústia de não conseguir me mover e nem falar e o medo de ele fazer qualquer coisa comigo, crescem em meu peito. Percebo que as manchas em suas mãos haviam crescido e agora cobriam metade do seu braço e terminava no pescoço.
     Will joga a cabeça para trás e solta uma gargalhada, encobrindo um ruído perturbador, e eu sinto que aquele seria meu fim. Ele para de rir e avança sobre mim, as mãos estendidas prontas para me agarrar. Will se aproxima de mim e toca meu rosto, o gelo de suas mãos queimando a minha pele. 
      - NÃO! - acordo sobressaltado, o suor fazendo meu cabelo grudar na testa e nas bochechas. Me sento na cama e respiro fundo, tentando por os acontecimentos daquele sonho em ordem. Passo as mãos pelo meus cabelos pretos, ainda assustado e ofegante.  
      Ouço passos apressados, abafados pela porta, vindo pelo corredor e segundos depois Nancy irrompe pelo meu quarto, uma expressão de extrema preocupação e olhos arregalados me encaram.  
      - Que foi?! O que tá acontecendo?! - ela pergunta olhando para os lados e ao ver que não tinha ninguém, além de nós dois no quarto, suspira mais relaxada. - Você estava tendo outro pesadelo?  
      Faço que sim com a cabeça, o medo dimimuindo aos pouco no meu peito.  
      - Oh, Mike, não se preocupe, são só sonhos. - Nancy continua, sentando na beirada da minha cama e tocando minha mão com delicadeza. - O que foi dessa vez? 
      Desde aquela promessa que fizemos na escola sobre sempre contar nossos segredos um para o outro, Nancy tem estado mais presente na minha vida, sempre me ajudando quando eu preciso, principamente quando eu tenho esses pesadelos.  
      Inflo o peito já começando a formar as palavras para lhe contar sobre Eleven e a coisa que parecia Will, mas quando Jonathan Byers aparece na porta do meu quarto sinto todas essas palavras fugirem de mim e eu nem tento recupera-las. Como eu iria explicar a ele sobre a visão horrível de seu irmão no meu sonho? 
      - Aconteceu algo? Que foi? - ele questiona.   
      - Não é nada. - minto. - Foi só um pesadelo.  
      - O que você viu, Mike? - Nancy insiste.  
      - O de sempre. - dou de ombros.  
      - Mesmo? Você parece ter visto algo mais...
      - É sério, Nance, não é nada. - e dou-lhe um sorriso forçado.
      Ela analisa meu rosto, nem um pouco convencida. Nancy é a irmã mais velha, então é natural que ela sempre saiba quando algo está errado comigo ou com a Holly, e sempre tenta, de algum modo, resolver nossos problemas. Ela é uma ótima irmã, mesmo que a gente brigue às vezes, ela sempre vai ser. Ela sempre vai estar lá por mim. Nancy se vira para Jonathan e diz:
      - Jon, será que você pode nos dar um minuto?
      - Tudo bem. Vou estar te esperando lá embaixo. - e sai, fechando a porta ao sair. 
     Desde o dia que Will voltara e quando eles foram caçar o Demogorgon na casa da Sra. Byers, Nancy e Jonathan também têm conversado mais e criado uma amizade bem sólida, saindo para lugares, fazendo coisas juntos, estudando juntos e, claro, indo à casa do Steve, que, ao abandonar os amigos babacas, se tornou uma "pessoa melhor" e também fez amizade com Jonathan, mas ainda namora a minha irmã. Eu não gosto muito dele, mas não falo nada para não ferir a Nancy. Ela desvia o olhar da porta e vira seus olhos azuis para mim, dizendo:
      - O que está acontecendo com você?  
      - Nada. - respondo. 
      - Não, tem algo acontecendo, você só não quer me contar. 
      - Nancy...
      - Escuta, eu sei que é difícil. Eu passei por isso, você sabe. Você lembra da Barb. E é uma droga mesmo, mas ficar se fechando assim é ruim para você, é ruim para as pessoas que te amam, é ruim para todo mundo. A mamãe, o papai e até os seus amigos estão preocupados com você. Principalmente a nossa mãe. Você não conta nada para ela e sempre que pode ela pergunta para mim o que tá acontecendo, mas eu lhe digo que você ainda tá traumatizado por causa do Will. Não contei nada da Eleven. Só que você deveria começar a se abrir mais, pelo menos para a nossa mãe ou para os seus amigos. Eles merecem saber de algo. 
