* OLHEM AS NOTAS FINAIS POR FAVOR *
- Eu não dei bebida pra Aali ontem. Se ela bebeu não foi minha culpa. - Digo revirando os olhos antes de sentir o Shawn encher a minha boca com mais uma colher de sorvete de coco queimado. E com certeza não foi de um jeito romantico, eu quase o escutei dizer “Cala a boca e come”. Sinto o peso do braço do meu primo apoiado sobre meus ombros e me mexo alguns centímetros para o lado tentando ficar ainda mais perto dele, se é que isso era possível. - Você sabe que eu desaprovo isso completamente, ela só tem tipo 12 anos, o que você acha que eu sou?
- Eu não vou dizer alcoólatra mas… você sabe. - O garoto diz rindo e dando de ombros enquanto minha boca se abre num círculo perfeito de choque. Vejo-o raspar as últimas lascas do sorvete e chupar a colher fazendo-me tremer, engolindo o chilique que estava prestes a dar. - Além do mais ela acordou com uma puta dor no estômago hoje e morrendo de enxaqueca. A Aali pode tentar me enganar o quanto quiser, mas isso não cola comigo.
- Você é tão injusto comigo! Eu não bebi uma gota de álcool ontem e até me ofereceram, sabe como foi difícil? - Pergunto vendo o garoto virar o rosto na minha direção e acenar com a cabeça, daquele jeito que eu sabia que ele estava prestando atenção mas não ligava para uma palavra que saía da minha boca. - Você nem leva isso em consideração não é? Eu me esforcei tá legal.
- O que você quer? Uma medalha? - Meu primo pergunta sem desviar os olhos de mim, rindo da minha careta emburrada segundos depois. Sinto seus dedos no meu pescoço e com um movimento rápido de mãos eu os afasto com violência. - Me desculpe meu bem. Eu fui idiota. Você merece mesmo uma medalha.
- Vai se foder! - Digo sem conseguir conter o riso. Havia dias em que o Shawn acordava 100% metido e super petulante, era como uma garota de TPM, e hoje era um desses dias. Às vezes isso até me divertia se estivesse de bom humor, mas às vezes só tinha vontade de esmurrar o meu primo até fazer a cicatriz na sua bochecha trocar de lugar.
- Você quer uma fita azul? Ah melhor, vou te dar um troféu com seu nome gravado nele. - O garoto diz me abraçando carinhosamente e dando um selinho abaixo da minha orelha rapidamente, seus lábios estavam gelados e mesmo que agora ele já estivesse afastado ainda sentia seu beijo na minha pele. - Agora é sério, eu fico muito feliz que você não tenha bebido. Sei como deve ser difícil pra você e eu fico orgulhoso de saber que se esforçou. Você merece muito mais que uma medalha.
- Como você consegue ser extremamente babaca e adorável ao mesmo tempo? - Pergunto arrancando uma risada do garoto mas ainda me sentindo comovida com a sinceridade em suas palavras. Ninguém nunca havia me dito que estava feliz por algo que eu fiz por mim mesma e que só dizia respeito ao meu próprio bem, nem mesmo a Leslie. Ninguém nunca pareceu estar verdadeiramente feliz por mim como o Shawn parecia. Ainda que fosse algo bobo. - E isso não foi um elogio.
- Ok esquentadinha, gostou desse? Temos que comer rápido ou vai derreter. - O garoto fala observando o restante dos potinhos de sorvete sobre a mesa. Fico imaginando o Shawn tentando convencer a atendente a levar todos os sabores da loja, em minúsculas porções e por um preço que não custasse uma fortuna. Só o seu esforço já era o bastante para me fazer a garota mais feliz do mundo.
Vejo meu primo escolher a dedo uma das várias opções que tínhamos disponíveis e analisar lentamente o sorvete, sem se preocupar com o meu olhar atento a cada movimento seu. O garoto sorri e me estende o potinho de isopor com delicadeza.
- Você vai gostar desse, tenho certeza. - Diz bagunçando o próprio cabelo, esperando minha reação ao por o sorvete na boca. Banana caramelizada. Definitivamente um dos melhores, mas nem mesmo o sabor incrível da sobremesa foi capaz de aquietar a pulga atrás da minha orelha.
