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História Lendas - Os Equívocos do Tempo (Interativa) - Capítulo VI (Parte I de II)


Escrita por: SrtaClarisse e Elfialtes

Notas do Autor


Realmente sinto muito por não ter tanto tempo para me dedicar a vocês, mas sou muito grata por acompanharem mesmo com todos os meus sumiços!

*** A música de ambientação estará nas notas finais. Sugiro que leia o capítulo ouvindo-a para uma melhor experiência. (serve para as duas partes)



Sou grata pela paciência e espero que gostem!

Desculpem-me por quaisquer erros.

Capítulo 7 - Capítulo VI (Parte I de II)


Boa Leitura!

 

| Capítulo 6 |
              "Todos possuem fraquezas."

 

 

James acordou num sobressalto, feito alguém que havia escapado de um pesadelo torturante. Inspirou o ar com força como se não respirasse há dias e tentou se acalmar. Sentia-se estranhamente cansado, seu corpo doía de cima a baixo, sua visão estava turva e sua cabeça pulsava como se estivesse sofrendo o ataque de uma terrível ressaca. Seu humor se igualava ao seu bafo nesse momento, pois ambos estavam amargos.

Levantou o corpo com dificuldade e colocou a mão na cabeça, encontrava-se atordoado demais para se localizar ou apenas se mexer direito, mas acreditava que isso se devia por ter dormido de mau jeito na terrível cama da estalagem na qual havia se hospedado. Aquilo não podia nem ser chamado de cama, pois parecia ser feita de pedra.

Ouvia um zumbido em suas orelhas. Julgava que a barulheira na taverna tivesse acabado com sua audição, mas agora não conseguia ouvir direito nada além do som de gotas, que eram suficientes para lhe causar dor de cabeça. 

Estranho, não se lembrava de ter bebido e estava incerto de como havia ido parar no quarto. Olhando pela janela, viu que  estava de noite, a chuva já havia parado, mas parecia que logo haveria mais, porque o ar estava úmido e uma brisa fria fazia o rapaz ter seu corpo percorrido por calafrios.

Pensar em chuva o lembrara do quanto estava com sede, sua boca parecia um deserto de tão seca. Levantou-se da cama e se dirigiu, tonto, até a bacia d'água que pingava copiosamente. Mergulhou a mão na água que já estava ali  e levou-a repetidas vezes até a boca. Contudo, cuspiu-a violentamente logo em seguida, por reconhecer o delicioso gosto de água suja com limo.

- Argh! - limpou a boca com o braço - Mas que droga! 

Subitamente, o som de crepitar do fogo se iniciou acompanhado da luz de uma chama que dançava com sopro frio do vento entrando pela janela. Alguém adentrou o quarto de James com uma tocha acesa.

- O que é isso? Quem te deixou invadir meu quarto assim?

James dizia com a mão na frente de seu rosto por causa da luz da tocha. Ainda não conseguia enxergar nitidamente, porém distinguiu uma figura feminina entre as sombras que a tocha fazia.

- Ah, você deve ser uma das escravas que trabalham aqui, não é? Por acaso foi você quem esqueceu de trocar minha água e deixou aparecer limo? Eu exijo falar com o seu dono agora! Quero trocar aquele pedaço de pedra por uma cama descente.

O rapaz falava com a mulher de uma forma raivosa e ignorante, mas ela não parecia entender, pois tudo o que fez após ouvir as reclamações dele foi juntar as sobrancelhas formando uma expressão confusa.

- O que está esperando?  Ande! Vá chamar o dono dessa estalagem!

Finalmente a mulher pareceu entender e com um semblante esclarecido disse:

- Oh, sinto muito  pelo transtorno. Porém, não acho ser necessário chamar meu mestre até aqui. - a mulher pigarreou como se tentasse deixar sua voz num tom doce - Suplico que me perdoe e lhe ofereço um banho refrescante com água limpa que acabei de buscar como forma de recompensa. É por conta da casa! - Ela disse colocando a tocha na parede e mostrando uma jarra d'água enorme que trazia nas mãos.

- Sim, um banho seria ótimo agora, mas não pense que isso me fará esquecer do seu trabalho desleix-

James fora interrompido por um banho de água gelada.

