Minecraft parecia estar a entrar num período de paz. Senão paz, algo parecido com isso.
Alguns meses atrás, se me fossem dizer que humanos e monstros estavam a tentar estabelecer uma trégua, eu não ficaria nada satisfeito. Retirara daquela guerra entre Homens e outras espécies um prazer vingativo, achara que a chacina daqueles humanos era justificada, devido ao que alguns deles me tinham feito. Quanta coisa tinha mudado, porém… eu descobrira que esses humanos que eu passara a vida a odiar não tinham sido mais que marionetas naquela noite desgraçada. Já não havia qualquer razão para guardar rancores pessoais. E, mesmo que tivessem sido humanos os assassinos dos meus pais, já não me importaria a espécie, mas sim quem cada um deles realmente era e os motivos por detrás do ato.
Não gosto de humanos. Não particularmente. São dominados pelo medo, influenciáveis, inconstantes… não é um povo com o qual eu me identifique especialmente. Como tal, foi fácil odiá-los como um todo quando me vi sem nada. Agora, sinto quase como se lhes devesse qualquer tipo de compensação. Eles não são inocentes. Mataram os nossos sem necessidade, às vezes por crueldade. Mas nós também o fizemos e, portanto, se formos a isto, a casos de honra, nunca mais o sangue pára de ser derramado. Então, sim, é necessário perdoar certas coisas!
Isto não quer dizer que eu vou esquecer o meu passado. Ainda quero descobrir o que de facto aconteceu. A magia, os fantoches humanos, a brutalidade, tudo me parece demasiado entretecido em vis intenções. Não é porque finalmente me convenceram que devo perdoar certas coisas que eu vou perdoar tudo. Houve quem matasse por medo, por retaliação, ou porque, em suas mentes, as vidas de outras espécies eram tão diferentes, tão longínquas, que nem sequer eram consideradas como vidas. O caso da morte dos meus pais parece não se encaixar em nenhuma destas situações. É meu dever, em memória deles, descobrir a verdade.
Os meus pensamentos sobre vingança contrastam com o cenário que tenho defronte. Do cimo de uma colina, a Este de Rarecraft, vejo calmaria, polvilhada de desconfiança e curiosidade. Os portões estão fechados, mas as pessoas já não estão presas dentro das muralhas. A área que vai desde a entrada do pinheiral, a Norte, até à aldeia humana mais próxima, a Sul, incluindo, portanto, a minha antiga casa, é agora uma área que denominaram de Neutrum Regio. Isto é, tanto humanos quanto monstros podem passear nela sem sofrerem hostilidades de nenhuma das partes. Certas pessoas mais ingénuas e optimistas devem, ao ouvir isto, imaginar que monstros e humanos estão agora todos de mãos dadas a cantar em rodinha. Não estão! As espécies, naturalmente, evitam-se umas às outras. Desde o acordo, Paci Temptat, posto em voga há dois meses, não ouvi qualquer relato de um encontro entre um humano e um monstro. Quando isto acontecer, porque vai acontecer eventualmente, é capaz de causar um certo tumulto. E lá vai o acordo ganhar um monte de clausulas preventivas, está-se mesmo a ver!
Estou, sobretudo, admirado com a existência deste acordo. Quero dizer, eu sabia que o regresso da Cristaly à aldeia ia causar modificações, mas não esperava tanto! Cheguei a temer que a quisessem matar, por acusação de traição, é por isso que fiquei pelos arredores de Rarecraft, atento a todos os rumores. Não esperava mesmo, mesmo, que, ao invés de a acusarem, a divinizassem. Pelo que percebi, isso deveu-se a um conjunto de coincidências que em muito a favoreceram. À sua chegada, o caçador de bruxas, charlatão, foi desmascarado e condenado. Pouco depois, a peste negra, que estava a dizimar a população da aldeia, foi erradicada como que por magia. Chuva, há muito esperada, veio salvar as plantações.
E, como humanos têm sempre que ter explicação para tudo, associaram a chegada de Cristaly a todas estas coisas. Ela, que sobrevivera fora das muralhas. Ela, que sempre defendera a paz. Ela, que fora uma mártir. Etc, etc… como disse, humanos são a espécie mais volátil que alguma vez já pisou esta terra. Há uns meses odiavam-na e chamavam-na de bruxa traidora e, agora, estavam a planear levantar uma estátua dela na praça central. Quem entende?
Pois bem, as informações que Cristaly deu ao rei (o novo rei, um ousado e imprudente jovem) com certeza foi o que possibilitou a criação do Paci Temptat. Ela, com tudo o que escreveu no guia, tem conhecimento mais que suficiente sobre as várias espécies de mobs para saber como evitar conflitos desnecessários. Ela sabe, por exemplo, sobre os olhos dos Endermans ou sobre a territorialidade dos Esqueletos.
Grande parte do povo declinou a ideia do acordo, mas o bispo leu, em assembleia pública, um tratado com todas as vantagens que se obteria com o mesmo. A verdade é que, depois da pestilência e da seca, os aldeões estavam demasiado fragilizados para combaterem dignamente. O acordo foi, assim, esboçado, assinado pelo rei e pelo bispo, e levado a várias tribos de zombies. Aos eventuais nómadas que passam pela região é-lhes dado o aviso (através de placas que estão pregadas em, praticamente, todas as árvores). Patrulhas de exterminadores também palmilham a área várias vezes ao dia, para garantir a segurança dos camponeses que, timidamente, saem da aldeia para irem buscar ervas e para tratarem das suas expandidas plantações.
Têm uma certa beleza, as noites em Neutrum Regio. As pessoas dormem, mais ou menos tranquilas, protegidas pelas muralhas, e zombies passeiam, procurando entre as plantações humanas os legumes e tubérculos que apodreceram, para se alimentarem. Não mais tentam invadir, às ordas e urros, a capital.
Parece utópico, mas na realidade ninguém consegue ignorar a tensão. O acordo é como uma corda que cedo ou tarde se vai quebrar.
Primeiramente, humanos e monstros continuam em guerra por todo o planeta, o rei não conseguiu que aldeias menores criassem as suas próprias Neutrum Regio. O que é compreensível, porque quanto mais pequena a civilização, menos segura ela se sente. Assim, as notícias sangrentas da guerra em outros lugares vêm trazer um gosto amargo ao céu da boca das pessoas da capital, que resmungam entre os dentes “se não fosse o acordo eles iam ver”.
