Cheguei em casa pela manhã, Peter dormia tranquilo em seu quarto. Daqui a dois dias será o julgamento de seu pai e temo pelo futuro dessa criança. Crescer sem estrutura familiar te torna vulnerável ao caos da vida, aprender levantar-se por si só não é fácil, digo por experiência própria. Talvez se Sofia estivesse viva, minha parte boa não teria morrido e eu não estaria prestes a matar mais uma pessoa.
Dormi poucas horas antes de ir para a delegacia mas mal consegui concentrar nos relatórios. Nem a presença de Lauren no ambiente pode diminuir meu ódio interior. Só conseguia pensar no encontro de hoje com o mascarado, preciso urgentemente de respostas.
O expediente terminou e voei com a moto pelas ruas, a adrenalina fazia minhas veias pulsarem desviando o foco de meus pensamentos.
- Esperando alguém? – Ariana percebeu minha eminente agitação.
- Digamos que sim. – Coloquei a cerveja no chão enquanto me ajeitava no banco do jardim. - Será que você poderia sair com Peter agora?
- Claro. Ele queria mesmo ir ao parque hoje. – Abri a carteira e lhe dei dinheiro para as despesas, vendo-a sair em seguida.
Horas se passaram e apenas sai dali para buscar mais cerveja, preciso relaxar antes que meus nervos entrem em colapso. Até que finalmente a sombra entrou em meu campo de visão, atravessando a grama até chegar ao banco em que estava.
- Espero que não te tenha feito esperar muito.
- Tanto faz, só preciso de respostas. Pode começar me contando quem é você.
- Admiro sua cordialidade. – Ele Ironizou. – Mas isso você saberá na hora certa, não quero que perca seu foco até matarmos Big Daddy.
- Já pensou em atuar em novela mexicana? Quanto mistério desnecessário. – Tomei um gole da garrafa. – Qual o significado dessa máscara?
- Escolhi a prateada como um espelho para que os criminosos possam ver o que se tornaramantes da morte. – Lembrei-me da primeira vez que o vi, minha face ensanguentada refletindo meu monstro interior.
- Inspirador – Ironizei. - Me diga então quem é esse babaca.
- Antes eu preciso que você tenha muita calma e me prometa seguir com o plano ao invés de tomar a vingança em suas mãos. – Era a primeira vez que conseguia ver seus olhos com calma através do prateado. Os castanhos me fitavam intensamente. Tinha algo naqueles olhos... Mas não sei afirmar o que.
- Ta... Ta... – Desdenhei. - Fala logo porra!
- Seu tio Victor.
- O que tem ele? – Franzi o cenho.
- Você é idiota assim ou só finge? – Bufei. - Victor Ambrogio é dono do D’Luna e o famoso Big Daddy.
- Você é mais insano do que imaginava. Isso é impossível. – Sorri incrédula.
- De onde você acha que ele tira tanto dinheiro? O suficiente para te presentear com uma BMW sem ocasião especial? Além de que tenho outras provas.
- Sua acusação não tem fundamentos. Você deve estar tão obcecado comigo que pegou o único cara próximo a mim para acusar. – Me recusei a acreditar em tal absurdo.
(Play 1)
O mascarado abriu seu sobretudo e retirou algo do bolso interior. Direcionou a mim e aparentemente tratava-se de um livro queimado.
- Eu sei que você não acreditará na palavra de um estranho, mas quem sabe na dela você acredite.
Relutei um pouco olhando para o objeto. Depositei a garrafa no chão e tomei o livro em mãos abrindo com cautela, pois as páginas estavam frágeis devido ao fogo.
- Mas que porr... – Minha voz morreu ao ver que era o diário de Sofia Cabello.
- Pode ficar com ele e ler com calma se quiser, mas ai está relatado todos os abusos do seu tio Victor.
Continuei folheando as páginas chamuscadas, a letra tremida e irregular da pequena Sofi fez com que lágrimas surgissem em meus olhos.
“Tio Vic disse que era uma brincadeira secreta e se contasse para o papai ou para Kaki, eles nunca mais gostariam de mim, por ser uma garotinha que não sabe guardar segredos.”
“Hoje eu não queria brincar, mas ele me obrigou de novo.”
“Kaki disse que sempre iria me proteger, acho que vou contar para ela.”
“Papai e tio Victor estão discutindo... algo sobre as brincadeiras ruins. Ele está me chamando para ir embora, até mais tarde diário.”
E essas foram as últimas linhas escritas.
Ódio.
Dor.
Incapacidade.
Vingança.
- Eu vou cortar as bolas daquele desgraçado. – Levantei em um impulso bufando ao tacar a garrafa na parede da casa.
- Vai sim, mas não sem minha ajuda e da sua detetive. – Ele continuou sentado.
- Não vou envolver Lauren nessa história, tenho de mantê-la a salvo. – Praguejando, arremessei um vaso de planta dessa vez.
