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História Lirismo moderno - Capítulo único


Escrita por: MidoriShinji

Capítulo 1 - Capítulo único


Karin Strauss. Era um nome comum. Alemão. Quinze anos, nascida em 20 de junho de 1929, naquela mesma cidade, Berlim, a Germânia que não foi, e que poderia ter sido. Ano de mau presságio. As sardas em seu rosto desenhavam-se como constelações que desciam pelas bochechas, fragmentando-se cada vez mais claras até desaparecerem. A única roupa que tinha agora era essa: sua casa havia sido bombardeada. Um soldado soviético, por mera compaixão, decidira dar-lhe aquele uniforme que era largo demais para seu corpo pequeno; a camisa verde oliva era quase um vestido, e as calças, largas demais, tinham de ser dobradas na barra para não arrastarem no chão. Os dois haviam conseguido se comunicar em francês truncado.

S'il vous plaît, ne tirez pas. — foi tudo que ela disse, antes de levantar os braços. Havia tanta terra e poeira de concreto em seu corpo que ela parecia ser feita de cinzas. A blusa e a saia que usava, parte do uniforme escolar, eram nada mais que farrapos na ocasião. Tinha consigo apenas um livro, um diário. Nenhum dos soldados conseguiu convencê-la a largá-lo. Não se pode convencer alguém a largar suas memórias para trás, ela sempre explicava. É preciso se lembrar. Lembranças eram as únicas coisas que tinha agora.

Levaram-na para um dos alojamentos de feridos e fizeram perguntas que não sabia responder. Qual seu nome? Karin Strauss, senhor; tenho quinze anos. Você tem pais? Tenho sim, senhor, Ada Strauss e Hans Strauss. Você sabe onde eles estão, menina? Não, senhor, não sei. Onde você mora? Minha casa foi bombardeada, senhor. Você tem parentes? Não, senhor, não tenho. Você tem documentos? Não, senhor, perdi tudo.

A cidade que deveria ter sido estava ocupada. A escola em que estudava agora era um porto seguro para aqueles que não podiam mais lutar, e precisavam de abrigo. Os gigantescos pôsteres do führer agora haviam sido arrancados; não havia mais olhos a observarem-nos sempre, vigiando cada um deles. Era naquelas salas que escrevera seus primeiros poemas, os poemas que podia mostrar, sobre campos idílicos, sobre as figuras históricas da Alemanha, sobre sentimentos vagos e idealizados, de outras pessoas, sempre elogiados pela professora. Führer ficaria orgulhoso do seu talento, ela dizia. Karin agradecia. Aqueles poemas que deveriam ficar escondidos eram escritos em casa, à luz de uma vela poupada ao máximo, nas madrugadas em que todos dormiam. Agora suas noites eram tranquilas, e dormia sempre perto da janela para poder usar a luz da lua para escrever em seu diário, mesmo que significasse o constante perigo de alguma bomba estilhaçar o vidro. Por tudo que vivera até agora, aqueles dezessete dias do cerco de Berlim foram os mais miseráveis e os mais livres que jamais experimentara.

Foi em um dia dois de maio que soubera da notícia, o führer estava morto. A guerra acabaria a partir dali. Havia sido a noite mais feliz que tivera: tocaram música até que o dia clareasse. Nem ela nem os soviéticos entendiam o que os americanos diziam em suas músicas tocadas em uma vitrola protegida com zelo, mas isso não importava. Dançara com o soldado que a ajudara, em um vestido saqueado de escombros próximos. Foi naquela noite em que bebera seu primeiro gole de rum: ardia tanto em sua garganta como a poeira de cimento que inalara durante as horas em que ficara presa nos restos de sua casa, até que conseguisse se arrastar para fora.

Mas além de música, os soldados americanos também trouxeram fotos.

Era uma tarde de sábado, estavam todos no ginásio. A maioria dos que estavam ali no começo eram feridos e crianças pequenas demais para lutar; aqueles que ainda tinham idade e condição resistiam: era o que o führer esperava. Era mais que um capricho, defender a honra de seu país, do Terceiro Reich, era uma obrigação de qualquer cidadão alemão. Pouco a pouco, porém, o local foi sendo preenchido por outras pessoas, capturadas. Alguns foram seus colegas de escola. Todos jovens, e todos parte do que se chamava de Juventude Hitlerista, o orgulho do führer. Para eles, disse que fora capturada também; não teria coragem de dizer que se rendera sem qualquer objeção, não era digno de uma jovem criada no Terceiro Reich. Ouvia um dos soldados dizer que aquilo era uma prisão provisória para crimes de guerra; alguns deles deveriam ser levados a julgamento. Sim, aquele abrigo de feridos. Nele havia criminosos de guerra, e isso não era surpresa para ela: sabia que alguns tinham matado, estuprado, ferido, e cometido inúmeras atrocidades durante o cerco de Berlim. Sabia disso porque era parte do que toda a Juventude Hitlerista sabia, ensinavam isso nas escolas, a fazer tudo que for possível e o impossível também pela Alemanha. Mas para nenhum daqueles jovens isso era anormal: eles cresceram acreditando nisso.