Por outro lado, uma clausula no acordo desagrada, e muito, os zombies. Eles estão proibidos de infectarem um humano dentro da área da paz. Ora, Rarecraft tem a maior densidade populacional, em humanos, do planeta. Zombies, desde o princípio dos tempos, sempre cobiçaram as crianças da capital. Se, por acaso, a tivessem conseguido invadir, todas as suas tribos teriam quadriplicado de tamanho. Com o acordo, contentam-se em invadir aldeias menores que, furiosas, acusam a capital de as terem “entregado aos cães”.
Paz absoluta não é negociável! Oferecer crianças humanas aos zombies para estas serem infectadas não é uma possibilidade. O preconceito é demasiado grande. Qual humano quereria que a sua cria fosse transformada num ser disforme e nojento, na opinião da sociedade em geral? Portanto, irão sempre haver invasões, senão na capital, em outras civilizações menores. Porque os zombies têm que se reproduzir de alguma forma. Está na sua Natureza.
Além do mais, é uma questão de tempo até algum viajante com más intenções adentrar o recinto. Estará a borrifar-se para o acordo! Matará, será morto! Isso é paz? Não, a Neutrum Regio é somente uma extensão do território de Rarecraft, com umas portas um pouco mais abertas. Mas acredito que Cristaly está feliz com o conseguiu. Gostava de lhe perguntar se ela está orgulhosa de si mesma! Mas…
Vejo, da clareira, David, que está a galopar num cavalo que conseguiu obter após várias árduas horas de trabalho numa das tribos nómadas dos da sua espécie. Ele partia hoje em busca de Nuki, uma vítima de Herobrine. Ele transformara a criança num ser irracional e destruidor. Tal qual quisera fazer com Cristaly. Compreendo a dor dele, mas não posso ajudá-lo. Encontrei Cristaly no início do seu processo de transformação, quando ainda a sua alma não tinha sido toda contaminada. Tinham passado meros minutos, isto permitiu-me salvá-la com um ato do qual me envergonho. Já a Nuki Salmon, tinha-me dito David, tomara a poção há quase duas estações. Toda a sua alma estava irremediavelmente embebida de veneno.
David acenou para mim, cordialmente, a boca uma linha dura. Levantou as mãos enluvadas para puxar os cordéis do seu chapéu de abas largas, ensombrando todo o seu rosto, e seguiu caminho sem olhar para trás. Não nos tornáramos grandes amigos. Eu fora bastante bruto com ele, para seu próprio bem. Disse-lhe, com toda a clareza, sem meias palavras, que a única salvação para a Nuki seria a morte. David insiste que irá arranjar um meio de purificá-la. Ele diz que se é possível retirar sal de água salgada, então será também possível remover o veneno de um espírito. Como se isso fosse sequer uma comparação válida. Anda a perseguir um sonho…
- Ei! Ei! – Ouvi por detrás de mim, um grito que se aproximava. Stacy subia a colina, ofegante, devia ter vindo a correr desde a minha antiga casa até aqui. E, pela sua expressão, podia-se ter a certeza de que estava furiosa. – Estás novamente aqui! – Constatou em tom acusatório. – Os gémeos estão a perguntar por ti! E querem ver a Cristaly! Estão a chorar como dois bezerros e tu não queres saber! Nem sequer estás lá! Por um acaso pretendes deixá-los, é isso? Se é isso, sê homem e vai lá dar-lhes a notícia na cara!
Contive um suspiro, Stacy conseguia ser uma dor de cabeça quase tão colossal quanto Cristaly.
- Eu não vou abandonar Brian e Laura, Stacy! Mas eles estão demasiado habituados à minha presença e isso não é bom! Viste o que vos tem acontecido desde que se me juntaram? As condições em que têm vivido? As ameaças que têm enfrentado? E as coisas só terão tendência a piorar… sabes que procuro vingança! E aquele contra quem quero lutar está-se a revelar um adversário demasiado perigoso… não vos posso deixar ir comigo nas minhas explorações. Os gémeos e a tua irmã são apenas crianças. – Stacy não se deixou comover com as minhas palavras. Colocou as mãos na cintura e encarou-me com frieza.
- És como pai deles! – Afirmou e eu sabia que ela tinha razão. De alguma forma, aqueles dois tinham-me feito adoptá-los. Não, na verdade, acho que eles é que me adoptaram como pai. Mas o que importa quem fez o quê? Quando os encontrara, há dois meses, depois de ter deixado Cristaly com o pai dela, tinham vindo a correr até mim, com os olhos a brilhar de um amor tão claramente fraternal que me comovera. E eu tinha-me ajoelhado para ficar da altura deles e recebera-os num abraço, tal qual um pai faria. Nunca iria, portanto, abandoná-los. Tanto porque não queria fazê-los perder novamente pessoas queridas, como porque também não suportava a ideia de nunca mais vê-los na vida.
- Eu virei visitá-los muitas vezes! Irei reconstruir a casa onde vivi com os meus pais para eles estarem lá melhor alojados. Irei arranjar alguém responsável e de confiança para deles cuidar quando eu estiver ausente, porque não posso obrigar aqueles três Blazes a fazerem um permanente papel de seguranças. Têm que seguir as vidas deles! E também irás falar com a Cristaly, levá-la lá a casa para ver os meninos de quando em vez…
- Porque não vais TU falar com ela? – Interrompeu-me Stacy, batendo o pé, com os braços cruzados e uma sobrancelha erguida. – Ela tem-te procurado exaustivamente. Dá pena ver a coitada às voltas por aí a ver se te vê! Vai falar com ela! Sempre foste assim meio esquisitinho e tal, mas desta vez palavra que não sei o que se está a passar na tua cabeça. Que problema existencial é o teu agora? – Stacy nunca me tivera medo por aí além mas, se tivera algum quando nos conhecêramos, já o perdera todo.
- Se nos continuarmos a ver regularmente, será pior para ela! Devorei-lhe a alma, isso já por si só é cruel, não devo encaminhá-la para que desperdice tudo o que pode ter… - A expressão de Stacy sofreu uma alteração. De raiva para pura perplexidade. – O lugar da Cristaly é na aldeia, junto dos seus semelhantes! – Afirmei, convicto. – Ela pode, e deve, ir ver os meninos porque eles a amam como se fosse mãe deles e ela ama-os como filhos, mas não deve deixar a aldeia. É onde está protegida, é aclamada… caramba, até farão uma estátua em homenagem a ela… é onde moram o seu pai e as suas amigas. Ela já viveu aventuras o bastante para contar aos filhos e aos netos. E deve querer ter crianças realmente suas um dia, ter um bom marido…
Stacy levou as mãos à cabeça, como se eu estivesse a torturá-la com palavras. Parecia não saber se ria ou se me atacava.