      Encaro em silêncio minhas mãos abertas no meu colo, ponderando sobre as palavras da minha irmã. Ela tem razão, eu deveria contar para alguém o que tem acontecido. Eu tenho guardado demais isso para mim, mas eu já disse e repito: eu não consigo me abrir facilmente desde tudo aquilo. Não sei se eu conseguiria contar toda a história com a El para a minha mãe e não quero que o Lucas, o Will ou o Dustin fiquem me olhando torto e me chamando de maluco por causa dos pesadelos. Quero ter uma vida normal e esquecer o passado só isso, mas porque ninguém entende?
       Porque nem mesmo você consegue se desvencilhar do passado, uma voz ecoa em minha mente e eu balanço a cabeça para manda-lo embora. 
      Só que ao invés de dizer isso para ela eu suspiro e respondo:
     - Tudo bem. Vou tentar falar com ela. 
     Nancy sorri. 
     - Ótimo. E não precisa se apressar demais, leve o tempo que precisar para se preparar. Agora vá se arrumar, o Jonathan vai levar a gente hoje.

      O velho carro do Jonathan chacoalha e pula violentamente a cada buraco ou quebra-molas em que ele passa, me fazendo bater com a cabeça no vidro ou no teto do veículo de vez em quando. Uma música do Kool and The Gang toca no rádio, que chia tanto que eu mal conseguia distinguir qual era. Depois de várias tentativas consegui reconhecer as batidas divertidas de Get Down On It e começo a tamborilar os dedos na perna, imitando o tecladista, e murmurando a letra da música. Quando ele parou o carro, ao chegar na escola, pude ouvir o toque familiar de Come Together dos Beatles e eu quase gritei para que ele não desligasse o som. O veículo para com um solavanco que me joga violentamente para frente. 
      - Caraca, Jonathan, de onde você salvou esse pedaço de latão com rodas? - pergunto tentando recuperar o fôlego que fora arrancado dos meus pulmões pelo aperto do cinto de segurança, que prendia somente a minha cintura. 
      Nancy se vira para mim, me lançando um olhar mortífero e eu me arrependo imediatamente de ter dito aquilo. Ela havia me solicitado para não comentar nada sobre o carro "novo" do Jonathan, que havia sido comprado de um ferro-velho na cidade perto da casa de seu pai. O automóvel ia ser esmagado quando ele chegou lá procurando alguma coisa, os funcionários mostraram a ele o carro e quase na mesma hora já estava voltando para casa dirigindo-o. O veículo era bem antigo e estava bem barato e, levando em consideração a situação financeira dos Byers, ele era quase um milagre em quatro rodas para o garoto, já que não podia mais pegar emprestado o da mãe. 
      - Desculpa, cara, mas é isso ou eu não tenho um carro. - ele responde com um tom divertido na voz, sem se importar com a ofensa ao automóvel. 
     - Ahn... Tá, desculpa. Tchau. - saio correndo do automóvel para não ter de enfrentar a ira da minha irmã. 
      - Espera! Mas e sua bicicleta?! - ouço a voz dele atrás de mim. 
      - Prende ela ali! - grito em resposta, apontando para um poste de luz perto do estacionamento e volto a correr. Não havia ninguém no pátio e eu praguejo mentalmente ao ver que estava quase 10 minutos atrasado.
      Entro em disparada no prédio e passo como um raio pelos corredores indo em direção ao ginásio para a aula do Sr. Brown, o que me fez correr mais rápido já que ele não tolera atrasos.
      Paro em frente a larga porta, ofegante, e dou quatro pancadas fortes para que todos escutem do lado de dentro. O silêncio paira por algum momento e, segundos depois, ouço passos vindo em direção às enormes portas duplas das quais eu estou parado. Elas são escancaradas e o rosto franzido em fúria do professor de Educação Física aparece. Meus músculos retesam quando a voz retumbante do homem ruge para cima de mim. 
       - Dez minutos atrasado, Wheeler!
      - D-desculpe, professor, tive um problema com o horário. - respondo, um pouco envergonhado e me encolhendo de medo. 
     - Vire homem, rapaz, e fale direito!
      - Eu dormi demais, senhor. - aprumo o corpo e fecho as mãos em punhos, em uma tentativa de esconder a tremedeira. 
      - Você sabe o que acontece com quem se atrasa não é, Wheeler?!
      Aceno afirmativamente com a cabeça. 
      - O quê? Eu não ouvi, fale!
      - Sim, senhor!
      - Ótimo! Agora vá para o vestiário, coloque suas roupas e pague cinquenta ou é detenção!
      Faço o que ele manda e em menos de 5 minutos estou estirado no chão, tentando fazer 50 flexões com todos me olhando e com as risadas baixas de Troy e os cérebros de pudim. Meus braços tremem a cada movimento e gotas de suor brotam na minha testa e deslizam pelas minhas bochechas coradas com o esforço.
      - Ei, professor! Acho que ele tá demorando demais! - ouço James gritar.
