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História Lendas - Os Equívocos do Tempo (Interativa) - Capítulo IV


Escrita por: SrtaClarisse e Elfialtes

Notas do Autor


É, eu voltei mais uma vez com a minha cara de pau depois de um longo tempo de espera...
Antes tarde do que nunca!

A boa notícia é que desta vez venho acompanhada de uma grande ajuda para a história, a nova co-autora @Undertaker- ! Ela fará parte do desenvolvimento do conteúdo assim como eu e esse capítulo é uma amostra do nosso trabalho juntas. Espero que gostem dela tanto quanto eu.


Agora alguns avisos breves:

1º - Peço desculpas pelo atraso de meses. Minha entrada no 2º ano do E.M. dificultou bastante minhas atividades, mas agora já consegui estabelecer horários. Desejo que saibam que nunca desistirei da história assim.

2º - Aqueles que ainda não nos entregaram a nova versão das fichas, ou nem ao menos estão sabendo do assunto, conversem conosco, pois a padronização dos novos itens no formulário é muito importante. Sabemos que algumas MP's ficam perdidas no limbo do SS, então é só nos avisar pelos comentários ou por mensagens que enviaremos as instruções a vocês novamente.

3º - Nosso prazo de entrega dos capítulos já não é tão flexível, então nós produziremos o capítulo quando for possível, a fim de entregá-lo sem outro grande atraso.

4º - Gostaríamos que dessem seu feedback sincero sobre os capítulos, pois eles nos ajudam a melhorar a qualidade da história.


Somos gratas pela paciência e esperamos que gostem!


Desculpem-nos por quaisquer erros.

Capítulo 5 - Capítulo IV


Boa Leitura!

 

| Capítulo 4 |

"Ladrão? Isso é um ultraje! Eu só estou guardando para o dono!"

 

Feito o costume, uma manhã de outono amanhecia nublada e suspeita. Era a época de descanso de Auris, a Filha da Alvorada, que sempre desfilava pelo céu sozinha com sua carruagem flamejante trazendo os dias ensolarados. Algumas lendas dizem que a jovem estrela havia incumbido a si própria o pesado fardo de caçar e finalmente dar fim às Trevas, e o outono faria o papel de "período de paz" entre os dois fenômenos.

As ruas das regiões pobres e marginalizadas do Império estavam vazias. A neblina baixa deixava-as com uma aparência deserta e abandonada, quase como se os moradores dessas regiões tivessem deixado suas casas. Nem vozes, passos, feirantes, ou o choro de recém-nascidos eram ouvidos, apenas alguns ratos e gatos podiam ser vistos de vez em quando. Todas as casas permaneciam com janelas e portas trancadas guardando os aldeões temerosos na parte de dentro. 

O real motivo de tal reclusão eram as últimas ordens imperiais. Nelas o Imperador ordenava que todos os plebeus das áreas pobres do império, sem exceções, se recolhessem em suas casas por período indeterminado. Deveriam esconder os doentes, grávidas, e crianças com a intenção de protegê-los dos "convidados", cuja descrição do Supremo Líder havia sido "...desconhecidos aproveitadores, ladrões, sequestradores e estupradores que não pensarão duas vezes antes de arrombar as casas e atacar meus cidadãos, pelos quais eu tanto prezo...". 

Os locais estavam desprotegidos, visto que todos os homens haviam sido convocados para o exército a fim de manter a ordem durante a competição. O medo das pessoas enclausuradas era baseado totalmente nas palavras do Imperador para o qual rezas e orações de proteção eram dedicadas pelas mulheres que haviam ficado esperando nas casas cuidando da família.

Mas as verdadeiras intenções eram perversas. As instruções foram apenas dadas aos pobres. Uma medida tomada pelo próprio Rei com a intenção de embelezar seu império aos olhos dos visitantes, a fim de que não vissem a realidade do lugar: miséria, fome, doenças, um verdadeiro antro imundo.

De vez em quando, olhos espreitavam pelos buracos das janelas a fim de checar se havia alguma pessoa estranha por perto. Todavia, o que alguns acabaram vendo foi, na verdade, um animal andando livre e curioso pelas ruas de terra em meio à neblina. Seria apenas mais um rato ou ratazana que passeava por ali, logo, passava despercebido pelos olhos arregalados e temerosos dos plebeus.

Deveras exótico era o animal, longe de ser qualquer tipo de roedor imundo, mas o engano das mentes leigas era compreensível, afinal, há quantas décadas quatis xeretas não eram observados por ali? 