- Como você sabia que eu ia gostar desse? Não lembro de ter te visto provando. - Pergunto notando cada mudança nos traços do seu rosto, analisando-os com precisão e visualizando a resposta que ele me daria a seguir. E que com certeza faria meu sangue ferver.
- Foi esse que eu pedi quando vim aqui da última vez. - Escuto o Shawn responder desviando os olhos dos meus e se mexendo inquieto. Engulo em seco imaginando que meu primo havia sentado nessa mesma mesa com a Clair e lançado para ela os mesmos sorrisos que lançou para mim. Diferente do que imaginei não senti minha cabeça esquentar ou minha visão borrar de raiva. Era um sentimento mais profundo, que aumentava a minha insegurança de uma forma inevitável.
- Tinha quase me esquecido de que você trouxe a Clair aqui antes de mim. - Murmuro cutucando o sorvete com a colher de plástico, perdendo toda a vontade que tinha de comê-lo. Ouço o suspiro do meu primo ao meu lado e sinto seu olhar sobre mim, esperando para ter a minha atenção.
- Eu não trouxe ela aqui. Ela me convidou. - O garoto fala com aquele tom enfadonho na voz tentando manter a paciência. Meus dentes trincam e me afasto dele abruptamente.
- Obrigada por explicar como você aceitou o pedido tão adorável da garota que eu mais odeio nessa cidade inteira, que por acaso é a mesma que fez questão de esfregar na minha cara que pegou meu ex namorado e agora está tentando pegar você! - Falo rapidamente alterando meu tom de voz enquanto meu coração surra meu peito com velocidade devido à adrenalina repentina em meu sangue.
Me arrependo imediatamente ao ver o olhar controlado do Shawn sobre mim, juntando-se aos daqueles que pararam para observar a cena prestes a começar. Abaixo a cabeça sentindo meu rosto queimar em constrangimento. A respiração do Shawn me conforta minimamente, enquanto me culpo ferrenhamente por ter estragado o mais perto que já tivemos de um encontro.
- A Clair não quer ficar comigo Ray. - Meu primo fala, com aquele tom de voz suave que sempre me faz sentir segurança e calma mesmo nas piores situações. Pelo canto do olho o vejo apoiar o queixo sobre a mão e me encarar.
- Você só pode estar testando a minha paciência… - Sussurro revirando os olhos com tamanha idiotice dita pelo meu primo. Sinto sua mão segurar a minha por baixo da mesa numa demonstração silenciosa de afeto, que aquece meu coração e dissipa minha raiva dando lugar a um sentimento estúpido de impotência.
- É exatamente isso que estou tentando te explicar. A Clair não quer ficar comigo, ela é apaixonada pelo Matteo. - Finalmente encaro meu primo, com essas palavras soando completamente estranhas ao saírem da sua boca mas com uma convicção impressionante. Analiso seus olhos cor de avelã em busca de algum vestígio de dúvida mas não encontro nada, o que só contribuiu para aumentar a minha curiosidade. - Ela disse isso pra mim.
- Ela tentou te manipular e pelo visto conseguiu. - Digo dando de ombros ouvindo o garoto bufar impaciente. Porque a Clair diria algo assim logo para o meu primo? Era burrice acreditar nisso.
- Não Rachel. A Clair sentou na minha frente com um sorvete na mão e em dez minutos estava se desfazendo em lágrimas contando tudo sobre a vida dela. - Meu primo diz fazendo uma careta claramente esperando uma explosão da minha parte. A Clair é uma baita drama queen, todo mundo sabe disso, mas antes de tudo ela tem o prêmio de vadia número #1. Não seria burra o suficiente para fazer isso sem nenhum interesse pessoal. Ou será que… - Eu acho que ninguém nunca foi legal com a Clair sem esperar nada em troca, porque o jeito como ela falou Rachel… foi de partir o coração.
Respiro profundamente analisando suas palavras. Simplesmente não conseguia lidar com essa imagem de uma Clair Rodriguez frágil e cheia de lástima. Tudo que eu sabia sobre essa garota caminhava para uma única conclusão já muito bem formulada na minha cabeça: A Clair é uma vaca aproveitadora. Mas o Shawn parecia bem determinado a convencer-me do contrário, e isso estava me dando nos nervos.