- Ai, para, para, nunca ouvi tanto disparate na minha vida! É só ridículo! – Escondeu as gargalhadas com as costas da mão. – Nem sei porque estou a rir, isto não tem piada! Acho que é porque dá para notar o ciúme na tua voz quando dizes que ela deve querer ter um “bom marido”, como disseste… – Controlou-se e voltou a lançar-me aquele seu olhar glacial. – Ou seja, tu estás a evitar a Cristaly porque decidiste que é o melhor para ela! TU decidiste, e nem a vais deixar ter uma palavra sobre o assunto. Pois, porque aposto que ela está mortinha para partilhar contigo a sua opinião, que em muito deve diferir da tua. Mas, apesar de tudo o que aconteceu, continuas a achar que deves fazer tudo sozinho, tomas as decisões e os outros que se lixem! Quando vais aprender a confiar nos outros? A Cristaly sabe muito bem o que é melhor para ela ou não, não precisa que tu lho digas!
- A Cristaly, saber o que é melhor para ela? É imprudente, quase se matou várias vezes por agir impulsivamente, segue só o coração e não dá ouvidos ao que a cabeça lhe diz! – Cortei, mordaz, e a minha posição, antes defensiva, modelou-se numa de desafio.
- Pois devias começar a aprender com ela! – Gritou. Tinha chegado ao fim do seu sermão, a sua paciência esgotara-se. Caminhou até estar olho a olho comigo e, antes que eu pudesse reagir, deu-me um murro na barriga. – Idiota! – Correu até ao vale da elevação como se estivesse a ser perseguida por um demónio, com medo que eu resolvesse retaliar. Mas ainda se voltou, lá de longe, a cara pálida como cera. – Idiota! – Berrou mais uma vez, e desapareceu da minha vista apressadamente.
Durante uns bons minutos não consegui desviar o olhar fixo do ponto aonde a adolescente desaparecera, ainda espantado com o atrevimento com que a mesma me tratara. Inconscientemente esfreguei a barriga, lembrando-me do murro. Não me doera, eu mal o sentira, mas deixara-me com um formigueiro incómodo no cérebro. Remorso ou dúvida? Eu não sabia precisar!
Estava tão distraído por causa do que Stacy me dissera que mal notei quando um vento forte começou a assoprar na minha direcção, carregando com ele um bom punhado de terra. Um grão dessa poeira entrou no meu olho, só pode ter sido o karma. O vento continuava a redemoinhar, era a brisa do fim da tarde. Eu tinha que começar a descer a colina, de encontro ao local aonde combinara reunir-me com uma determinada pessoa.
Havia dias que espiava um certo bruxo, Harumo, que, segundo ouvira dizer, tivera um papel essencial no desmascarar do caçador de bruxas. Não vivia em Rarecraft há muito tempo, mudar-se para a capital fora uma decisão recente dele e do seu aprendiz. Sei que bruxos podem ser muito perigosos e algo traiçoeiros. Não é sequer uma coisa de Natureza, é uma consequência quase inevitável de se ter muito poder e de se viver demasiados anos. Muitos têm uma visão muito própria do que são valores. E nem sempre gostamos muito dessa visão.
Era por isso que queria falar com o tal Harumo e descobrir as suas intenções. Não é comum um bruxo querer habitar no meio de uma sociedade opressora. São seres muito pouco compreendidos, e, por isso, isolam-se.
Queria descobrir mais sobre o garoto, que teria provavelmente umas três centenas de anos, e perceber se ele podia representar um perigo para Cristaly. Não partirei sem ter a certeza de que ela está segura. E pretendo aproveitar a ocasião e colocar-lhe algumas questões sobre o meu passado. Da última vez que negociei com uma bruxa, admito que saí a perder. Senti-me trapaceado. Ficara a dever-lhe uma e ela, em troca, conduzira-me por caminhos sem saída. Mas esperava que, desta vez, pudesse conseguir melhores resultados. E, hoje, não me deixarei ser enganado. Quero respostas claras como água, e a um preço acessível.
Harumo deve ser especialista em poções, e medíocre a feitiços, porque sai muitas vezes da aldeia para procurar ervas. Tem locais preferidos. Num desses locais deixei-lhe uma mensagem feita de pedras e folhas de arbustos.
“Preciso da ajuda de um mago. Encontra-se comigo amanhã, a esta mesma hora, neste mesmo local?”
Vigiara-o até ter a certeza de que ele vira a mensagem que lhe deixara, então, quando se recolhera novamente para além das muralhas, fora ver se ele me respondera. E ali estava, escrito com caules de urtigas: “Aceito”. Depois de ter lido a resposta, desmanchara as folhas e pontapeteara as pedras.
Harumo é vigiado por dois guardas reais, vinte e quatro horas por dia. Todos o temem e o respeitam. Ter revelado a sua Natureza não foi, na minha opinião, uma decisão muito inteligente. Não sei porque o fez. Talvez não tenha tido alternativa. Fosse como fosse, os humanos respeitavam-no o suficiente para não o expulsarem da aldeia e temiam-no o bastante para não lhe darem qualquer liberdade. A idade deve trazer realmente a virtude da paciência. Eu não me imagino a viver junto de uma multidão tão cismada, já ele parece tranquilo com a sua “coleira”.
Não sei como pretende vir falar comigo, se tem sobre ele mil olhos indiscretos, mas vou confiar nas suas capacidades de dissimulação. Afinal, conseguiu comunicar comigo sem alertar os seus cães de guarda. Não deve ser muito difícil, para ele, escapar dos abraços calorosos dos sentinelas por uns cinco minutos.
Qual não foi o meu espanto quando cheguei ao local combinado, na manhã seguinte, e vi que ele tinha vindo… com os guardas. Os dois estavam dentro de armaduras duras e nada práticas, com viseiras tão impenetráveis que não sei como viam qualquer coisa através delas. O som das pernas deles a bater no latão, tremendo de medo, chegava a ser ridículo.
- Querias falar comigo? Sou Harumo! – Apresentou-se o rapaz, com um sorriso respeitoso e um tom assertivo. Havia emoções de mortal na sua face, e muita sapiência e sabedoria, o que provavelmente significava que ainda sentia ligações com humanos e outras espécies de vidas mais curtas, o que é benéfico para nós. Um bruxo, quando nos vê como uma pilha de energia e matéria, não realmente se importa com coisas tão insignificantes como o nosso bem estar ou até as nossas vidas. Confirmada estava a esperança que eu tinha, de que Harumo fosse demasiado novo para ter perdido a sua empatia. Isso tornava-o menos perigoso. – Não te incomodes com eles… - Acrescentou o bruxo, percebendo que eu olhava sobre o seu ombro, para os dois guardas. – Vigiam-me a mando do rei, mas deixarão que nos desloquemos para longe, para podermos ter uma conversa mais íntima.