O animal possuía pelagem macia e acinzentada que ia desde o focinho pontudo e curioso até seu fim listrado na cauda comprida, além de descer enegrecido para suas patas ágeis e leves. 

Havia-lhe sido confiada por seu grande mestre, Hanier, uma missão cuja importância fora ressaltada diversas vezes. Além disso, as últimas palavras ditas pelo mestre do pequeno quati ainda ressoavam na mente deste, influenciando suas ações "...Confio a você, meu mais caro amigo, esta significativa missão! Bem que queria cumpri-la eu mesmo, mas não poderei, pois a dor em minhas costas é lacerante e não me permite dar cinco passos sem gritar de dor. Porém, eu sei que você conseguirá buscar o tal precioso formulário! Aquele que pode realizar sonhos!..." Seu mestre disse enquanto balançava um pedaço de papel na mão.

O quati estava determinado e fazia questão de encontrar e entregar ao seu mestre o que ele queria. Porém, temos que concordar, seria mais fácil se quatis entendessem a língua e os objetos humanos. "O que raios é um pergaminho?", o pequeno se perguntava durante o percurso todo, "Outro animal, talvez?".

Sua caminhada em ziguezague vasculhando tudo que via tomara início desde o porto do Império, o "Rainha dos Mares", alguns quilômetros de distância dali. Ele e seu mestre haviam pego o primeiro navio que saia do porto de seu antigo reino às pressas, apenas com a roupa do  corpo. Aparentemente ele havia entrado em guerra com um outro reino vizinho, mas Hanier justificou a partida dos dois com sua velha frase "Um convidado elegante sabe quando se retirar de uma festa". O quati achou justo, aquela guerra não era deles, visto que nunca haviam tido um reino  fixo.

Chegaram àquele império estrangeiro madrugados, famintos e desnorteados, somente com um objetivo em mente, ganhar a competição pela tal coroa. O animal sequer sabia o que era uma coroa, mas Hanier parecia tão esperançoso quando falava do tal torneio que acabou relevando. Já que era bom para seu mestre, seria ótimo para ele também.

Assim, determinado em cumprir sua missão, o exótico animal seguiu por mais algum tempo pelas ruas encardidas. Até agora não tinha visto nada demais, achando tudo o que via indigno de uma só peça de ouro. O que seu mestre via de especial em toda aquela miséria? Ele ao menos sabia? Ele não devia ter se interessado por aquilo.

Abruptamente o animal parou, encerrando seus pensamentos. Bem à sua frente, abandonado no chão de terra batida e extremamente semelhante ao objeto amarelado e mole que seu mestre segurava enquanto falava. Seria aquilo? Não podia ser! Estaria ali atoa? Estaria morto? 

Ficou alguns segundos ainda pensando no que fazer até que se aproximou com cuidado e o cutucou, não obteve resposta alguma. Estaria dormindo? Provável, ainda era cedo. Devia ter parado para descansar ali noite passada.

"Ótimo! Mais fácil do que eu esperava!", pensou o quati "Só preciso levá-lo ao meu mestre enquanto ainda dorme! Ele ficará extremamente feliz quando ver!"

E, na verdade, era somente um pedaço rasgado e sujo de pergaminho usado.

Levantou o objeto com seu focinho, tomando cuidado para não aspirar a poeira, a fim de desenterrá-lo do chão, e abocanhou-o em seguida. Tinha um gosto muito ruim e amargo mas era suportável, só precisava tomar cuidado para não engolir.

Deu meia volta e retornou a caminhar, no entanto, como acharia o caminho de volta? Já não se lembrava de que lado tinha vindo e a neblina dificultava sua visão. Correu para frente e quase bateu na parede de uma casa, correu para os lados em meio às sombras turvas e tropeçou em algumas bacias  de barro dispostas no chão, quebrando-as. Como voltaria para Hanier? Ele com certeza o chamaria de inútil e o abandonaria! Nunca mais veria seu mestre? 

Desandou a correr para qualquer lado esperando chegar a algum lugar, até que encontrou um  beco escuro cujo fundo a luz repudiava, não querendo se estender até lá. Podia enxergar pequenos pontos brilhantes semelhantes às estrelas em diversas partes do beco, em cima, em baixo, perto de si e longe também, mas um era mais vibrante que todos e chamou a atenção do quati. Caminhou em sua direção vidrado por aquele brilho, todavia, enquanto olhava para os lados viu que os outros o seguiam também, parecendo analisar cada um dos passos que dava.