- Mas que merd-

E mais uma leva d'água foi jogada sobre ele o impedindo de reclamar.

- Pelos Deuses, que gelo! - ele praguejou sacudindo os braços encharcados d'água.

Aquela água gélida, mais fria que o coração de uma elfa, havia despertado nele todos os sentidos que antes estavam bagunçados. Assim que tirou os cabelos brancos molhados da frente dos olhos, já conseguia ver tudo melhor e sua tontura havia sumido. 

Assustou-se ao olhar a sua volta e não ver os móveis costumeiros e nem o quarto de uma estalagem. Na verdade, não havia móvel algum ali, para onde tudo fora? O rapaz percebera que realmente havia dormido no chão de pedra e além disso, havia bebido a "água" das poças formadas a partir de algo suspeito que pingava do teto. As paredes eram apenas de pedra e sujeira pura, com uma janela solitária pela qual a luz da lua passava por entre suas barras.

No lugar da porta por onde a mulher havia entrado estava uma grade de barras de ferro  enferrujadas as quais iam do chão até o teto e aparentavam ser bem pesadas. Aquilo era uma cela? Como havia ido parar lá? 

A desconhecida estava parada na entrada observando cada um de seus movimentos e reações atentamente. Pelo menos ela não havia desaparecido também, porém o rapaz não sabia dizer se isso era bom ou ruim.

- Ainda acha que está numa estalagem? Ou quer outro banho? É por conta da casa. - A mulher disse com o jarro na mão e esperou uma resposta do garoto, porém, apenas o semblante confuso e assustado do rapaz foi o suficiente - Vou interpretar essa sua cara como um não. 

Alguns segundos se passaram e James continuou a encarando confuso até que pudesse organizar seus pensamentos e formular uma frase:

- E-eu realmente achei  que estivesse num quarto... Sinto muito pela forma como a tratei, eu fui um idiota. Mas não entendo. Como vim parar aqui? Sinto como se minha cabeça fosse explodir e não sinto algumas partes do meu corpo. - pressionou a cabeça e apertou os olhos enquanto dizia como se sentisse muita dor.

- Isso do que você reclama são resquícios da noite intensa que você teve há um tempo atrás, fora os efeitos colaterais das poções e unguentos que os sacerdotes deram a você. Às vezes eles podem causar alucinações e perda de memória. - a mulher disse depositando o vaso com água no chão, cruzando os braços e ajeitando a postura logo após - Aquelas coisas são mais fortes que um porrete e te mantiveram dormindo até agora. Porém, em poucos dias estará totalmente recuperado.

- Por que eu precisaria de unguentos ou poções? Sofri algum acidente grave? Só isso explicaria meu estado.

- Você realmente não se lembra... - a desconhecida parecia um pouco surpresa - Não esperava por isso. Uma surra daquelas não se esquece tão facilmente.

- Desculpa, mas não faço ideia alguma do que você está falando. Me prenderam aqui injustamente. Devem ter me confundido com alguém. - James levantou-se com dificuldade - Sinto em dizer que não poderei contribuir para achar quem vocês estão procurando, pois não vi, ouvi e nem participei de nada. Agora, se me der licença, eu tenho mais o que fazer.

A mulher observou o jeito desajeitado do garoto se levantar.

- Eu não me moveria tanto se estivesse ferrada assim como você. Dê uma boa olhada em si mesmo, pensa que tudo isso foi causado por um acidente?

Finalmente, James olhou para seu corpo e percebeu que seu braço direito estava imobilizado com panos e um instrumento de madeira.

Sua cabeça estava enfaixada assim como suas pernas.  Não vestia suas próprias roupas e não via nenhuma de suas armas por perto, além de estar com um odor forte de ervas. Olhando melhor agora, pôde ver que as marcas por seu corpo não eram assim tão simples. 

Misturas variadas de tons roxeados e vermelhos se misturavam por seus membros. Marcas de cortes de perfurações também eram encontrados com facilidade, mas não havia nada muito grave naquilo tudo. Porém, ao seguir olhando para seu peito viu que veias negras começavam a aparecer e percorriam todo o seu braço direito. Tocá-las era angustiante, pois conseguia senti-las pulsando de uma maneira dolorosa. 

Aquilo não era normal. O que teria conseguido causar tal fenômeno monstruoso?  

