Foi incapaz de segurar o vômito e cambaleou, nu, até o banheiro da suíte cara. Ajoelhou-se vergonhosamente em frente ao vaso sanitário e despejou o que sobrara de vinho e vodka no estômago, o excesso que não havia subido para a cabeça, nem entrado na corrente sanguínea. Sentiu-se um pouco mais sóbrio depois, e a dor de cabeça amenizou. Mesmo assim, não teve coragem de voltar para o quarto. Dongsun estaria lá, dormindo em sua cama alugada. Enfiou-se no chuveiro e chorou. A água escorreu morna e revigorante, mas Jungkook continuava sentindo-se um lixo, como se tivesse traído Taehyung. Nunca pensou que fosse dormir com outra pessoa, vivera com a certeza de que ficaria com seu namorado para o resto da vida. Mas nem sempre as coisas iam como planejado, e forçou-se a pensar que não tinha feito nada de tão errado assim, que foi Taehyung quem errou primeiro. Ele dormiu com outra pessoa antes.
Entretanto, ainda se sentia sujo. Tinha que ser Go Dongsun? O homem que seu namorado mais detestava, o motivo de tantas de suas brigas… o produtor que Taehyung teimava em acusar, dizendo que queria seduzi-lo, que propositalmente o mantinha longe por tempo demais. E ele estava certo.
Céus, Taehyung estivera certo, o tempo todo. Go Dongsun nunca quis o seu bem. Pelo menos, não se fosse com Taehyung.
Tomou coragem para sair do chuveiro e voltar ao quarto. A conclusão de que as intenções de seu produtor nunca foram das melhores fez com que as lágrimas de culpa se transformassem em raiva. Talvez ainda estivesse com Taehyung, se não fosse por ele. Precisava confrontá-lo, ainda que não sentisse a menor vontade de olhar para a cara do produtor.
Go Dongsun dormia, pacífico, e Jungkook fez uma careta ao notar que ele estava nu. As cenas da noite anterior voltaram aos poucos, deturpadas pelo álcool, mas Jungkook não conseguiu negar seu papel naquele desastre. Era culpa sua, tanto quanto dele. Cedeu aos avanços de seu produtor por estar vulnerável e perdido, pela necessidade sobrehumana de esquecer Taehyung. Com a sobriedade, veio a ressaca e a certeza de ter cometido um erro.
Balançou o ombro de Dongsun, sem cuidados, e ele abriu os olhos.
- Taehyung estava certo esse tempo todo, não estava? – Disse, sem paciência para introduções. – Você queria nos separar. Sempre quis.
Go Dongsun sorriu arisco, asqueroso.
- Eu não fiz ele te trair, Jungkook. Taehyung fez isso sozinho.
- Mas só depois das suas mil artimanhas. De me prender no estúdio até de madrugada, de dizer que eu não poderia levá-lo para me assistir. De me chamar de cachorrinho mil vezes e ser um babaca com ele. Se você não tivesse feito isso, talvez ainda estivéssemos juntos. Talvez ele não tivesse encontrado outra pessoa pra me substituir.
- É, pode ser. Mas não muda o fato de que ele estragou tudo sozinho. Eu não tive nada a ver com isso, mas confesso que não fiquei nem um pouco surpreso. Taehyung não te merece. É um garoto mimado e egoísta.
Nesse ponto, Dongsun tinha razão. Taehyung podia ser, sim, um garoto mimado e egoísta. Podia tê-lo traído sozinho, sem a intervenção do produtor. Mesmo assim, isso não fazia de Go Dongsun melhor do que ele. Jungkook chegou à conclusão de que estava cercado por cobras. Precisava chupar o veneno todo, mastigá-lo, para que pudesse se reerguer.
- E você merece?
- Eu só quero o seu bem, Kookie.
Jungkook negou com a cabeça.
- Depois dessa turnê, estamos acabados.
- Você precisa de mim. – Ele insistiu, com um sorriso cínico. – Eu te fiz o que é hoje.