Durante sua parceria com Hanier, percebera que objetos precisos eram os mais brilhantes que já vira. Será que aqueles, então, teriam algum valor? Seriam estrelas de verdade? Poderia levá-las até Hanier para deixá-lo ainda mais orgulhoso consigo. Tomaria muito cuidado para não perdê-las, logo, deveria ser rápido para ninguém o ver ali. Parou e estendeu suas patas para agarrar a primeira à sua frente, cravando suas garras nela.

No instante seguinte, um som agudo e muito alto foi ouvido e quase ensurdeceu o pequeno quati. Sentiu algo arranhar seu focinho que passou arder,e algo o arranhou mais uma vez bem perto de seu olho. Mais alguns sons de mesmo timbre puderam ser ouvidos e todos os outros objetos cintilantes se moveram de onde estavam rapidamente o atacando, arranhando-o, empurrando-o e o mordendo. O que havia acontecido?

Pôs-se a correr dali o mais rápido que podia e ao sair do beco pode reconhecer seus agressores. Gatos maltrapilhos, acabados e nojentos corriam atrás de si tentando alcançá-lo. De onde eles haviam saído? Eram diversos e todos o olhavam com ódio. O quati corria tentando despistá-los e levou muito tempo até que conseguisse. 

Dispararam por diversas ruas, cruzaram esquinas, escalaram muros, passaram por baixo de varais e varandas. Afastaram-se tanto de onde estavam que o local marginalizado de antes fora substituído por um lugar aberto, com belas construções, muito iluminado e limpo. Haviam chegado às Praças Centrais. 

O quati, totalmente alheio à mudança de ares, refugiou-se atrás de estranhos pilares feitos de metal que se mexiam por ali. Quando voltou a encarar os gatos, viu que eles haviam parado e arqueado as costas angustiados, com um olhar medroso fixo. "Apenas uma encarada e eles ficaram com medo?" Por que eu não fiz isso antes?" pensou o quati, vangloriando-se pelo "seu feito".

Depois se afastou das pernas armaduradas dos guardas, os tais "pilares de metal". Eles sim haviam intimidado os gatos com suas lanças, fazendo-os dar meia volta.

O pequeno animal seguiu seu caminho e afastou-se da rua subindo numa calçada. Olhou para as patas fechadas esperando ver sua preciosidade ali. Sentiu como se uma pequena bola molhada e macia quisesse escapar, escorregadia. Abriu as garras, mas ali não havia nada demais, apenas um olho de gato que agora já havia perdido sua cor. 

Ah, fora por causa disso. Bom, não tinha mais valor algum para o quati, que jogou o olho para a rua, perdendo-o de vista. "Que droga, fui enganado!", pensava emburrado, "E agora minhas patas estão sujas do sangue de algum felino sujo! Bom, pelo menos ainda tenho o que meu mestre quer. É o que realmente importa."

Depois percebeu que não havia mais nada entre seus dentes. Deixou sua encomenda cair enquanto fugia, nem tinha percebido.

Triste, sentou na calçada e abaixou a cabeça, falhara em sua missão. O que diria a Hanier quando voltasse? Talvez nem devesse voltar, deveria fugir para esconder sua vergonha. Se não fosse tão ganancioso, com certeza estaria a caminho de seu mestre ago...! Inesperadamente, alguém pisou na calda do quati, fazendo com que a dor o arrancasse de seus planos de fuga. Quem teria sido o infeliz? O quati se levantou a fim de tirar satisfações, iria vingar sua calda. Perseguiu o humano - como sempre, os humanos! -  e pode, assim, analisá-lo melhor.

Ela vestia roupas quase iguais às de Hanier, mas carregava um arco e uma aljava de flechas. Percebeu que a  pessoa apenas seguia em frente como se não soubesse de nada, estava distraída demais parecendo ler alguma coisa comprida estendida em suas mãos, e alguns esbarrões a custaram pela falta de atenção ao andar. O objeto na mão dela tinha alguns desenhos, algumas inscrições estranhas. Era semelhante ao que havia encontrado dormindo no chão de terra batida mais cedo, só que aquele era tão branquinho, feito recém nascido. Devia ter tomado banho a pouco tempo. Seria tão bom se pudesse dar um daquele tipo ao seu mestre...

Olhou ao redor recuperado da dor e percebeu que todos os outros humanos que estavam ali também possuíam aquilo, carregando em mochilas, segurando nas mãos, escondendo em algum lugar, mas exatamente todos tinham um. Oras, se ali haviam tantos, um só  não faria falta, não é?