As lembranças invadiram sua mente com um choque violento, quase como se tivesse sido acertado por um raio na cabeça. Não apenas lembrou-se da estalagem como reviveu a briga, a explosão e o fogo tocando o céu numa fração de segundos. Seu coração se acelerou e ele perdeu o equilíbrio, sendo aparado pela mulher que o sentou cuidadosamente no chão.

James sabia que não precisava se explicar, visto que a desconhecida parecia saber tanto quanto, ou até mesmo mais do que ele sobre o que acontecera na taverna. Ela o observava calmamente, de uma maneira intimidadora.

- Digamos que esse tal de milagre, do qual os sacerdotes tanto falam, possa existir, afinal. Era pra você estar morto. Contudo, os deuses não queriam ver sua cara tão cedo. -  ela disse, retomando a atenção do jovem - Conseguimos até salvar seu braço e suas pernas e, mesmo que essa coisa negra não tenha sumido, - ela apontou com o queixo para o peito de James - diminuiu um pouco.

Ele engoliu em seco. Estava com medo do que pudesse sair daquela conversa, visto que estava numa posição desagradável. Sentia-se um estúpido por se deixar levar por aquela maldita briga. Deveria ter apenas ignorado aqueles idiotas e ido procurar outra estalagem. Mas não! Tinha que virar um imbecil sempre que ficava com raiva. Parabéns, James.

Espantou tais pensamentos, não era hora para se arrepender do que já estava feito. Começou a procurar as palavras cuidadosamente com medo de o mínimo que fosse piorar sua situação:

- ... Por quanto tempo fiquei apagado?

- Oito meses.

- O quê?! - o rapaz se espantou.

- Ah, que cabeça a minha. - a mulher sorriu  colocando a mão na testa e fazendo uma expressão como se tivesse se enganado - Foram apenas alguns dias. - parecia estar se divertindo com aquilo.

- Hm... - o garoto suspirou aliviado e coçou a nuca com a cabeça baixa - A propósito, meu nome é James. Quem é você? Por acaso veio me ajudar? - ele levantou a cabeça esperançoso.

- Muito prazer, James. - ela disse de maneira educada, mas parecia que já sabia daquilo - Meu nome é Nercy Perikratus, matriarca do clã Sombra da Lâmina, responsável por todos os ladinos desse império e também pela segurança do reino. Isso significa que você teve o azar de estar sob minha guarda por causa de todos os delitos que cometeu.

- Delitos? Não pode estar falando sério. Você está me dizendo que me prenderam por eu ter agido em legítima defesa? Me culpam por tudo aquilo sozinho? Não era o único lá! Não foi culpa minha! - disse gesticulando.

- Devido ao fato de que não haviam outros suspeitos vivos e nem testemunhas no local, nós o realocamos aqui para que cumprisse suas punições. 

Nercy retirou um pequeno papel enrolado do bolso e passou a lê-lo, ignorando a expressão estupefata de James:

- Entre todos os delitos pelos quais você responderá em julgamento constam: assassinato de quatro pessoas, deixar outras dez feridas, início de incêndio, destruição de bem particular e baderna em local público. - Após a enumeração dos delitos a mulher guardou o papel - Isso resulta em alguns anos de trabalho escravo e reclusão nas masmorras até o fim da pena.

- Eu não acredito nisso... - ele sussurrou a si mesmo, esfregando as mãos no rosto com força e apertando os olhos. - Será que você poderia jogar mais daquela água fria em mim até me acordar de verdade? Isso não pode ser real! Continua sendo apenas um pesadelo! Não pode ser! - o garoto disse desesperado.

James estava em choque, não conseguia reagir àquilo. Não podia ao menos crer que estava acontecendo. Maldita a hora na qual decidira se inscrever naquela competição! Maldita a hora em que pensou ter alguma chance de se redimir em sua vida! 

A matriarca, de cima de sua postura ereta, continuava encarando o garoto que se afundava em suas mãos e joelhos tentando digerir a situação. Sim, ela sabia muito bem como tirar proveito daquilo. Durante todos esses anos, uma das maiores habilidades que desenvolvera foi a de se aproveitar do desespero das pessoas, do menor que fosse. 

