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História Igual Que Ayer - Obrigado por ter atrapalhado


Escrita por: jaimencanto

Capítulo 10 - Obrigado por ter atrapalhado


LETÍCIA

 

 

               Depois de um mês e meio que estávamos na capital, finalmente minha vida estava se resolvendo. Para a minha sorte, Humberto insistiu para que eu retomasse o meu cargo na Conceitos, para que de certa maneira ele me ajudasse com o que aconteceu. Achei uma gentileza de sua parte, principalmente porque ao invés de apenas me oferecer dinheiro para suprir todos aqueles anos que cuidei de Julia com a ajuda de Guilhermo, ele ofereceu uma oportunidade para que eu conseguisse o dinheiro por conta própria, e fazendo algo que eu amava. Trabalhar com publicidade era a minha paixão, e era definitivamente uma das coisas que senti falta durante aqueles anos. Eu ainda estava um pouco enferrujada depois de passar tantos anos sem trabalhar na área, mas a empolgação era a mesma.

               Estava tudo indo muito bem. Consegui alugar um apartamento pequeno para que eu e Julia pudéssemos morar até que tudo se ajeitasse definitivamente, e nos fins de semana ela ficava com Fernando. Eu já começava a me acostumar com aquilo, e mesmo que a solidão de dormir sozinha nos fins de semana não me deixasse contente, eu estava extremamente feliz pelos dois se darem tão bem. Estava tudo dando tão certo que eu estava com medo do que poderia acontecer. Há muito tempo eu não me sentia tão bem e tranqüila, e isso de certa forma me assustava.

               Minha relação com Fernando continuava na mesma, mas algumas vezes acabávamos nos desentendendo. Vez ou outra por ciúmes, e algumas vezes por simplesmente não conseguirmos ficar no mesmo ambiente sem alfinetar um ao outro. Era de certa forma estranho saber que Fernando e eu sempre nos demos tão bem, e de repente estávamos nos acostumando com pequenas “discussões” no dia a dia. Mas, apesar disso, agora que passamos grande parte do dia trabalhando no mesmo local, ficava ainda mais difícil conseguir esconder ou disfarçar que eu ainda o amava, tanto quanto o amava antes.

               Estávamos planejando uma festa de aniversário para Julia, e era nos momentos de planejamento que mais discutíamos. Márcia e Omar estavam quase enlouquecendo com tantas discordâncias, e no fim acabávamos não decidindo nada. A festa seria no próximo fim de semana, e tudo estava resolvido, exceto o principal: O tema.

- É claro que tem que ser de bailarina. – Eu disse pela milésima vez. – Melhor do que ninguém eu sei o quanto Julia adora bailarinas.

               Fernando suspirou impaciente e Márcia nos olhou.

- Eu já a conheço suficiente para saber que ela gosta de Barbie. Ela passa o fim de semana inteiro assistindo isso. – Fernando disse e eu revirei os olhos.

- Olha, vocês dois nunca se resolvem! – Márcia disse impaciente. – A festa já é no próximo fim de semana e ainda não decidimos o tema. Como vamos fazer o bolo e a decoração sem isso?

- Já decidimos. Será bailarina.

- Barbie.

- Bailarina!

- Barbie!

- Chega! – Márcia aumentou a voz e Omar prendeu o riso. – Essa discussão é ridícula! Já que não entram em um consenso, o tema será Barbie Bailarina. Estão felizes?

               Não parecia uma má idéia. Fernando também parecer ceder, então só me restou concordar, para o alívio de Márcia.

- Ótimo! Até que enfim! – Ela escorou-se à mesa da sala de reuniões. – Então, depois nós resolvemos sobre o restante dos detalhes. Já tomamos tempo demais do trabalho para decidirmos o tema.

- Certo. – Fernando se levantou. – Vamos, Omar.

               Os dois saíram da sala e eu suspirei irritada, cruzando os braços.

- Vocês estão brigando muito essa semana. – Márcia disse. – Até mais do que brigaram o mês inteiro.

- A culpa é dele que não concorda com nada que eu digo.

- Não. A culpa é dos dois que não conversam e não resolvem essa besteira logo! Quando é que vão falar sobre tudo o que aconteceu? Já está passando da hora, Lety! Vocês são adultos, mas estão agindo como adolescentes.

- Eu não tenho nada para conversar com ele.

               Márcia suspirou.

- Faça como quiser. Eu desisto de tentar ajudar.

               Dizendo isso, ela saiu da sala, me deixando contrariada.

 

 

 

•••

 

FERNANDO

 

 

               Entrei em minha sala batendo a porta e tirando o paletó com raiva.

- Vocês estão parecendo cão e gato essa semana. – Omar comentou. – Estão sempre arrumando uma oportunidade pra alfinetar um ao outro.

- A culpa é dela! – Falei irritado. – Acha que só a opinião dela está certa. Isso me tira do sério! Principalmente quando está relacionado à Julia. Ela acha que só porque passou a vida inteira com ela, é melhor do que eu.

- Você sabe que não é isso. Vocês precisam se entender justamente por causa da Julia. Ela não gostaria de ver os pais dela brigando desse jeito.

- Eu estou cansado, Omar. Vamos mudar de assunto, por favor?

- Está bem. Não está mais aqui quem falou.

               Suspirei impaciente e me sentei à mesa.

 

 

 

•••

 

 

               Enfim chegou o dia da festa. A festa aconteceria no jardim da casa dos meus pais, que por incrível que pareça havia sido idéia de minha mãe. Não foi uma má idéia, já que era um local bem espaçoso, mesmo que não fossemos convidar muitas pessoas. Mas, eu não me assustaria se ela convidasse metade dos vizinhos, que era o que ela costumava fazer. Apesar de que naquele ultimo mês ela estivesse bastante mudada.

               Todos se prontificaram a ajudar nos preparativos, e estava tudo indo bem. Exceto pelo meu mau humor, que estava relacionado à Guilhermo. Ele voltou à capital e logo se prontificou à sair com Julia para distraí-la para ela não desconfiar de nada. Aquilo me tirou do sério, já que eu odiava pensar na idéia de minha filha estar se divertindo com um cara que passou mais tempo com ela do que eu.

