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História Jimmy Stuart e o Livro dos Anos - Poluição de gatos


Escrita por: LBSantana

Notas do Autor


Espero que gostem. :)
Atenção! Somente amanhã, 14/12/2016, o livro estará de graça, na Amazon. Segue o link nas notas finais. Por favor, recomendem aos amigos. Obrigado! ;)

Capítulo 1 - Poluição de gatos


Ainda estava escuro, quando um carro preto estacionou em frente à porta do colégio interno, São Bartolomeu. A chuva castigava, incessantemente, as casas do outro lado da rua, dando um tom ainda mais macabro a esse dia. Olhei para trás e vi alguns dos meus amigos, poucos estavam lá, talvez os que fossem, realmente, verdadeiros. Abracei meus colegas, com a certeza de que era a última vez que eu os via. 

Meu irmão, Michael, já havia entrado no carro. Desde que soubemos da morte de nossos pais, ele tentava não demonstrar seu sofrimento e sempre desviava o rosto, para que não o visse chorando. Corri para o carro, sem me preocupar que a chuva ensopasse minha roupa. Entrei, Michael olhava a chuva pela janela, não querendo que eu visse a expressão dolorosa em seus olhos.

O carro começou a andar e, em pouco tempo, o colégio já tinha sumido por trás da forte chuva.

¬¬- Vai dar tudo certo, Jimmy – Michael me abraçou, tentando me consolar – nós vamos começar uma vida nova. Tenho certeza que vamos conseguir ser felizes. – sua voz era fraca, eu ainda podia ouvir seus soluços.

Enquanto o carro deslizava por entre as ruas escuras, a chuva caía forte no teto do carro, e o vento uivava, feito fantasmas ameaçadores. Minha mente estava tão confusa e tenebrosa, quanto a tempestade que víamos pela janela. Sem querer, comecei a recapitular as últimas coisas que aconteceram e que, com certeza, iriam mudar a minha vida para sempre. 

Lembrei quando a diretora do colégio nos chamou. Algo sobre nossos pais, nos disseram. Michael abrira um sorriso para mim, ele sempre acreditara que nossos pais nos levariam com eles. Ele sempre dizia, esperançoso: - Um dia eles voltarão, e seremos uma família unida e feliz, como as outras.

Eu nunca soube, assim como meu irmão, o motivo de nossos pais terem nos deixado num colégio interno. Eles nunca nos visitavam, apenas pagavam o colégio a cada ano. Talvez, Michael e eu tenhamos “nascido por acidente” e eles, que não queriam filhos, decidiram nos abandonar. Não gosto de pensar nessa teoria, prefiro acreditar, que se comportavam de tal forma, para o nosso bem. Entretanto, não conseguia entender o motivo deles nunca terem nos visitado. 

A voz da diretora ao nos contar que eles haviam morrido, na noite anterior, em um ônibus que pegou fogo, provavelmente, um ataque de terroristas, ainda me perturbava. Não chegamos a ir ao funeral, simbólico, uma vez que seus corpos foram carbonizados. Tão pouco, procuramos informações na mídia, seria doloroso demais conhecer nossos pais por meio de uma tragédia estampada nos jornais. Michael não queria que a imagem do funeral preenchesse nossa mente toda vez que lembrássemos, ainda com dificuldade, deles. 

Uma semana depois, o juizado inglês havia decidido que nós ficaríamos com a nossa avó, a Sra. Carmem, em um povoado da Inglaterra, chamado Riverplace. Eu gostava de Londres, com seus parques e edifícios, que sempre me encantavam nos passeios escolares, gostava daquela vida agitada, que saltava nas janelas do internato. Não sabia o que me aguardava em Riverplace, mas tinha certeza que muita coisa iria mudar. Para pior, talvez... não ando muito otimista.

- Ainda os veremos, Michael. Tenho certeza que eles nos amavam.

- Sim. – ele acariciava meu pescoço com sua mão - prometo que vou cuidar de você.  

Michael sempre fora mais que um irmão mais velho. Ainda que a nossa diferença de idade fosse de apenas um ano, eu via naquele rapaz, sempre preocupado comigo, um verdadeiro pai de 16 anos. Ele não deixava que nada de mal acontecesse comigo ou que eu ficasse triste, estava sempre me contando piadas, me distraindo. 