- Princesa, ela é tão solitária. Foi tão doloroso pra mim ter que ouvir tudo que ela fazia pra suprir essa necessidade por atenção. - Estava com paciência zero para a benevolência do Shawn com uma garota que não merece nem a minha pena. Mordo meu lábio controlando cada ofensa prestes a sair da minha boca. - Eu sei que você sabe como os pais dela nunca estão em casa, a Clair os vê tipo uma vez por mês, sem contar as amigas que vem e vão, e tudo o que dizem sobre ela. A única pessoa que essa garota tinha era o Matteo, até você começar a namorar com ele.
Engulo em seco começando a sentir o peso daquela história sobre mim, notando a angústia nos olhos do meu primi sendo transferidos para os meus. Não importava quanto eu a odiasse, o que ela havia dito mexeu com o Shawn, e se o afetou consequentemente fez o mesmo comigo.
Sabia de todas as verdades nas suas palavras, mesmo que quisesse negá-las eternamente. A Clair parecia sempre tão confiante e metida que nem ao menos parei para pensar nos seus problemas. Eu não era tão egoísta e iludida a ponto de achar que só porque alguém é bonito, rico e popular não tem nenhuma dificuldade na vida. Mas isso não justificava de forma alguma todo mal que ela já causou.
- Você acha que foi a Clair que roubou o Matteo de você. Mas na verdade Rachel, foi você que o roubou dela. - Sua voz soa calma e suave mas algo em suas palavras é um banho de água fria e faz meus ossos racharem dolorosamente. Ele não podia estar vindo com essa merda para cima de mim, não depois de tudo que a Clair fez comigo.
- Shawn eu já conheço essa história de trás pra frente. - Digo cobrindo meu rosto com as mãos enquanto o tom monótono na minha voz incomodava-me profundamente. Mesmo sabendo de cada parte escondida por baixo dos panos, algo ainda pressionava meu peito e me impedia de respirar. - O Matteo e a Clair se conhecem desde sempre. E ela se apaixonou no momento em que pôs os olhos nele, quando o viu pela primeira vez no jardim de infância provavelmente. Eles cresceram lado a lado e não importava com quantas garotas ele ficasse, sempre voltava pra ela no fim das contas. Até eu aparecer. Shawn acredite quando eu digo que conheço essa história.
- É por isso que ela te odeia. - Meu primo murmura mais para si mesmo do que para mim, com os olhos perdidos em meu rosto como se visualizasse cada cena do que acabei de contar. O Shawn parecia finalmente estar ligando os pontos para chegar até hoje. - Ela te odeia porque Matteo nunca gostou dela como gosta de você. Agora quer fazer de tudo pra te ferrar.
- Ok Sherlock Holmes, agora tá tudo claro pra você? - Pergunto vendo-o se recostar no banco com a festa franzida em confusão. Ele não parecia tão esclarecido quanto achei que ficaria, havia algo mais ali.
- Na verdade algumas peças não se encaixam. - O garoto murmura e minha garganta parece secar diante das suas constatações, lembrando-me das mensagens intimidadoras que recebi ontem a noite. Meu primo cruza os braços pensativo, olhando para um ponto perdido no ar. - Se você está comigo, e o Matteo se encontra oficialmente disponível, porque ela continua te perseguindo?
- Falando em perseguir… - Murmuro sentindo minhas mãos suarem em aflição e o frio na barriga ao ter o olhar do Shawn sobre mim. Não podia guardar aquilo, eu tinha que contar a alguém, alguém que pudesse me ajudar e soubesse o que fazer. - A Clair tem me mandando algumas mensagens bizarras desde ontem.
- O que você quer dizer com bizarras? - O garoto pergunta curioso agora completamente atento às minhas palavras. Abro a boca para falar mas a minha voz treme antes que eu consiga dizer qualquer coisa, me fazendo perceber o quanto toda aquela situação me afetava. Eu estava tão atordoada que mal havia percebido o medo me consumindo.
- Mensagens anônimas sobre mim e sobre quantos dias faltam pra você ir embora. Como se estivesse me observando. - Sussurro com a minha voz arranhando e os olhos ardendo tentando buscar algum conforto no rosto familiar e confuso do meu primo. Dessa vez sou eu a apertar seus dedos por baixo da mesa, temendo sua reação. O garoto passa alguns segundos analisando meu olhar e cada traço de pânico em meu rosto, sem ousar desacreditar da minha palavra.