- Você está sendo bobo. – Henrique disse enquanto amarrava uma penca de balões em cima da porta.  – Você não pode proibir o cara de chegar perto dela.

- Eu sei disso. – Respondi irritado segurando a cadeira que ele estava em cima. – E é por isso que fico mais irritado.

               Embora a minha relação com Henrique ainda estivesse um pouco estranha, pelo bem da saúde do meu pai nós paramos com as discussões. Para a minha sorte era mais fácil já que ele morava em Nova Iorque, mas todas às vezes em que ele nos visitava, eu tentava ao máximo me segurar para não deixar claro o quanto eu ainda estava magoado.

- Mas que droga! – Exclamei ao sentir algo espetando o meu dedo. – Quem colocou essa porcaria de cadeira aqui? Entrou uma farpa no meu dedo!

               Henrique desceu da cadeira e me olhou.

- Quer saber? Seu mau humor está começando a me contagiar, vou até sair de perto.

               Me segurei para não fazer um gesto obsceno para ele, principalmente porque Isabela se aproximou no mesmo instante em que ele saiu.

- O que foi?

- Uma farpa! – Falei segurando o dedo.

- Deixa eu ver. – Ela aproximou o dedo do seu rosto e com cuidado conseguiu tirá-la. – Prontinho.

- Obrigado. – Respondi sem sorrir.

- Por que está tão mal humorado?

- Nada.

               Ela colocou as mãos à cintura.

- É aquele imbecil do Guilhermo. Ele acha que pode ficar vindo para a capital e saindo com a minha filha sem ao menos pedir minha permissão.

               Isabela riu.

- Ainda não sei como Letícia consegue manter um relacionamento à distancia com esse cara.

- Você não deveria pensar desse jeito, principalmente pelo fato dela achar até hoje que nós dois temos alguma coisa.

               Não respondi.

- Quando é que vai dizer a verdade para ela?

- Quando ela perguntar, oras.

- Vocês dois são mais difíceis do que imaginei. – Isabela disse balançando a cabeça.

               Tentei me controlar o máximo que eu pude, até porque todos já tinham reclamado do meu mau humor, e aquilo só me deixava ainda mais irritado. Achei melhor continuar ajudando nos preparativos e tentar me distrair para não pensar no quanto estava com raiva e enciumado, mas com Letícia por perto era impossível. A todo o momento ela reclamava de algo que eu estava fazendo, e quando não estava reclamando, estava refazendo para mostrar que era melhor do que eu.

- Esse balão não é aí. – Ela disse para mim.

- É claro que é! Vou colocá-lo aonde? – Perguntei impaciente.

- Ele vai ficar na mesa!

 - Balão na mesa? Quem é que coloca balão na mesa?

- Eu coloco!

- Está inventando só para ter um motivo para reclamar de mim.

- Isso não é verdade!

- É claro que é!

- Chega! – Márcia disse irritada. – Eu não agüento mais vocês dois com essas alfinetadas à todo o tempo e Fernando com esse mau humor. É impossível preparar uma festa dessa maneira, e toda essa energia negativa vai acabar chegando até a Julia. Quer saber? Vocês dois estão me irritando.

               Abri a boca para perguntar o que ela queria dizer com aquilo, até Omar e Henrique me segurarem pelo braço e começarem a me arrastar para dentro de casa. Márcia fez o mesmo com Letícia e nós dois tentávamos nos soltar, sem entender absolutamente nada que estava acontecendo. Fomos levados até um dos quartos e colocados lá dentro. Márcia fechou a porta antes que pudéssemos tentar escapar, e eu bati à porta com raiva.

- Márcia, abra essa porta agora!

               Nada aconteceu. Suspirei impaciente e segui para a cama, sentando-me pesadamente.

- Você não vai fazer nada? – Letícia perguntou.

- Você quer que eu arrombe a porta? – Perguntei impaciente.

- Não seria má idéia.

- Eu não vou fazer isso.

               Sem responder, ela desistiu e sentou-se ao meu lado, deixando o silencio pairar pelo quarto.

- Por que está de mal humor? – Ela perguntou quebrando o silencio.

                A olhei para ter certeza de que ela realmente não sabia, mas parecia não saber.

- Estou irritado por pensar que Julia... Tem dois pais. – Desabafei.

- Do que está falando? Ficou louco?

- Estou falando do Guilhermo.

- Ah... – Ela relaxou os ombros. – Você esta sendo bobo. Guilhermo não é pai dela. Esse ciúmes é ridículo.

- Não seria ridículo se você fosse sincera comigo e falasse logo tudo o que preciso saber.

- Sobre o que quer que eu seja sincera?

- Sobre tudo.

- Quer saber por que eu fui embora?

- Sim!

               Ela virou-se para mim.

- Está bem. Eu vou dizer, porque não suporto mais isso.

               Mal acreditava que ela finalmente iria dizer o motivo de ter me deixado por todos aqueles anos. Seria um erro meu? Outra armação de minha mãe? Algo que deixei de fazer? Ou simplesmente ela achou interessante abandonar toda uma vida que estávamos planejando? Escutei com atenção quando ela começou a contar a história de que ouviu uma conversa entre minha mãe e Henrique. Eu já imaginei aonde aquilo terminaria, e de certa forma não me espantava saber que os dois tinham alguma relação naquilo. Mas, quando ela me contou finalmente o que a fez me deixar naquela noite, eu não consegui acreditar. Literalmente fiquei sem palavras quando ela terminou de contar, alegando que me deixou apenas por ter escutado METADE de uma conversa.

- Você está brincando, não é? – Perguntei incrédulo.

- Por que eu brincaria com isso?

               Me levantei inquieto e andei de um lado para o outro, passando a mão em meus cabelos. Eu não acreditava que toda aquela droga de mal entendido causou tanta dor e sofrimento por seis anos.

