Realmente uma droga o Gustavo não ter vindo à aula hoje. Ele me mandou um sms explicando que tava com dengue, mas isso é mais bosta ainda. Quer dizer que ele não viria por pelo menos uma semana. Saudades dos bons tempos da Escola Estadual Oswald de Andrade, aqueles em que o Eryck não tinha ido para o Colégio Francisco de Assis, e nosso trio estava sempre junto na hora do recreio. É um contraste enorme com agora no 9º ano em que estou absolutamente sozinho no recreio. Tá, geralmente o Gustavo continua comigo no recreio e tal, então talvez eu só estivesse sendo sentimental em um dia em que eu estava sozinho no meio daquela multidão toda. E realmente eu queria conversar. Desde o meu aniversário de 14 anos em Maio a minha mãe vem tentado reaproximar. Claro que no primeiro momento eu tive muita resistência, além do mais, a minha mãe é uma das pessoas mais vacilonas que eu conheço. Seria a mais vacilona se eu não soubesse da existência do Márcio Retroescavadeira e do Ricardo Navarro, porque esses dois são vacilões até... Enfim, meu pai conversou comigo sobre eu dar uma chance a ela, que ela me ama e tal, então eu resolvi fazer isso. Realmente voltamos a nos falar, nos encontrávamos todos os domingos. E não, não é como no início da separação em que eu tinha que aguentar os Garranchos, não, dessa vez a gente fazia coisas legais. A gente passeava no Parque Municipal como quando eu era criança e a gente ia resolver umas coisas no centro de Belo Horizonte, e teve uma vez em que a gente foi mesmo no Parque Guanabara. Ela estava bem de vida, até tava pagando uma academia top de linha pra mim. E a personal trainer era uma gata! Mas, enfim... Ela também me disse que, se eu aceitasse, poderia passar a Semana da Criança com ela no Beto Carreiro World e depois no Hopi Hari. O pior é que eu estava mesmo considerando aturar os Garranchos em uma viagem que duraria uma semana. Mas isso é legal, o problema é a proposta que ela me deu. Se eu quisesse, poderia fazer o Ensino Médio no Francisco de Assis.
Eu passei a minha vida toda imaginando minha vida na I-Tec, esperando o Ensino Médio para ir para o Colégio Isaac Brown. Agora, a um ano do meu sonho, estou realmente em dúvida. A questão é que o que me espera de verdade no Isaac Brown? O ponto positivo é o treinamento da I-Tec, mas... Sei lá, tem mais áreas que eu poderia entrar. Eu poderia fazer o EsPCEx depois do Ensino Médio. No Isaac Brown a vantagem é que o Gustavo também vai, mas no Francisco de Assis tem o Eryck. É... Não ia dar certo conversar com o Gustavo mesmo sobre isso. A questão é que os dois são como irmãos pra mim, mas o Eryck... Sei lá, a gente tá junto desde sempre, então ele é meu melhor amigo. Melhor que o Gustavo. Quanto a garotas... Tá bom, no Isaac Brown tem a Violet Rodríguez, mas ela é realmente inalcançável. Olha, até o Eryck conseguiu uma namorada no Francisco de Assis, a Dani... Ela é muito legal. Eu fico um pouco naquela de “perdi meu amigo pra namorada dele”, mas talvez se eu fosse pra lá eu tivesse chances de achar alguém também... Mas o que mais pega é que se eu for pro Colégio Isaac Brown, já era isso de ficar vendo minha mãe direto. Que droga, né? A gente nunca se deu bem, por que logo agora que eu estou perto de ir embora a gente tem que começar a se falar? Bom... De qualquer maneira, era um saco ficar sozinho no recreio. Não dá pra afastar esses pensamentos.
_Você tá bem? – alguém me perguntou.
_Aham... Tô ok, e você? – respondi.
_Tá bem mesmo ou tá me respondendo automaticamente? – ok, isso foi inusitado.
Resolvi sair do mundo das minhas preocupações para prestar atenção na pessoa que estava falando comigo. Era a única garota linda da minha turma que eu nem sequer tinha pensado em dar uns pegas – será por quê? Mas naquele momento, percebi que nunca tinha reparado muito bem na Ana Carolina Dias. Ela era uma novata, chegou agora no nono ano. E lá estava a garota na minha frente conversando comigo do nada. Corpão, cabelos bem negros presos num rabo de cavalo, óculos que só a deixavam mais linda, e com aquela habilidade de continuar deslumbrante mesmo com uma calça jeans velha, all star, e aquela camisa azul e branca da Oswald de Andrade – acho que camisas com padrão azul e branco são obrigatórias para Escolas Estaduais de Minas Gerais. Acho que o cara que os inventou deve ser cruzeirense. Enfim, voltando para a Ana... Os caras só achavam estranhas as sardas dela, a garota tinha muitas. Normalmente a gente vê isso nas ruivas, então era bem incomum. Mas na minha opinião, aquilo só a deixava mais gata ainda. Sei lá... Era uma beleza diferente. E eu sei que havia mais gente que concordava comigo, porque um tanto de gente já tentou ficar com a Ana. Mas parece que ela é séria, então deu fora em todo mundo. Uau... Como eu não tinha reparado no quanto essa garota é incrível antes?
_Oiii... Gabriel? Terra chamando...? – caramba, eu entrei pro mundo dos meus pensamentos de novo.
_Ah, foi mal – ri, sem graça.
_Vou entender sua atitude como um “não, Carol... Eu não tô bem não”. – ela se sentou do meu lado.
_É...
_Então... Tá afim de conversar sobre?
_Não, eu meio que não quero pensar nessa coisa agora, saca? – e realmente não queria. Minha cabeça ia explodir – E eu meio que nem te conheço direito, aí é meio embaçado falar dessas coisas pessoais demais.