- Como você pode ter tanta certeza de que é a Clair? - Meu primo pergunta afastando-se de mim, parecendo ter a mesma sensação de perseguição que passei a sentir desde a primeira mensagem lida. Ainda assim o Shawn estava, claramente, mais tranquilo do que eu em relação a tudo isso. De certa forma sua atitude confiante me acalmava, mesmo sabendo que nesse momento ele estava se esforçando para não deixar sua aflição transparecer. - Desculpa mas ela não parece inteligente o suficiente pra pensar em algo assim.
- Eu sei. Mas quem mais poderia ser além dela? - Pergunto ouvindo uma voz familiar atrás de mim, ocupada demais pensando em cada um dos suspeitos plausíveis para esse caso para me virar. Na minha mente não havia uma resposta mais coerente do que a Clair. Eu nem sequer tinha cogitado a ideia de ser outra pessoa que não ela.
- Quando você disse que pediria todos os sabores da loja eu não acreditei. - Levanto a cabeça num sobressalto vendo a Leslie parada ao lado da nossa mesa se balançando freneticamente, enquanto a Anna simplesmente fazia um sinal de negação com a cabeça ao se sentar a nossa frente.
- O que vocês estão fazendo aqui? - O Shawn pergunta alarmado se afastando o máximo possível de mim como se nada estivesse acontecendo. Reviro os olhos com a reação do meu primo, bufando por ter nosso único momento a sós interrompido.
- Eu disse que eles iam odiar se viéssemos. - A Anna fala entre os dentes encarando a loira com irritação. Ela parecia um filhotinho chateado.
- Pensei em irmos de carro até a praia de Fort Myers ou Bonita Spring, achei que vocês quisessem ser convidados. - A Leslie diz dando de ombros e sentando-se do outro lado da mesa, agarrando o primeiro pote de sorvete ao seu alcance e pondo uma colherada na boca sem pestanejar.
- Leslie. Eu tô de pijama. - Digo aumentando o tom de voz e gesticulando com as mãos indicando a roupa brega que eu usava. A garota apenas lançou um olhar conformado e continuou comendo. O meu sorvete.
- E daí? Entra de calcinha e sutiã. - Minha amiga responde como se fosse óbvio fazendo todas as cabeças na mesa se virarem em sua direção. A loira ergue as duas mãos em rendição com uma careta no rosto. - Tá bom, talvez não seja uma boa ideia.
- Lessie você consegue ser tão empata foda quando quer. - O Shawn grunhe enterrando o rosto nas mãos me fazendo soltar uma gargalhada involuntária pela sua reação. Deito a cabeça na mesa sem desviar os olhos do garoto, entretido demais na discussão que havia começado, com os cachos de chocolate caindo pela testa enquanto se movia de forma displicente.
- Que boquinha suja você tem Mendes! Por essa eu não esperava. - Escuto a Anna falar no meio de uma gargalhada, enquanto o Shawn revirava os olhos com as bochechas corando de vergonha. Essa é o tipo de memória que queria poder guardar na minha mente para sempre.
- Ai meu Deus! O Shawn tá bravinho porque eu empatei a foda dele! Esse momento é meu! - A Leslie grita e o garoto se encolhe dando dedo para a minha amiga, me fazendo rir ainda mais alto por ele ser o centro das atenções.
O Shawn se vira para mim com um sorriso largo estampado no rosto, sendo o culpado por meu estômago dar saltos em minha barriga, forçando-me a controlar todas as demonstrações de carinho que passaram pela minha cabeça. Sorrio de volta tendo certeza de que aquilo não era o suficiente para expressar o quanto estar ao seu lado me fazia feliz.
Por um segundo meus olhos se desviam dos seus e focalizam o carro através do vidro da sorveteria. Meu sorriso diminui gradualmente enquanto minha mente tentava achar respostas para o que via. O meu primo segue o meu olhar e sua face agora expõe o mesmo sentimento de confusão que a minha.
- Aquele ali é o Gary? - O Shawn pergunta com receio atraindo a atenção das outras garotas.
- Tenho certeza que sim. - Respondo e minha voz soa mais baixo que o esperado. Engulo em seco vendo o homem no carro parado em frente ao semáforo gritando no celular com a raiva evidente em seu rosto.
- O trabalho dele é do outro lado da cidade. O que ele tá fazendo aqui a essa hora? - A Leslie pergunta curiosa, provavelmente cogitando mil teorias que eu sequer conseguia pensar agora. Levanto da mesa num impulso sem tirar os olhos do carro preto com pintura brilhante.