      - Humm... Wheeler, você está atrasando toda a aula, se não for mais rápido com isso vai pagar mais cem na detenção!
      Risadas explodem vindas de Troy e seus amigos e eu sinto a raiva, passando por todos os membros do meu corpo, dando-me uma maior motivação e força nos meus braços. Com um grunhido de dor e exaustão a cada flexão, consigo completar o exercício com muita dificuldade. Fico de pé, as pernas trêmulas, e limpo as mãos no short azul da escola. Seco a testa com as costas da mão e inspiro lufadas de ar para tentar recompor a respiração. 
      - Muito bem! Agora sente-se, rápido!
      Passo correndo por ele e me sento ao lado de Dustin, que balançava freneticamente a mão e apontava para eu ocupar aquele lugar. Corro os olhos por toda a sala e avisto Will sentado ao lado de Dustin e Lucas ao lado do ruivo. Mas, por incrível que pareça, não vejo nenhum sinal de Bill. Franzo as sobrancelhas e me inclino para o lado, na direção do garoto de cabelo anelados.
      - Cadê a Bill? - sussurro.  
      - Eu sei lá, cara, ela não aparece desde aquilo na sorveteria. 
      - O quê? Isso é sério? 
      - Não, na verdade ela veio, não tá vendo ela não? É que ela tá invisível e a gente tá zoando você. É lógico que eu tô falando sério, cabeção!
       - Você tá sarcástico igualzinho o Lucas. - digo, revirando os olhos. 
      Ele se vira para mim com um sorriso, agora cheio de dentes. Depois de tanto insistir e de tantas reclamações por causa das piadinhas do Troy, os pais do Dustin pagaram um tratamento para ele e agora o garoto possui todos os dentes que antes faltavam. É um pouco diferente ver o Dustin assim, já que eu o conheci ainda banguela, mas se ele gostou e se sente bem assim, então quem sou eu para julgar, certo?
       - Henderson, por acaso você está com algum problema? Quer pagar cinquenta também?! - o Sr. Brown berra. 
       Dustin fecha cara, fica rígido e se vira rapidamente para frente. 
      - Não, senhor professor. - responde. 
      - Então cale a boca enquanto eu explico. E Wheeler, você também não está em boa posição para ficar conversando. 
      - Desculpe, professor. - me encolho, abaixando a cabeça e cruzando os braços e ao fazê-lo ouço risadinhas. Me viro apenas o suficiente para ver um dos cérebros de pudim fazer um comentário com James, que faz os dois rirem baixo e lançarem um olhar rápido na minha direção. Bufo e volto minha atenção para a aula. 
      Porém a preocupação com Bill é maior e eu passo maior parte da aula pensando nela e no que aconteceu na sorveteria naquele dia, tirando toda a minha concentração. 

      Estávamos todos sentados na ponta do meio-fio em frente ao lugar, as bicicletas apoiadas na vidraça da sorveteria, conversando, rindo (às vezes rindo de Dustin que gargalhava tanto que o milk-shake chegava a sair pelas suas narinas) e nos divertindo.
      Nós estávamos conversando sobre o filme novo que ia estrear no final do mês O Exterminador do Futuro, quando Bill ficou rígida e pálida, subitamente, com o olhar fixo em alguma coisa além dos garotos. Eu segui o olhar dela e vi que ele estava preso em um garoto que descia a rua carregando algumas sacolas de compras e com uma mochila nas costas. 
      - Bill? Você tá bem? Quem é aquele? - perguntei. 
     - Tô ótima, eu só preciso ir embora. - ela disse, se levantando e pegando sua bicicleta, rapidamente. 
      - Bill, quem é aquele? 
      - Ninguém, Mike. Agora não enche e me deixa ir embora. 
      Mas foi tarde demais porque o garoto tinha se aproximado de nós e sua expressão era de puro choque. 
      - Billie? O que faz aqui? - perguntou. 
      - Nada, Thomas.
      - Ah é? Não parece. Quem são esses?
      - Meus amigos. 
      - Seus o quê? Ah, pelo amor de Deus! Eu sabia que seria uma péssima ideia trazê-la. Olhe só para você! Já está se envolvendo com arruaceiros!
      - Ei! - Lucas tentou intervir. 
      - Você não tem jeito mesmo, Billie. O vovô estava certo sobre você. Vem, vamos para casa, o bêbado que você chama de pai deve estar esperando a gente com uma garrafa uísque e tarefas de casa.
      - Mas eu não quero ir! Eu quero ficar aqui com meus amigos!
      - Era só o que me faltava. Vamos logo. - e saiu puxando a menina pelo braço. 
      - Larga ela, seu idiota! - Dustin avançou na direção dele, mas, com um movimento rápido do mais velho, foi jogado no chão. 