- Letícia, eu não estou acreditando! – Falei um pouco alterado. – Você... Você realmente achou que eu faria isso com você? Que eu terminaria tudo por achar que você acabaria com a minha família? Realmente acha que eu daria prioridade para minha mãe, que tanto se negou a aceitar nosso relacionamento, ao invés de priorizar você e nossa vida juntos?

- Foi o que eu ouvi, Fernando. – Ela também se levantou. – Eu apenas fiz isso antes que você fizesse. Ouvi bem quando você disse “Não vou deixá-la destruir a minha família”.

- A MINHA FAMÍLIA, LETÍCIA! – Aumentei a voz e ela me olhou assustada. – A MINHA FAMÍLIA ERA VOCE! EU NÃO IA DEIXAR MINHA MÃE DESTRUIR A NOSSA FAMÍLIA!

               Completamente alterado, andei como uma barata tonta pelo quarto, esperando que de alguma forma conseguisse me acalmar, mas era impossível. Era impossível ficar calmo pensando que tudo aquilo aconteceu por uma droga de mal entendido.

- Eu não acredito que você me deixou por causa de uma conversa mal ouvida, Letícia! Eu realmente não acredito! – Senti minha garganta queimar e meus olhos embaçarem. – Por que você simplesmente não me falou nada? Por que não me perguntou sobre isso? Eu teria explicado, e teríamos evitado... Ah, meu Deus! – Suspirei impaciente. – Isso só pode ser um pesadelo.

- O que queria que eu fizesse, Fernando? Sua mãe estava odiando nosso relacionamento, e você simplesmente sempre fez tudo o que ela quis. Achei que não fosse diferente dessa vez! – Ela também aumentou a voz. – Sinceramente, o que queria que eu fizesse?

- QUE FALASSE COMIGO! – Gritei. – QUE ME PERGUNTASSE SE ISSO QUE OUVIU ERA VERDADE. E DE QUALQUER MANEIRA, VOCE DEVERIA ME CONHECER O SUFICIENTE PARA SABER QUE JAMAIS, JAMAIS EU ACEITARIA QUE MINHA MÃE SE ENVOLVESSE EM NOSSO RELACIONAMENTO. FOI POR ISSO QUE TE DEI UMA ALIANÇA! FOI POR ISSO QUE EU A PEDI EM CASAMENTO! FOI POR ISSO QUE PLANEJEI UMA VIDA INTEIRA AO SEU LADO, LETÍCIA!

               Tomei um tempo para olhá-la enquanto a raiva me dominava. Seu rosto estava marcado pelas lágrimas que não paravam de correr, mas eu não me intimidei. Não consegui ter pena dela sabendo que ela não confiou o suficiente em mim para saber que eu jamais escolheria outra coisa a não ser nossa vida juntos.

- Ótimo! Agora a culpa é minha! – Ela disse cruzando os braços.

- E é de quem? Mais alguém aqui abandonou um futuro por uma besteira que pensou ter ouvido?

- ACHA QUE EU NÃO QUIS VOLTAR? ACHA QUE NO MOMENTO QUE CHEGUEI AO LITORAL EU NÃO QUIS VOLTAR CORRENDO? – Ela gritou. – Eu teria voltado, Fernando, se não fosse pelo seu irmão e sua mãe! Eu teria voltado para contar que estava grávida, e teria voltado para dizer que eu não poderia viver sem você, e que não agüentava mais um dia longe de você. Eu teria voltado para termos nossa família juntos. EU TERIA VOLTADO! – Ela tornou a gritar.

- VOCÊ NÃO DEVERIA TER ÍDO, LETÍCIA!

               Irritada, ela seguiu até a porta e começou  a bater desesperadamente.

- MÁRCIA, ABRA ESSA PORTA!

               Eu não tive esperanças de que ela abriria, mas para a minha surpresa, escutamos o barulho da porta sendo destrancada. Assim que Márcia abriu a porta, Letícia saiu disparado, passando por todos que estavam ali. Henrique, Omar, Márcia e Isabela me olharam assustados.

- O que foi que aconteceu? Vocês estavam gritando um com o outro. Achei que iriam se resolver. – Márcia comentou, mas eu não respondi.

               Saí do quarto feito um touro, e só queria ir para um lugar em que eu pudesse me acalmar e colocar os pensamentos em ordem.

 

•••

 

LETÍCIA

 

 

               Eu me sentia péssima, e era impossível conseguir disfarçar isso durante a festa. Eu tentava dar o meu máximo, sorrindo para os convidados, agradecendo a presença de todos, e principalmente fingindo estar bem para Julia, que estava tão animada com a festa surpresa. Foi uma péssima idéia ter aquela “conversa” com Fernando naquele dia, e foi ainda pior ouvir tudo o que ele disse para mim. Tudo o que era verdade, mas que só agora eu sabia disso. De fato eu deveria ter conversado com ele, e de fato eu deveria imaginar que depois de tudo o que ele fez por mim, eu não deveria ter pensado tão mal dele. Mas, eu errei, como qualquer pessoa já errou na vida. A única diferença é que meu erro durou seis anos, e conseqüentemente privou minha filha de conhecer o próprio pai por tanto tempo.

               Olhei para o lado e Fernando estava ao canto, um pouco isolado de tudo e de todos. Ele também tentava forçar que estava bem, principalmente para Julia, mas eu melhor do que ninguém conseguia notar que ele só queria sair dali. Mas, Isabela estava ao lado dele durante todo o tempo, e por diversas vezes o vi sorrir para ela. É claro, ela estava tentando animá-lo, e de certa forma conseguia. Eu costumava fazer isso antes, mas claramente aquela função não cabia mais a mim.

- Os docinhos da mesa acabaram! – Minha mãe disse.

- Eu vou buscar mais. – Falei rapidamente.

- Eu te ajudo. – Isabela apareceu ao meu lado.   

               Apenas aceitei em silencio e juntas adentramos à casa, indo até a cozinha. O som abafado da musica que vinha do lado de fora não deixava o silencio pesar ainda mais o clima, e enquanto colocávamos os docinhos nas bandejas, Isabela me olhava parecendo querer dizer algo. E eu torcia para que ela não tocasse no assunto da briga que Fernando e eu tivemos no quarto.