- Não quero que fiquemos longe um do outro – minha voz saiu trêmula – mesmo quando formos adultos.

O medo, finalmente, começava a mostrar a sua face, me fazendo ficar inquieto. Senti o meu corpo começar a tremer e as lágrimas voltarem a escorrer pelo meu rosto. O carro cortando a tempestade, era uma verdadeira metáfora de nossas vidas naquele momento – atravessando um turbilhão de emoções e caos, sem um destino aparente.

- Isso nunca vai acontecer – acho que Michael percebeu o meu desespero, pois deixara a minha cabeça escorregar sobre o seu ombro.

-Tente dormir, Jimmy. A viagem é longa e você precisa estar descansado para amanhã! – Michael ainda me abraçava. A sua presença, sempre, me dava mais conforto, me fazia sentir mais seguro. 

-Boa noite. – falei tão baixo, talvez ele mal tenha me ouvido.

Aos poucos, por mais que eu lutasse contra, meus olhos foram fechando-se, até que, finalmente, o cansaço me venceu. 

***

- Sr. Stuart – chamou uma voz meio roca.

Lentamente comecei a abrir os olhos, estava tão sonolento, que me sentia como se tivesse hibernado. 

- Estamos próximos ao vilarejo – avisou o motorista. Um homem não muito velho, em seus 40 anos. Tinha os olhos castanho-escuros e sinais de cabelos brancos.

Amanhecera, a luz entrava, timidamente, pela janela, como se trouxesse vida para dentro do carro. As nuvens ainda estavam bastante espessas, revelando que a chuva tinha cessado há pouco. Michael ainda dormia, encostado na lateral do carro, que, por sinal, já andava mais rápido.

Após chamar Michael, algumas vezes, consegui acordá-lo, quando, finalmente, o sacudi. Michael sempre dava trabalho para acordar. Eu pensava se ele fazia isso de propósito ou se era, realmente, o seu jeito. De qualquer forma, desta vez, não foi engraçado.

- O que houve? – perguntou ele, ainda com cara de sono!

- Estamos quase chegando – avisei.

Fiquei, um pouco, com pena por acordá-lo, pois sei que estes últimos dias têm sido bastante cansativos. Mas, se não o acordasse, ele, com certeza, ficaria chateado por não ter visto a entrada do vilarejo. Michael bocejava, enquanto esfregava as mãos, fortemente, contra o rosto. Seu cabelo castanho, que escondia suas orelhas, estava todo assanhado.

Pela janela, pude ver colinas esverdeadas, onde as nuvens tentavam se deitar. A estrada passava por uma floresta com árvores bem grandes, que se tocavam nos galhos mais altos, impedindo que a luz entrasse em abundância, tornando o caminho escuro. Ao longe, vi um arco de pedra enorme, por onde plantas se enrolavam, somente quando chegamos mais perto, pude ver o nome, “Riverplace”, escrito em um azul turquesa, já maltratado pelo tempo. Depois de dobrar um pequeno monte, pudemos ver uma pequena descida, que terminava em um vilarejo de casas acinzentadas, em sua maioria, pequenas. Ao lado, não muito distante, corria um rio, que refletia o verde das montanhas, misturando-se com a floresta e, em sua margem, um pequeno porto, que aparentava estar abandonado. 

- Bom, não deixa de ser bonito – confessei. Michael ainda olhava, admirado, pela janela. Por um momento, ele parecia ter esquecido tudo de ruim que acontecera.

O carro foi chegando perto e as primeiras casas passavam por nós. Eram, em sua maioria, de pequena área, de dois ou três andares, muitas delas, com as chaminés acessas. Havia um número de ruas não muito grande, intercaladas, feitas com pedras grandes e amareladas, com alguns traços de musgo. O vilarejo parecia ter se perdido no tempo, a maioria das construções eram arcaicas, não que eu achasse isso ruim, pelo contrário, tinha certo charme. Além das casas, consegui identificar uma igreja, que, por sinal, era o edifício mais alto naquele lugar e uma espécie de casarão, cheio de portas em arcos, deduzi que fosse algum mercado. 