- Ela quer isso tanto quanto você, pois seu tio aliciou Christopher Jauregui, causando a morte do único irmão dela. A diferença é que Lauren pretende faze-lo pagar apenas perante a lei. – Seu tom calmo me causava mais fúria.
Gritei com todo o ar de meus pulmões. Soquei a parede imaginando ser a face daquele verme do Victor. A dor exterior não chegava nem perto da interior. O sangue já escorria por entre a pele da mão e nem assim consegui parar. Sua jugular estraçalhada era meu foco a partir de hoje. Senti uma mão no meu ombro e parei ofegante. Porque isso está acontecendo? Eu odiei Alejandro todos esses anos injustamente, não conseguia nem chama-lo de pai, enquanto ele era o único que nos amava realmente. Cai de joelhos na grama e um súbito ataque de choro explodiu em mim.
Eu prometi no mórbido enterro que nunca mais choraria, prometi para Sofia que sempre a protegeria, mas nem para isso eu sirvo.
- Vem, vamos enfaixar essa mão. – Ele me levantou do chão, estava tão entorpecida que segui seus comandos em automático.
Tudo o que reprimi nesses anos veio à tona. Achava que nunca sentiria algo assim, médicos já quiseram me internar por não ser emocionalmente igual às pessoas comuns, em outras palavras, uma psicopata.
Porém esse sentimento é real. Uma fúria incompreensível. Uma dor nefasta.
Fui traída pelo único ser que confiava de olhos fechados e ele aproveitou disso para me manipular, para descobrir todas as minhas fraquezas, para ser um perfeito filho da puta.
- Qual é o plano? – Indaguei após recuperar um pouco da estabilidade emocional.
- Victor sempre está cercado por capangas, mesmo quando você o visitava, era vigiado. – Ajeitou a máscara em seu rosto. - Então vamos deixar os outros policiais acabarem com exército de homens dele e na oportunidade perfeita o pegaremos sozinho.
- A polícia não irá me deixar simplesmente sair de lá com ele. – Revirei os olhos diante ao óbvio.
- É ai que sua detetive entra. Está na hora dela saber toda a verdade sobre você Camila.
- Ela nunca irá me entender, eu sou um monstro sem esperança de absolvição.
- Acredite, ela vai te entender. – Sua afirmação confiante me fez suspirar. – Agora preciso ir, não faça nenhuma besteira até lá e me ligue nesse número quando tiver conversado com Lauren.
Peguei o pedaço de papel estendido em minha direção. Assim que a figura se retirou pela porta, percebi que não conseguiria focar em nada com todo aquele tumulto em meu interior.
A dor e a raiva me faziam entrar em colapso. Algo semelhante a um ataque de pânico percorria meu corpo me fazendo suar. Fitei a arma calibre 38 no coldre em cima da mesa e tomei-a em mãos. Seria tão mais fácil se eu apenas metesse uma bala na minha cabeça... No fundo sempre quis que alguém me parasse. Só queria não ter que carregar o peso do universo. O peso de todas as almas que mandei para o inferno. Me sentia suja e desprezível pelo que me tornei.
Seu brilho reluzia tão convidativo enquanto passava o dedo por seu cano. Abri o tambor e retirei as balas, deixando apenas uma. Não sou capaz de tomar uma decisão pela primeira vez, então vou deixar a força superior do universo dizer se eu sou apenas um verme como eles ou realmente tenho que prosseguir com minha missão para melhorar o mundo.
Girei o tambor com a bala.
Destravei a arma.
Puxei o gatilho.
O estalo seco correu pela sala silenciosa.
Abri os olhos respirando fundo. Agora mais do que nunca sei que tenho de continuar fazendo o que faço de melhor. Não só por mim, mas por todos que já sofreram na mão daquele desgraçado, ninguém mais vai me parar.
A raiva aumentou em meu peito, se é que era possível, então vamos resolvê-la de outro jeito.
(Play2)
Tirei a maldita BMW da garagem, estacionando-a no meio da rua. Desci do carro e voltei para a garagem onde também guardava alguns equipamentos, peguei a marreta de construção que se encontrava pendurada junto do martelo e caminhei novamente ao veículo.
Uma, duas, três.
O capô se encontrava envergado para cima após imaginar a cabeça de Victor em seu lugar.
Subi em cima do veículo e desferi outras marretadas até o teto-solar cair sobre o banco do carona. Depois mais três na porta esquerda que afundou com o impacto. Retrovisores e faróis estraçalharam-se ao chão e vidros tiniram com o choque da marreta.
Abri o porta-malas e retirei o galão reserva de gasolina, despejando em seguida pelo interior completo do carro. Busquei o fósforo na cozinha e o acendi vendo a fraca chama surgir em meio ao breu da noite, porém logo brilhou tanto quanto meus olhos ao observa-la rapidamente se transformar em um festival pirotécnico atingindo o álcool espalhado pelo estofado.
E eu já tinha em mente o próximo foco da combustão.
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