- A festa está linda. – Ela disse arrumando os docinhos em uma das bandejas.

- Sim. - Falei apenas.

               Ficamos mais um tempo em silencio, até Isabela parar o que estava fazendo e me encarar.

- Lety, posso perguntar uma coisa?

               Eu a olhei, já respondendo sua pergunta.

- Você tem algo contra mim?

- Como? – Perguntei confusa.

- Eu fiz algo para você? As vezes sinto que você... Não gosta da minha presença. Principalmente quando envolve a família do Fernando.

               Dei um longo suspiro e me escorei ao balcão.

- Não, não tenho nada contra você. – Respondi sincera. – Só não é fácil para mim ver Fernando em outro relacionamento. – Ela abriu a boca para dizer algo, mas eu a interrompi. – Eu sei. Não tenho o direito de dizer isso. – Sorri triste. – Eu não deveria nem estar dizendo isso. Realmente não tenho o direito. A culpa disso tudo é minha, e eu não posso mais voltar atrás. Você não tem culpa do que aconteceu. É só que... Não é fácil ver alguém fazer o papel que eu fazia há seis anos atrás. Eu já deveria esperar que isso fosse acontecer, mas... Me desculpe. Eu ainda não acostumei.

- Lety... – Isabela sorriu, e eu não entendi porque ela estava sorrindo. – Fico feliz por ter desabafado dessa maneira, mas Fernando e eu não temos nada.

               A olhei espantada.

- Como assim?

- Não temos nada. Não somos namorados, nem sequer nos beijamos. Quero dizer... Uma vez, mas isso não vem ao caso. Foi antes dele te reencontrar. E de qualquer maneira nós não... – Ela parou de falar e começou a rir nervosa. – Ai meu Deus! Estou piorando as coisas. Olha, o fato é que Fernando e eu somos apenas bons amigos. Nós nos conhecemos através da Márcia em uma festa no fim do ano passado, e nos tornamos amigos desde então. Mas, Fernando sempre deixou muito claro o quanto ele te amava. O quanto ele te ama. – Ela enfatizou a ultima frase. – Ele nunca se envolveria com outra mulher.

- Ai meu Deus! – Fechei os olhos. – Mas que idiota! Será que não posso fazer mais alguma coisa errada hoje?

- Não se preocupe. – Isabela riu e eu a olhei, me sentindo a pior das idiotas. – Ele só está gostando de fazer ciúmes em você, porque ele sente ciúmes do Guilhermo. Queria de certa forma retribuir na mesma moeda.

- Isso é muita maldade.

               Isabela riu.

- Não se preocupe. Só não... Diga à ele que eu te falei isso.

- É claro. – Sorri e Isabela retribuiu o sorriso. Ao menos alguma coisa estava resolvida.

- Atrapalho? – Terezinha apareceu na cozinha.

- Não. – Respondi rapidamente. – Estávamos arrumando os docinhos.

- Sim! – Isabela concordou.

- Letícia, será que eu posso... Falar com você? – Terezinha estava séria, e parecia muito tensa.

               Olhei para Isabela e ela rapidamente pegou as bandejas de docinho.

- Tudo bem. Eu levo as bandejas. – Isabela disse.

- Tem certeza? – Perguntei.

- Sim! Eu consigo.

               Isabela equilibrou as duas bandejas em cada um dos braços e saiu da cozinha, deixando Terezinha e eu a sós.

- Eu... Lhe devo desculpas. – Terezinha disse sem rodeios, e eu me espantei por sua sinceridade.

- Não precisamos falar disso agora...

- Por favor. – Ela me interrompeu. – Eu preciso.

               Ela realmente parecia desesperada.

- Eu preciso dizer isso, porque depois da briga de Fernando e Henrique, depois da internação de Humberto... Eu percebi que família é a coisa mais importante que existe.

- Eu sei disso. – Falei com certa mágoa. – Foi por isso que fez tudo o que fez, não é? Justamente para que eu não “destruísse sua família”. – Repeti as palavras que ainda ficavam em minha mente.

- Eu confesso que pensei isso sim. Mas, hoje entendo que para que minha família tivesse continuado unida como eu queria, Fernando precisava ter você ao lado dele.

- É um pouco tarde para isso, Terezinha... – Falei desviando o olhar.

- Eu sei. Mas não é tarde para que eu peça que me perdoe. Desde que você foi embora, Fernando jamais foi o mesmo. Eu percebi isso, mas estava cega demais para aceitar. Por mais que eu tenha pensado que você longe dele seria o melhor, para ele e para nossa família, eu sempre soube que você era a única que poderia trazer o meu filho de volta.

               Eu poderia achar que nada daquilo faria diferença na minha vida, mas fazia. Por tanto tempo fui de certa forma ignorada e esnobada por Terezinha, quando tudo o que eu mais queria era fazer o seu filho feliz, e agora enfim ela notou isso. Era um pouco tarde, mas ao menos ela percebeu que estava errada, e eu admirava isso. Sabia que não estava sendo nada fácil para ela me dizer tudo aquilo, principalmente porque ela já não conseguia segurar as lágrimas. Eu conseguia perceber quando Terezinha estava fazendo drama e quando estava sendo sincera, e naquele momento, definitivamente, eu nunca a vi tão sincera e desesperada.

- Por mais que você me odeie, eu quero que... Quero que dê uma chance para Fernando. – Ela disse limpando as lágrimas silenciosas. – Quero que de uma chance, porque ele sofreu muito sem você aqui. E ele merece. Ele merece muito.

- Eu não a odeio. – Falei sincera. – Eu só... Não consigo esquecer tão fácil o que fez. Mas não a odeio. De maneira alguma.

               Ela sorriu triste.