Seguimos pela rua principal, chamei assim, pois, esta, era a que tinha mais ruas intercaladas; dobramos na última rua, à direita, até o final desta. Lá, se encontrava, entre duas outras casas, não muito diferentes das anteriores, uma casa enorme, tinha uns três andares, cada um com varanda. No andar debaixo, havia colunas, não muito grandes, cor de turquesa, por onde se enrolavam plantas, que subiam pelas paredes e chegavam até o telhado. As paredes acompanhavam as colunas, com o mesmo tom de turquesa, e o telhado tinha um vermelho claro, que já sumia com o tempo.

- Uau. – suspirou, Michael, enquanto abria a porta do carro e olhava para os últimos andares da casa. – quero dormir lá em cima!

- É melhor que as outras casas do vilarejo – falei, tentando ser sarcástico.

- Bem, rapazes, esta é a casa onde vocês irão morar agora – falou o motorista, tirando as nossas malas do carro. Ele parecia estar bastante insatisfeito com a viagem que fizera. Seu rosto estava, estranhamente, amassado, numa mistura de cansaço e revolta.  – boa sorte.

O carro saiu rasgando a rua, pelo visto, o motorista tinha lugares melhores para ir, pensei.

Pegamos nossas malas e subimos as pequenas escadas, que levavam até uma pequena área. Colocamos as malas no chão e ficamos, por alguns segundos, encarando a porta, também avermelhada e que aparentava ser pesada.

- Você primeiro – falamos em coro.

- Fala sério, ninguém vai saber qual de nós bateu na porta! – resmunguei.

Estendi a mão fechada, lentamente, decidido com o meu propósito. Rapidamente, a porta se abriu e, por trás dela, surgiu uma senhora, que, apesar de idosa, revelava ter boa aparência para a sua faixa etária. Tinha estatura mediana, cabelos quase brancos, usava um vestido azul-marinho por cima de uma blusa branca de mangas compridas, que combinavam com os seus olhos esverdeados e sapatilhas pretas. Uma expressão no rosto, que parecia dizer, que ela não era muito amigável. Ela nos analisou por alguns segundos, me fazendo prender o fôlego (eu sou, assustadoramente, tímido), nenhum de nós ousou falar, até achei que tínhamos parado na casa errada.

- Entrem – falou a senhora, abrindo um pequeno sorriso, porém em tom imperativo.

- Com licença – falou Michael, abaixando-se para pegar as suas malas e entrando, modestamente, por entre a porta. Eu o segui, logo em seguida.

A sala era enorme, havia poltronas e estofados azulados, no centro, uma televisão, do lado esquerdo, cuja aparência fazia acreditar que não funcionava, e quadros antigos, de pessoas que pareciam ser de outra época. Havia também, uma escrivaninha, encostada numa escada meio desgastada, do lado esquerdo da casa, com um jarro com flores silvestres e uma lareira do lado direito. 

Porém, de fato, só notei essas coisas após alguns segundos ou minutos, talvez. Pois, o que mais me chamou a atenção, foi a quantidade de gatos que moravam ali. Eram centenas, de todas as cores e tamanhos, em cada canto da casa, alguns passavam por verdadeiros caminhos de madeira, no alto das paredes, atravessando-as. O barulho que faziam era ensurdecedor. Ao vermos tamanha confusão, ficamos boquiabertos, parados, olhando para a cena que se passava na nossa frente, como se o mundo estivesse acabando aos nossos olhos. Acabando em gatos! Tudo bem, que no colégio interno não aceitavam animais, entretanto, eu nunca cheguei a imaginar que as pessoas pudessem criar tantos.

- Vocês devem ser Michael e James Stuart. Estou certa? – perguntou a Sra. Carmem, com voz firme.

- Exato – respondi, impressionado, colocando a mala no chão da sala.

- Bem, eu sou a Sra. Carmem Stuart, avó de vocês e dona desta casa – informou, enquanto fechava a porta. - vou levar vocês até seus aposentos. Por favor, sigam-me.

A Sra. Carmem começou a andar em direção a escada e, por incrível que pareça, os gatos não atravessavam o seu caminho. Michael e eu, trocamos olhares mais uma vez e procuramos segui-la, com bastante dificuldade, pois os gatos esbarravam na gente - acho até, que chutei alguns. Um dos gatos, pulou nas costas de Michael, fazendo-o soltar um pequeno grito de susto. Confesso que tive que segurar o riso. 

