NOVE
-Você não leva o menor jeito com Clarisse. – Cal disse rindo.
-Ah, qual é? Eu estou tentando deixá-la criativa, vai ajudar, você sabe.
-E como você se tornou tão criativa a ponto de poder passar isso pra frente, senhorita?
-Simples. – Não pude conter a risada. –Sacaneando você e seu irmão.
-Como, é a grande questão, não é? – Ele não deixou de rir junto a mim.
-Ah, você acredita mesmo que nós nunca tocávamos nos seus pratos? – Ele pareceu surpreso. –Aliás, temos o mesmo prato favorito, Cal.
-Eu sempre soube que havia um buraco no meu prato!
-E se pai insistia em dizer que era impressão, e para minha felicidade, mandava preparar mais uma enorme porção.
-Vocês podiam nos matar a qualquer hora, bastava usar veneno. – Ele se tornou sombrio. –Poderiam ter acabo com todos os prateados em um banquete, até o veneno fazer efeito, até os guardas teriam jantado. Por que nunca o fizeram?
-Cal, mesmo que todos os prateados morram, ainda existira a cede pelo poder, não duvido que a Guarda esteja sedenta, e pode haver uma outra guerra para decidir quem contém o poder, essa sempre foi a opinião de quem começava a trabalhar lá. – Olhei em seus olhos. –Entramos lá, querendo a morte de todos vocês, cuspimos em seus copos, comemos de sua comida, vestimos suas roupas, mas é questão de perceber que há coisas piores do que vocês nos causam. Toda humilhação, todo o esforço, nunca foi por vocês, foi por nós mesmos. O mundo é egoísta.
-Todo mundo traí todo mundo.
-É a realidade. O mundo é como seus cadernos de estratégia. Você deve estuda-las.
-É assim que você soube como driblar Maven em Harbor Bay. Não lia só as minhas estratégias, não é?
-Sabe por quê eu sempre odiei mais Maven do que você?
-Não, só lembro que você de dia para a noite começou a arrumar melhor tudo o que era meu. – Explicou rindo.
-Um dia, eu estava arrumando as coisas de Maven, na época era meu preferido, eu estava limpando os livros, um caderno caiu no chão aberto, e quando eu desci do banco para pega-lo, Maven entrou e achou que eu estava bisbilhotando. Eu nunca havia feito isso com ele, mas mesmo assim, ele me queimou, me marcou, como o gado que eu era, não cheguei a odiar ele de imediato, apenas não entendia como o irmão mais novo, o mais frágil, poderia ter feito aquilo comigo, eu tinha quinze anos e fazia um mês que estava servindo. Já no seu caso, eu nunca tive motivos para odiar você, além de que você era o machão-a-estilo-futuro-rei, um merdinha, mas nunca tive nada mais que isso, naquele dia você soube que uma empregada que acabara de chegar fora queimada “acidentalmente”. Você me levou um curandeiro de pele, Cal. Depois disso, comecei a mexer nas coisas de seu irmão, li tudo o que ele escrevia, eu sabia como ele era doente e mesmo assim nunca me pronunciei, significava morte. E lia suas coisas porque você foi piedoso, queria saber como sua mente funcionava e como desejei que as mentes de todos prateados fossem como a sua. Um dia antes do atentado na capital, tive autorização para entrar no quarto de seu pai, descobri que você é um raro acaso e mesmo que seu sangue seja prateado, acho que ainda há um vermelho aí dentro. Talvez você seja como todos nós.
-Sempre calculista. – Disse negando com a cabeça. –Mas ainda sim, incompreensível, podia ter parado de mexer nas minhas coisas.
-Deixe-me ser clara. – Limpei a garganta e olhei em seus olhos. –Eu era fascinada por você, Cal.
-Era? – Não foi a voz de Cal. –Soube que –Conte para alguém interessado no que sai da sua boca podre, Barrow.
Canalha.
Sai do cômodo antes mesmo de haver uma pergunta formada em sua boca. E como sempre, não voltei a circular nos prováveis lugares em que ele estava. Cal disse que as suas estratégias me fizeram mal ao ponto de me fazer circular o Barrow como um ladrão em vigia. Mare não se metia, sabia que o irmão passará de muitos limites. Ada, ria, dizia que não importava quantos livros lesse nunca encontraria algo que fizesse as pessoas esquecerem o que foi dito.
Eu posso faze-las esquecerem, Ada, mas se isso resolvesse o problema da humanidade, algumas pessoas estariam mortas.
E foi só. Ninguém se metia muito, novos sanguenovos estavam chegando como sempre, eu estava ensinando da melhor forma a Clarice, Linux estava pegando o jeito, o inverno estava chegando as pessoas começaram a ficar com frio, os mantimentos roubados de um vilarejo próximo não foram o suficiente.
-Droga, não está funcionando. – o irmão Barrow disse a passar a mão na testa de Luther, uma criança que estava doente.