Não há situação melhor para manipulá-las do que quando estão vulneráveis, frágeis, desoladas. Era tudo que precisava para atingir suas antigas metas e foi tudo do que precisou para criar e alimentar seu clã desde o começo, prometendo redenção, uma casa e uma família para quem precisasse de ajuda. A única coisa que ela pedia em troca era um simples acordo entre as duas partes. Um selamento de sangue, junto de um juramento de lealdade que os marcaria para sempre.

Desprezando as preocupações e sombras do jovem, Nercy esperava pacientemente pelo pedido. Qual pedido? Uma desesperado e aflita súplica por socorro. Eles sempre a faziam, pois era a única saída que lhes restava quando a vida se tornava um fardo pesado demais. E a ladina, boa como era, aceitava-os de braços abertos, sob algumas condições.

- ... - James procurava voz para dizer - ... Há algo que eu possa fazer? - ele se ajoelhou e encarou a mulher - Qualquer coisa que me livre disso, por favor! Me de uma segunda chance...

A matriarca sorriu de canto. Nunca falhava. Ela, então se agachou pondo um joelho no chão e pôs-se a falar:

- Eu já estive na mesma posição em que você está agora... Porém, custaram em me dar uma chance. Como eu disse antes, meu clã é uma família de ladinos que cresce cada vez mais com membros novos todos os dias. Tudo o que eu garanto a você são três coisas: redenção, lar e dignidade. Caso junte-se a nós, terá todos os erros perdoados e estará salvo de qualquer punição. Além disso, - a ladina mexeu dentro de seu casaco retirando de lá o formulário de inscrição na competição de James - como eu e você temos alguns interesses em comum, terá todo o meu apoio para ganhar esse torneio e herdar o trono.

James arregalou os olhos, aquilo parecia ter caído dos céus. Pela primeira vez os Deuses pareciam tê-lo escutado.

- Eu aceito! - disse prontamente - Eu prometo que honrarei o nome do clã e farei de tudo para aumentar sua fama!

- Hm... Muito bem. Só há uma pequena coisa que precisa fazer antes de ser aceito - Nercy desembainhou sua adaga e estendeu para

James - Há um pacto de sangue que todos os novos membros devem fazer. Mesma família, mesmo sangue.

A ladina tirou a luva da mão esquerda e passou o fio da lâmina na palma fazendo com que a pele se abrisse num corte e um fio de sangue começasse a sair. Após, estendeu a adaga para ele, mostrando que deveria fazer o mesmo.

O rapaz observou aquela adaga simples, de lâmina escura e um pouco curva. Passaria-se por uma adaga comum e sem nada de extraordinário se não fosse por uma energia de cor estranha que era irradiada pela lâmina. Parecia ter sido encantada com um feitiço poderoso.

Por um momento o rapaz se sentiu intimidado, aquilo não parecia ser certo, porém não via nada além dos benefícios que receberia com aquele acordo.

- O que foi? Vai dar pra trás? - ela interrompeu seus pensamentos apressando a decisão do rapaz.

Já decidido e ignorando tais dúvidas, James estendeu a mão. Nercy a cortou com sua adaga e os dois apertaram as mãos selando o contrato. O sangue fresco na adaga estava quase pingando no chão quando a matriarca se levantou rapidamente.

- Agora que você é oficialmente um dos meus subordinados - ela sorriu - pedirei imediatamente sua soltura e também que te tragam algo para comer. - ela se ajeitou para ir embora e estava quase saindo quando James a chamou de volta.

- Espera, quer dizer que eu não vou poder sair daqui agora?

- Acalme-se, não levará muito tempo. Ordenarei que devolvam seus pertences quando for sair.  Em seguida, procure pela Fortaleza Perikratus e diga que eu o mandei até lá. Será recebido pelos outros membros que lhe ajudarão a partir dali. - e antes de ela partir de uma maneira estranhamente apressada, retirou a tocha da parede e disse - Foi muito bom fazer negócios com você, James. - e trancou a cela, deixando James no escuro, inseguro de suas ações.

 


*             *
*             *             *

 

 

Nercy, como se estivesse atrasada para um compromisso importante, montou em seu cavalo e tomou a direção do Templo Imperial assim que terminou de subir a escadaria que saia das masmorras.