Subimos as escadas, que estavam lotadas de gatos, até o andar de cima, que dava em um corredor, um tanto estreito, cheio de portas, onde a Sra. Carmem esperava na última, seu rosto estava gélido, feito uma máscara. Atravessamos o corredor, cheio de felinos e entramos na porta que nos fora indicada. O quarto era espaçoso, possuía duas camas, com colchas azuladas, do lado esquerdo do quarto, com uma mesinha pequena entre elas, pintada de branco e um jarro com flores silvestres. Na parede da porta, um guarda-roupa escuro e antigo repousava e, em frente à cama, uma escrivaninha comprida, com uma madeira meio avermelhada, com duas cadeiras da mesma cor e material. No fundo do quarto, uma enorme porta de vidro, que dava acesso à uma varanda, onde se encontrava um pequeno sofá amarelado. 

- Fiquem à vontade – falou a Sra. Carmem, gentilmente – desfaçam as malas e depois desçam para o café. – e se retirou, logo em seguida.

- Obrigado – respondi, tarde demais para que ela ouvisse.

O quarto, aparentemente, não tinha nenhum gato, talvez fosse o único cômodo sem. Colocamos as malas na cama e fomos até a varanda. Dalí, era possível ver quase todo o vilarejo, uma boa parte da floresta e até, um pequeno caminho dentro da vegetação que, provavelmente, levava até o rio.

- É aqui, que vamos construir uma nova vida – Michael falou, enquanto olhava à paisagem.

- Espero que as pessoas sejam acolhedoras – completei, tentando ser o mais otimista possível.

Voltamos para dentro e começamos a desfazer as malas, tirando e colocando roupa por roupa, buscando mais tempo para absorver tudo o que já tinha acontecido. O guarda-roupa rangia bem alto, cada vez que abríamos ou fechávamos as suas portas e gavetas, dando a impressão, que gritava. Quando terminamos, caímos exaustos em nossas camas e ficamos olhando o teto do quarto, que estava coberto por manchas escuras. Tentei decifrar as imagens que as manchas ilustravam (acho que encontrei um gato, que hilário.), mas a barriga de Michael roubou a minha atenção com um ronco bem forte.

- Nossa! Eu estou, mesmo, com fome – respondeu ao barulho de sua barriga.

- Vamos tomar o café da manhã – sugeri a ele.

Saímos do quarto e lutamos com os gatos, até chegarmos ao andar de baixo. A cozinha ficava ao lado da sala, era cheia de azulejos brancos, com desenhos de flores, tinha muitos armários de madeira amarelada, um fogão enorme, que aparentava ser antigo, e uma geladeira branca, cujo estado de conservação era o mesmo do fogão. 

A cozinha era bastante arejada, tinha muitas janelas, onde pequenos jarros compridos, com flores rosadas, davam mais vida ao local. No centro da cozinha e rodeada por gatos famintos, estava uma mesa de madeira para seis lugares, com a mesma tonalidade dos armários. A mesa estava repleta de pães e doces de vários tipos, além de um bolo de chocolate, que cheirava agradavelmente, o meu preferido. 

Em uma das cadeiras estava uma garota, com uma xícara na mão direita que, no momento, levava até a sua boca, levemente, rosada. Ela tinha um cabelo dourado, que descia pela sua cabeça, formando longos cachos. Sua sobrancelha era, proporcionalmente, fina, o que não prejudicava, em nada, os seus olhos azuis. 

- Rapazes, esta é Melanie. – falou a Sra. Carmem, passando por nós. - prima de vocês.

- Bom dia, rapazes – falou Melanie, amigavelmente, com uma voz, um tanto, grave e delicada. – sirvam-se. Podem ficar à vontade.

- Obrigado – falamos, novamente, em coro.

- Eu vou até o mercado, comprar algumas coisas para o almoço, não vou demorar muito. Melanie, por favor, poderia mostrar a casa aos meninos, após o café? – pediu a Sra. Carmem, enquanto colocava luvas brancas, bem leves e um pequeno chapéu arredondado, com uma flor delicada, do lado esquerdo. Ela pegou um guarda-chuva purpúreo velho. 

- Claro. – respondeu Melanie.

- Obrigada – logo após, a Sra. Carmem saiu por uma porta na cozinha, que dava passagem até os fundos da casa. Acreditei que ela preferia sair pelos fundos, para não atravessar a casa repleta de gatunos.