_Ah, mas se for esse o problema, posso dar um jeito. Meu nome é Ana Carolina, mas pode me chamar de Carol – ela se levantou e fez uma mesura como se fosse uma princesa. Que bonitinha! – Evita me chamar de Ana... Eu não curto muito.
_João Gabriel, e me chama de Gabriel. Não curto o João.
_Por quê?
_A minha mãe me chama assim, e a minha mãe é... Complicada. Longa história que não tô afim de contar hoje – acho que essa beleza toda dela tava me afetando. Caraca, é quase uma “Aura Rodríguez” – E por que não Ana?
_É pequeno demais. Quando não é “Aninha” é “Anão”, aí não dá pra acompanhar a minha grandeza.
_Ah, então a Carol é uma piadista!
_Se sou... E você é um rockeiro, pelo que vi no seu facebook. E aí... Você é daqueles emo-góticos?
_Não... É que eu gosto de música boa, sabe? Nada de funk, sertanejo, eletrônica e essas porcarias aí. Você bem que podia ouvir Charlie Brown Jr. em vez da Paula Fernandes e esses sertanejos aí.
_Olha, como eu sou mente aberta, sou bem eclética. E eu cantei “Pássaro de Fogo” no sarau porque o grupo escolheu e porque a Paula Fernandes é legal. Mas nem inventa de ficar achando que sou fãzinha do Luan Santana, Justin Bieber, Michel Teló...
_MC Créu, Parangolé... Você tem cara de quem vai no Carnaval da Bahia só pra seguir um trio elétrico de algum cover do Chiclete com Banana.
_“Oba, oba”. Até parece que eu gastaria horas de viagem e a grana toda pra ver um cover. – ela riu – Mas aí, rosqueiro, eu também amo o Charlie Brown Jr. Isso me lembra muito a Malhação nos bons tempos.
_”Vou te levar, yeaah. Te levar daqui” – cantei um pedaço da abertura.
_ É... Essa época mesmo! Tinha o Cabeção, o Rafa... A escola era o Múltipla Escolha e tinha o Gigabyte... Eu assistia muito quando criança.
_A Vagabanda...
_Putz, eu adorava a Vagabanda. Meu sonho era montar uma banda de garagem, mas o máximo que consegui foi zerar o Guitar Hero 3 no Medium.
_Melhor que eu...
_Então... – ela puxou uma mechinha do cabelo fora do rabo de cavalo para trás – Agora que a gente já se conhece melhor, quer falar sobre o que tá te deixando aí tão tristinho hoje? Falar faz bem...
_Ah... É que é um conflito interno, sabe? – e ela tem uma espécie de “Aura Rodríguez” mesmo, eu já estava lá falando sobre os meus sentimentos – Segundo os planos que eu tinha há muito tempo, no ano que vem eu iria para o Colégio Isaac Brown. Mas é que surgiu uma oportunidade para ir pro Colégio Francisco de Assis.
_Uau... Os dois colégios são muito bons!
_Sim, mas não é essa a questão. Eu sempre quis ir pro Isaac Brown, é um internato bem da hora, saca? E meu pai trabalha na Rodríguez Consolidated... Enfim, eu sempre curti a ideia. E também tem aquela história com a minha mãe. A gente não se dava muito bem, então era muito bom pensar em ficar longe dela e dos Garranchos.
_Espera – ela segurou pra não rir – Garranchos?
_É... Foi mal. É a família do cara que casou com ela, os Garrocho.
_Então o seu padrasto é um Garrancho? – ela já estava rindo.
_Não – eu ri também, a risada dela era contagiante – Eu não gosto de pensar nele como um padrasto. Enfim, mas de uns tempos pra cá a gente voltou a se dar bem, a minha mãe e eu. E sei lá... Até agora eu não tinha reparado o quanto ela faz falta na minha vida, então... Não é tão bom assim pensar em ficar longe dela agora.
Também tinha as outras questões. Eu quero mesmo entrar pra I-Tec? Seguir aquele plano louco do Gustavo pra descobrir sobre os Manuscritos de Arquimedes? Ficar longe do Eryck e de todos os meus amigos exceto pelo Gustavo? Mas eu não podia falar sobre essas coisas com ela.
_Olha, Gabriel... Eu tenho um primo que foi pra um internato em Lavras, e isso não exatamente atrapalhou o relacionamento dele com a família. Claro, que tem essa de ficar longe, mas... Ficar longe tem suas vantagens. A saudade faz as brigas desaparecerem.
_É...
_E você pensa em quê pro futuro? Faculdade, concurso, Vagabandagem...
_Vagabandagem, claro! – brinquei – Na verdade, eu não sei... às vezes penso no EsPCEx, um curso de formação de oficiais do Exército – e também na I-Tec, mas isso eu não posso falar pra ela.
_Então... Qualquer uma das escolhas vai ajudar muito nisso, embora o Isaac Brown tenha uma divisão meio “colégio militar”, que pode te preparar pra esse EsPCEx. Mas relaxa, você tem o resto do ano pra ver o que é melhor pra você.
_Valeu... Mas por que você veio me perguntar sobre como eu tô? Quero dizer, até uns minutos atrás a gente nem se conhecia direito.
_Sei lá... Eu vi você sozinho aí, todo triste, e tenho o coração meio mole.
_Não foi o que eu soube...
_Ah... Eu não sou obrigado a ficar com todo idiota que chega dando em cima de mim, né?
_Né...
Então o sinal bateu. A gente foi direto pra sala, aliás, o próximo horário era Química e a Cláudia sempre deixava a gente do lado de fora se chegasse depois dela na sala de aula. Mas sabe? Até que foi bom o Gustavo não ter vindo à escola. Foi bom conversar com a Carol.
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