Um dos guardas avançou um passo, recuou um outro, como se estivesse com comichão em algum lado que não conseguia coçar.
- Senhor Harumo, não podemos permitir tal! Se não o ouvirmos, como poderemos ter a certeza de que não fará algum encantamento?
Harumo lançou-lhe um olhar tenaz e persuasivo.
- Não ousaria! Cumpro regras! Mas acho que tenho direito ao mínimo de privacidade! E este senhor, certamente, tem ainda mais direito a ela, uma vez que não está envolvido nesta situação constrangedora. Dei-vos mais que muitas demonstrações de boa vontade… Podem, então, confiar em mim? Sabem que, se quisesse, ter-vos-ia despistado! Mas prefiro não quebrar normas, então, por favor, não me tentem.
Cederam, mais porque sabiam que não tinham escolha que por boa vontade. Harumo, se quisesse quebrar as regras, quebrá-las-ia, e não seria apanhado. Então porque haveriam de estar a chatear-se? Era como confinar um pássaro numa gaiola com a porta aberta. Por muito boa que a gaiola fosse, o pássaro ia sempre conseguir fugir.
- Você! Você… - O guarda que até então ficara em silêncio apontou para mim, a voz esganiçada e quase falha: - Sabe que está em Neutrum Regio?
- Já me tinha apercebido… vi, hoje, pelo menos vinte placas diferentes a anunciarem isso mesmo! – Respondi-lhe, com um tom graciosamente desdenhoso. E não os espicacei mais desde então, porque não queria estragar o que Cristaly conseguira, no final das contas. A trégua.
Afastei-me, com Harumo, distanciámo-nos alguns metros dos guardas, que, apesar de não nos poderem ouvir, podiam ver-nos. O bruxo cruzou os braços e apoiou o peso quase todo num pé, numa pose descontraída mas comedida, aguardando que eu anunciasse porque o procurara.
- Deve estar à espera que lhe faça algum pedido ou pergunta. Bem, eu vim para isso! Mas queria começar a conversa com uma questão que não tem nenhum intento de ser indiscreta. Sou um ser cauteloso, somente, não quero que pense que desconfio de si. Não o conheço de lado algum. Nunca lhe ouvi má fama. Mas tenho gente nessa capital aonde moras que quero proteger.
Harumo acenou com a cabeça, em como compreendia.
- O verdadeiro perigo para as pessoas que ali vivem… foi-se embora. – Respondeu enigmaticamente. Ele não estava a falar, como era óbvio, do caçador de bruxas, porque ele tinha sido executado com merecida crueldade. Mas, então, a quem se referia? – Pois bem, achas estranha a minha presença em Rarecraft? Todos acham! Sou um curandeiro, que há muito buscava a cura para a peste negra. Vim para a capital porque era ela o foco da doença. E já a erradiquei, de um jeito discreto, colocando a poção nos reservatórios de água da população.
Estava explicada a cura milagrosa. Mas fico feliz por só eu e poucos mais conhecermos o segredo. A idolatração de Cristaly é-lhe conveniente, protege-a dos colegas de espécie.
- O que o prende a Rarecraft, agora? – Questionei a um sorridente Harumo, que tinha os olhos embaciados de orgulho próprio.
- O meu melhor amigo, o meu aprendiz… ele apaixonou-se por uma mulher daqui. – Explicou, e a desculpa era tão banal que não havia nenhum motivo para não acreditar nela. Harumo fez uma careta, e olhou de soslaio para os guardas - A vigilância com que me cercam é bastante inconveniente, mas estou tão feliz por ele que não me importo de aqui ficar pelo menos umas décadas.
- Tenho tudo esclarecido, muito obrigado! E, agora, queria que me ajudasse! Mas, primeiro, quero discutir preços! – A luz do sol poente tocava nos fios brancos do cabelo de Harumo, conferindo-lhes um brilho precioso. Recordei-me, subitamente, que não tinha muito com que pagar. Tinha somente ouro, e, em geral, bruxos têm-no de sobra. Preferem coisas como rubis, esmeraldas e diamantes.
- Não peço nada! Dê-me o que achar que vale a minha ajuda! Se quiser, ou se não puder, não me dê nada! – Encolheu os ombros, como se o assunto fosse trivial. Eu estava habituado a todo um mundo onde tinha que pagar pelos mais pequenos favores, então surpreendi-me. – O que quer saber?
- Os meus pais foram assassinados quando eu tinha sete anos! O ato foi horrendo e feito com muita consciência e planeamento. Houve uso de magia poderosa. Quero descobrir quem está por detrás de todos os cordéis! - A expressão séria de Harumo era impenetrável. Ele parecia estar a pensar fervorosamente. Mas eu não achava possível que ele já tivesse alguma hipótese.
- Mortos com magia… - Murmurou, cofiando o queixo.
- Não tenho qualquer objecto dessa altura, lamento… - Acrescentei, e amaldiçoei-me mil vezes por ter entregue o lenço de seda da minha mãe à bruxa do sopé das montanhas, que o tinha queimado.
- O mais importante está aqui! A testemunha! – Olhou-me com intensidade, como se estivesse preocupado. Como se a minha história lhe interessasse. Como se estivesse comovido. – Conte-me tudo o que aconteceu nesse dia, ou noite. O máximo de pormenores que conseguir. Eu tenho uma teoria já, mas preciso de muitos detalhes para lhe poder dar a certeza da identidade do assassino. Se for o que estou a pensar… oh, desde que nasci… ele faz isso com frequência. É monstruoso!
Fiz-lhe todo um relato pormenorizado. Contei-lhe sobre o estado em que encontrei os corpos, a clara provocação, a forma como tinham rasgado o vestido da minha mãe, de como tinham deixado armas espetadas no corpo mutilado do meu pai. De como havia cheiro humano por todo o lado. Falei-lhe do meu encontro com a bruxa, e do pouco que ela me havia revelado, da tal mente por detrás dos homens marionetas, a quem, ao final da chacina, ordenara que se suicidassem.
- Por acaso, algum tempo depois dessa noite, não terá sido abordado por um ser de olhos completamente brancos? – Questionou, pausadamente, lutando para ouvir as minhas palavras e conciliá-las com os seus pensamentos.