      - Sai!
      Corro para ajudar Dustin a se levantar, puxando-o pelas axilas, enquanto Lucas e Will lhe davam as mãos, como um apoio. Fiquei observando Bill e o tal Thomas caminharem até o final da rua, perplexo e me sentindo inútil por não poder ajudá-la. 
      Mas antes de dobrarem a esquina e desaparecerem, a menina se virou para onde estávamos, com um pouco de dificuldade pelo aperto do garoto, e gritou:
      - Ei, Wheeler! Pense no que eu te disse. - e mesmo de longe e toda aquela luta para se soltar do punho do garoto, pude ver ela me lançar uma piscadela. 

      - Mike. Mike! - Dustin estralava os dedos à frente dos meus olhos, me chamando, enquanto Lucas me sacudia. Balanço a cabeça, afastando aquela lembrança e foco em meu amigos, que me olhavam preocupados. 
       - Oi? Que foi?
       - Que foi? Cara, você deu sorte que o professor não te viu viajando na maionese ou você teria que fazer mais algumas flexões e quem sabe dar umas voltas correndo na quadra.  
       - É, cara. O que há de errado com você, hein? Tá estranho. - Lucas comenta. 
       - Nada, gente, sério. Eu só tô preocupado com a Bill. Só isso. 
      - Mas isso todo mundo tá e nem por isso a gente tá assim. 
      - Desculpem. - dou-lhes um sorriso, que é retribuído e nos levantamos já nos direcionando ao meio da quadra para realizar os exercícios. Entramos todos na fila de alunos que se formava para começar e eu acabo percebendo uma coisa. 
      Cutuco o Lucas, que estava a minha frente e ele se vira para mim, as sobrancelhas arqueadas e pergunta:
      - Que é?
      - Ei, cadê o Will?
      - Ele foi ao banheiro, fazer sabe-se lá o que. Provavelmente ele foi fazer cocô. - Lucas imita o som de pum com a boca e eu faço uma cara de nojo, que o faz soltar uma risadinha e eu acabo me juntando a ele. Depois que a graça da "piada" passou, sua expressão ficou séria e preocupada e ele completa em voz baixa. - Mas agora é sério. Tem alguma coisa errada com o Will, ele estava meio pálido e cansado. Dava até para ver olheiras debaixo dos olhos dele. Parecia até que estava doente. Porque?
      - Sei lá, é que quando eu cheguei ele estava aqui e agora não o vejo, achei estranho. 
      - É, tanto faz. Ele deve tá com alguma dor de barriga ou coisa do tipo. Sabe como ele é sensível. 
      - Sei...
      Lucas se vira para frente de novo quando o professor entra no ginásio, abrindo violentamente as portas duplas e me interrompendo. Eu nem havia sentido a sua falta e nem notei quando ele saiu. Olho firme para frente, tentando parecer ansioso para começar o exercício quando ele se aproxima de nós e nos analisa. O Sr. Brown chega o rosto tão perto de mim que eu pude sentir seu hálito quente de café e biscoitos soprar no meu rosto. Ele estreita os olhos e aperta os lábios, fingindo concentração. Provavelmente só para me intimidar. Então se afasta com um "hum" e sai novamente. Suspiro aliviado e meus pensamentos voam livres enquanto eu começo a atividade de corrida em volta da quadra com alguns obstáculos bobos como passar por cima de uns colchões infláveis enquanto outros garotos atiram almofadas contra nós e passar sem cair dentro de uma piscina de bolinhas. 
       Will tem sido a minha maior preocupação desde o que eu vira no meu sonho e quando comecei a fazer a atividade ele conseguiu ocupar uma boa parte dos meu pensamentos, tanto que eu me distraí algumas vezes e acabei tropeçando nos colchões e escorregando em umas bolinhas e caindo, fazendo com que o professor soltasse um resmungo baixo e escrevesse alguma coisa em uma prancheta toda vez que isso acontecia. Penso na descrição que Lucas me dera alguns minutos atrás, que se semelhava muito ao Will do meu sonho. 
      Um arrepio percorre meu corpo e eu trinco os dentes quando a sensação do toque de suas mãos, tão gelado que queimava, invade minha mente. O que foi aquilo? Um mero sonho? Ou quem sabe uma... visão? Mas não poderia ser uma visão, é impossível. Não tem como o Will ficar daquele jeito, ainda mais o Will que eu conheço, tão tímido, tão sensível...
      Por outro lado, tudo aquilo parecia tão real e se esse for o futuro mesmo, como ele ficou daquele jeito? Existe algum meio de aquilo ser evitado? São inúmeras perguntas. É provável que eu também nunca esqueça a dor no seu olhar perdido e eu tive a terrível sensação de que ele estava sofrendo e que estar daquele jeito utilizava muito de suas forças, deixando-o extremamente cansado. Vai ver esse é o motivo de aquelas olheiras tão fundas.