Puxou o capuz de seu casaco para cobrir sua cabeça, por causa do vento frio que batia em seu rosto, e nem sequer parou para cumprimentar os guardas no caminho. Não que se desse bem com eles, muito pelo contrário, os soldados odiavam a escória podre dos ladinos. Porém sempre fora educada com todos mostrando que estava acima de qualquer ofensa.

Montou em seu cavalo e cruzou a Capital no meio da noite. Após chegar ao templo, desceu e amarrou seu cavalo e caminhou à passos largos. O som do vento frio vagando era o único ouvido pelo pátio deserto, pois seus passos silenciosos eram feito patas de gato. Tomara cuidado para ir numa noite sem celebrações marcadas, do contrário o lugar estaria totalmente lotado por fiéis e ser atrapalhada não estava nos planos da ladina.

Achava engraçado o fato de aquele ser um dos únicos lugares vazios no império, os outros estavam cheios de estrangeiros alocados devido à falta de espaço e ao mau planejamento da capacidade que o reino tinha para recebê-los. O grande coração da Igreja devia estar abertos para todos, não é? Por qual razão  Liturgo se mantinha longe dos aventureiros que seu tão amado imperador convidara?

Nercy não adentrou o templo pelas enormes portas do salão frontal, preferiu uma portinhola lateral que chamava muito menos atenção. Podia sim ter alguma relação com o fato de Liturgo não gostar de pagãos como ela ali, ou apenas não gostasse dela mesmo, mas estava ali a trabalho e o quanto mais rápido e invisível fosse, melhor.

O lugar estava iluminado por lustres e velas que flutuavam levemente sem sair de onde estavam, a luz da Lua passava pelos vitrais coloridos que enfeitavam as enormes paredes, dando um ar até angelical à visão. Além dos vitrais de mosaicos haviam também muitos desenhos retratando imagens de deuses ou coisas relacionadas. Desde os rodapés das paredes até o teto tudo era coberto por figuras e escrituras sagradas. Era realmente lindo de se ver, mas qualquer um que seguisse os desenhos sofreria com uma dor atordoante no pescoço depois.

O salão e o altar estavam vazios, àquela hora as aulas da catequese já deviam ter acabado e Liturgo e seus pupilos já estariam dormindo.

A ladina, vendo que não havia motivo de se esconder nas sombras dos cantos, resolveu tomar o caminho mais curto até seu destino e passou na frente do altar. Ela se sentia estranhamente mal enquanto isso, pois era como se um olhar pesado recaísse sobre suas costas. Num reflexo, olhou para trás e para os lados tentando encontrar alguém, mas não havia nada lá. Era feito se aquelas imagens estivessem a vigiando,  julgando-a por estar ali. 

O altar era largo, muito rico, tinha vários tapetes finos, objetos de ouro e ficava bem abaixo do vitral principal. Havia uma estátua esquisita ali também: era um homem que possuía feições estranhas como se estivesse se contorcendo de ódio. Seus olhos quase ardiam em chamas e parecia que a qualquer momento ele saltaria dali e agarraria o pescoço da ladina como se ela merecesse ser punida por algum pecado. Então era assim que Liturgo doutrinava seus fiéis? Os impondo medo?

Nercy juntou as sobrancelhas e continuou a andar, o peso sobre suas costas a seguiu até que adentrasse a pequena porta escondida num estreito corredor não iluminado. Era a entrada para uma escaria em espiral que descia  metros e metros abaixo do templo. A distância entre cada tocha poderia fazer com que alguém tropeçasse nos degraus mal iluminados, porém a mulher conhecia bem o caminho.

Seu destino eram as catacumbas, local no qual os corpos eram preparados para o sepultamento. As paredes eram de pedra e havia alguns pilares sustentando o teto baixo e abobadado. O chão estava um pouco alagadiço, mas não sabia dizer de onde aquela água vinha. O cheiro era um horror e o som do vento passando por aquele local subterrâneo deixaria qualquer um tenso, pois eram como suspiros, sussurros e gemidos  misturados.