E foi então que a realidade surgiu na frente dos meus olhos, como se, após anos no nevoeiro, tivesse sido ferido dolorosamente nas retinas pela luz ardente do astro rei.
Senti-me estúpido, enraivecido, afogado em descrença. Como não havia percebido? Estivera no castelo dele, na frente dele,… até conhecera as suas outras vítimas. Os três Blazes, Metal, Jim e Jack, os órfãos que tinham sido recrutados por Herobrine. Eles não tinham sido ajudados… tinham sido enganados! Enganados pelo assassino dos pais deles. Pelo assassino dos meus pais!
Herobrine tinha-me tirado tudo porque queria que eu fizesse parte do seu pequeno exército pessoal, porque, provavelmente, tinha ouvido falar da minha precisão a teletransportar, afamada entre os Endermans da época.
Cobiçara-me, e arrancara-me tudo para que não tivesse onde estender as minhas raízes senão para o interior da mão dele.
E a segunda realização não tardou a atingir-me, como o trovão que vem a seguir ao relâmpago. Muitas das mortes misteriosas que tinham originado a guerra entre os mobs e os humanos… essas mortes que ninguém tinha a certeza de como aconteciam ou porquê… fora ele! Quem iniciara a guerra, incitando o ódio mútuo, fora o autodenominado Deus de Minecraft. E alimentara esse ódio até que este fosse capaz de se auto-sustentar sozinho.
- Herobrine… - Murmurei, sufocado de cólera.
Imaginei-o, no seu trono, com um copo de vinho na mão, os olhos luminosos na penumbra, e um sorriso de escárnio que eu queria rasgar com as minhas próprias unhas.
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Nostalgia! Provavelmente um sentimento que já todos tiveram, ou vão ter.
Nos dois últimos meses dormira naquele quarto, no meu quarto, mas não me conseguia livrar daquela sensação vazia que se assemelhava a sonho. Porque eu olhava em volta e tudo estava exactamente igual ao que era há um ano. Os mesmos lençóis, o mesmo armário, a mesma penteadeira, tudo em tons claros e femininos. Aguardava, expectante, o momento em que a minha mãe entraria pela porta da divisão, empunhando uma escova. Quase sentia os meus cabelos a serem penteados e conseguia ouvir a sua voz: “Hoje vamos ter companhia ao almoço, porta-te bem!”
Não sei porque me custa a acreditar que a minha mãe morreu. Todos morrem um dia. Acho que é porque eu não a vi ser executada e não resta nada dela que prove o crime. Nem o corpo, nem mesmo as cinzas. Tenho que acreditar nas palavras dos outros, dos que a viram desfazer-se dentro das chamas. Disseram que ela morreu por me defender. Deve ter sido por essa altura que as pessoas começaram a perdoar-me. Porque se comoveram com aquela mãe, que protegia a cria.
O quarto sempre imóvel asfixia-me. Achego-me à janela e vejo o rebuliço nas ruas. Da minha casa não tenho vista para a praça central mas sei que lá há um espaço grande no meio, onde pretendem erguer uma estátua minha. Não sei como me hei-de sentir acerca disso. Nunca quis voluntariamente chamar a atenção e acho que me constrangirá um pouco, futuramente, passar pela construção e ver o meu busto em pedra, a sorrir para mim. Mas não deixa de ser uma homenagem. E é bom sermos reconhecidos por algo pelo qual nos orgulhamos. Se me querem fazer um símbolo da paz, tenho mais é que me orgulhar. E o acordo, oh, o acordo Paci Temptat, tão delicioso. Aconteça o que acontecer não me vou arrepender de ter sido em parte escrito por mim.
Quando me descobriram na casa abandonada (o guarda, Mr.Tristan, não se deixou convencer de que eu era uma ilusão derivada do seu cansaço) pensei que estava seriamente comprometida com o infortúnio. Prenderam-me, e ali fiquei, numa cela, até à chegada do novo rei. Um homem que descobri ser extremamente acessível, apesar da sua realeza. Parece mais novo que eu um ou dois anos, muito jovem para o peso da coroa. É jovial e encantador. Ordenou aos guardas que me levassem à sua presença, e repreendeu-os dizendo que “o lugar de uma jovem bonita não era numa prisão”. Quis saber porque me consideravam as gentes uma traidora. Expliquei-lhe tudo, contei-lhe que os meus ideais exaltavam a fobia do povo. Não esperava misericórdia. Então o rei, sem qualquer assomo de terror na expressão, reclinou-se no seu trono, a cabeça num dos braços e os pés no outro, como se estivesse deitado numa poltrona, e disse:
- Oh, como é maçante esta guerra! Quero-a terminada! Quero festas, risos e boa comida! Guerra é só sombria e rouba o dinheiro que podemos gastar em vinho! Ainda se ganhássemos algo, mas nem para extorquir território ou bens esta disputa serve. Só nos vem falir! Amigo bispo, põe um ponto final nesta guerra de ódio!
O bispo, um homem de idade, calvo, com um rosto sério e prudente, enterrou a cara na palma da mão, discretamente.
- Vossa Alteza, não pode acabar com uma guerra que perdura há gerações com uma ordem! – Fez ver, e nisso tinha toda a razão.
- Não posso? – O jovem nobre arregalou os olhos, como se não conseguisse acreditar nas palavras do seu conselheiro. – Para que serve ser rei se não podemos mandar, quando toda a gente acha que sim? Condicionados pela lógica, pela tradição, pelos desejos da maioria… ah, como é entediante ser rei. Pois bem, esta jovem parece entender-se com monstros e com certeza sabe muito acerca deles. Ela que sugira algo para que possamos resolver a situação. Pelo menos durante a minha regência, não quero conflitos. Quero uma época dourada como a teve o meu trisavô!
O bispo, que sensatamente ignorava as palavras do seu protegido, pensava para com os seus botões.
- De facto, uma trégua poderia ser proveitosa para a população humana. A capital está uma miséria. Desfalcada, doente, esfomeada… e, menina, gostaria de saber mais sobre essas suas ditosas aventuras. Com certeza adquiriu conhecimentos que merecem ser partilhados.
- Sim, fique aqui pelo castelo uns dias! - Acrescentou o rei. - Arranjar-lhe-ei que comer e beber. E tratarei de preparar para si um quarto de hóspedes. A menos que queira ficar no meu, caso que não me incomodaria sobejamente… - E galanteou-me com um sorriso. Com certeza Sua Alteza Ravi é dos reis mais estranhos de que ouvi falar. Arruinaria facilmente um Reino sem alguns conselhos. Agradeci mentalmente a existência do “Amigo bispo”.