-Cal, faça Mare ligar o jato, vamos para Harbor Bay. – Cal assentiu e saiu me deixando com Ada, Nanny e o Barrow.
-Quê?! – Ele se levantou e se aproximou. –Você não vai.
Eu explodi, estava com as mãos na camisa do Barrow fazendo-o inclinar-se para frente e me encarar.
-O que diabos você vai fazer Barrow? Tentar me impedir de ir buscar cobertores e suprimentos, remédios, qualquer coisa para que esse garoto não morra? Bom saiba que não vai funcionar. Eu estou vacinada contra ordens de babacas, ordens de pessoas que querem proteger o próprio coração e apenas isso. Eu não sou sua namorada, e se eu morrer apenas lide com isso e siga a sua vida. – então eu o soltei. –Pessoas não são eternas, é melhor que você aprenda a lidar com isso, você não perdeu ninguém na sua vida, mas se eu não me mexer você vai perder, agora ou então mais para frente.
Ele não me seguiu, continuou ali, mas eu continuei. Segui para o Abutre, fomos apenas eu, Cal e Mare. Os dois ficaram no Abutre, poderiam ser reconhecidos, utilizei passagens minúsculas para chegar mais rápido ao centro, mas nem tudo são flores.
-O que diabos aconteceu com você?
Eu larguei os suprimentos no primeiro canto do abutre e eu em outro. Eles entenderão o recado, deram partida no abutre, Mare veio ao meu encontro, eu só percebi que estava mal quando ela disse que primeiros socorros não iriam prestar em nada.
Eu levei dois tiros, estava muito longe, o estrago não foi grande e foi longe do vilarejo, um guarda notou que haviam muitas coisas comigo, gente da ralé não conseguem nada disso. Foi minha entrega, mas eu não me importei, não poderia fazer três viagens, os mercadores são espertos, sabem quando uma estranha está ao redor, farejam, mas raramente nos pegam.
Me mantive acordada, sangrando, gemendo. Sentia dor no corpo inteiro. Os tiros não atingiram nenhum órgão, mas eu sangrava como se houvesse. Cheguei no Furo e me arrastei com os remédios de Luther nas mãos, não espirrou sangue, havia estancado, mas minhas roupas rasgadas pelos tiros e machadas, ah, e o cheiro.
-O que foi que – Mare estava comigo e, por algum motivo que desconheço, acertou um soco bem na cara do irmão, me senti grata, Shade continuou no chão, sem entender, me acompanhou com o olhar. Mare levou Ada e eu para meu quarto, foram feitos os curativos e eu adormeci. Queria não ter de acordar para enfrentar o dia seguinte, mas acordei e o refeitório estava cheio como sempre.
-Você é louca. – Shade me abraçou no meio da cozinha. –Você é louca.
-Eu sou o que eu preciso ser para todos nós.
-Podia ter morrido.
-Não antes de entregar os suprimentos.
-Por que não pegou o suficiente para não ser pega?
-Shade! O suficiente onde eu não seria pega, era um cobertor. Não entende? Eram sacolas com remédios caros, muitos agasalhos e comida. Onde é que uma miserável iria ter dinheiro para isso tudo?
-Você podia –Eu podia ter morrido, mas não vou abandonar minha missão e muito menos as crianças só porque eu podia ter morrido! Cresça! Eles são as minhas crianças, meus irmãos, minha família. Até você pode entender o peso disso.
O resto do dia foi conturbado, as crianças estavam mais dóceis, mas era impossível treinar com a tempestade lá fora, tentamos treinar dentro do refúgio, mas Cal disse que era muito perigoso e eu concordo, mas meu treinamento não envolve poderes, não é mesmo?
Nossas espadas se cruzavam com agilidade e perspicácia, havia melhorado levemente, estava conseguindo manter em média quatro golpes antes dele anunciar minha morte e retornarmos para as posições iniciais.
Como todos ali, minha cede de poder era enorme, queríamos poder controlar quem somos, mas para alguns isso era uma tortura, as crianças se divertiam e aos poucos pararam de chorar por suas famílias, os adolescentes ficam conturbados com qualquer ameaça que pareça surgir e nós adultos nos preocupamos com tudo. Nix, acabou por conta própria, resolveu fazer tuneis de fuga, em lugares estratégicos, tuneis mais fundos nos levariam a canais ou qualquer saída a mais de duzentos metros, o que se torna um bom tempo para escapar, cada quarto tem um caminho, todos tem saídas próximas e levamos todos para conhecerem e decorarem algo sobre elas. A comida estava rendendo e em meus últimos esforços foram feitos em Harbor Bay, trouxe tudo o que podia, meu rosto acabaram de surgir em paredes da vila, a guarda não está lá contente, mas ainda mantém sua fidelidade e o mundo ainda estava inteiro e não pegando fogo, isso é um bom sinal.
O que pode dar errado com missões toscas onde ninguém irá perceber que passamos por ali?
Muita coisa.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.