- Quando Fernando e eu estávamos juntos, eu só queria a sua aprovação. Porque sei que apesar de tudo, você é importante para o Fernando, e eu sabia o quanto significava para ele imaginar que um dia você aprovasse nosso relacionamento. Eu sabia o quanto ele queria que você estivesse presente no... No nosso... Casamento. – Senti minha garganta queimar. – Mas, eu sei que isso não seria possível.

- Eu sei que demorei... – Ela se aproximou e segurou minha mão. – Mas, se ainda te interessa saber disso, você tem a minha aprovação. Espero que não seja tarde demais para isso, e que ainda valha alguma coisa para você. E mesmo que não acredite... É de coração.

               Eu não a julguei. Não a julguei porque ali naquela cozinha, estavam apenas duas pessoas que erraram e aprenderam com seus erros da pior forma possível. Eu seria hipócrita se me recusasse à perdoá-la, sendo que errei tão feio quanto ela. Eu estava sofrendo com meu erro e com a culpa, e ela também estava. Eu não saberia se o meu erro um dia seria perdoado, mas não queria que ela também passasse por isso. Da mesma maneira que eu esperava ter uma segunda chance, ela também merecia.

- Ainda vale muito para mim. – Falei sorrindo, apertando sua mão. – Obrigada.

               Ela abriu ainda mais o sorriso e voltou a chorar.

- Eu que a agradeço.

- Eu fico feliz com isso, mas... Não sei se adianta de muita coisa agora. Fernando provavelmente está com ódio de mim, e eu não o culpo por isso. Não sei se um dia... Conseguiremos reatar o que perdemos. Ou o que eu coloquei a perder.

- Isso não é verdade. Vocês dois ainda se amam. Só precisam conversar melhor sobre isso. Apenas... Dê mais uma chance para esse relacionamento.

- Não sei se será tão fácil. – Suspirei triste.

- Bom... De qualquer maneira espero realmente que possa me perdoar um dia.

- Eu já perdoei. – Sorri. – De verdade.

               Como se já não bastasse tantas surpresas e revelações em tão pouco tempo, Terezinha deu um passo à frente e me abraçou. No início fiquei assustada e perplexa, mas retribuí o abraço logo depois. No mesmo instante, Fernando entrou na cozinha e parou de andar quando nos viu. Ele nos olhava assustado, e sem reação.

-  Ah... Oi filho. – Terezinha separou o abraço e limpou as lágrimas. – É melhor voltarmos para  festa, não é? – Ela sorriu e virou-se para mim, me agradecendo com o olhar.

               Ela passou por Fernando e ele a acompanhou com o olhar até ela nos deixar a sós.

- O que aconteceu? – Perguntou ainda sem reação.

- Só estávamos conversando. – Me apressei em me recompor, para que também não chorasse.

- Ela te ofendeu?

- Não. – Respondi rapidamente. – Pelo contrário. Agora está tudo resolvido.

               Ele continuou me olhando.

- Melhor voltarmos para a festa. – Tentei passar por ele, mas fui impedida quando ele segurou meu braço delicadamente.

- Me desculpe por ter... Gritado com você no quarto.

               Me espantei com o fim do seu orgulho, e me senti tocada por isso, o que me deixou ainda pior e me sentindo mais culpada.

- Só fiquei com raiva por... Por saber que tudo não passou de um mal entendido.

- Eu... Acho que sou eu quem te devo desculpas. O que você disse é verdade, eu deveria ter conversado com você antes de tomar qualquer decisão. Eu pensei que estaria fazendo o melhor para nós dois.

- O melhor para nós dois seria se nunca nos separássemos.

               Olhei em seus olhos e senti meu coração se partir. A vontade de chorar me dominou, mas eu consegui me controlar, por sorte.

- Agora eu entendo isso. – Respondi sincera. – Mas eu sei que também não vai ser tão fácil esquecermos isso. Principalmente porque temos a Julia envolvida em tudo isso.

- E também tem o Guilhermo.

- Por que essa fixação com o Guilhermo? – Perguntei curiosa.

- Apenas porque vocês tem um relacionamento. – Respondeu com certa frieza.

- Nós não temos um relacionamento, Fernando!

               Ele me olhou abismado.

- Então... Todo esse tempo no litoral... Tudo o que ele fez por vocês...

- Foi apenas uma ajuda de amigo, e eu sou muito grata à isso. Mas sempre deixei claro que eu não queria nada sério com ele, e que nunca seria capaz de amá-lo.

- Por que o que?

Não respondi.

- Então durante todo esse tempo no litoral, vocês nunca namoraram?

- Já nos beijamos duas vezes, mas sempre fui sincera sobre meus sentimentos.

 - Ah! Agora estou muito mais tranqüilo assim. – Respondeu irônico.

- Não deveria ter tanto ciúmes dele. Ele sabe o que eu sinto por você.

- E o que você sente por mim? – Perguntou se aproximando.

- Temos que voltar para a festa. – Tentei passar por ele, mas novamente ele me segurou.

- O que você sente por mim, Letícia?

               Olhei em seus olhos mais uma vez, e consegui enxergar o mesmo que enxerguei durante todo o tempo que passamos juntos. Aquilo doeu ainda mais, e lentamente soltei meu braço de sua mão.

- Precisamos voltar. Logo vamos cantar o parabéns.

               Ele não me segurou novamente, e enfim consegui sair de perto dele, respirando fundo tentando controlar aquela vontade imensa de chorar.

 

 

•••

 

FERNANDO

 

 

               Apesar de não ter tido a oportunidade de conversar direito com Letícia, ao menos eu estava um pouco mais leve por termos nos desculpado pelo desentendimento. Mas, ainda precisávamos de um momento a sós para conversarmos, e aquilo estava tirando a minha concentração para qualquer outra coisa. Quando voltei para a festa, avistei Márcia conversando com Guilhermo um pouco mais afastados dos outros, e inocentemente segui até eles para falar com Márcia. Eu precisava conversar com alguém sobre aquilo.

- Com licença. – Falei ao me aproximar. – Márcia, posso falar com você?

               Ela me olhou parecendo irritada.

- Eu estou meio ocupada agora. – Ela forçou um sorriso e olhou para Guilhermo.