- Vossa Alteza, tenha tino no que diz! E muito me entristece o quão facilmente é tentado pelos pecados do mundo. – O pobre bispo meneou a cabeça tristemente. Ravi era um caso perdido!
Acabei por ficar no castelo (evidentemente que não nos aposentos reais) durante uma semana. Nessa semana muito conversei com o bispo, um homem com alguns preconceitos mas também com imenso bom senso. Ajudei-o a criar o acordo. E, então, voltei para casa às pressas, porque havia-me avisado Edugénodro que o meu pai não estava no seu juízo perfeito.
Não lidara bem com a morte da minha mãe, pela qual se sentia inteiramente responsável. Edugénodro explicara-me que saía para trabalhar, como um autómato, e, ao voltar à habitação da nossa família, imitava o percurso que lhe era familiar no passado. Atravessava a sala, com as suas botas ruidosas, sentava-se a ler e recusava-se a deixar a poltrona se alguém lhe não fizesse o jantar. Porque ela fazia-o sempre. Tive, então, que voltar, para impedir o meu pai de se autotorturar com a fome.
Ouço os passos dele, no andar de baixo, lentos e monocórdicos. Mais lentos do que o normal, e instintivamente sei que se passa alguma coisa. Desço as escadas a correr e vejo-o, sentado na poltrona, com um naco de pão na mão e lágrimas nos olhos. Era a primeira vez que buscava voluntariamente comida, caíra na realidade. Fui buscar também um pedaço de pão à cozinha e voltei para junto do meu pai, comendo em silêncio ao lado dele. O pão estava duro e tinha um ligeiro gosto a bolor. Mas nem eu, nem ele, nos queixámos.
No final da refeição, tivémos a visita de Edugénodro. Ele vinha todas as noites para verificar o bem estar do meu pai. Não posso negar que tem sido um quase-genro impecável. O que, todavia, não me dá mais vontade de casar com ele. Discutirei o meu matrimónio com o meu pai mais tarde, quando ele estiver mais recomposto. Vejo, pela sua sobriedade, que esse momento estará quase a chegar. Por enquanto, aceito ser noiva temporária da ameba ruiva.
- Boa tarde, Mr.Denally, Cristaly! – Cumprimentou-nos, com uma vénia.
- Edumédrodo! – Vi o rapaz estremecer ao ter o seu nome erradamente pronunciado, escondi um sorriso. – Já deste as más notícias à minha filha? Será um desacato obrigares-me a contar-lhe! – De que más notícias estava o meu pai a falar? A primeira coisa que me passou pela cabeça é que os dois homens já tinham combinado a data do meu casamento, mas depois lembrei-me que isso apenas seria uma má notícia para mim, e não para eles.
- Ia agora mesmo falar-lhe disso! – Edugénodro lançou para mim um olhar de estranho divertimento. – Cristaly Withier Denally, você é uma moça fantástica! Contudo, após todos estes meses, descobri que não é a mulher certa para mim. Vi em si qualidades que, na verdade, não tem, e defeitos amoráveis que, afinal, não possui. Por conseguinte, com muito pesar, venho anunciar que quero desfazer o nosso noivado! – Demorei sabe-se lá quantos minutos a compreender o que estava a acontecer. Sentia-me emocionada, completamente alegre. Não esperava que Edugénodro fosse resolver este problema por mim. Contudo, consigo entender porque o fez. O perfeitinho nunca, mas nunca aceitará a rejeição! E, como estava a ver o caso mal parado para o lado dele, decidiu rejeitar-me, para assim manter a sua honra intacta. Ao mesmo tempo, conseguia notar nas suas palavras uma veracidade desgostosa. Eu devo ter feito algo que o desiludiu bastante. Ah, claro, submeter-me a um outro homem. Com certeza isso tinha-me polido um pouco do valor com que me via.
- Vê, Cristaly, que fizeste… - Lamentou o meu pai. – E eu que achava que ias desencalhar, que era desta…
Inspirei uma golfada de ar para os pulmões, sorridente. Edugénodro, que parecia muito satisfeito consigo próprio, abeirou-se de mim em passos de bazófia e, num momento em que apanhou o meu pai distraído, sussurrou no meu ouvido:
- Não sais hoje para o procurar, Cristaly? Desististe tão depressa! - Repreendeu-me. – Não te reconheço, macambúzia, vestida de preto…
Aquelas palavras fizeram vibrar como que uma corda no meu interior. Como se alguém tivesse encontrado um violino há muito abandonado numa sala escura e o tivesse dedilhado casualmente, tendo-se o som espalhado e dado vida a todo o espaço.
Todos os dias nos últimos dois meses tinha saído da capital para procurar por Endy, e pelos gémeos, e por Stacy e Misuki. Mas nem um vislumbre de qualquer um deles me tinha sido concedido. Parecia que tinham ido embora, e me abandonado. E, findo todo aquele tempo, começava a achar que agia como uma estúpida, a procurá-los quando eles não queriam ser encontrados. E tinha a horrível sensação de que fora Endy quem orquestrara tudo aquilo, o que me magoava. Assim, parara de atravessar as muralhas e deixara-me vencer pela vontade dele. Porque haveria de o perseguir?
Não tivera, a partir da decisão, muito tempo para me perder em amargurados pensamentos. Tinha muito que fazer na aldeia. O bispo muitas vezes me chamava à igreja, para me consultar sobre um e outro aspecto, tinha que cuidar do meu pai e, no restante das horas, ia visitar as minhas amigas.
Marc ainda estava a recuperar-se dos ferimentos que lha causara a Inquisição, conseguia andar somente com a ajuda de muletas ou segurando-se a alguém. Estava hospedada na casa de Érico, e os dois eram, claro, constantemente alvo de gracinhas por parte do resto da família do jovem.
Gabriela, por sua vez, estava completamente saudável, curada da peste negra, tinha as rosáceas mais vivas que eu alguma vez lhe vira. Vivia na estalagem com Romnie, o ferreiro, e Harumo, o bruxo. O marido violento, quando descobrira que ela estava a morar com dois homens, fora até à estalagem, armado com uma espingarda, pronto a disparar sobre as cabeças dos donos desta e levar Gabi para a sua casa, onde ela seria maltratada e usada como objecto sexual. Mas claro que nós não deixámos que isso acontecesse. Eu e Érico atirámos pedras para cima do homem, chamando-lhe todos os nomes feios que nos vieram à cabeça. Fora lindo! Quando o homem atirou uma bala na nossa direcção, deslizámos todos para o chão, era uma confusão de vidros partidos. E, então, Romnie saiu da estalagem, empunhando um ferro em brasa. Ainda hoje admite sentir-se mal por ter marcado a perna de um velhote a fogo, mas, convenhamos, ele merecia-o. E, ademais, era o único jeito de libertar Gabriela das garras dele. Um duelo de honra. Que acabou por ser muito pouco tradicional, mas adiante…
A vida de todos estava a resolver-se! E agora estava na hora de resolver a minha!