O quati preparou suas patas e pôs-se a correr para mais próximo das vozes. Percebeu que alguns olhares acompanhavam seus movimentos, desconfiados, mas logo desistiam e desviavam-se. Algumas vozes proferiram reclamações enquanto alguns humanos insinuavam chutes na direção do animal quando este se aproximava de alguma bolsa a fim de xeretá-la, mas em geral, ele não recebia muita atenção. Todos pareciam mais preocupados com outra coisa. 

No entanto, um par de olhos azuis como duas pedras de gelo cobertos pela sombra de um capuz o observavam atentamente enquanto revirava a mochila das pessoas mais desatentas. A dona dos olhos observadores logo recolheu sua mochila ao ver o quati se aproximar e continuou a o acompanhar com os olhos. "Por que essa albina me encara tanto? Perdeu alguma coisa na minha cara?", pensou o quati bravo por ter sua privacidade violada. E no entanto continuava a mexer em mochilas alheias.

Em um mochila estirada no chão, visivelmente carente de limpeza, pertencida a um caçador tolo que não sabia guardar bem seus pertences, o animal conseguiu o que queria, a tal folha bonita com detalhes dourados e uns desenhos e rabiscos estranhos. Seu mestre ficaria tão feliz ao ver aquele bonito... como era mesmo o nome? Nem ao menos conseguia entender o que havia de tão especial ali.

Bom, dessa vez aquele era o pergaminho certo.

O bicho voltou sua atenção à encapuzada, esta que observou a multidão percebendo que ninguém pareceu ter notado o roubo, nem mesmo o dono da mochila, que apenas viu quando foi avisado pela pessoa com quem conversava. Homem e animal se encararam por alguns instantes até que o quati disparou a correr. O homem  abandonou seu lugar na fila e pôs-se a correr atrás do ladrãozinho. 

Roubado por um quati, quem diria, uma situação um tanto cômica para a pessoa com quem o caçador conversava, esta que sem pensar duas vezes pegou o lugar daquele na fila. Não demorou muito para que o animal e o pergaminho sumissem de vista, deixando um caçador bem aborrecido para trás.

O quati correu o quanto pôde seguindo o som dos sinos do porto, agora muito mais altos, anunciando a chegada de novos barcos. Andou despreocupadamente por ali sabendo que a confusão das pessoas descendo dos barcos encobriria sua passagem. De vez em quando, pés perdidos pisavam em sua calda, mas nada que uma mordida bem dada no tornozelo da pessoa não resolvesse.

Relativamente longe da balburdia, numa parte isolada do porto e perto do início de  uma floresta, havia uma caverna de difícil acesso que parecia pertencer a um urso ou outro animal feroz, mas ao invés disso, lá estava na frente da caverna encarando atentamente uma possa d'água, um homem de nome Hanier em um momento íntimo. 

Seu precioso chapéu de couro escuro estava no chão revelando os fios de cabelos negros ligeiramente bagunçados. Usava uma lâmina enferrujada para aparar a sua barba, coisa que futuramente lhe traria coceira no rosto. Estava prestes a terminar a última parte coberta por barba quando um barulho o fez cortar a lateral de seu rosto, fazendo com que dali escorresse  um filete de sangue. Pegou um lenço branco e o colocou sobre a ferida como se não sentisse a ardência e , em seguida, encarou o animal em sua frente. Parecia agitado e abocanhava um pergaminho como se estivesse com medo de perdê-lo. Os olhos do homem brilharam:

- Ah, Curanti, meu caro amigo, se não viesse animado para me trazer tal coisa eu estaria zangado com você. – Disse Hanier abrindo um sorriso largo para o ajudante e pegando o pergaminho em seguida. 

Abriu-o para conferir se o quati havia trazido o que fora pedido e abriu um sorriso ainda mais largo e contente, jogando um pedaço grande de pão para seu animal que o agarrou e começou a comer desesperadamente. 

- Agora, só precisamos fazer alguns ajustes para que fique perfeito. Curanti, pegue minha pena, por favor. - Hanier pediu ao quati enquanto se sentava numa pedra e apoiava o pergaminho em seu joelho.

O animal largou de seu pedaço de pão, relutante, para pegar uma pequena pena branca dentro de um vidrinho com tinta negra que estava dentro da bolsa de seu mestre. Carregou-a na boca até entregá-la a ele, depois voltou a se deliciar com o pedaço de pão.

- Vejamos... Nome! - Hanier começou a ler o pergaminho - Haber Saubertrano? Que tipo de pessoa bota um nome desses no próprio filho? Devem ser anos e anos de ódio acumulado no coração. - Disse gesticulando para o quati, que se preocupava mais em não perder nenhuma migalha sequer de seu lanche. 