Desde o primeiro dia na escola, era sobre as glórias da Alemanha que aprendiam. E também sobre como mantê-la; denunciar os judeus era uma maneira. Não era que compactuassem e sentissem um ódio gigantesco aos judeus, aos ciganos, aos homossexuais, à esquerda, nem todos eles sentiam-se assim. Era só... A única opção. Eles cresceram em um mundo onde essa era a única visão, e não conheciam nada além daquilo. Todas as suas poesias sobre um mundo sem guerra eram apenas besteiras, jogadas no fundo de uma gaveta trancada e protegida com sua vida. A guerra era o estado natural do mundo, era tudo que conhecia.

Mas a guerra não parecia tão natural quando viram aquelas imagens. Os campos de concentração de Mauthausen-Gusen, Majdanek, os guetos de Varsóvia, os experimentos dos médicos do exército, as câmaras de gás, os cadáveres-vivos daquelas pessoas pálidas, raquíticas, mal-nutridas e angustiadas, os olhares de quem aceita a morte. As pilhas de corpos acumulando-se umas sobre as outras no chão, cadáveres tão frágeis que poderiam quebrar, com aquela pele de papel. Auschwitz, o mais terrível deles.

Era difícil acreditar. A cada foto que viam, no entanto, era mais difícil não acreditar. Aquelas pessoas, que agora já não eram nada, haviam existido. Cada uma delas foi assassinada da maneira mais cruel, suja, mesquinha, pungente e imoral que poderia existir. Por eles. O horror de tamanho mal era mais amargo do que qualquer coisa que tivessem sentido antes, e a negação se dissipava para ceder espaço a ele. Aquelas pessoas que agora estavam mortas tinham ainda um alento, não era em seus dentes que estava grudada a poeira da verdade. Os mortos não sentem o gosto de sangue ao morderem seus lábios para não gritarem até que sangrem. Uma gota escarlate pingou na foto, colorindo o rosto de uma criança. Se aquele menino tivesse seis anos seria ainda muito.

Passou a foto adiante. Nós conseguimos libertar alguns deles, um dos soldados disse. Era um americano, falando em alemão. Para outros já era tarde demais. As ruínas de Berlim eram nada se comparadas às vidas tratadas como lixo descartável. Uma bomba caía não muito longe, e o pó de cimento branco cobria o ar, tão branco que parecia pó de ossos; do pó viemos e ao pó voltaremos, humanos e cidades. A faixa que estava na parede do ginásio atrás do soldado que falava tinha um trecho de um de seus poemas, que vencera um concurso literário: "Traz teus louros de Glória, Alemanha de Eucleia". Jamais sentiu tanto asco assim, de todos aqueles deuses há tanto esquecidos, de campos tão belos e de amores tão distantes que jamais foram seus. Karin sentia nojo de si mesma ao ver que aqueles versos eram seus.

Não, repetia a si mesma, tentando se tranquilizar. Aqueles versos jamais pertenceram a ela, Karin. Aqueles eram versos de uma mera persona, Karin Strauss, a primeira da classe e Prêmio Literário da Juventude Hitlerista de 1944. Se aquilo era poesia, que queimasse tanto quanto os prédios da Germânia, com sua fumaça tóxica negra de luto. Não há poesia depois de Auschwitz.


Notas Finais


Hoje tivemos um debate em sala na aula de literatura sobre os marcos transformadores da literatura, e eu acabei colocando em pauta na discussão as duas grandes guerras do século XX, que nos trouxeram as vanguardas e o lirismo moderno. Acabei me inspirando e lá mesmo escrevi isso aqui em uns quinze minutos. (:

1- "S'il vous plaît, ne tirez pas" traduz-se do francês como "por favor, não atire".
2- Mauthausen-Gusen, Majdanek e Auschwitz eram campos de concentração da Alemanha nazista durante a Segunda Guerra.
3- "Traz teus louros de Glória, Alemanha de Eucleia" é só uma besteirinha que inventei. Verso alexandrino, com doze sílabas poéticas, tônicas na sexta e décima segunda. Se eu consegui ou não fazer um verso alexandrino... :P
4- Eucleia é a deusa da boa reputação e da glória, segundo a mitologia grega.
5- "Não há poesia depois de Auschwitz" é uma paráfrase beeeem livre de uma frase do Theodor Adorno, "escrever um poema depois de Auschwitz é bárbaro". Auschwitz é a morte da poesia, ou ao menos do lirismo clássico.


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