      Mas não penso só em Will, e sim no sonho inteiro com as vozes estranhas, o bilhete, o Vazio... Eleven. 
      Ela havia me dito que estava bem e viva, mas e se na verdade isso for outra ilusão? Uma armadilha? Entretanto ela parecia muito diferente e suas respostas eram curta mas objetivas, Eleven parecia muito certa do que tinha me dito. E se for verdade, quem está cuidando dela? Onde ela está? E como encontrá-la? 
      Meus pensamentos são interrompidos por um grito escandaloso de dor e eu me viro assustado. 
      Um garoto estava no chão e berrava tanto que eu senti minha própria garanta arranhar. Ele segurava a própria cabeça e massageava uma região próxima à nuca. O professor se aproxima sem demonstrar nenhuma preocupação ou compaixão pelo garoto, a expressão estampava puro descaso. 
      - O que está acontecendo aqui? - ele pergunta soltando uma bufada. 
      - O maricas do Fred tá gritando igual uma mulherzinha... - um cérebro de pudim começou.
      - Tá, garoto, isso eu sei, seja mais objetivo. 
      - ...depois de eu só ter jogado uma almofada nele. Não foi nem muito forte, ele que é fraco. 
      - Mentira! - alguém berra no meio do círculo que se formou em volta de Fred, do cérebro de pudim e do professor. - O Charlie jogou com tanta força que jogou o Fred no chão e ele bateu a cabeça!
      O professor suspira e massageia as têmporas. 
      - Isso vai me dar uma dor de cabeça terrível. - ele resmunga e eu o encaro, horrorizado que ele só vai se importar com o que pode acontecer com sua reputação no colégio. - Você. - ele aponta para Charlie. - Me ajude a levá-lo à enfermaria. E o resto está liberado, podem ir. - ninguém move um músculo e então ele berra. - EU DISSE DEEM O FORA! VÃO! DESINFETEM!
      A rodinha se dispersa rapidamente e em menos de dois minutos só sobraram eu, Lucas, Dustin, o professor e Charlie que arrastavam Fred para a enfermaria. 
      - Caramba! - Dustin exclama quando os três deixam o ginásio. - Que doideira!
      - É mesmo. - Lucas concorda dando um sorriso e balançando a cabeça. 
      - O que acham dele? - pergunto. 
      - O Fred parece ser um cara legal e... - o de cabelos cacheados começa. 
      - Não, cabeção, tô falando do professor. 
      - Ah. Ele aprece o imperador Palpatine. Mas sem o rosto enrugado. E os raios maneiros que ele lança pelas mãos. E sem o sabre de luz. E sem toda aquele esquisitice. E sem...
      - Tá bom, Dustin, a gente já entendeu. - Lucas interrompe. 
      - Mas ele é bem estranho mesmo. - digo e Dustin sorri ao ver que alguém concorda com ele. - Eu não gosto muito dele. 
      - Deixa só ele ouvir você falar isso, com certeza ele vai fazer você esfregar o chão do banheiro e as privadas com uma escova de dentes, que nem no exército. Ou pior. - Lucas faz um pausa e depois retorna com uma careta. - Vai fazer você lavar as cuecas sujas dele. 
      - Que nojento. 
      - Acho melhor a gente ir se trocar rápido, ou vamos perder a próxima aula. - É a vez de Dustin intervir e nós concordamos com a ideia e em quase cinco minutos estamos correndo pelos corredores a procura da próxima sala de aula. 

      O sinal do intervalo bate e todos os alunos saem correndo, desesperados da sala, como se os portões de uma prisão fedida e sem comida tivessem sido abertos. E quando digo isso para Dustin o garoto concorda e diz que a única coisa que falta para aquela escola virar uma prisão é o mau cheiro. 
      Eu e Lucas caminhávamos até o refeitório enquanto Dustin andava um pouco mais à frente, claramente com pressa, porque vez ou outra ele se virava para nós e gritava:
       - Ei, mocinhas, estão muito ocupadas botando a fofoca em dia? Acelerem aí eu tô com fome!
       - Sossega o facho, Dustin, comida não some num passe de mágica. - Lucas rebatia.
      Quando passamos pelas portas duplas do enorme salão o garoto de cabelos anelados desaparece e em menos de um minuto o avisto na fila pegando seu lanche e discutindo com a mulher da cantina, provavelmente por causa dos pudins de chocolate que ela escondia. Meu olhos correm por todo refeitório a procura de Will, mas não o encontro e logo sinto a preocupação chegando. Lucas acaba escolhendo uma mesa mais afastada e quando nos sentamos percebo uma expressão de preocupação estampada em seu rosto. Deve estar procurando pelo mesmo garoto ruivo e baixinho que eu. 