Coloquei café em uma xícara, cheirava gostoso, e cortei um pedaço do bolo de chocolate, confesso que era um pouco grande, mas a minha fome justificava. Michael pegou um pão e passou geleia, que parecia ser de goiaba, e começou a comer, sem cerimônias, como se tivesse ficado dias enjaulado. No começo, fiquei um pouco envergonhado, porém achei melhor não interrompê-lo.

- Então – falou Melanie – em que ano vocês estão?

- Eu estou no oitavo ano e Michael no nono – decidi me pronunciar, antes que Michael resolvesse falar – e você?

- Também estou no oitavo! – senti alívio por ter com quem conversar entre uma aula e outra - Tenho quinze e vocês?

- Michael tem dezesseis e eu tenho quinze! – novamente respondi a pergunta – O colégio fica aqui mesmo, no vilarejo? – questionei.

- Sim, o prédio fica por trás da igreja. Tenho certeza que não é tão grande quanto o que vocês estudavam, mas é bem estruturado. – por um momento imaginei, se esse ‘estruturado’, estava ao nível dos móveis da casa.

- E você, gosta das aulas? Quero dizer. Os professores são legais? – dessa vez, foi Michael quem perguntou, enquanto passava outra geleia, talvez de morango, em outro pão. Felizmente, não estava com a boca cheia.

- Os professores são ótimos. – falou tão naturalmente, que eu, realmente, acreditei. – tenho certeza que vão gostar.

Por um momento, fez-se silêncio. Resolvi tirar outro pedaço de bolo, era, realmente, gostoso, desta vez foi menor que o primeiro. Alguns gatos passeavam entre as minhas pernas, no começo achei desconfortável, depois me acostumei. Outros gatos ficavam nos espiando, ao redor da mesa, eu não sabia que o bolo também pudesse agradá-los. Um pássaro pousou no jarro que ficava na janela, tomou um susto ao ser encarado por vários olhos famintos e fugiu, velozmente. 

- A Sra. Carmem, realmente, gosta de gatos! – falei com um sorriso, meio envergonhado pela observação.

- Muito. – Melanie concordou – até falo que ela não precisa ter tantos. Ela, simplesmente, não me dá ouvidos.

- E, não sai muito caro alimentar tantos animais? – perguntei, com um pouco de vergonha.

- Esse é outro argumento que uso, ao tentar convencê-la. – Melanie falou, balançando a cabeça, como se fosse inútil. – ela diz, que os gatos não dão muita despesa. Eu não acredito muito.

- Quantos gatos vocês têm nessa casa? Vocês sabem? – a minha curiosidade estava me perturbando.

- Ela me diz que tem cento e sessenta e nove, porém, eu acho que têm mais. – as palavras novamente saíram tão naturalmente de Melanie, que, desta vez, eu fiquei espantado com o que ela me dizia. Michael, que já estava cortando uma fatia, não muito grande, de bolo, interrompeu a faca quando Melanie falara.

- E como você consegue viver com tantos gatos? – “atirou” Michael, fazendo uma cara, como quem lhe conta uma coisa absurda.

- Bom, eu já me acostumei com eles – era inacreditável – no começo, eles atrapalham você, quando está caminhando, depois que eles se acostumam com a sua presença, eles ficam mais cavalheiros. – ela falou com um sorriso pequeno.

- Eu vou sobreviver – suspirei, fazendo Melanie sorrir e Michael quase se engasgar.

Alguns minutos depois, após Michael comer o segundo pedaço de bolo, Melanie nos chamou para conhecer a casa. Ela nos levou pela porta da cozinha, até a parte posterior da casa. No quintal, havia um lindo jardim com algumas lavandas, algumas árvores enormes e, entre elas, alguns bancos de madeira, ao redor de uma mesa envelhecida de mesmo material. As árvores faziam sombra nos bancos, deixando o local ainda mais agradável - era lindo. Logo após as árvores, outras se multiplicavam, com certeza, era a floresta. 