A ladina não prestava atenção naquilo, já estava acostumada com aquela espécie de ambiente. Havia algumas mesas com corpos despidos ou já preparados para sepultamento, mas alguns que estavam abertos possuíam os órgãos em jarras. Via que tinham algumas ferramentas e livros sobre as mesas, os pergaminhos possuíam desenhos muito bem feitos e detalhados dos corpos assim como suas partes. 
Aquelas eram as aulas proibidas que Liturgo dava para seus pupilos. No império estudar corpos humanos era um tabu, contudo, um sacerdote não podia depender apenas do poder divino. E se a fé, em algum momento, viesse a falhar?

Nercy seguiu até uma espécie de altar pequeno usado pelos sacerdotes para fazer preces enquanto os corpos passavam pelo processo de limpeza e purificação antes de serem enterrados. Ajoelhou-se, retirou os livros de cima, acendeu as velas e depositou uma pequena tigela sobre a mesa. Pegou sua adaga e esperou o sangue fresco de James pingar algumas vezes dentro da tigela. Após, passou os lados da lâminas em suas bordas a fim de tirar os restos de sangue.

Por fim, fechou os olhos e proferiu algumas palavras, calando-se logo após e permanecendo assim por alguns instantes.

- Hagapeon... Sou eu.

Hagapeon, em seus longínquos dias de glória no mundo ansciente, costumava ser um deus profeta, um dos mais poderosos que já existiram por Dionir. Nutria-se, assim como outras entidades espirituais, principalmente da fé dos povos. Não havia distinção entre seus fiéis além das raças, porém não era importante, pois sob os cuidados de Hagapeon eram todos um povo só.

Fortaleceu-se por muitos anos assim, sem concorrência, porém com o passar dos milênios seus seguidores começaram a ficar insatisfeitos, aparentavam estarem infelizes com o que ele oferecia. Queriam mais, sempre mais. Estavam cansados da mesmice divina dele.
Rejeitando-o, começaram a idealizar coisas novas, expor suas queixas de uma maneira tão diferente e incoerente que Hagapeon não conseguira compreender e consequentemente não conseguira realizar.

Enfraqueceu-se, subdividiu-se em inúmeros outros deuses ordinários que tomaram seu lugar, pois estes sim faziam a vontade de seus antigos súditos. 

Os povos dividiram-se mais e mais por conta dessas novas divindades. Passaram a se odiarem, perdiam o tempo enfrentando-se e massacrando-se, tudo em nome daqueles outros.

Hagapeon já não mais podia agir, estava fraco. Não podia abrir os olhos deles se nem mesmo faziam a manutenção de sua existência. Passara de regente divino para mera crença num piscar de olhos, até ser quase esquecido completamente.

No entanto, devido aos seus poderes e seus antigos hábitos de ajudar os necessitados, Hagapeon foi mantido vivo por almas ansiosas e carentes que recorriam a ele como última opção de salvação. Ele que já alimentava há tempos um intenso ódio por ter sido maculado, traído e esquecido, passou a se aproveitar de tal desespero dos seres mortais para conseguir manter sua existência e não ter sua chama apagada no mundo material.

Assim, ele aceitava oferendas, ofertas e passou a fazer pactos que garantiriam a ele alimento, tornando-se aquela entidade torpe e corrompida.

Nercy, quando ainda era pequena, fora uma daquelas pessoas que, num ato sem pensar, submeteram-se as vontades de Hagapeon a fim de conseguirem ajuda. Mesmo que ela tivesse ganho aquilo que queria seu pagamento se arrastava já durante anos. O que prometera para conseguir tal ajuda? Mantê-lo alimentado. Achou uma besteira o que ele pedia em troca, porém seu fardo aumentava cada vez mais.

A mulher usava o pretexto de "mesma família, mesmo sangue" para conseguir suprir a fome insaciável de Hagapeon. Para enganar as outras pessoas dizia que um pacto de sangue era necessário, pois o sangue de cada um dos integrantes de seu clã permaneceria vinculado permanentemente ao Sagrado Templo do Império e caso algum deles tivesse a audácia de dar uma de esperto, teria recaídas sobre si, além da ira da Matriarca, a fúria dos Deuses. 


                                                                                           ".........."

 

Ela sentia a atmosfera ficar cada vez mais pesada. Respirou fundo e continuou:

- Hagapeon? Já está ai? - a demora numa resposta a deixava ansiosa - Costuma ser mais falante que isso. Sei que deve estar faminto a dias e sinto ter demorado tanto, mas precisava achar outra pessoa de novo.