- Vamos embelezar essa ficha com um nome melhor...- disse enquanto riscava o nome original e escrevia "Hanier Soscreti" no lugar - Pronto, muito melhor. Passemos para "idade". O trouxa que perdeu o pergaminho só tinha 20 anos? Isso explica a burrice. Troquemos, então, para 36. 

Até ali, o pequeno quati já havia terminado de comer seu café da manhã atrasado. Ele escalou as pernas e as costas de Hanier até alcançar seus ombros, nos quais se sentou a passou a observar as ações de seu mestre:

- Não acredito nisso, olhe só o que esse cara escreveu: "...Gosto de admirar meu reflexo, pois sei que sou muito lindo. Beber até cair, jogos de azar e encantar garotas..." - dizia enquanto olhava indignado para Curanti - Por isso que eu sempre digo: gosto não se discute, se lamenta. Você não podia ter pego a ficha de alguém menos babaca? Precisarei de horas para deixar esse pergaminho mais descente! - reclamou.

E assim os dois ficaram até o entardecer, quando finalmente acabaram de "preencher corretamente" o formulário de Hanier. Cansados, resolveram se deitar cedo naquele dia, pois chegar ali havia dado trabalho, visto que precisaram se esconder o tempo todo dos marinheiros e dos guardas do porto, por serem clandestinos. Por causa disso, suas viagens sempre saiam mais baratas, ou de graça por assim dizer. Agora possuíam dinheiro para a comida do dia seguinte, que estava mais próximo à medida que os dois caiam no sono dentro da caverna, cobertos pelo casaco de Hanier.

 

 *                *   
         *                *                   *

 

     A Floresta era escura e úmida, cheia de sombras. Os coelhos se escondiam com seus filhotes enquanto os predadores caçavam sorrateiramente o seu jantar. A sábia coruja, vigilante camuflada do alto de um galho, assistia atentamente o episódio da noite sombria e silenciosa, como era de costume. Observando os espetáculos noturnos ignorados por muitos.

Os seus enormes olhos percebiam a mudez daquela específica treva. Não ouvia o som da serpente se rastejando sorrateira a procura de alguma presa, e nem os sons  do bater das asas dos morcegos, patrulheiros noturnos. Tudo o que a coruja ouvia eram os passos de três forasteiros que caminhavam na estrada de terra. 

Ironicamente uma caçadora da noite, a pantera, exitava em atacar as três pessoas. Talvez fosse o cheiro feroz e dominante esbanjado pela mulher de profundos olhos azuis, que provocava certo receio nela, impedindo-a de atacar para sua própria segurança. Como um humano teria tal odor selvagem?  

Um único cruzar de olhares fora necessário para manter o felino atento, em cima de sua árvore, enquanto via sua comida caminhar para longe. A pantera tinha certeza de que o casal mais a frente estava totalmente alheio à sua presença ali. Uma situação perfeita para  acabar com eles e conseguir seu jantar num simples pulo. Não sentiriam dor, seria limpo. O grande felino passou a língua em seus beiços, estava com fome.  

Aquela mulher... Seu odor denunciava algo escondido pelos cabelos negros como as sombras e pele pálida feito as estrelas. Quase podia enxergar pelos olhos azuis e aquela espécie de armadura humana azul que vestia não lhe enganava. Havia algo ali, sob um cobertor sombrio...

A moça que roubara tanto tempo de observação e ponderação de seus predadores era  quieta, diferentemente do casal que andava à sua frente conversando animadamente sobre algum assunto aleatório. Ela mantinha vigilância concentrada e séria, atenta aos arredores.

Um pouco mais adiante no caminho de terra, o som de vozes cessou. Os passos pararam e se voltaram para trás:

- Nina, está ouvindo? Por que sempre se mantém tão silenciosa? É como se nem nos conhecesse! Interaja conosco, nós não mordemos e você sabe disso. –  A mulher loira de olhos verdes a encarou num tom animado, já havia conquistado um pouco de  intimidade com a moça a ponto de insistir em chamar Alonina por seu apelido, mesmo que esta se aborrecesse –  A Noite está silenciosa e os animais descansam. Não precisa manter vigilância agora. Além do mais, está tão chato aqui, já estamos caminhando a horas. Não há porque nos mantermos tão calados.

- Sinto muito, estava perdida em meus pensamentos. - Alonina parou observando o local - O que acham de armarmos acampamento aqui? Devem estar cansados e com fome. - a moça depositou sua mochila no chão abrindo o fecho em seguida e retirando dali uma manta - Sobre o que conversávamos mesmo?