- Ah... Desculpe.

               Não imaginei que a conversa fosse tão séria para ela se irritar daquela maneira.

- Pode nos dar licença por um segundo? – Ela perguntou à Guilhermo.

- É claro, fiquem a vontade.

- Obrigada.

               Márcia me segurou pelo braço e me puxou, nos afastando de Guilhermo.

- O que você quer? – Ela perguntou parecendo mais calma.

- Estão falando sobre o que para você ficar tão irritada com a interrupção?

- Você está a tanto tempo sem flertar que não reconhece quando uma mulher está fazendo isso?

               Abri a boca abismado, sem saber o que responder. Mesmo que eu soubesse que Letícia e Guilhermo não tinham um relacionamento, eu nunca imaginei que Márcia poderia se interessar por ele e vice versa. Jamais passou pela minha cabeça, mas a idéia até que não era ruim.

- Então você está... Flertando com ele?

- Sim. E se tudo der certo, pretendo ir mais além disso. Você se importa?

               Foi obviamente uma pergunta retórica, mas não consegui disfarçar minha alegria, abrindo um largo sorriso logo depois.

- Não. É claro que não. – Sorri animado. – De jeito nenhum. Não me importo nem um pouco.

               Márcia ergueu as sobrancelhas e me olhou confusa.

- Não me importo de jeito nenhum. – Disse à Guilhermo, que me olhou da mesma maneira. – Vocês dois podem ficar a vontade.

- Você ficou louco? – Márcia sussurrou para mim.

- Não. – Sorri para ela. – Realmente, acho isso muito bom! Dou total apoio.

- Pessoal... – Letícia se aproximou, tirando nossa atenção. – Podemos cantar os parabéns?

 

 

•••

 

 

 

               Após cantarmos os parabéns, o clima da festa parecia ter melhorado. Julia estava feliz, e isso era a única coisa que me importava. Como festas de criança não costumam durar até tarde, não demorou para que os convidados fossem embora, para o nosso alívio. Estávamos exaustos. Eu não sabia que festa infantil dava tanto trabalho assim, mas no fim era gratificante ver o sorriso no rosto da minha filha. Ela também não estava diferente, e depois de arrumamos metade das coisas, ela adormeceu em meu colo.

- Ai, estou exausta! – Letícia sentou-se à mesa em que eu estava. – Acho que podemos terminar o restante amanhã.

- Ainda tem mais coisa para arrumar? – Perguntei desanimado.

- Só algumas coisas. Mas já arrumamos grande parte. – Ela suspirou escorando-se à mesa e olhando para Julia. – Ela aproveitou muito hoje.

- É. – Sorri olhando para ela. – Pelo menos ela estava feliz.

- É verdade. – Letícia riu. – Mas ainda vai ser um trabalho subir as escadas do prédio carregando ela.

- Vocês não precisam ir embora hoje. – Falei olhando-a. – Podem dormir aqui.

- O que? Não. – Respondeu rapidamente.

- Amanhã de manhã eu levo vocês, junto com os presentes.

- Não é necessário, Fernando...

- Qual é, Letícia. Nós dois estamos exaustos, e ainda tem esse monte de presente para você levar embora. Não precisamos fazer isso agora. Você pode dormir no meu antigo quarto.

- Henrique não dorme lá quando fica aqui?

- Sim, mas ele não vai se importar de dormir no antigo quarto dele. E eu vou dormir lá também. Tem duas camas de solteiro.

               Ela ficou pensativa por alguns segundos, mas então sorriu pelo canto dos lábios.

- Tudo bem... Se não for muito incomodo.

- Não é incomodo nenhum. – Sorri.

               Nós nos levantamos e eu subi com Julia para colocá-la no meu antigo quarto. Avisei Henrique sobre a troca de quarto, e ele concordou imediatamente. O meu antigo quarto era o lugar ideal para as duas, já que a cama era de casal, e elas poderiam dormir juntas. Eu coloquei Julia deitada à cama e sorri para ela, depositando um beijo em sua testa logo depois.

- Ela está mesmo cansada. – Letícia comentou ao meu lado. – Ela costuma ter o sono leve.

- Depois de pular tanto, não é pra menos. – Sorri, ainda olhando-a. – Bom... Você pode ficar à vontade. Acho que se lembra onde fica o banheiro e tudo o que precisa, não é?

               Ela sorriu envergonhada e apenas balançou a cabeça concordando. Provavelmente ficou sem jeito por eu lembrá-la das vezes que dormimos ali naquele quarto, quando havia alguma festa na casa dos meus pais.

- Então... Qualquer coisa que precisar, vou estar no quarto ao lado. – Sorri.

- Está bem. Obrigada! Boa noite...

- Boa noite.

               Continuei olhando-a, sentindo que precisava fazer algo a mais. Mas, apenas me afastei, deixando-a no quarto com Julia. Seria difícil dormir sabendo que Letícia estava no quarto ao lado, quando tudo o que eu mais queria era estar em sua companhia. Minha mãe subiu as escadas quando eu estava no corredor, e me olhou curiosa.

- Achei que já tivesse ido embora. – Ela disse segurando um copo com água.

- Não. Eu... Vou dormir aqui. Lety também.

- Elas estão aí?

- Sim.

               Minha mãe sorriu.

- O que foi? – Perguntei.

- Nada. – Ela continuou sorrindo. – Foi uma boa idéia.

- Desculpe não avisar antes. A casa é sua...

- A casa é nossa. – Ela me interrompeu. – Pode dormir aqui quando quiser.

               Ainda estava um clima tenso entre nós dois, mas minha mãe estava se mostrando uma pessoa totalmente diferente naquele ultimo mês. E relembrar da cena que vi na cozinha, das duas se abraçando e minha mãe chorando, eu tive a impressão de que agora ela estava aprovando minha relação com Lety. Eu só esperava que não fosse tarde demais para isso.

- Vou para o quarto... – Falei limpando a garganta. – Boa noite.

- Boa noite, filho.           