E o que seria isso? Alguém triste e melancólico. Alguém que havia desperdiçado tempo com o amor da sua vida para ouvir a porcaria de um produtor musical, para ter sucesso. E, por mais que tivesse dado certo, ainda que tivesse conquistado o sucesso que queria, não valia mais a pena. Não trazia nenhuma glória. Não sem Taehyung.
- Você me fez algo que eu não queria ser. – Afirmou, decidido. – Eu não vou mais cantar.
Capítulo 24 – Fantasmas
A minha vida inteira eu precisei lidar com a minha necessidade idiota de afrontar as pessoas. Sério, às vezes eu faço involuntariamente, e quando vejo já larguei alguma frase provocativa, já arrumei uma briga desnecessária. Com a idade, fui ficando melhor em morder minha própria língua. Percebi que evitar esses confrontos geralmente dá mais resultado do que afrontar de fato.
Mas aí me vem aquela porcaria de Taehyung do passado, o pavio curto, narcisista e egocêntrico. Tudo bem que eu continuava sendo a maior parte dessas coisas, mas em um nível absurdamente menor. A maturidade faz isso com a gente – e com “isso” eu quero dizer que nós, adultos, ficamos com preguiça de lidar com esse tipo de briguinha. Nem é porque a gente toma juízo não, é só porque estamos cansados. Não temos paciência pra entrar em confrontos que não vão dar em nada.
O Taehyung de vinte anos não. O maldito Taehyung de vinte anos estava doidinho pra aparecer de mãos dadas, desfilar com Jungkook na frente de todo mundo, aparecer na televisão, provocar a própria mãe e principalmente: exibir Jungkook na frente do imbecil do Go Dongsun.
Olha, eu não julgo o Taehyung jovenzinho. Realmente, Go Dongsun merecia mesmo. Ele foi o principal responsável pela droga do fim do meu relacionamento – já que tudo o que ele fez culminou na porcaria daquele mal entendido com meu coelhinho pensando que eu seria capaz de adultério. E ele ainda continuava a me provocar, o malditinho do Dongsun, porque ele sabia que aquilo me afetava. Sempre que estávamos nós três no mesmo cômodo, desde o início, o produtor imbecil fez questão de mostrar que – ao contrário da minha relação degradada com Jungkook – os dois ainda batiam os maiores papos. Argh, aquilo me dava nojo de ver. Mesmo antes de fazermos as pazes e do Taehyung impulsivo reaparecer, eu já estava querendo afrontar ele.
Agora, queria muito mais.
Era uma coisa meio louca, essa mistura dos Taehyungs, e eu ainda não tinha me acostumado com a coisa, sabe? Pra mim eu ainda era eu e estava tudo ok, mas aí Jungkook aparecia só com um sorrisinho de coelho e eu já sentia meu sangue correr mais quente. Percebi que estava mais esquentadinho também, me irritando com facilidade e respondendo mal as pessoas sem que realmente fosse necessário. Ah, o Taehyung mimado. Espero que ele não estrague a minha vida, que não faça nenhuma bobagem.
Quando o dia da filmagem do teaser finalmente chegou, eu não estava com nem um pouquinho de medo de encontrar com Go Dongsun. Na verdade, estava louco para ver a cara convencida daquele otário. Eu já fui com um plano claro e infalível na minha cabeça, de ficar bem pertinho do Jungkook, de fazer gracinhas pra ele rir e encostar nele por qualquer motivo idiota.
Mas quando eu cheguei lá com Dahyun, só dei de cara com o maldito do produtor dele, e nem sinal de Jungkook. Yoongi também não tinha aparecido, e imaginei que os dois fossem pra lá juntos, levando a modelo, de preferência. Claro que eu já tinha encontrado com meu coelhinho naquela manhã, porque desde que a gente se acertou a minha cama de casal não tinha mais um lado vazio e gelado. Aos poucos, Jungkook levou mudas de roupa, e elas foram se empilhando no meu armário. De manhã ele saía de carro para a SUGA, querendo despistar nosso relacionamento de qualquer curioso plantado na porta do meu prédio. Eu saía à pé, como todos os dias, e ia pra RM com um sorriso idiota no rosto, feito o adolescente apaixonado que brotou em mim sem permissão.