- Bom, eu não sei sobre você, mas eu e Tharin estamos organizando nossos planos para quando nos tornarmos Imperador e Imperatriz. - A loira disse enquanto abraçava o ombro de seu noivo, Tharin.

- Não seja tão otimista, Florence. Você sabe que os deuses punem aqueles que são pretensiosos. Além do mais, nós também iremos competir com Nina, uma grande lutadora e uma imperatriz em potencial. – O namorado respondeu envolvendo a moça com os braços –  E você, o que pretende fazer caso se torne a imperatriz? - Tharin perguntou, voltando sua atenção à mulher de fios negros.

- Sinceramente, eu não sei o que faria. Na verdade, acho que a maioria das pessoas que se inscreveram para “aquilo”, não sabem o que irão fazer se tiverem todo este poder nas mãos. Muitos pensam apenas nos recursos. Bom, eu não me importaria nem um pouco em ter todas aquelas moedas de ouro disponíveis para meu deleite.

- Ninguém sequer sabe o que vai fazer com uma vida comum. – Respondeu Florence – Mas eu só sei que quando me tornar imperatriz eu vou realizar meu sonho de provar todas as comidas do mundo! - a jovem disse retirando seu cajado das costas e o depositando ao lado de uma árvore.

- Então você será uma tirana gorda. – Respondeu Tharin num tom irônico. 

- Eu serei uma rainha rica e farei quantos procedimentos mágicos puder para alterar minha aparência. –  Respondeu Florence cheia de orgulho de si mesma, fazendo Alonina soltar uma gargalhada fraca, mas sincera. 

Aquele diálogo era desinteressante e tosco para a sábia coruja, apenas alguns adolescentes em corpos adultos compartilhando seus sonhos otimistas, aquilo era bastante costumeiro. Pensou em voar ao norte para encontrar um entretenimento visual de seu interesse, mas continuou a observar mais intensamente o grupo quando viu uma criança de aparentemente sete anos de idade correr até os três pedindo por ajuda. A garotinha de rosto inocente estava ofegante. Sentiu que finalmente algo interessante iria acontecer.

- O que houve com você, menina? – Florence se ajoelhou ao chão, pasma, para olhar nos olhos da garotinha aterrorizada. Passou os dedos pelo rosto da garota tentando limpar um pouco das lágrimas.

- Meus pais! Nós estávamos viajando por esta estrada e sofremos um acidente, nossa carroça capotou e apenas eu consegui escapar! - a garota soluça em meio às palavras - Por favor, nos ajudem! Meus pais ainda estão em baixo da carroça! – A criança pedia se agarrando aos braços da mulher. 

- Não se preocupe, vamos ajudar sua mamãe e o seu papai. – Florence disse tentando confortar a criança, depositando a cabeça dela em seu ombro enquanto a erguia no colo. Entretanto, antes que pudesse pedir a indicação do caminho para a menininha,  sentiu uma mão tocar seu ombro.

- Espere, Florence.  – Alonina disse séria, quase sussurrando – Você não acha muito esquisito um casal estar viajando com uma criança tão pequena a esta hora...  Ainda mais numa floresta fechada e escura como esta à noite? – disse encarando desconfiadamente a menina que chorava de olhos fechados, enquanto Tharin ficou sem reação. 

- Desculpe-me, Alonina, mas eu nunca me perdoaria se soubesse que deixei uma criança órfã. 

- Sim, eu sei, mas você não acha estranho? A garota não tem sequer um arranhão e ... - Alonina foi interrompida pela garotinha que chorava cada vez mais e mais alto, quase como se quisesse abafar as palavras da mulher.

- Graças aos deuses, ela não se machucou! - Florence retirou violentamente a mão de Alonina de seu ombro, mostrando um traço de caráter que Nina ainda não havia conhecido. –  Não a obrigamos a nos acompanhar. Fique se quiser, porém eu e Tharin iremos. - disse olhando-a com seu com um semblante sério - Mocinha, nos leve até o acidente, por favor – Florence depositou a garotinha no chão e esta começou a correr. Depois, seguiu-a arrastando seu namorado pelo braço e deixando Alonina para trás.

Alonina estava receosa, não queria arriscar-se, mas tão pouco gostaria que pessoas tão boas como seus amigos fossem feridos por alguém mal intencionado capaz de usar uma criança para fragilizar suas vítimas. Mas e se estivesse enganada? E se os pais da garotinha estivessem mesmo em perigo? 