               Me virei sem me despedir com um beijo, como sempre fazia. Eu ainda não estava preparado para voltar a tratá-la como antes, e ela sabia disso. Segui para o quarto de Henrique e assim que abri a porta, uma montanha de nostalgia tomou conta de mim. Costumávamos dormir juntos naquele quarto até ele se mudar para Nova Iorque logo quando formou. Eu não gostava de dormir sozinho, e me lembrei de como foi difícil me acostumar com isso quando ele se mudou. Assim que adentrei o quarto, toquei nos móveis que ainda eram os mesmos, e me lembrei do quanto nos divertimos ali. Éramos inseparáveis, e não mudou muita coisa quando ele foi morar em Nova Iorque. Ao menos até a nossa ultima briga.

- Não mudou nada, não é? – Henrique disse parado à porta e eu o olhei.

- Não. – Sorri, olhando para as camas. – Parece que voltei no tempo.

- É... Eu também.

               Eu imaginava que ficar no mesmo quarto que Henrique seria abrir a oportunidade de falarmos enfim sobre o que aconteceu. Mas todas as vezes que ele me olhava com pesar, eu fugia do assunto antes mesmo que ele começasse.

- Vou me preparar para dormir. – Falei desviando o olhar. – Estou cansado.

- Certo.

               Segui rapidamente para o banheiro, e lá as coisas ficaram ainda mais nostálgicas. Minha mãe não tinha mudado absolutamente nada daquele lugar, nem mesmo o azulejo com desenhos de peixes que havia no banheiro. Sorri divertido enquanto me lembrava do quanto gostava daqueles azulejos, e escovei os dentes com as lembranças em meus pensamentos. Assim que terminei, voltei para o quarto e Henrique já estava deitado na cama que era sua. Caminhei até a minha, e assim que me deitei, parecia que eu estava deitado em um mini sofá. Grande parte das minhas pernas ficaram para fora da cama, e eu senti que se virasse um pouco mais, cairia no chão.

               Henrique riu ao me ver ajeitando-me à cama, e virou-se para mim.

- Não pareciam tão pequenas quando dormíamos nelas, não é? – Ele riu.

- Eu não me lembrava que eram tão pequenas. – Falei incomodado com a falta de espaço. – Se não estivesse tão cansado, eu preferiria dormir no chão.

- Não diga isso. Essas camas são ótimas, você que cresceu demais.

               Nós dois rimos, e eu finalmente achei uma posição favorável. Ficamos um tempo em silencio, e eu encarava o teto torcendo para Henrique não mencionar a nossa briga.

- Você se lembra que tinha medo de dormir sozinho? – Henrique perguntou e eu torci a boca.

- Não, não me lembro.

- Como foi que se acostumou a dormir sozinho quando fui para Nova Iorque?

- Mamãe me comprou com um quarto novo. – Sorri divertido e ele gargalhou. – Não durmo aqui há anos. Na verdade, há anos eu nem entrava aqui.

- É... Eram bons tempos. – Henrique suspirou. – As vezes me pergunto se fiz bem ir tão cedo para Nova Iorque. Eu acho que queria ter aproveitado um pouco mais aqui.

- Você fez o certo. Alguém precisava ficar na Presidência da filial de Nova Iorque.

- Mas as vezes é tão difícil ficar longe da família. Muitas vezes eu sinto falta de ficar aqui.

               Fiquei em silencio.

- E também sinto falta de quando ficávamos juntos. Acho que... Nos afastamos muito depois que fui para lá.

- Não foi por isso que nos afastamos. – Falei com certa frieza, mas depois me arrependi. – De qualquer maneira, pelo menos da minha parte nossa relação sempre foi a mesma, mesmo você estando em Nova Iorque.

- E agora? – Ele virou-se para me olhar. – Como está nossa relação agora?

               Droga. Ele tocou no assunto!

- Não sei, Henrique. Ainda não é fácil para mim.

- E nem para mim.

               Me virei olhando-o.

- Eu quero esquecer tudo. – Falei sincero. – Mas quando penso que consigo...

- Eu entendo, e não quero te forçar a nada. Só... Espero que saiba que se eu pudesse mudar o que fiz...

- Não precisamos falar disso. – Falei voltando a encarar o teto. – Como Letícia disse, isso não vai mudar o que aconteceu. Então é melhor não tocarmos nesse assunto.

- É... Tem razão.

               Fiquei em silencio, torcendo para aquele assunto ter terminado.

- Mas para mim, nossa relação sempre continuou a mesma, e eu sinto falta do meu irmãozinho chato correndo atrás de mim. – Ele disse apagando o abajur. – Boa noite.

               Sorri divertido.

- Boa noite. – Respondi.

 

 

•••

 

LETÍCIA

 

 

               Eu já havia rolado à cama várias vezes, mas aquela maldita insônia ainda me perturbava. Olhei para o lado e Julia continuava dormindo como um anjo. Senti uma certa inveja dela porque queria estar da mesma maneira. Mas, eu não sabia se era a falta de costume de dormir ali sem a companhia de Fernando, ou se eu realmente estava com muitos pensamentos me incomodando. Cansada de ficar lutando com o sono, me levantei com cuidado para não acordar Julia e saí do quarto, olhando para o corredor vazio me certificando de que ninguém estava acordado. Com cuidado, desci as escadas e segui para a cozinha. Talvez um copo de água me ajudasse a dormir.

               Peguei o copo com cuidado e o enchi com a água da torneira, bebendo um gole de cada vez. A casa estava silenciosa, e de certa forma assustadora. Eu não costumava perambular por ela quando dormia ali com Fernando. Na maioria das vezes ele me acompanhava até a cozinha quando eu ficava sem sono. Olhei para o relógio da cozinha que marcava duas e meia da manhã e suspirei, pensando que ainda tinha uma longa madrugada pela frente.

               Me virei para voltar para o quarto quando dei de cara com Fernando. Por pouco o copo não caiu no chão e eu tampei minha boca para não gritar de susto. Ele também se assustou comigo, mas riu logo depois.