E as memórias voltavam, aos poucos. Me lembrei de umas coisas nos últimos dias. Tinha feito mais duas sessões de hipnose com Seokjin e os vestígios iam aparecendo, um a um. Vinham do nada, e às vezes eu pensava que era só um sonho, uma impressão ou a lembrança de uma história que alguém havia me contado. Dahyun, brava comigo, berrando que eu a havia enganado, que não passava de um aproveitador. Minha mãe me ligando pra fazer ameaças, implorando para que eu reatasse meu namoro com ela. Mas, de Jungkook, mais nada apareceu. Eu queria mesmo me lembrar dele logo, mas até agora havia voltado apenas uma coisa. Só aquela memória viva do bocejo de coelhinho, do rosto adolescente, e a sensação acolhedora e assustadora de pertencer no abraço dele.
Cheguei ao local de filmagem cedo. Go Dongsun estava experimentando as roupas no modelo da produtora dele, o Mingyu. Eu tinha uma pena danada desse menino, porque me lembro muito bem da quantidade de horas que meu coelhinho ficava fora de casa quando trabalhava com Dongsun. Ele era um produtor carrasco, além de um babaca grosso. E aquele imbecil teve a audácia de me cumprimentar com um sorrisinho quando me viu. Eu ignorei, é claro, e fui ajudar na arrumação do cenário enquanto não começavam a gravar.
As cerejeiras não estavam colaborando. Já estavam floridas, mas as flores ainda não estavam completamente abertas e as pétalas não estavam caindo como deveriam pra filmagem. A gente ia ter que dar um jeito nisso, porque o plano era que as pétalas caíssem. Felizmente eu não lidero uma equipe de imbecis e a produção já tinha se prevenido. Trouxeram uma máquina, tipo essas de soltar fumaça, cheia de pétalas dentro, pra criar um ambiente artificial de maio. Fiquei auxiliando enquanto um cara subiu com aquele troço numa das árvores, pra soltar as pétalas lá de cima. Foi bem impressionante. Tão logo começou e pareceu de verdade. Tirando o cara pendurado em cima da árvore, a escada de alumínio e a máquina, era mesmo o cenário perfeito da primavera. O céu estava azul piscina, claro e limpo. Observei o quadro em que o teaser seria filmado, o cenário familiar e aconchegante das flores de maio. Daí, uma coisa estalou em mim.
Era parecido demais com o outro lugar, aquele que era só meu e de Jungkook. Passei horas e horas num carro com Jimin até achar aquele lugar, o lugar exato, como na minha imaginação. Precisava ser perfeito, e eu não me contentaria com menos. O lugar onde eu daria as alianças a Jungkook, alianças que eu andava carregando por aí há semanas, dentro da mochila. Tinha gastado uma pequena fortuna nelas. Mandei gravar nossos nomes. Foi constrangedor ditar "Taehyung e Jungkook" para o funcionário da joalheria cara. Alianças de prata, para dois homens. O atendente, profissional demais, ficou inexpressivo e anotou os nomes no caderninho. Me mostrou, perguntando se havia escrito a ortografia correta, só pra ter certeza, e quem sabe esperasse uma correção, como se me aguardasse dizer "não, na verdade é Jeon Junghee", ou algum outro nome feminino. Constrangido, eu afirmei com a cabeça "sim, está certo", me forçando a ficar sério e não parecer abalado, mas eu sabia que ele ia comentar o episódio com os amigos no fim do expediente, enquanto tomava sua cerveja no happy hour. Fiquei feliz ao ir buscar as alianças, a caligrafia perfeita em que nossos nomes foram gravados, como se aqueles anéis fossem toda a certeza de uma eternidade. Repassei mil vezes na cabeça o que iria dizer antes de lhe entregar o presente.
“Eu sei que esse não é o melhor momento. Mas a gente vai se casar, um dia.”