Após alguns instantes parada para tomar uma decisão, resolveu seguir os amigos que já estavam em uma certa distância. Demorou um pouco para alcançá-los, mas quando os encontrou no lugar do suposto acidente não havia uma carroça derrubada e muito menos pessoas feridas, somente três homens com facas apontadas para os pescoços do casal exigindo seus pertences. Um dos homens havia imobilizado Florence e agora passava a mão pelo seu corpo, enquanto cheirava seu cabelo.

Alonina conseguiu se esconder atrás de uma árvore antes que os bandidos a vissem. Sua respiração se tornou ofegante, precisava controlá-la para não chamar a atenção. Observou a cena escondida, planejando algo para salvá-los. Enquanto isso, viu a menina chorona vasculhando as bolsas de seus amigos. Aquela vadiazinha falsa! Voltou sua atenção para o casal. Florence havia começado a gritar desesperada, aqueles homens haviam ido longe demais. Tharin tentou defendê-la, mas foi segurado contra uma árvore e torturado com socos.

Analisou a situação. Se subisse num galho poderia pular em cima do primeiro homem e cravar sua foice no pescoço do outro. Libertaria Tharin e este a ajudaria com o bandido que segurava Florence. Então partiria para... Sentiu algo frio abaixo de seu queixo. Uma lâmina fora apertada contra seu pescoço, pegou-a de surpresa. 

- Muha, encontrei outra. – Uma voz feminina ecoou por trás de seus ouvidos e sentiu seu corpo ser empurrado contra o chão e em seguida seus braços serem pressionados para trás e amarrados fortemente com uma corda áspera.

- Pensei que nosso alvo seria um sacerdote ingênuo, mas realmente, três pessoas adultas acreditando mesmo nesta história de acidente na estrada, tsc. –  O líder dos assaltantes disse afiando sua faca encostado numa árvore oculta dali. Haviam, na verdade, seis assaltantes contando com a criança –  Seus amigos não têm nada de valor, é bom que você tenha. – Disse vasculhando a mochila de Alonina – Apenas mais daqueles papéis chiques da inscrição e suprimentos, nada de bens pessoais como joias  ou sequer roupas de um bom tecido? Vocês viajantes são uns inúteis! – Violentamente o homem bateu contra o rosto de Tharin para descontar a sua raiva, fazendo a namorada deste gritar ainda mais – Cale a boca, vadia estúpida! – Disse desta vez dando um soco contra o maxilar de Florence,  a fazendo cuspir sangue e conter o choro – Se não servem sequer para benefício, seus corpos serão eficientes. – O Homem disse estalando os dedos  e dois de seus homens começaram a tentar retirar as roupas de Florence, enquanto Tharin gritava implorando por misericórdia. 

- Não, por favor não! – Gritava, enquanto recebia apenas machucados e insultos dos outros membros. 

- Eu usarei esta aqui, ela parece ser selvagem! Diga-me querida, você gosta por trás e com força, não é? – O homem disse levantando e passando a mão pelo rosto de Alonina que estava com a cabeça baixa. Fez um caminho percorrendo da região dos olhos até o maxilar, e estranhou ao perceber que ao chegar na bochecha esquerda uma textura de pelugem crescia sob a pele da mulher, e em seguida sentiu a dor de uma mordida em seu braço que lhe arrancou a mão inteira – AAH!! – Gritou ao ter o membro arrancado. 

Nina percebera que a situação pedia mais do que a ação de sua foice. A vida de seus amigos estava em jogo e ela já havia feito sua escolha sem pensar duas vezes. Agora estava diferente, parecia mais alta enquanto era envolvida pelas sombras numa transformação horrenda. Em poucos segundos a imagem fria e branca da moça fora substituída pela selvageria do lobo e apenas seus olhos azuis podiam se distinguir das trevas. A corda foi arrebentada feito um frágil fio de cedo por aquele lobo enorme, que agora estava totalmente livre e com sede de sangue.

Os outros ladrões ficaram assustados com a cena. O que diabos era aquilo?! 

- O que estão esperando, seus inúteis? Ataquem-na! - gritou o chefe dos assaltantes.

Alonina pulou em cima dos dois primeiros atrevidos com facilidade, não foram páreos para suas mordidas destruidoras de carne e ossos e suas patas pesadas. Embora não fossem ladrões tão habilidosos, ainda a feriam gravemente com suas facas enferrujadas e suas flechas. 

Avançou em cima do terceiro com a bocarra aberta afim de perfurar seus olhos. Fechou a mandíbula em seu rosto com ódio e começou a balançar a cabeça até que algo se soltasse. O ladrão, desesperado, debatia-se embaixo do enorme corpo do lobo negro tentando afastá-lo de si, mas as garras do animal haviam se agarrado ao seu peito. Com um "crek", o pescoço do assaltante finalmente foi quebrado e parte de seu rosto arrancado assim que Alonina desprendeu suas presas.  