     - Cadê aquele cabeção do Byers, hein? - ele solta e confirma minha teoria.
      - Eu sei lá, você não disse que ele tinha ido no banheiro? - respondo com outra pergunta. 
       - E foi mesmo. Será que ele ficou com a bunda presa no vaso sanitário?
      Dustin chega resmungando e pisando duro. Ele se senta ao meu lado e coloca a bandeja no tampo da mesa fria de metal. Parecia com raiva e extremamente frustrado. 
      - Que foi, cara?
      - Aquela mulher joga baixo mesmo! Ela disse que se eu não parasse de insistir na história dos pudins ela ia parar de servir comida para mim e que só iria me oferecer aquelas gororobas verdes cheias de cabelo e que mais parecem vômito de uma família inteira de ratazanas! - exclama jogando o braços para o alto. Ele pega uma batatinha do seu prato e morde com muita raiva e eu cheguei até a sentir até um pouco de pena do alimento. 
       Eu e Lucas ríamos da raiva repentina de Dustin pela moça da cantina quando um estrondo ecoou por todo o refeitório, fazendo todas as conversas paralelas se calarem quase que instantaneamente. Olho para trás e me assusto ao ver Bill parada no vão das portas, ofegante e seu rosto parecia um pouco vermelho, não sei se é de raiva ou de cansaço. Mesmo de longe pude notar que seus olhos corriam por todo o salão e eu ergo o braço, balançando-o no ar. Ela nos avista e sua expressão pareceu se suavizar. Ela corre até nós.
       - E aí? - Bill nos cumprimenta quando se aproxima o suficiente. E como se estivessem decepcionados por algo interessante não ter acontecido, as pessoas voltam a conversar. 
      - Como assim "e aí"? Bill, você sumiu por dois dias inteiros e nem nos deu uma explicação! - Lucas exclama. 
      - Desculpem, foi um problema com o meu irmão. Ele não quis me deixar vir. 
      - Aquele cara da sorveteria é o seu irmão?
      - Infelizmente sim.
      - Quem aquele cara pensa que é para poder sair te arrastando desse jeito? - Dustin pergunta incrédulo. 
      Ela suspira. Bill parecia extremamente cansada e por um momento eu pude ver um lampejo de tristeza no seu olhar. 
      - A única pessoa que tem alguma condição de me proteger. - murmura e eu me lembro da fala de Thomas "o bêbado que você chama de pai deve tá esperando a gente com uma garrafa uísque e tarefas de casa." 
      Uma ideia me ocorre rapidamente e antes de eu pensar se eu devia ou não perguntar isso as palavras fogem da minha boca. 
       - Mas e quanto à sua mãe?
       Ela me lança um olhar rápido e com isso pude ver seus olhos marejados, fazendo eu me arrepender de ter perguntado isto. Bill abaixa a cabeça e fecha os olhos. Quando ela os abre novamente eles só estavam um pouco vermelhos, mas um pequeno sorriso de lado era possível ver em seus lábios. 
        - Ela tá viajando. - diz, mas sua voz estava um pouco trêmula. - A trabalho. - completa. 
      - Mas... - Dustin começa. 
      - Ei, cadê o Will? - ela se esquiva das nossas perguntas sobre sua mãe com outra pergunta. 
      Lucas bufa e se levanta. 
      - Eu vou ir atrás dele. 
      - Quer que eu vá com você? - pergunto e sinto que Dustin ia dizer o mesmo. 
      - Não, fiquem aqui de olho nessa doida antes que ela suma também. - diz e logo depois sai a passos largos do salão. 
      Depois que Lucas sai do refeitório eu e Dustin olhamos para nossas bandejas cinzentas cheias de comida e voltamos a comer, antes que o sinal bata e nós fiquemos com fome pelo resto do dia. Acabo me lembrando que Bill não tinha pegado comida alguma e eu me viro para ela, pronto para lhe oferecer alguma coisa, mas paro quase que instantaneamente quando vejo uma lágrima solitária brilhar na pele negra de seu rosto. 
      - Hã, Billie? - chamo com a boca cheia de batatas. - Você tá bem?
      Por cima de seu ombro pude ver Dustin se virar para nós, curioso. Ela me olha e abre um sorriso amarelo. 
      - Não, digo, sim, eu tô bem, de verdade. Não se preocupa.
      - Se quiser contar alguma coisa a gente pode te ajudar. - Dustin completa. 
      Ela bufa. 
      - Porque vocês querem tanto saber assim da minha vida, hein?! - explode, batendo as mãos espalmadas no tampo frio da mesa de metal. 