Demos uma pequena volta ao redor da casa, até que chegamos à uma espécie de calabouço, com portas velhas de madeira. Por um momento, imaginei que lá pudesse ter máquinas para tirar órgãos, fazendo um frio subir pela espinha - a minha imaginação era, detestavelmente, criativa. Melanie retirou o cadeado e empurrou, cuidadosamente, as portas, era bastante escuro e úmido, cheirava a mofo. De dentro do porão, saiu um vento frio, que aumentou ainda mais o meu medo.

- Esse é o porão – explicou. Com uma cara que mesclava frustração e nojo. – Hã, tenho certeza que vocês não estão nada interessados em ir lá embaixo, estou certa? – era quase um pedido?!

- Não. Obrigado – Michael respondeu.

Entramos na casa. Eu estava com um pouco de frio, não sei se era o tempo, que ainda continuava nublado ou a minha reação diante daquele porão. Atravessamos a cozinha rumo à sala e subimos as escadas, alguns gatos já começavam a nos dar passagem.

- Aqui, ficam os quartos – falou, apontando para o corredor estreito no segundo andar.

Era, em torno, de dez portas, que não ficavam muito próximas uma das outras, o que denunciava que os quartos eram grandes. A casa mais parecia uma pousada.

- Quem dorme nos outros quartos? – Michael não conteve a sua curiosidade.

- Ninguém. – Melanie respondeu – apenas alguns amigos ou parentes, quando estão viajando. – ela não demorou em responder.

Subimos até o andar de cima, onde tinha apenas uma porta guardando um cômodo. Tentei não pensar em nada, evitando que a minha imaginação não me assustasse novamente.

 - Esta, é a biblioteca – contou Melanie, abrindo a porta que aparentava ser pesada.

A biblioteca era enorme, cheia de estantes lotadas de livros, tinha milhares, formava quase um labirinto, eu fiquei, mais uma vez, impressionado. Michael e eu ficamos parados na porta, admirando a magnitude do lugar, como dois patetas. 

- Entrem. – convidou.

Entramos e começamos a vasculhar cada canto do local, as estantes eram altas e a maioria dos livros aparentavam ser velhos. 

- Posso dar uma olhada nos livros? – perguntei, encarecidamente.

- Claro, fiquem à vontade!

- Obrigado. – falei.

Tinha, desde histórias infantis, até livros de filosofia e outras ciências. Vi muitos livros de Shakespeare e de outros autores antigos consagrados. Sempre gostei de ler livros, o fazia muito no colégio interno, talvez porque eu nunca gostava muito da maioria das brincadeiras dos garotos ou porque não havia muitas opções de entretenimento.

- Eles são um bom passatempo! – Melanie comentou. – já li quase todos.

- Você não tem muitos amigos?! – Michael, às vezes, era bastante indiscreto.

- Não, exatamente – um sorriso escapou pelo canto da boca – mas, às vezes, quando o tempo não está favorável, eu fujo para os livros.

- Deve chover bastante por aqui! – comentei.

- São raros os dias de sol. – explicou – as nuvens estão sempre densas. - As grandes janelas da biblioteca comprovavam o que Melanie dizia, o céu estava meio escuro. 

Andei mais um pouco, procurando algo de diferente que não fosse mais e mais livros, quando me deparei com um computador, em frente a uma janela (viva a globalização, festejei, secretamente.). O computador não era o mais moderno que existia, infelizmente, mas não era muito velho. No colégio, depois dos livros, eu gostava de ficar conhecendo o mundo pela tela do computador. Achava deslumbrante Nova York, Paris, Rio de Janeiro, Hong Kong. Tinha muita vontade de conhecer outros lugares, outras culturas.

- Funciona? – perguntei à Melanie, que já me procurava com Michael.

- Perfeitamente! – ela respondeu, para o meu alívio.

- Vocês podem usar agora, se quiserem!

- Agora, não. – respondeu Michael – talvez, quando estiver chovendo. – risos.

- Vamos descer? – sugeri

- Vamos. - respondeu Melanie. 

Saímos da biblioteca que, por sinal, não tinha nenhum gato e descemos as escadas que, ao contrário da biblioteca, estavam cheias deles. Atravessamos a sala e sentamos nas escadas, do lado de fora da casa. O vilarejo já havia acordado, a movimentação não era muito diferente da um bairro residencial de Londres, exceto pelas construções, que pareciam ser mais rústicas. As pessoas se vestiam normalmente (normal, para mim, quer dizer como as outras pessoas em Londres.). Crianças brincavam com seus brinquedos, algumas com cachorros, pessoas passavam com sacolas, cheias de coisas que tinham comprado no comércio. Era um lugar tranquilo, senti falta do barulho da cidade, com seus carros e arranha-céus, no entanto, estava gostando de Riverplace. Talvez, estivesse mesmo precisando ocupar a mente com coisas novas. 