- Não sei, mas vamos descobrir. - Vejo a Leslie se levantar com a chave do seu carro em mãos antes mesmo que eu fosse capaz terminar a frase. Agarro o braço da minha amiga e saio correndo em direção à calçada enquanto o Shawn e a Anna tentavam pegar todos os potinhos de sorvete sobre a mesa que eram cabiam em seus braços. Me sentia culpada por pequeno desperdício de dinheiro
Ouço o barulho da porta sendo destravada enquanto corremos pelo meio da rua, torcendo para não sermos atropeladas. Pulo no banco do carona ao passo que a loira já está com a chave na ignição gritando para o Shawn e a Anna se apressarem e estapeando a lataria do carro como uma descontrolada. A Leslie não poderia ser mais discreta.
Vejo o sinal se abrir e berro assustando a Anna, fazendo-a derrubar um ou dois potes de sorvete pelo asfalto. Em segundos todos já estão dentro do carro e a Lessie acelera a sua Range Rover, cantando pneu apenas alguns metros atrás do Nissan do meu pai.
- Passa o sorvete pra cá! Eu tô no meio de uma perseguição não posso sentir fome! - A Leslie grita esticando uma mão para pegar o sorvete e com a outra colocando os óculos escuros sem se importar em guiar o carro. Velozes e Furiosos: Desafio em Naples.
Leslie Toretto. Quem é Vin Diesel perto dela?
- LESLIE PONHA AS MÃOS NO VOLANTE! - Meu primo grita empurrando o sorvete na direção da loira que olhava por cima do ombro xingando meu primo em espanhol. Eu havia esquecido o quanto a Lessie era barbeira no trânsito.
- Hijo de puta! Cállate la boca! Eu sei o que eu tô fazendo! - A garota grita freando bruscamente, ficando a centímetros do carro a nossa frente, arremessando-me contra painel enquanto metade dos potes de sorvete caiam pelo banco estofado. O Shawn finalmente entrega o potinho para ela e outro para mim. O silêncio após ouvir a Leslie gritando em espanhol era palpável e ninguém parecia corajoso o suficiente para questioná-la. Minha amiga bufa tirando o cabelo cor de areia do rosto e o jogando sobre os ombros. - Vocês conseguem me tirar do sério!
- LESLIE ACELERA ELE VIROU A ESQUERDA! - A Anna berra apontando com a colher para a direção que o meu pai foi. Sem avisos, minha amiga faz uma curva fechada me jogando contra a porta lateral do carro e o potinho de sorvete em minhas mãos literalmente voa pela janela completamente aberta. O Shawn grita segurando a manga da minha camiseta folgada, imprimindo meu corpo ao banco antes que eu tivesse o mesmo destino que a sobremesa.
- RACHEL PÕE A PORRA DO CINTO! - O garoto grita enquanto minhas mãos trêmulas buscam o cinto de segurança rapidamente. Seguro a tira de tecido sabendo que, naquelas condições, a minha vida realmente dependia daquilo.
- Droga eu perdi ele de vista! Ah volta aqui Gary! - Minha amiga fala costurando entre os carros, quase raspando a lateral do automóvel num conversível ao nosso lado. Vejo minha amiga colocar a cabeça para fora e dar dedo para o outro motorista. - VETE AL CARAJO CABRÓN!
A garota enfia a mão na buzina girando o volante até a pista mais próxima a orla e a poucos metros do Nissan que procurávamos. Minha amiga solta um suspiro de satisfação empurrando o pé no acelerador e aproveitando a calma repentina para dar alguma colheradas no seu sorvete.
Engulo em seco sentindo a palma das minhas mãos doerem depois de segurar tão firme no suporte do carro. Ouço o Shawn atrás de mim, soltando o ar preso em seus pulmões, aliviado por estar respirando. Ao passo que a Anna finalizava uma oração desesperada agradecendo a todos os deuses por estar viva e a Leslie não ter capotado o veículo.
- Por que você parece ter experiência em perseguições? - A Anna pergunta afobada colocando o rosto entre o espaço dos dois bancos da frente.
- Porque ela tem. - Respondo lembrando da última vez que a Leslie me convenceu a perseguir nosso professor de história, dizendo ter certeza de que havia o visto vestido de drag queen num clube de striptease. Infelizmente ela estava certa.