      - Dãrr, você é nossa amiga, cabeção, faz parte do grupo. Você é da nossa família agora, a dos esquisitões, é normal a gente se preocupar. 
      Ela sustenta o olhar duro de Dustin por alguns segundos, mas depois abaixa a cabeça novamente, envergonhada pela maneira como agiu. 
      - É só... Um problema lá em casa, não é nada. - a garota murmura. 
      Não senti muita convicção na sua frase, mas decido não pressiona-la demais e sei que o de boné também pensa o mesmo porque ele se virou novamente para a sua comida, mas vez ou outra ele se virava para a menina, a preocupação estampada no semblante. 
      - Mas e você? Você tá bem? - a pergunta me pega de surpresa e eu me viro assustado para ela. 
      - Porque? Eu não pareço bem? - dou um sorriso e a careta que se formou na expressão dos dois me indica de alguma coisa está errada com meus dentes. - Que foi?
      O garoto aponta para seus dentes e depois os escova com o dedo indicador. Eu faço o mesmo e sinto alguma coisa se prender nele, quando vejo novamente era um pedaço de alface. 
      - Bom... Não. - Bill diz ignorando o acontecimento.
      - Mas eu tô ótimo, é sério. 
      Ela franze as sobrancelhas e baixa o tom de voz, se aproximando de mim. 
      - Você pensou no que eu disse?
      - Ah... Um pouco. 
      Quando os outros estavam pedindo nossos milk shakes eu e Bill estávamos do lado de fora, observando os carros passarem, quando começamos a falar sobre nossos amigos, familiares e pessoas que amamos e quando começamos a falar de meninas que eu gosto ou acho bonitas e meninos que ela gostava e achava bonitos em sua cidade antiga, ela pareceu notar um pouco o pesar em minhas palavras e não pôde evitar a curiosidade. 
      "Que foi", perguntou. 
      "Que foi o quê?", respondi. 
      "Você parece triste."
      "Hein?"
      "É, sei lá, quase como se você sentisse saudade de alguém."
      Ainda me recordo da sensação que eu senti ao me lembrar de Eleven. Uma sensação de enjoo e de estômago revirando, mas lá no fundo a que mais prevalecia era a saudade. E Bill notou isso. 
      "Eu? Pfff. Eu não sinto falta de ninguém.", minto. 
      Ela estreitou os olhos deixando-os como fendas finas me deixando desconfortável. 
       "Você está mentindo. Olha, se quiser que nós dois sejamos amigos não podemos ficar escondendo coisas uns dos outros. Vamos, me conte o que aconteceu."
      Olhei para ela, encarei seus olhos escuros e profundos, cheios de confiança e gentileza, e naquele momento eu soube que eu poderia confiar em Bill, que ela me ajudaria com qualquer problema que eu tenha.
      "Eu... Conheci uma... Garota ano passado e..." Faço uma pausa e engulo em seco. Nunca consegui dizer aquelas palavras em voz alta, era difícil admitir para mim mesmo que El tinha ido para sempre. 
      "E...?"
      "E... Ela se foi." As palavras passam como navalhas pela minha garganta e eu pigarreio, afastando a terrível sensação. 
      "Se foi, tipo, se mudou ou..."
      Eu não sei bem como explicar, é complicado. Eu não sei se ela tá viva ou morta. E eu desejo muito que não tenha acontecido nada com ela, mas eu não recebo notícias dela desde a última vez que a vi e isso me assusta. Muito."
      Bill fita o asfalto por alguns momentos, escolhendo as palavras certas, e então suspira e começa:
      - Eu também perdi alguém que eu amo. Eu fiquei devastada, pensei que era o fim para mim e que o melhor a se fazer era me juntar a essa pessoa para acabar com a minha dor. Mas aí eu pensei melhor e vi que isso não valia a pena sofrer tanto. Eu não iria querer que as pessoas ficassem tão tristes por minha morte a ponto de quererem se matar também. Eu iria querer que as pessoa fossem fortes e seguissem seu caminho, firmes e com a cabeça erguida, prontas para qualquer desafio e que me desse orgulho de dizer "eu fui amiga desses caras". Você consegue me entender?" faço que sim com a cabeça. "Então esse é o meu conselho. Não é pra você se esquecer dessa garota. Pelo contrário você tem que se lembrar dela e orgulha-la sendo uma pessoa melhor e não ficar remoendo o passado. 
      As palavras de Bill iluminaram minha mente como um farol para os marinheiros em meio a neblina densa do mar, me fazendo perceber que já era hora de superar a perda de Eleven. Claro, eu gostei muito dela, ela era a garota perfeita para mim, mas se aquilo aconteceu é porque teve de acontecer... Certo? Digo, era isso ou nunca encontraríamos o Will. Ou pior, eu, Lucas e Dustin estaríamos mortos agora. E foi graças ao seu sacrifício que estamos todos bem e felizes. El nunca será esquecida, muito menos o seu ato de coragem e, como as palavras de Bill afirmam, eu deveria fazer jus a isso e trazer a orgulho a garota que se foi. 