- Eu não sabia que estaria aqui. – Ele disse ainda rindo. – Desculpe.

- Você quase me matou do coração! – Coloquei o copo em cima da pia, colocando a mão sobre o peito.

- Não foi minha intenção, desculpe.

               Não respondi. Ainda estava tentando me recuperar do susto.

- Também está sem sono? – Ele perguntou.

- Sim. – Falei já recuperada. – Não consigo dormir muito bem quando estou com Julia. Ela ocupa metade do espaço na cama.

               Ele riu.

- E você? Por que não conseguiu dormir?

- Estou desacostumado com a cama de solteiro.

- Ah... Me desculpe por isso.

- Não precisa se desculpar. – Ele sorriu.

               Ficamos um tempo em silencio, até Fernando escorar-se ao balcão, brincando com uma laranja.

- A festa foi muito boa, não é? – Ele comentou.

- Sim. – Respondi. – Bastante animada, como Julia queria.

- Ela estava muito feliz.

- Estava.

- Pelo menos tudo deu certo no final, não é?

               Sorri.

- É.

               Ele continuou brincando com a laranja, e já que ele estava afim de conversar, também me escorei ao balcão e o olhei divertida.

- Sabe... Conversei com Isabela hoje.

               Ele deixou a laranja cair e me olhou assustado.

- Ela me disse a verdade. Que vocês dois não tem nada.

               Ele não respondeu.

- Então você estava usando ela para me fazer ciúmes?

- É claro que não! Que absurdo!

- Ela me contou tudo, não adianta negar. – Sorri. – Você é um ótimo ator.

- Não precisei me esforçar muito. Isabela é muito bonita, e somos grandes amigos... Não foi tão difícil fingir que eu sentia algo por ela.

               Senti o meu sangue ferver.

- Você pode me poupar dos detalhes. – Falei impaciente.

               Ele riu.

- Agora você que está com ciúmes.

- Quem disse isso?

- Eu sei quando está. Você franze as sobrancelhas e o nariz.

               O olhei debochada.

- Não tem nada a ver.

- Viu só? Fez de novo. – Ele riu.

               Percebi que estava realmente fazendo isso, e ri junto com ele. Quando percebemos que estávamos rindo juntos depois de tanto tempo, Fernando deu um longo suspiro e eu o olhei envergonhada.

- Senti sua falta, Lety. – Ele disse me surpreendendo.

- Eu... Também senti sua falta. – Respondi sincera e ele se aproximou.     

               Eu pensei se deveria me afastar quando percebi que ele estava perto demais, mas eu não quis. Meu corpo não queria se afastar e não obedecia os meus comandos. E tudo piorou ainda mais quando tive a brilhante idéia de olhá-lo nos olhos. Senti minhas pernas bambearem e meu coração disparar. As mesmas sensações que senti no passado quando estava perto dele.

- Julia... Está lá em cima. – Falei sem saber exatamente se era uma boa desculpa. Ele se aproximou ainda mais e eu pude sentir o cheiro do seu perfume impregnar tudo à nossa volta. Senti sua respiração próxima à minha, e inevitavelmente fechei os olhos.

- Ela tem o sono leve. – Sussurrei.

- Eu não ligo. – Ele disse ainda mais próximo. – Ela adoraria ver os pais dela se dando bem, finalmente.

- Você é um convencido... Quem disse que estamos nos dando bem?

               Abri os olhos e o vi sorrindo, perto o suficiente para que eu conseguisse resistir. Fernando segurou em minha cintura e me encostou ao balcão, me deixando sem saída. Eu já não tinha mais o que fazer, e não queria fazer outra coisa a não ser beijá-lo. E foi o que eu fiz. Não sabia quem tomou a iniciativa, e aquilo não me importava. Depois de seis anos, depois de tanto tempo sentindo a falta dele em silencio, finalmente eu estava sentindo o toque dos seus lábios nos meus. Só Deus sabe o quanto senti falta daquilo, e eu ainda não tinha me dado conta do quanto até beijá-lo novamente. Eu queria nunca mais me afastar, e quanto mais ele me apertava contra ele, mais eu queria senti-lo. Coloquei minhas mãos em seu rosto enquanto nos beijávamos, e senti a necessidade de dizer à ele tudo o que eu guardei durante todos aqueles anos. Mas, a oportunidade foi perdida quando ele parou o beijo rapidamente e olhou assustado para a entrada da cozinha. Quando me virei, Henrique estava parado com um sorriso divertido nos lábios.

- Desculpe. Não quis atrapalhar. – Ele disse virando-se de costas. – Podem continuar. Finjam que isso não aconteceu.

               Abaixei a cabeça envergonhada e limpei o canto dos lábios, sem saber o que fazer. Fernando deu um passo atrás e suspirou.

- Não, eu... Já estava voltando para o quarto. Julia está sozinha. – Olhei para Fernando. – Boa noite.

- Boa noite. – Ele respondeu desanimado.

- Boa noite, Henrique. – Falei ao passar por ele.

- Boa noite, Lety.

               Apesar da vergonha, eu não consegui parar de sorrir enquanto caminhava de volta para o quarto. Definitivamente, eu teria uma ótima noite de sono.

 

 

 

•••

 

FERNANDO

 

               Henrique me olhava divertido e eu queria matá-lo por ter interrompido aquele momento. Por tantos anos imaginei aquele momento, e quando finalmente aconteceu, depois de tudo o que passamos, fomos interrompidos.

- Eu não sabia que estavam tão a vontade aqui. Se soubesse, tinha me segurado no quarto.

               Balancei a cabeça irritado e joguei uma laranja contra ele.

- Obrigado por ter atrapalhado! – Falei irritado, passando por ele.

               É claro que a culpa não era dele, e ele sabia que eu não estava literalmente irritado com ele. Mas, eu queria que aquele momento jamais terminasse. Sentir os lábios de Lety depois de seis anos sofrendo a sua ausência, foi a melhor coisa que me aconteceu, e eu não consegui parar de sorrir mesmo quando me deitei à cama. Aquela cena não saía dos meus pensamentos. 



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