                                                 "...SSSi
                                                                  lên
                                                           ci
                                                                              o..."

 

Nercy abaixou a cabeça e se calou, sentindo um arrepio percorrer suas costas. A voz não podia ser realmente ouvida, pois soava apenas em sua cabeça como uma pessoa falando num salão com eco. Era feito se a voz ocupasse todo o espaço que antes pertencia aos seus pensamentos, deixando-a tonta.

 


   "........"
                                         "...de
                                                mo 
                                                   rassss
                                            te..."

 


                                                                                          "...in
                                                                                                        to...
                                                                                                       ...le  
                                                                                                     rá
                                                                                                                     vel..."

 

As chamas das velas penderam para o lado como se uma suave brisa as tivesse soprado. Soava sem forças, falhado, penando para se manter.


                                                                                                             "...Hm..."
                                                                              
                                                                          "...ter..."
                                             
                                           "...fffome..."       

                                             
                                                                         "...que..."

                                                                             "...tra
                                                                            zessss..." 
 
                                                                                                                                              "...hoje...?..."

 

Nercy, calada, observava as chamas penderem anormalmente até que uma delas mudou o tom de laranja forte para um azul bem claro. Imediatamente, ela a pegou e virou-a dentro da tigela, parando assim que o sangue começou a queimar numa chama azulada. Depois, colocou-a de volta no lugar e esta voltou a ter as chamas naturais.
 

                                                                                                         "...exó
                                                                                                                     ti
                                                                                                         co..."
                                                                           "...ffforte..."
                                                      "...fo
                                               rasss
                                                     tei
                                                              ro..."

                                                                     "...tal

                                                                         vezzzz..."

 

- É um dos viajantes dos quais lhe falei em minha última visita, antes de os portões serem abertos para os estrangeiros.

 


                                                                                "...odi
                                                            arrr..."

                                                "...exó
                                                               ti
                                             cossss..."
                                     
                                                                                                                    "...tu 
                                                                                                               sssa...
                                                                                                                          besss..."

 

A chama azulada parou de queimar na tigela, sinal de que ele recusara a oferenda. Estava claramente enojado.


             "...masss..."

                                 "...ter..."

                                           "...fffome..."
                                                                                         
                                                "...esss
                                             tar..."
                                                            "...fffra...
           

                                                                                                                co..."
                    

 

Nercy se preocupou, era o primeiro que ele recusara. 

- Eu trago mais, não precisa se preocupar. Só dê-me mais algum tempo e acertarei dessa vez. Você ficará saciado. - a mulher pediu.

 

"...não                                                "...inútil..."                                 "...tu me deves..."
                haver                                                                                     
                          tempo...                                                  "...anos..."                       
                ...longa                                                                               
            esss...                                                                              "...de..."
                            pera..."                                                                             "...fffome..."

          "....."                                 "...dívida                                        
                                                                   in..
                                                         fffin...
                                                                 da...                                       tarrr..."
                                                                                                                        vol...
    "...exó                                                            ..pagar...                                     para 
                        ti                                                                                               ...maisss
           cossss...                                                                                            de...
                     ...ssss..."                                                                      co...
                                                                                    "...fffra
            "...odiarrr..."                                                                                
                                                           
                                                  
                                                                                                                     fffim..."

 

 

Várias vozes juntaram-se à primeira confundindo-se entre si, não se podia distinguir ou entender o que cada uma falava e nem mesmo se falavam sobre a mesma coisa. Elas faziam uma estranha pressão na cabeça da mulher como se não houvesse espaço suficiente para todas, piorando a tonteira e deixando sua vista turva. 

Nercy se apoiou no altar para não cair e passou a respirar fundo. Sua vista começou a escurecer e sua cabeça começou a latejar fortemente.


"...ssssua                                                                                                            aussss..."
              sssor                                          "...ssseu                                              rosss
          te...                                                           ssssanguee...                                ...et
                    não                                      ...sssua                                             oãn
                            po                                          dívida..."                                 op
                      derrr                                                                                           rrred
                                   fffa                                                                   afff
                       zzzerr...                                                                          ...rrezzz

                                   maisss...                                        ...sssiam..."              
                                                     que...