- Pai, vou sair! – Anunciei, optimista de que, desta vez, as minhas buscas não seriam vãs. O meu pai resmungou, sabia muito bem de quem eu ia à procura e, claro, a ideia não lhe agradava nada. Mas não me impediu e, por isso, subi as escadas a correr e fechei-me no quarto para trocar de roupa. Era pleno Agosto, estava muito calor para se usar preto. Fizera esse sacrifício em todas as outras saídas, em homenagem à minha mãe, mas um luto demasiado demorado só traz depressão. E já estava na hora de largar o vestido de folhos negros e o chapéu fúnebre. Troquei-os por um vestido de linho branco até aos tornozelos e um sapatos de afivelar, próprios para caminhar.
Quando saí do quarto, deparei-me com Edugénodro, encostado ao varão das escadas, com os braços cruzados, esperando-me. E, conhecendo a arrogância de que é senhor, bem sei o que ele quer. Estava tão animada, porém, que não vi nenhum motivo para não lhe agradecer.
- Obrigada, Edu!
- Não o fiz por ti, tolinha! – Negou de imediato, como era de prever. – Descobri somente que existem muitas mulheres mais interessantes do que tu por esses mundos afora. Não tens cintura nenhuma, deixa-me que te diga. E, depois, achava que eras indomável, mas deixaste-te acorrentar tão facilmente por aquele macho capado que vejo que estava enganado.
- E como estão Kenny e Edileuza? – Perguntei, com um sorriso leve nos lábios. Edu podia dizer o que quisesse, mas eu sei que ele pensou um pouco em mim quando decidiu desfazer o nosso noivado. O que mostra que, ao menos, mudou ligeiramente, e está menos insuportável.
- Deslumbradas com o acordo! Não me admiraria nada se se descobrisse que foi ideia delas essa de te quererem erguer uma estátua. Tens de falar com elas! Querem saber se vais ficar por aqui. Se ficares, vão construir moradia algures na região. Umas loucas!
Prometi que falaria com elas. Mas, por enquanto, nem eu sei bem o meu futuro, nada lhes consigo dizer. Não quero ficar na aldeia, espero bem que não seja esse o meu destino. Precisava mesmo de falar com Endy. E, mais uma vez, saí da aldeia, radiante de optimismo, com a secreta esperança de que a minha positividade o fosse atrair.
Procurei-o por todos os lugares que nos eram familiares, desde os portões até à saída do poço. Praticamente sentia-o a observar-me, a seguir-me com os olhos. O sol estava a pôr-se e não me restava muito tempo. Várias vezes lancei frases soltas para o ar, na esperança que atingissem o alvo.
Avancei por entre as ervas e flores selvagens. A vegetação ao meu redor dava-me pela cintura, e tinha dificuldade em abrir caminho. Já estava meio à nora, sem saber exactamente onde estava, mas parecia-me conhecer aquele cenário.
“Oh, que bom, já tenho o vestido cheio de lama” Pensei para comigo. Perguntei-me o que me dera na cabeça para sair dos trilhos. O calor fazia com que os meus cabelos se colassem à cara, estava toda suada.
Mas foi só quando vi um arbusto maciço à minha frente, provocativo e enorme como uma pequena árvore, que entendi aonde me encontrava. Com o coração aos pulos, afastei as ramagens da planta invasiva e espreitei. Lá estava. A árvore aonde eu encontrara Endy pela primeira vez, ainda garoto.
Como havia crescido, apercebi-me, ao vê-lo novamente naquela árvore, tão alto. Estava recostado no tronco, de olhos fechados, a apreciar os últimos raios do dia. Eu tinha o coração a bater na boca, e sentia-me imobilizada por aquela imagem que os meus olhos devoravam. Era demasiado perfeito. E, corada até à ponta dos cabelos, admiti, para mim, que tinha muito de tradicional romantismo no sítio que Endy escolhera para me vir falar.
Aproximei-me, com passos leves, tentando não quebrar o encanto da coisa, e Endy abriu os olhos, fazendo-me conter um repentino impulso de saltar para dentro do arbusto e esconder-me. Ele tinha guardado os seus óculos escuros e, portanto, podia ver-lhe as íris bonitas, de um lilás mais magnífico que o das auroras boreais, movendo-se e torcendo-se. As faíscas que rodopiavam em volta do seu corpo assemelhavam-se a pequenas flores cadentes, iluminadas por um qualquer truque de luz.
- Insististe tanto em me falar, portanto, vim! – Comentou, casualmente, como se não tivesse estado a evitar-me durante os dois últimos meses. As minhas faces, que antes estavam rubras de espanto e maravilha, tornaram-se ainda mais vermelhas com a raiva. – A Stacy acha que não devo tomar decisões que têm implicações na vida dos outros sem os consultar primeiro.
- A Stacy tem toda a razão! – Interrompi, fulminando-o. – Especialmente quando essa decisão implica trancafiar-me na aldeia e ir embora com os meninos.
- Eu nunca planeei separar-te de Brian e Laura, Cristaly! Seria uma crueldade! Eles estão na casa aonde eu morava com os meus pais. Vou arranjá-la para eles lá poderem viver bem! E poderás ir vê-los sempre que quiseres… irei também arranjar quem tome conta deles.
Sentia como se tivesse uma bola de pêlos entalada na garganta.
- E tu? E tu, Endy, onde irás? – Mal conseguia esconder o pânico.
- Concretizar a minha vingança… preciso de descobrir um modo de matar Herobrine. – Por momentos fiquei pensativa. Porque desejaria Endy vingar-se de Herobrine? Porque ele me raptara? Os olhos de Endy ficaram extraordinariamente frios quando o nome do terrível Deus do Nether saiu dos seus lábios. Quando finalmente pensei compreender o que Endy dissera, abri a boca para colocar um monte de questões e exclamações, todavia Endy cortou tudo o que eu queria dizer. Ele não iria discutir aquela questão. Pelo menos não naquele momento. – Vai ser perigoso! Muitas vezes irei para lugares aonde não vou poder levar-vos, nem aos gémeos, nem a ti.