- Por que você tem carteira de motorista? - O Shawn pergunta chocado elevando o tom da voz que havia subido alguns oitavos no meio do seu protesto. Ouço a risada da Leslie e me encolho no banco, sabendo exatamente o que ela havia feito para conseguir sua licença. - Você subornou o instrutor ou comprou sua carteira no mercado negro?
- Subornei o instrutor. - A loira diz naturalmente e eu enterro meu rosto na janela do carro rezando mentalmente para que ela não contasse a história toda. Ouço o Shawn murmurar confuso antes da Leslie continuar a falar. - Mas não foi com dinheiro.
- Uh Leslie! Que nojo! - Meu primo grunhe e eu consigo ver sua careta pelo retrovisor. Minha amiga ri displicente terminando o sorvete e pedindo um segundo para a Anna que se empanturrava com os que havia trazido.
- Nem comece com seu mimimi! Era um instrutor bonitinho. - Minha amiga fala passando a marcha enquanto ouço os grunhidos do Shawn, provavelmente decepcionado mas nem de longe surpreso pela história da Leslie.
- Por que o Gary tá indo pra Pelican Bay? - Ouço a voz doce da Anna perguntar e só então percebo que estamos indo para os arredores de Naples. A cidade pode ser do tamanho de uma azeitona mas sei muito bem que o Gary não costuma ir com frequência para North Naples, a zona norte do município.
- O que vocês acham? - Pergunto no meio da névoa confusa que minha mente havia se tornado, sem conseguir pensar com clareza por conta de toda adrenalina correndo em minhas veias.
- Pode ser algo do trabalho. Quer dizer ele cuida de imóveis, isso faria total sentido. - A Leslie fala acompanhando o Nissan a uma distância segura de modo que não pudéssemos ser vistos. Balanço a cabeça negativamente, dispensando sua teoria.
- Não, ele tá envolvido nos projetos de Everglades, não pra esse lado da costa. - Digo sabendo disso depois de ouvi-lo comentar mil vezes sobre como o ramo de imóveis em Everglades City estava consolidado e cheio de oportunidades. Olho pelo retrovisor vendo a expressão confusa no rosto do Shawn, completamente desnorteado no que diz respeito à geografia da Flórida. - Everglades fica perto da área sul de Naples. Estamos saindo da área norte agora.
Ao que parece todos estavam perdidos demais nos próprios pensamentos e teorias, pois dirigimos por mais 15 minutos sem que nenhuma palavra fosse dita. Não importava quão idiota fosse perseguir o Gary até Pelican Bay, tinha um pressentimento ruim me consumindo dos pés à cabeça e eu não fazia ideia do que era.
- Hey gente, ele tá dando seta e vai entrar bem aqui. - A Leslie diz chamando atenção de todos e nos deixando alerta a cada movimento do carro a nossa frente. Vejo o farol piscar e o Nissan virar a direita, entrando no estacionamento de um restaurante elegante com colunas gregas na fachada que me deixavam de queixo caído. A Lessie diminui a velocidade até parar a metros de distância do estabelecimento. - Não acredito que ele saiu de Everglades e dirigiu meia hora até Pelican Bay para almoçar no The Capital Grille.
- Esse restaurante é muito bom se eu fosse ele faria o mesmo. - A Anna concorda sem se impressionar nem um pouco com a magnitude do lugar. Engulo em seco forçando a visão para enxergar o Gary sair do carro e subir lentamente os degraus até o interior do restaurante.
- Ray? - O Shawn pergunta e eu sinto seus olhos sobre mim, decifrando cada traço em meu rosto. Havia algo errado. Muito errado. E o Shawn também sabia disso. Um almoço naquele lugar era mais do que gastávamos em comida numa semana inteira.
- Leslie entre no estacionamento e pare o carro perto do lugar onde está a mesa do Gary. - Peço soltando o cinto e me encolhendo no banco para que seja impossível me ver. A Lessie estaciona bem embaixo da varanda aberta, com uma vista perfeita para a mesa onde meu pai esperava com uma paciência que jamais presenciei antes.