Vi, diante dos meus olhos, o sorriso de roedor do Jungkook adolescente. Meu peito se aqueceu, como se as alianças estivessem no meu bolso ainda agora, e eu instintivamente levei uma mão a outra, tateando pelo dedo anelar sem a jóia que deveria estar ali.
As pétalas ainda caíam, como em câmera lenta, e eu pensei que fosse desmaiar. Foi muito, de uma vez só. Achei que teria um aneurisma, minha cabeça doeu feito o diabo. Fiquei zonzo.
- Tae? – Senti a mão de Jungkook na minha cintura, me segurando de pé antes que eu fosse ao chão. – Tae, você tá bem? Seu rosto está branco feito papel. Parece que viu um fantasma.
Eu vi sim, muitos. Como se um espírito tivesse baixado em mim, o espírito daquele Taehyung esquecido. Vi o que ele viu, senti o que sentiu, ao mesmo tempo. Meus fantasmas.
- Preciso me sentar.
- Vamos.
Ele começou a pressionar as mãos nas minhas costas, como se fosse me empurrar gentilmente pra algum canto, mas eu cruzei as pernas e me sentei lá mesmo onde estava, sobre a grama úmida.
Jungkook sentou também e eu apoiei a testa em seu ombro. Não estava nem aí se iam nos ver, e nem pensei, mas precisava apoiar a cabeça pesada em algum lugar ou me deitaria no chão.
- Tae, eu estou preocupado com você.
A voz dele guardava uma angústia óbvia, e eu senti uma pontada na boca do estômago. Ele andava dizendo isso demais, ultimamente. Era a hipnose, o retorno da minha memória, o Taehyung jovem fazendo aparições, convivendo comigo. Por vezes, brigando pelo controle do meu corpo, comandando minhas emoções. Minha cabeça fraca não aguentava.
- Eu não tô me sentindo muito bem. – Admiti, e levantei a cabeça. Jungkook virou o rosto para mim, minha cabeça ainda apoiada em seu ombro. Me puxou pelo queixo e me fez levantar o rosto, com uma cara assustadoramente preocupada. Os olhos arregalados e ansiosos, as sobrancelhas muito levantadas.
- Merda, Tae! Seu nariz está sangrando.
Pensei que ele fosse começar a chorar. A voz dele estava tão atormentada que eu me senti mal por fazê-lo passar por isso. Jungkook segurou meu rosto com uma das mãos e com a outra limpou o sangue do meu nariz com a manga da camisa social. Os olhos dele não paravam quietos, indo de um lado ao outro do meu rosto, como se procurasse o que havia de errado comigo.
- Anda, vamos, eu vou te levar no médico.
- Não precisa.
- Agora.
Não tinha como discutir com o coelhinho quando ele ficava decidido desse jeito, eu sabia. Também não tinha forças pra discutir. Me esforcei para ficar de pé. Meus joelhos tremiam. Segurei firme no ombro de Jungkook, e ele rodeou o braço na minha cintura. Algumas imagens ainda iam surgindo, invasivas. Nós dois abraçados sob as flores de cerejeira, o colar de prata gelado no meu pescoço.
E ao sair com o braço ao redor do pescoço de Jungkook, o Taehyung adolescente e mimado dentro de mim resolveu fazer mais uma aparição. Pelo canto do olho vi Go Dongsun, nos observando. Por mais que me sentisse mal e doente, uma parte minha sorriu por dentro e meu rosto refletiu um sorriso sádico em sua direção. Gostei de ver a cara curiosa dele, seu olhar perfurante e ofendido. Apesar disso, eu não consegui ficar mesmo feliz. Aquela era uma parte egoísta minha, que há muito tempo eu tentava reprimir. Eu não queria soltar meus demônios interiores, aqueles que se alimentavam da desgraça alheia, os que queriam afrontar, mas não consegui impedir. Gostei de esfregar na cara de Go Dongsun que eu e Jungkook estávamos próximos.