- Deixa-me tomar conta de Brian e Laura! – Endy lançou-me um espantado olhar. – Disseste que precisas de alguém para tomar conta deles! Eu posso fazê-lo, posso mudar-me para tua casa com eles!
- Vais sentir-te sozinha! – Previu Endy, preocupado. E desviou os olhos dos meus, mas eu já lera mais do que devia.
- Posso ir à aldeia sempre que me apetecer. Verei o meu pai e as minhas amigas regularmente.
- Não é a mesma coisa! – Negou Endy, e com os dedos, nervosamente, começou a desfazer as ervinhas à sua volta. – Não terás uma vida tão completa…
Ele subestimava-se demasiado, completamente aterrado pela ideia de não me conseguir dar tudo o que ele achava que eu poderia vir a querer ter. Coisas que mulheres geralmente querem. Um marido presente e filhos seus. Mas eu não precisava de nada disso! Não queria partilhar a casa com homem nenhum que não fosse ele, nem que o outro me acompanhasse vinte e quatro horas por dia. Não precisava de filhos, os gémeos eram as mais amorosas crias que alguém poderia desejar ter. E eu não precisava de um príncipe perfeito, que reunisse em si todas as virtudes. Porque eu amava Endy, apesar dos seus traumas e da sua personalidade difícil.
- Acho que vou ser muito feliz com a minha vida incompleta, então! – Contrapus. Inspirei profundamente e disparei de rajada, sem me dar tempo para pensar no que poderia advir de me confessar ali mesmo: - Por favor, Endy, dá-nos uma chance! Eu gosto de ti! E sei que também gostas de mim! – Endy arregalou os olhos, assustado pelo meu atrevimento. Tudo bem, eu posso ter exagerado um pouco, a meter palavras na boca dele, mas a situação estava a implorar para que eu jogasse com todas as armas. – Deixa-me ficar na tua casa, cuidando dos gémeos!
Endy tinha os olhos ruborizados, de um tom quase rosa choque e até a sua face estava menos pálida que o costume.
- Que seja! A ver se não te arrependes, depois não digas que não te avisei! Tenho uma condição, porém! Tu e os gémeos terão que aprender a se defender! Especialmente tu, que és frágil por Natureza. Se queres viver fora das muralhas, terás que ficar mais forte!
Senti um alívio escorrer por cada canto do meu corpo. Sorri genuinamente, mas esse sorriso não tardou a murchar, à medida que uma pedra de gelo se formava no meu estômago. Endy ignorara completamente a minha confissão. Há cerca de dois minutos eu tinha a certeza de que ele sentia algo por mim e, agora, a minha convicção vacilava. Eu fora precipitada demais.
Voltei-me, subitamente ansiosa por afastar-me de Endy e enterrar a cara num caixote de papelão. Porque eu fora dizer que gostava dele? Pior, porque eu fora dizer que ele gostava de mim?
- Cristaly! – Chamou Endy, cortando os meus passos abruptamente e quase me fazendo escorregar naquele chão enlameado. Estava tão corada que não me atrevia a voltar-me de frente para ele. – Porque estás com tanta pressa? Agora que pusémos aquele assunto polémico para trás das costas, quero conversar mais um pouco contigo. Ajoelha-te aqui à minha frente, para ficarmos da mesma altura…
Óptimo, agora ele quer conversar?! Mas, como fugir deixaria a minha situação ainda mais embaraçosa, voltei para junto dele e sentei-me sobre os joelhos. Realmente ficávamos da mesma altura, o que não me agradava, naquele momento, por aí além. Como os meus olhos fitavam intensamente o chão, na esperança de poder desaparecer através dele, não reparei que Endy tinha aproximado os nossos rostos, até quase as nossas testas se tocarem. E, quando me apercebi da proximidade, só conseguia pensar que Endy me ia beijar, portanto estava completamente confusa.
- Já agora, Cristaly, que presunção meteres palavras na minha boca! Mas estás certa, sim, eu gosto de ti! – Murmurou. O meu rosto e as minhas orelhas picavam de tão quentes. Sentia-me derreter no meu próprio acanhamento e prazer. – Assim sendo, realmente gostaria que me concedesses permissão para te beijar!
- O-o quê? – Gaguejei, sem entender sequer o que ele me estava a pedir.
- Permissão, Cristaly, permissão! Não uso os teus métodos! Eu não beijo pessoas de surpresa nem me finjo de bêbado para tentar seduzir alguém. – As palavras que eu não tinham morreram todas e caíram algures. Endy tinha-me arrancado o raio da língua. Stacy e a sua grande boca! Com certeza tinha sido ela a desmascarar-me! Deve ter deixado escapar a informação sem querer! E, agora, nada mais podia fazer que não aceitar a minha culpa humildemente. Estava, de facto, tão aturdida, que não consegui dizer “sim” ou “não” em resposta ao pedido de Endy, pelo que só acenei com a cabeça numa afirmativa.
Os lábios frios de Endy tocaram os meus e, durante alguns segundos, eu permanecei completamente imóvel, a apreciar a candura do momento, antes de entreabrir a boca e corresponder ao beijo. Era a primeira vez que Endy me beijava. De todas as outras vezes, fora eu quem forçara um pouco a coisa. E ele dissera que gostava de mim. Eu estava tão emocionada que me sentia capaz de chorar.
- Ai! – Ciciou Endy, afastando-me de repente. Limpou o rosto à manga da camisola, e olhou-me com reprovação. Eu tinha rios de lágrimas a escorrer dos meus olhos, e havia-o molhado por acidente.
- D-Desculpa! – Solucei. – Eu estou tão feliz!
- Cristalius Irritantios, não cessas de me surpreender! – Comentou Endy, com um revirar de olhos. Levantou-se e estendeu-me a mão para me ajudar a pôr de pé. – Vamos para a aldeia, está a anoitecer! É melhor começares a habituar o teu pai à ideia de que esta é a última noite que dormes em casa durante os próximos tempos. Os gémeos vão-se prender às tuas pernas quando os fores ver, estou-te a avisar! E pára de chorar, que coisa! Se parares de chorar eu beijo-te de novo!
Era, sem dúvida, um bom incentivo. Mas não conseguia evitar o lacrimejar. E, de qualquer das formas, Endy beijou-me na mesma portanto…
- Neutrum regio é tão silenciosa à noite! – Comentei, enquanto percorria o caminho inverso até à capital, de mãos dadas com Endy.
- De facto! Quando aqui não estás!
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