                                                 ...isss

                                     ssso..."              

 


                                                                                          "...fffra

                                                                                                                     c
                                                                                                                                   o..."


                                            "...terrr...

                                                   
                                                                                               

              ... ffff...
                                 

                                     fo...
                                                           
             
                                                


                                                                                                                                                          meee..."    

                                                                                                  "......."

 

À medida que as vozes iam desaparecendo, a tontura de Nercy também passava. Parecia que ele havia finalmente perdido as forças.

- Minhas desculpas. Trarei-o um novo assim que puder. - ela falava nervosa e com dificuldade enquanto a tontura passava - Apenas não se esqueça do combinado. Sei que o que trouxe hoje o saciará por algum tempo. - ela se levantou, havia passado tempo demais ali - Até lá, estarei de volta.


                                                                                                             "...não..."

                                                                                                   "...pen
                                                                           ssse..."
"...que..."                                          
                   "...ssse...
                                   rá..."                                       
                   "...tão..."      

                                          "...fffá...                                                                  

 

                                                                                                                             ...cil..."
                                                           

A mulher apagou todas as velas num único e forte assopro e a voz sumiu. Não queria escutar sequer mais uma palavra. Estava estática, respiração acelerada, olhos arregalados, apoiava-se em cima do altar. Inspirou o ar e prendeu-o enquanto arrumava o local rapidamente deixando-o da maneira que achou quando chegara. Subiu a escadaria correndo e soltou o ar apenas quando já estava no topo. Suspirou aliviada e virou-se para fechar a porta. 

Quando fora passar na frente do altar, percebeu Liturgo ajoelhado de costas para ela, parecia estar concentrado em sua meditação. Obviamente, Nercy resolveu não interrompê-lo e tentou andar o mais suavemente possível até a porta de saída, mas quando estava quase lá, o sacerdote chamou sua atenção:

- Boa noite, Nercy. - falou com sua voz profunda e grave que ecoou pelo salão inteiro.  Percebendo que ela não responderia continuou - Venha, saia das sombras. Sei que está ai. A que devo a honra de sua visita mesmo após ter pedido inúmeras vezes que não pusesse  os pés aqui? - ele dizia calmamente e sem encará-la.

- Sim, bela noite a você também, Liturgo. - ela tentava agir calmamente - Finalmente consegui um tempo livre e vim conversar com você sobre um assunto de extrema importância... As reclamações e os relatórios! Lembra-se? - disse a primeira coisa que veio em sua cabeça

- Porém, chegando aqui, vi que estava meditando e resolvi não incomodá-lo. Logo, voltarei outra hora.

- Ah, certamente de máxima importância! Oras, aproveite já estar aqui e diga o que lhe preocupa sobre o caso. Sou todo ouvidos. - ele tossiu e pigarreou - O que gostaria de esclarecer, minha jovem?

- Bom... Creio que eles já tenham sido devidamente entregues para a avaliação do Imperador, certo? - a moça fingia estar extremamente preocupada com aquilo no momento, com sua seriedade habitual - Por dias tenho mandado meus representantes aqui esperando ouvir boas notícias sobre o processo. Seria de grande agrado saber que encontrou alguma fresta em sua rotina atarefada para ir ter com nosso supremo.

- Os relatórios estão onde deveriam estar. Não te preocupas mais com isso. - ele fez uma pausa - Era só?

- Sim, era só. - ela começou a caminhar lentamente para trás na direção da portinhola -  Peço novamente desculpas por interrompê-lo, mas estava muito preocupada com tal assunto. Agora sei que tratou-o bem. 

- Fica em paz, está apenas fazendo seu trabalho feito uma líder responsável. Tua preocupação é admirável. Podes te retirar sossegada. Bela noite, Matriarca.

- Sim... boa noite.

Nercy retirou-se rápida e silenciosamente, escapou por pouco. Contudo, estranhava o fato de Liturgo estar bem ali numa hora tão específica e delicada. Bem, pensaria sobre isso outro dia, pois era hora de voltar ao seu posto vigiando as noites, como se nada houvesse acontecido.


Notas Finais


Para ambientação: https://www.youtube.com/watch?v=kxqJuc1HHbg


Aceito críticas!



Até mais!


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