Saímos à francesa, sem falar com ninguém. Na hora eu estava zonzo e confuso demais, mas tenho certeza de que não devemos ter passado despercebidos. Caminhamos até o carro do Jungkook e ele abriu a porta do carona para que eu entrasse. Me sentei, meu nariz coçava feito micose. Fui coçar o nariz e minhas unhas voltaram vermelhas, cheias de sangue. Ah, minha cara devia estar ótima.
Jungkook foi respirando alto e rápido o caminho inteiro, até chegarmos no hospital. Assim que saímos do carro ele me puxou pra perto. A mão dele na minha nuca forçou minha cabeça a ficar abaixada e esconder meu rosto. Percebi que tinham flashes. Gentilmente, Jungkook estava escondendo meu rosto sangrento, pálido e atordoado das câmeras. Ótimo, fotógrafos. Era só o que me faltava, pensei. Os tablóides estariam lotados de especulações sobre nós dois no dia seguinte. Sobre o nosso relacionamento, e o motivo obscuro de termos entrado no hospital. Que delícia, a gente ia se meter em outra confusão dessas. Parece que a gente atrai esse tipo de sina.
Só que eu não estava com cabeça pra pensar nisso no momento. Não estava com cabeça pra nada, aéreo demais ainda, as imagens de Jungkook com as mãos trêmulas no volante, dirigindo o carro até nosso esconderijo secreto, sob as flores de cerejeira. O sorriso enorme dele assim que chegamos lá, como os olhinhos escuros e juvenis brilharam.
“É nosso”, ouvi minha própria voz ressoar dentro da minha cabeça, como se aquilo tivesse acontecido ainda no dia anterior. “Um lugar só pra gente”.
Entramos no hospital, e os fotógrafos ficaram do lado de fora. Era um lugar caro, então não esperamos muito no pronto-socorro. Disseram que eu teria que fazer uns exames, que podia ser alguma coisa nos parafusos que eu tinha dentro da cabeça – aqueles da placa que tive que botar depois do acidente de ônibus. Mandaram eu explicar o que tinha acontecido, mas Jungkook estava grudado ao meu lado, com suor escorrendo pelas têmporas, e eu não podia simplesmente dizer “estou fazendo hipnose para recuperar minhas memórias”. Ia soar como um doido, ou no mínimo irresponsável. Mesmo que Jungkook nem estivesse ali, eu não diria isso. Parecia idiota admitir que eu acreditava naquela baboseira de hipnose, e não agradava nada meu orgulho sensível. Eu disse aos médicos que não tinha acontecido nada e perguntei se tinha possibilidade da minha placa de titânio estar enferrujada. Estava sendo ironico, claro. Meu humor já não estava dos melhores.
Tiraram um raio-x da minha cabeça, uns duzentos tubos de sangue das minhas veias e depois finalmente me colocaram num quarto, tomando soro. A enfermeira era uma incompetente, e eu perdi a paciência. Ela disse que eu estava muito fraco, que precisava de soro e descanso. Ou seja, não me disse nada de novo.
- Claro que estou fraco! Você tirou um terço do meu sangue!
- Taehyung! – Jungkook me repreendeu, numa voz falha e rouca, de dar pena. Então, ele se virou pra enfermeira. – Desculpe. Ele fica nervoso nessas situações.
Franzi as sobrancelhas pra Jungkook, como quem responde “não, eu não estou nervoso”, mas fiquei calado. A enfermeira hipócrita acenou com a cabeça e saiu do quarto.
- Bom, isso é familiar. – Jungkook suspirou. – Eu e você num quarto de hospital. Você nessa cama, sendo mal educado com todo mundo.
Revirei os olhos.
- Mas agora eu te conheço.
Meu coelhinho soltou uma risada anasalada, abriu um sorriso murcho. Ele puxou a cadeira pra bem perto da cama e segurou a minha mão inerte, com a agulha do soro enfiada no antebraço.
- Até demais.
Ficamos em silêncio. Eu me sentia frágil e entorpecido. Ainda não tinha conseguido assimilar todas aquelas informações, aquele bando de memórias que surgiram de uma vez só. Desde procurar o lugar perfeito, com Jimin dirigindo o carro e me carregando por aí, até a compra das alianças e o dia do nosso primeiro aniversário de namoro. Não tinha me lembrado de tudo o que esqueci – nem perto disso – mas só aquele tanto já me deixou bem assustado. Se viessem mais memórias assim, todas juntas, talvez a minha cabeça não aguentasse. Eu podia dar um curto circuito e acabar caindo mortinho no chão.