      - E aí? O que você decidiu? - a menina a minha frente estrala seus dedos à frente dos meus olhos, me resgatando das minhas dúvidas e problemas. Percebo que metade dos alunos já tinha saído do refeitório e estavam se dirigindo ao pátio antes de voltarem a aulas tediosas. Uma olhada acima do ombro de Bill me revela que Dustin também havia sumido e ao notar a minha preocupação a respeito do meu amigo a garota de apressa em explicar. - Ele foi na cantina conversar com a atendente e reclamar sobre alguma coisa a ver com pudins de chocolate. 
      - Ah...
      - Mas voltando aqui. O que você pensou?
      - Humm. Eu concordo com você, sobre tudo, é errado estar sofrendo assim e é claro que a El... A menina, não iria gostar de me ver assim tão triste. E ao invés de ficar sofrendo tanto vou fazer algo em sua homenagem e que a deixará orgulhosa de mim. - termino com um sorriso no rosto, olhando para um pouco acima da cabeça de Bill, o peito estufado e um punho fechado pousado na região. 
      - É isso aí, cara! - ela diz rindo. Me junto a ela nas risadas, porém pareceu se lembrar de algo e logo sua expressão voltou a ficar séria. 
      - Que foi? - pergunto. 
      - É só que... É uma pergunta que tem martelado minha cabeça sobre isso...
       - Fala aí. - enfio um bocado de frutas variadas na boca. 
       - É... - Bill olha para os dois lados antes de se inclinar em minha direção e continuar a sua fala, dessa vez em voz mais baixa. - O que aconteceu nessa cidade ano passado? E o que aconteceu com essa garota? Os dois eventos têm algum ligação?
        Paro de mastigar instantaneamente e pouso os talheres ao lado da bandeja. O momento de descontração havia ido embora quase tão rápido quanto havia chegado. Porque ela estava tão curiosa assim? Será que não dava para ficar quieta e sem fazer essas drogas de perguntas? Será que ela não percebe que eu não gosto e nem quero falar disso? Fecho a cara e olho para ela, a resposta evasiva e mal educada já na ponta da língua quando Dustin chegou carregando no mínimo cinco potes de pudim de chocolate. Ele se senta a nossa frente e esparrama os doces na mesa com um sorriso orgulhoso e radiante nos lábios.
      - Eu consegui fazer com que ela me desse alguns. Cara, foi uma discussão bem difícil, pior do que as campanhas de D&D. Acho que essa moça da cantina devia ser o último boss do jogo por ser tão difícil de passar por ela. Ainda mais com toda aquela comida nojenta que só de sentir o cheiro já me faz desmaiar. Provavelmente esse seria o ataque especial dela. - ele ri consigo mesmo abrindo um pote de pudim, mas para ao ver minha expressão séria. - Perdi alguma coisa?
       - Não. - respondo me levantando. 
      - Ei, onde você vai?
      - Esqueci o caderno da próxima matéria no escaninho. - minha resposta foi tão seca que tive até que me segurar para não tomar um gole d'Água. 
       Pego minha mochila que estava jogada no chão ao lado do meu banco e saio. Mas eu ainda estava perto o suficiente para ouvir as últimas palavras trocadas pelos dois. 
       - Isso tem alguma coisa a ver com a Eleven? - Dustin perguntou. 
       - Quem? - a novata respondeu com outra pergunta. 
       - Uma amiga nossa que a gente conheceu ano passado. O Mike gostou muito dela mas agora ela se foi. 
      Não pude ouviu a resposta de Bill porque já estava bem longe dos dois e acho que ela baixou o tom de voz para respondê-lo. Mas não tem problema, porque eu não queria saber mais daquilo mesmo. Eu estava cansado de tudo isso, todas essas perguntas repetitivas e chatas sempre me assombrando desde o último ano. 
      As portas se abrem e eu passo pelo vão bem na hora em que Lucas irrompe pelo salão com um Will extremamente pálido apoiado no outro que quase o carregava em seus braços. Penso em ajudar Lucas e perguntar o que aconteceu, mas meu egoísmo e meu orgulho fizeram com que meus pés se movessem para longe dali, sem nem ao menos me preocupar com aquilo. 
       E eu sei que me arrependeria muito daquilo mais tarde.


Notas Finais


Se já tiverem alguma teoria podem mandar aqui nos comentários ou no meu twitter @strangerswho até o próximo pessoal <33


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