História I-Tec: Contos de Quatro Vidas - Gabriel Cavalcante - Vencedores e Perdedores

“Pump it”, do Black Eyed Peas, na 98.0 FM. BH. Nunca decepciona, toca todo dia às 11h30min.Naquele dia eu realmente precisava daquela música. Bem alto. “Louder!”. É uma pena que o meu pai não concordasse com isso.

_Qual é, pai? Eu tava ouvindo!

_A gente tem que conversar, Gabriel – meu pai já estava encostando o uninho. Eu estava claramente ferrado.

Mas não dava para aguentar. O Márcio Retroescavadeira tinha passado dos limites. O problema é que separaram a briga antes que eu acertasse um soco que consertasse os dentes dele. Ah, ele merecia apanhar muito mais! Alguém precisava tirar o sorriso torto daquele cara, a questão é que eu não poderia esperar outra pessoa fazer isso.

_Eu sei que aquele garoto te ofendeu, Gabriel, mas...

_Ele tava lá gritando que “o pai do gordão levou chifre”. -  se fosse só isso, talvez eu tivesse deixado para lá. Nem invento de repetir tudo o que ele falou. Se eu pudesse, faria com que o Retroescavadeira nunca mais falasse nada.

_Se te incomodou tanto, por que você não foi informar a diretoria?

_Eles não resolvem nada, pai! Só iam ficar lá: “Ooh Marcinho, não pode fazer isso porque é feio”.

_E você acha mesmo que minha honra pessoal ficou ameaçada por causa das besteiras que um garoto da quarta série fala? Principalmente sendo o Márcio...

Meu pai tinha um ponto. Aliás, era o Márcio Retroescavadeira... Ele me enche o saco desde a primeira série. Por que dessa vez eu perdi o controle? Já era esperado que ele falasse algo sobre essa porcaria toda que aconteceu com a minha mãe. Ou talvez eu só estivesse de saco cheio de toda idiotice que ele fala. Quero ver ele se meter comigo agora! Quero ver alguém se meter comigo!

_Eu sei que é uma droga, sei mesmo. Mas você está agindo como um derrotado.

Derrotado? Eu acabei com a raça daquele otário. Isso não parece uma derrota para mim.

_Já tem três meses que aquilo tudo aconteceu, e eu entendo que é uma fase ruim. Ainda estamos tentando resolver todas as pendências do divórcio e isso é muito desgastante. Mas sabe? Tem uma coisa que tanto eu quanto a Samara concordamos. Nós nunca quisemos que você seja um garoto briguento que tira notas ruins. Mas é isso o que você está sendo, Gabriel... Parou de estudar, tá se metendo em brigas na escola, é isso o que você é agora?

_Fala com a mamãe pra se contentar com o futuro médico lá que ela arranjou. Eu tô fora disso!

No mês passado, meus pais acharam que eu deveria ir visitar a minha mãe na casa nova dela. Aquele outro cara, o Eduardo, era um capitão bombeiro e tinha um filho da minha idade, o Wagner. Eles tinham um nome estranho... Garrancho, Garrucha... Garrocho. Pois é, o Garranchinho é um saco. Ele só sabia ficar exibindo suas altas notas na sua escolinha particular e falando que vai ser um médico daqueles geraldistas, geriatristas, sei lá... Os que cuidam dos velhos. Minha mãe ficou babando. Quero ver se o Garrucha vai ficar com aquela risadinha estranha quando tiver que trocar a fralda da minha mãe quando ficar velha. A mamãe e os Garranchos... Eles se merecem!

_Ok... – meu pai suspirou – Essa é a verdade, nua e crua. Sua mãe cometeu um erro grave, traiu o seu pai, e por isso eles estão se separando. Ela tem uma ideia muito distorcida das coisas e é péssima em demonstrar que te ama, mas te ama, e essa é a primeira diferença entre a minha situação e a sua. Ela te ama.

_Até parece...

_Te ama sim! Agora presta atenção, Gabriel! Se já não bastasse essa situação pesada na sua vida, ainda tem uns idiotas na escola que ficam te enchendo o saco, então você está com raiva. Muita raiva. E eu te entendo, cara, porque eu também estou com raiva. A minha esposa não me ama e prefere outro cara em vez de mim. Eu tenho que resolver um tanto de coisa de separação no tribunal, o que é mega estressante. E pra piorar, no trabalho também tem uns idiotas que ficam me enchendo o saco. Mas sabe porque eu estou agindo como um vencedor e você como um perdedor?

Não respondi. Em momentos como este, o melhor é ficar calado.

_Eu estou com raiva, mas estou usando ela para não cometer os erros que a Samara e todas as outras pessoas que me magoaram cometeram. Estou usando essa raiva para me sair bem no trabalho, pra poder garantir um futuro pro meu filho que eu amo muito. Estou aproveitando este momento pra me tornar uma versão melhor do Carlos Cavalcante, alguém que trará orgulho ao meu Gabriel. Isso é ser um vencedor. Estou lutando contra a tendência de ser prejudicado e estou vencendo... Mas e você? Respondendo agressivamente às provocações, deixando de estudar. Acha mesmo que vai pro Colégio Isaac Brown e entrar pra I-Tec desse jeito? Primeiramente, que você precisa estudar para ser admitido no Colégio. E mesmo se quiser continuar fora da I-Tec, concursos bons como os das Forças Armadas não são fáceis. E outra... Dentro de qualquer instituição, e principalmente na I-Tec no setor de Inteligência ou WB, você vai sofrer muita pressão. Muita mesmo... Isso que você está sentindo hoje não vai ser nada em comparação. Então, vai simplesmente deixar a pressão toda te derrubar?

Meu pai tinha razão. O que eu estava fazendo? Apenas me dando mal. Eu não podia aceitar. Meu pai também tem que ter orgulho de mim.

_Vamos, filho, responde. Vai deixar a pressão te derrubar?

_Não.

_É isso que eu queria ouvir – meu pai ligou o carro novamente – A propósito, sem videogame pelo menos até as próximas provas. Nem na casa do Gustavo ou do Eryck. É pra você recuperar o padrão, garoto.

_Ah... Qual é?

_Vai reclamar que nem um perdedor ou me surpreender que nem um vencedor?

E ponto pro meu pai de novo. Mas a questão é que ele tinha razão. Liguei o rádio de novo, “Pump it” já tinha acabado, agora estava passando “It’s my life” do Bon Jovi. E quer saber? Essa é a minha vida. Eu vou vencer isso tudo.