Ao longe, dobrando a rua, avistamos a Sra. Carmem, com várias sacolas na mão. Corremos para ajudá-la, pois as sacolas pareciam estar pesadas, e estavam mesmo.

- Obrigada meninos – falou, ternamente.

- Não tem de quê. – respondemos.

Percebi que Melanie olhou com uma cara estranha para a Sra. Carmem, quando ela falou a palavra “meninos”, pois a sua avó, ou melhor, nossa, só lhe chamava pelo nome. Agora que elas não moravam mais sozinhas, as palavras saiam mais “generalizadas”. Enquanto caminhávamos em direção à casa, fiquei pensando nas mudanças que também iriam acontecer na vida de Melanie e da Sra. Carmem. Espero que elas gostem de conviver conosco, espero também, gostar de morar com elas.

Quando chegamos na casa, fomos direto para a cozinha. Os gatos começavam a andar atrás de nós, provavelmente, atraídos pelo cheiro de comida, imperceptível às nossas narinas.  

- Melanie, - chamou a Sra. Carmem – por favor, pegue a tigela dos animais.

- Só um momento. – abriu uma prateleira e retirou várias tigelas enormes. Percebi, pelos desenhos, que eram para cachorros bem grandes e não para gatos.

Num segundo, a cozinha estava repleta de bichanos. Melanie começou a espalhar as tigelas pelo cômodo, disputando o piso com os felinos. A Sra. Carmem abriu uma sacola enorme e começou a chamar os gatos. Amigavelmente, eles começaram a miar, intensamente, atraídos pelo cheiro de ração que emanava da sacola. Melanie ajudava a avó a colocar a comida nos pratos, pois os gatos avançavam, ferozmente, sobre elas, alguns chegavam a brigar. Sra. Carmem foi abrindo, um por um, os sacos que trouxera e eu já imaginava, se o tal almoço que ela disse que ia comprar, era para nós ou para os gatos. Quando sobrou apenas uma sacola a ser aberta, a Sra. Carmem disse:

- Agora vou preparar o nosso almoço.

Melanie, Michael e eu, ficamos no jardim, atrás da casa, conversando, enquanto o almoço era preparado, onde corria uma brisa gelada, que me deixava arrepiado. Conversamos bastante com Melanie. Tenho certeza que vamos ser grandes amigos, ela é muito simpática. Algumas horas depois, a Sra. Carmem nos chamou para o almoço, quando nos sentamos à mesa, ela nos serviu uma espécie de carne, com um molho avermelhado por cima, cheirava bem e era, visualmente, convidativo. Entretanto, fiquei um pouco apreensivo, pois as únicas vezes que eu comi fora do internato, era para comer sanduíches ou outras besteiras. Observei, por alguns instantes, o meu prato, enquanto Michael dava a sua primeira garfada, seguida por outra, alguns segundos depois, ele parecia ter gostado. Cortei um pedaço da carne, ainda receoso e levei à boca, era leve e tinha um gostinho meio apimentado do molho, parecia com galinha.

- É pato. – falou a Sra. Carmem, observando a minha cara de aprovação. 

Michael já comia vorazmente, como de costume. Nunca entendi, de que maneira ele, que come tanto, sempre esteve em forma. Depois do almoço, Melanie nos serviu uma torta de morango, recheada com doce de leite, era maravilhosa. Acho que, se Michael morasse aqui há alguns dias, ele, certamente, pediria mais um pedaço. Devo confessar, que eu também pediria. A torta era irresistível.

***

Passamos a tarde toda assistindo televisão e contando sobre a nossa vida no internato. Aos poucos, a Sra. Carmem foi se mostrando uma pessoa agradável, bem diferente da primeira impressão que eu tive, que me fazia acreditar que ela era uma pessoa rude e ignorante.