- Pode ser um almoço de negócios. - O Shawn pensa alto esperando uma reação minha mas não desvio os olhos do Gary, balançando a perna freneticamente embaixo da mesa, claramente esperando alguém. Perdemos a conta de quanto tempo passamos em silêncio até que pudéssemos tirar nossas próprias conclusões. Sinto a aflição em meu peito ao ver a mulher caminhar até sua mesa.
- Que porra… é a Senhora Collins? - Leslie pergunta arregalando os olhos e se aprumando no banco do motorista para enxergar melhor a cena. Sinto o rosto do Shawn próximo ao meu ombro, numa tentativa falha de entender o que estava acontecendo. Ou melhor, acreditar.
Abro a boca para falar mas nada deixa meus lábios além da respiração entrecortada de nervoso. Ao avistar a Senhora Collins vestida como a socialite que é, dentro de uma blusa de seda rosé e uma saia lápis preta, meu pai se levanta elegantemente cumprimentando-a não com um aperto de mão como aprovaria a etiqueta, e sim com o beijo no rosto. Um beijo muito promíscuo por sinal.
Nunca fui do tipo que via as cartas na mesa e tentava jogar outro jogo, mas dessa vez não queria admitir o que meus olhos enxergavam.
Engulo em seco sentindo a tensão instalada no carro, enquanto todos pareciam esperar uma reação minha. Cripo os olhos com os punhos cerrados, assistindo os dois sentarem-se à mesa e sorrirem ao escolher os vinhos na cartilha. Meu coração batia com uma força inexplicável tentando ajudar meu cérebro a processar a imagem que meus olhos viam.
Eu nem ao menos ouvia meus amigos respirarem ao meu lado, não havia som nenhum além das rodas no asfalto atrás de nós. Em poucos minutos o vinho chegou e pude ver meu pai erguer sua taça e, com um sorriso no rosto, brindar ao lado da mulher.
Da mulher que não era sua esposa.
Da mulher que não era a minha mãe.
Da mulher que tinha um marido que não era ele.
Então essa mulher esticou a mão sobre a mesa e entrelaçou os dedos do Gary aos seus numa demonstração muito clara de afeto. Uma demonstração que nem eu mesma poderia fazer publicamente com o cara que gostava, mas que ela podia fazer com seu amante. Ou melhor, com o meu pai.
Como se eu ainda não estivesse convencida o suficiente o Gary segurou a mão da Senhora Collins, e levou-a aos lábios, beijando sua pele enrugada e fina delicadamente como se nada no mundo os impedisse. Exatamente como ele fazia com a Lenora.
Mesmo que não fosse a mão dela ali.
Não precisei dizer nem uma palavra para a Leslie saber que estava na hora de ir embora. E nem pelo resto do caminho até em casa. Ninguém murmurou, ou quis ligar o rádio, e até a forma descuidada da minha amiga dirigir não pareceu nos incomodar.
E quando vi meu jardim senti que minha casa estava desmoronando. Só conseguia enxergar as ruínas que haviam sobrado. Já estava chorando no momento em que alcancei meu quarto com o Shawn em meu encalço, e sentia-me idiota por estar chorando sobre o casamento de duas pessoas horríveis.
Mas se havia algo no mundo que fazia a Lenora e o Gary parecem melhor era o amor que tinham um pelo outro. Ninguém naquela cidade podia dizer que eles não eram perfeitos juntos. Os dois sempre foram terríveis, e a única coisa que parecia fazê-los sorrir era estar lado a lado. Isso foi tudo o que eles me ensinaram em 16 anos de vida.
E agora só restaram as cinzas do que foram um dia.
Sinto o peso sobre meu peito numa tentativa falha de respirar. Me viro ao ouvir a porta bater e o olhar do Shawn sobre mim era um aviso claro de que ele compartilhava da minha dor. Uma dor que parecia atingir muito mais que uma família, alcançando até os princípios hipócritas que nos foram impostos durante toda nossa vida.
Os que estávamos sendo forçados a seguir e sentindo suas consequências na pele.
Os princípios que estavam nos impedindo de ficar juntos.
Os princípios que meus pais pareciam não obedecer.
- Eu achei que eles se amavam. - Murmuro entre as lágrimas desabando sobre os braços do Shawn, sempre a postos para me segurar.
Talvez não fosse preciso uma aliança para provar que se gosta de alguém. Pois naquele momento, chorando copiosamente sobre os braços do Shawn, eu finalmente percebi que meu conceito de amor nunca foi aquilo que eu pensei ser.
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