Olhei pra Jungkook, tentando resgatar os cacos da minha dignidade. Eu estava mal, é verdade, mas meu coelhinho parecia devastado. Estava com a testa encostada no colchão, os cabelos úmidos de suor, olhos apertados. Parecia que o mundo tinha desabado em cima dele.
- Ei, Kook. – Mexi minha mão, e ele levantou a cabeça. – Tá tudo bem já. Foi só um susto.
Eu devo ter falado num tom tão falso que não convenci nem a mim mesmo. Jungkook negou com a cabeça durante um tempo longo demais. Depois, suspirou alto.
- Eu não consigo entender o que está havendo com você. Está estranho. E hoje, merda… – Ele passou as mãos pelos cabelos. – Te chamei um monte de vezes, mas você continuou olhando para o nada, tão compenetrado. Quando eu cheguei perto você estava com a boca meio aberta, os olhos arregalados, numa cara de pavor. Tão pálido! Parecia ter visto espíritos. Você começou a cambalear e eu pensei que fosse desmaiar. E assim que eu te toquei seu corpo amoleceu todo. Eu fiquei com medo, Tae. Estou com medo ainda. Será que pode ser algo na sua cabeça?
Definitivamente era algo na minha cabeça. Alguns algos. Uma superlotação de novas informações, de lembranças se amontoando sem pedir licença.
Me senti mal por deixar ele desse jeito. Dava pra ver nos seus olhos o quanto tinha ficado preocupado, e pensei que não poderia guardar aquele segredo por mais tempo. Isso continuaria a acontecer, conforme minhas memórias voltassem. Eu ia ficar mais bipolar, ia agir de forma estranha, e pensei que Jungkook poderia acabar pensando que eu desenvolvi alguma doença. Não podia deixar ele assim, no escuro, preocupado e ansioso. Ele estava sofrendo.
- Anda, vem cá.
Bati no colchão e Jungkook se deitou ao meu lado, com as sobrancelhas franzidas e olhos tristes. Nos esprememos na cama de solteiro, como havíamos feito na minha primeira lembrança recuperada, do dormitório da universidade, do bocejo de coelho. Ele deitou a cabeça no meu peito, me abraçou com força, e eu senti borboletas idiotas no estômago. Fiquei em silêncio, sentindo o cheiro aconchegante dele e esperando que aquele abraço fosse o suficiente para tranquilizar sua preocupação. Mas logo percebi que não foi.
- Parece um castigo divino, pela forma imbecil como eu agi. – Ele disse, baixinho. – Acabamos de nos acertar e você fica doente. Eu não posso te perder de novo.
Fiquei com muita dó. Meu coelhinho estava se sentindo obviamente culpado, enquanto eu sabia ser o único responsável pela minha doença. Eu quis a hipnose. Jin hyung me perguntou mil vezes se eu tinha certeza. A Dra. Lana disse pra não fazer. Dahyun nem mesmo sabia.
- Você não vai me perder. – Assegurei, mesmo sabendo que aquilo não daria explicação aos meus surtos malucos. Jungkook gemeu baixinho e arrastado, como um resmungo infantil. Ele não estava convencido.
- Tae, eu preciso te contar uma coisa.
- Hm?
- Depois de pensar que você me traiu… eu fiquei tão bravo! Fiquei cego de raiva, e pensei que nunca mais seria capaz de olhar na sua cara. Me apressei pra sair logo em turnê, e até ia te deixar uma carta, mas o Dongsun-
- Jungkook, vamos esquecer isso. – Interrompi. Já estava farto daquela conversa. Farto de ficarmos nos desculpando o tempo todo, por coisas que não podíamos mudar. – Nós dois agimos por impulso. Eu também me arrependo das bobagens que disse, você sabe disso. Não vamos falar de coisas ruins, tá? Não importa mais, não vai fazer diferença. E só o nome desse seu produtor imbecil já me dá ânsia de vômito.