***

Anoiteceu, as luzes do vilarejo misturavam-se a uma névoa, que, segundo Melanie, caía toda noite, permanecendo até o amanhecer. Para o jantar, Melanie nos convidou a fazer cachorros-quentes. Michael, às vezes, assaltava as salsichas e se retirava da cozinha, alegando ir ao banheiro. O descobri, quando ele saiu pela terceira vez e deixou a porta do banheiro aberta. Divertimo-nos, bastante, montando os cachorros-quentes, isso nos ajudou a ficar mais à vontade. Depois de um tempo, ficamos sentados no terraço da casa, o vilarejo estava muito calmo. Poucas pessoas também ficavam sentadas fora de casa, algumas casas já estavam até, com as luzes apagadas.

- Acho que está na hora de vocês dormirem. – avisou a Sra. Carmem. – amanhã, vocês terão o primeiro dia de aula, às 8:00h, no colégio novo, precisam estar preparados.

- Boa noite, avó. – deixei escapar, sem querer. Comecei a sentir meu coração disparando, de tanta adrenalina, sempre acontece, quando fico envergonhado.

- Boa noite, meus netos. – ela falou enquanto eu saia, ligeiramente, tentando me esconder da sua presença.

Michael veio logo atrás de mim, mangando da minha reação, Melanie, logo atrás dele. A Sra. Carmem ficou sentada no terraço, com alguns gatos ao seu redor e um, que tinha pelos bem grandes, dormia, confortavelmente, em seu colo, enquanto ela o ninava. Na sala e nas escadas, os gatos dormiam, pareciam estar desmaiados em cima dos móveis. Estranho, que sempre pensei que os gatos tinham hábitos noturnos, embora nunca tenha tido um. Bem, essa não foi a primeira coisa que me surpreendeu naquele dia, pensei comigo.

- Boa noite. – Melanie falou, antes de entrar na porta ao lado do nosso quarto.

- Boa noite. – Michael respondeu.

Entrei no quarto e corri para a varanda, para ver a rua, que, por sinal, estava opaca, devido a neblina. As luzes dos postes pareciam verdadeiras bolas de fogo, em meio ao dançar da névoa. 

- Hoje, foi um dia cheio de novidades. – comentou Michael, sentado na cama.

Voltei para dentro e comecei a me trocar, vestindo o meu pijama, uma calça e uma blusa.

- Amanhã, vão ter muitas outras. – lembrei a ele.

- Espero que o colégio seja melhor que o internato. – suspirou – sei que é só o começo, contudo, gostei daqui.

Analisei, antes de comentar o que ele falara.

- Tenho que concordar, a Sra. Carmem e Melanie foram bem agradáveis, – confessei. – mas espero que tudo o mais em Riverplace seja.

Michael desligou a luz, que ficava entre as camas, enquanto eu me deitava. O quarto, ainda que eu achasse pouco protegido, não fazia frio, pelo contrário, estava num clima ameno. Fiquei olhando para o teto, observando as manchas que apareciam com a luz fraca que entrava pela porta de vidro. Depois, comecei a refletir sobre tudo o que acontecera nos últimos dias e que fizeram Michael e eu virmos morar em Riverplace. As imagens pareciam um filme que passava na minha mente, começando pelo final. 

Aos poucos, as sombras que eu tanto queria apagar da minha memória e que durante o dia permaneceram ofuscadas diante das novidades, começaram a se expandir. Tudo aconteceu tão rápido e mexeu tanto na minha vida, que fiquei anestesiado por um momento, observando o teto com a mente vazia. Parecia que tinha perdido a memória e não conseguia lembrar onde estava ou o que acontecera. Tudo parecia tão distante, como se eu fosse algo à parte, como alguém que só observa a vida passar. 

Então, o filme resolveu parar na parte, em que a diretora nos contara da morte de nossos pais, tentei fazer, com que o filme continuasse, mas as palavras não saiam da minha mente. Lembrei-me de Michael, correndo da diretoria, com lágrimas no rosto e de quando ele me dizia que nossos pais iriam voltar para nos pegar. Aquela, fora a primeira vez que eu vira Michael chorar, ele sempre se fazia de adulto, tentava ser meu porto seguro. Resolvi, então, tentar descobrir novas imagens no teto (consegui achar outro gato, o qual me distraiu um pouco.), até que o sono chegasse.


Notas Finais


Ansioso para ler logo toda a estória?

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