Uma flecha acertou suas costas, mas a ponta foi barrada por seus pelos grossos. A mulher olhou na direção da qual a flecha havia sido disparada e observou com um olhar assassino a mulher que havia a amarrado. Encararam-se por alguns instantes, o suficiente para que o líder dos bandidos tentasse a acertar por trás enquanto estava distraída. O homem levantou e cravou sua espada no pescoço do lobo rapidamente, mas o corpo lupino se desfez em sombras assim como sua lâmina. Estava ali há um segundo atrás! Como foi que... Espere, para onde ela foi?!

Um grito agudo foi ouvido de cima de uma árvore. Alonina havia aparecido atrás  da mulher que atirava as flechas e abocanhado feroz seu pescoço. Ela sacudiu o corpo da mulher do alto da árvore até que ela parasse de gritar e, após, lançou o corpo na direção do líder, derrubando-o no chão com um baque surdo. O grande lobo pulou da árvore e se aproximou do homem. Pela primeira vez ele demonstrou uma expressão de choque ao encarar os fundos olhos azuis da besta. Nina não precisou de nada mais a não ser uma patada forte na cabeça do homem.

Todavia, ainda não acabara. Voltou sua atenção para trás, para seu último alvo, a garotinha. Ela jazia imóvel um pouco afastada da última cena. Sustentava um olhar horrorizado enquanto segurava uma pequena adaga na direção da besta. Nina já não possuía o raciocínio de um humano. Poderia poupá-la, seus amigos estavam bem, porém, o pesado rancor de tê-los deixado seguirem-na consumia a fera, alimentando seu instinto de vingança.

Imóvel, firmou seu olhar no da garota enquanto sumia nas sombras. Apareceu, finalmente, atrás dela empurrando-a com as patas dianteiras para o chão e mordendo sua nuca logo após. 

Sentia-se saciada por ter "vingado" seus amigos.

Estava muito machucada e coberta por sangue, que não se sabia se a maioria era dela ou daqueles que matou, e, ao invés de um olhar de agradecimento de Florence e Tharin, recebia um expressão de medo e horror dos companheiros, mas foi os ajudar mesmo assim. 

Ainda na sua forma lobo, usou os dentes ensanguentados e que ainda tinham pedaços de carne humana para cortar as cordas. O odor de seu hálito era de uma carne podre e já morta junto ao sangue quente. Enquanto desamarrava a moça, percebeu uma dor em suas costas, uma faca havia atravessado sua pele, mais fundo do que a daqueles ladrões. Pelo instinto estabelecido pela forma de lobo, Alonina virou-se automaticamente para cravar os caninos em seu agressor. Foi então que viu quem havia a ferido. A faca fora manejada por Tharin, que dizia ser seu amigo. 

Um grito de dor veio após a mordida no pulso do homem e Nina, paralisada com o que havia feito, recebeu um chute certeiro de Florence direto no olho, fazendo com que abrisse as presas. Alonina caiu, desacordada.

- Pelos Deuses! - Florence dizia entre soluços e lágrimas - Tharin Vamos embora daqui! Eu sinto muito! Sinto muito! - disse desesperada enquanto tentava estancar o sangue de seu namorado com um pedaço do tecido de seu vestido - Se eu soubesse que ela era um monstro, jamais teria chamado para viajar conosco. – Florence ajudou o namorado a se levantar e correu dali junto dele com as poucas forças que tinham. 

Alonina ficou ali, deitada no chão da estrada ainda em sua forma de lobo. Não possuía forças para levantar ou se transformar de volta.  A Faca ainda estava cravada em suas costas, fazendo da hemorragia mais rápida e sua morte mais dolorosa. 

Morreria assim? Apunhalada pelos próprios “amigos” aos quais via se distanciar cada vez mais, sem sequer olhar para trás. Não conseguia pensar em nada, apenas no quanto o seu sangue de lobo pintava o chão de terra com a cor do vermelho da traição. O quanto ele era frio... Ela morreria ali, sozinha e com frio. Bom, não sozinha, pois a coruja a observava com seus grandes olhos vendo sua vida se esvair com o líquido escarlate. A floresta silenciosa tomou novamente o som da natureza, o som do piado da coruja, que ecoava uma canção envolvida pela noite. E com o silêncio ecoava a canção da loba sem alcateia.


Notas Finais


Aceitamos críticas!



Boa semana!


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