Jungkook ficou em silêncio por um instante. Então soltou uma risada frouxa, que eu sabia ser triste.
- Desculpe, Tae. Por não poder mudar o passado.
- Não tem o que mudar.
A mão dele deslizou da minha barriga até o peito, e se escondeu dentro da minha camisa social, que estava com os três primeiros botões abertos. Pensei que ele ia poder sentir meu coração retumbando feito doido, os sintomas adolescentes que eu ainda não tinha conseguido controlar. Mas, se ele percebeu, não disse nada. Alcançou o pingente pendurado no meu pescoço, o olho de prata que ele havia me dado, e virou-o entre os dedos. Ficou um tempo distraído enquanto mexia no colar, quase como se tivesse adivinhado que me lembrei bem deste dia, de quando ele me deu o presente, o nosso primeiro aniversário de namoro.
Pensei que era maldade minha esconder isso dele. Eu não queria iludir Jungkook, nem fazer ele achar que eu conseguiria recuperar todas as minhas memórias, porque eu mesmo não tinha certeza. Tinha esperanças, mas era só. E eu não confio em esperança.
Entretanto, não podia deixar ele pensando que eu estava doente. A forma preocupada como falou, soou como se Jungkook já estivesse me colocando com um pé dentro da cova. As minhas mudanças drásticas de humor, os surtos irritados ou deprimidos, até os surtos de tesão, nada daquilo era normal. Eu estava agindo feito uma grávida descontrolada. Fazia sentido ele achar que havia algo de errado na minha cabeça, que um dos meus doze parafusos de titânio estivesse fora do lugar.
Eu não fazia ideia se faria mais mal do que bem, mas não podia continuar vendo meu coelhinho daquele jeito angustiado por minha culpa. Ele ainda estava brincando com o pingente, com uma carinha de cãozinho sem dono de dar pena. Eu não suporto ver ele assim, ainda mais sabendo que eu sou o motivo.
- Esse colar, Jungkook… foi a única coisa que eu não consegui deixar para trás. É o objeto mais valioso que eu tenho.
- Fiquei feliz em ver que você não jogou fora. – Disse, e abriu um sorriso de coelhinho. – Ah, eu estava tão ansioso pra te dar isso… tive que me segurar pra não te entregar no dormitório da faculdade mesmo, assim que acordamos. E você sempre foi um tremendo babaca, porque assim que eu te entreguei você leu a inscrição e disse-
- “E se eu ficar caolho?” – Interrompi, com os olhos fixos nele. Queria ver sua reação, a cara que ele faria ao descobrir que eu finalmente recuperei alguma coisa, umas míseras memórias de todos aqueles quase três anos turvos. Ele desencostou a cabeça do meu peito, de súbito, e olhou para mim. Não disse nada, só me olhou, com os olhos esbugalhados e cintilantes, feito uma criancinha. – “Nunca se sabe. Pode acontecer.” E você revirou os olhos e me xingou, mas não conseguia parar de sorrir.
- Taehyungie, você…
- Eu me lembro desse dia. Lembro como se tivesse acontecido ainda agora, algumas horas atrás.
Jungkook abriu um sorriso enorme, que me esquentou o coração aflito e me fez esquecer todas as minhas preocupações. Ele sorriu feito o adolescente da minha lembrança, apaixonado. Ele sussurrou meu nome outra vez, e me deu um beijo na bochecha. Ficou me olhando mais um tempo, estático e desacreditado. Os olhos dele se encheram de lágrimas. Acho que a ficha dele ainda não tinha caído.
- Eu não tô morrendo. Nem doente. Na verdade, é bem o contrário disso. Eu estou me curando, finalmente.
Do nada, ele começou a gargalhar, alto. Não conseguia parar de rir e ficou com as bochechas cor de rosa. Achei graça daquela reação espontânea e ri também. Depois, quando enfim conseguiu parar de rir, Jungkook chorou.
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