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História Nem por Meio Milhão de Libras! - Saravá, Kouga Cotegipe!


Escrita por: Okaasan

Notas do Autor


Oi, pessoal. Mais um capítulo!

Novidade: agora temos um grupo no Facebook específico para as minhas fanfics. Estou aberta a sugestões, perguntas, fotos, vídeos e outras coisas como forma de troca de informações. Link nas notas finais. :)

Enfim, chegou a vez dele, do youkai lobo que neste universo é um índio truká, mestre de capoeira, Kouga - o homem que criou a Rin por alguns anos e que é importante na trama também! E teremos também menções a uma religião brasileiríssima, a umbanda. Peço encarecidamente a você, leitor umbandista que porventura lê a fic, se houver algum erro na descrição da liturgia, favor me informar para que eu corrija! :)
Perdoem eventuais erros.

Arte da capa: Laiken Williams.

No mais, boa leitura!

Capítulo 26 - Saravá, Kouga Cotegipe!


Fanfic / Fanfiction Nem por Meio Milhão de Libras! - Saravá, Kouga Cotegipe!

Brasil, 4 de junho de 2014

 

Apesar do clima naturalmente quente de Cabrobó e de o sol estar escaldante, Kouga Cotegipe da Silva estava trêmulo ao sair do PSF do centro da cidade, onde acabara de receber uma consulta. Era a febre, mais uma vez. Até seu rabo-de-cavalo doía.

O pernambucano filho de indígenas truká havia completado 42 anos e, pouco tempo após sua menina Rin ter desaparecido sem deixar rastros, ele percebera alterações estranhas em seu organismo. Mestre Kouga sentia dores pelo corpo todo, dificuldades para respirar e lesões estranhas pela pele, o que o impedia de tomar sol. Como se um pedreiro tivesse mesmo a opção de não se expor ao sol, pensava ele, revirando seus olhos verde-azulados.

E tinha a roda de capoeira. Sim, ele tinha a opção de jogar com seus alunos sob a sombra, mas Kouga sempre amou o toque do sol sobre si. O moreno corpulento de 1,73m tinha excelente forma física por ser lutador de capoeira desde criança; era belo e atraente de natureza, daqueles que arrastam olhares por onde passam. Agora, contudo, ele era obrigado a se resguardar, por causa da doença.

Naquele dia, ele saía do consultório com algumas receitas de medicamentos para psoríase. Havia proibido a esposa de acompanhá-lo; ele sempre estava rodeado de pessoas e, agora, queria muito ficar sozinho. A vida de Kouga e Ayame havia mudado radicalmente após o sumiço de Rin. Era uma dor imensurável, pois a incerteza do que havia se passado com a menina os torturava.

O celular velho tocou em seu bolso.

— Meu — chamou Ayame, assim que ouviu o marido dizer “pronto”. — Tu já fosse no médico?

— Já, sim... Ele disse que é uma doença de pele e me deu uma receita. Tem que comprar a pomada... Tomara que não seja caro.

Do outro lado, a ruiva se condoeu ao notar o timbre fraco e cansado da voz de seu querido. O costume de chamá-lo de “mestre” era tão enraizado em Ayame que ela muitas vezes optava por não dizer somente “Kouga”.

— Deixa eu ir te buscar, Mestre Kouga. Tu não vai dar de conta de vir a pé nesse sol da moléstia.

— Eu tenho duas pernas! — retrucou ele, irritado, logo se arrependendo em seguida. — Miséria... Desculpa, nega, eu não tô bom. A consulta demorou demais, eita negócio difícil do créu. Mas não precisa vir me buscar, eu dou de conta de chegar em casa, sim.

— Tem certeza?

— Tenho. Um beijo. A bateria tá descarregando.

— Beijo. Te cuida.

Assim que desligou o telefone, Ayame foi até a casa ao lado, onde viviam os sobrinhos gêmeos do marido (filhos de uma irmã indígena de Kouga com um negro), Ginta e Hakkaku, que, assim como Rin, também foram criados por ele. O primeiro trabalhava num mercadinho próximo; o segundo, por sorte, estava em casa. A ruiva deu um grito:

— Hakkaku... Ó, Hakkaku!

— Entra, Inhame — respondeu o jovem de lá de dentro, chamando-a pelo apelido de infância. — Lavando roupa... Aqui no fundo.

Sem cerimônia, a mulher entrou na pequena moradia de tijolos sem reboco e viu o cunhado esfregando as roupas brancas dele e do irmão. Ambos eram capoeiristas também. Hakkaku enxugou o suor da testa e olhou preocupado para a ruiva tristonha.

— Mestre Kouga voltou já?

— Voltou não, tenho certeza que ele não vai dar de conta de chegar sozinho. Tu pode ir buscar ele pra mim na cegezinha? — indagou ela, se referindo à motocicleta velha que Ginta havia comprado.

— Olha... O Ginta não é de emprestar a cegezinha, mas como é pra pegar Mestre Kouga, eu vou.

— Quanto a isso não se preocupe, eu mesma explico pra ele. Dá pra tu ir agora?

— Vou sim, Inhame.

Ayame fora uma garota de rua, sem família, a quem Kouga se afeiçoara e lhe dera abrigo, dividindo com ela o pouco que ganhava enquanto pedreiro e instruindo-a na capoeira. Ela cresceu com Ginta e Hakkaku; era uma garota espevitada que adorava brincadeiras “para menino”. Contudo, o truká começou a perceber algo diferente em seu coração a cada vez que ele olhava para a jovem ruiva, já com seus dezessete anos, ao passo que ele tinha trinta e dois.

A descoberta do novo sentimento foi desconfortável para Kouga, devido à diferença de idade; entretanto, Ayame parecia a cada dia mais bela e aprazível aos seus olhos. Sem contar a força moral daquela jovem que não crescera muito, estacionando em 1,63m. Ruiva opiniosa, turrona, porém doce e de um grande coração, além de demonstrar uma sabedoria muito elevada para uma garota de sua idade. E uma das melhores capoeiristas a quem Kouga teve o prazer de a arte da luta dançante oriunda da cultura afro-brasileira de séculos atrás.

O moreno, então, mandou às favas o seu receio e aguardou a ruiva completar dezoito anos para desposá-la, cuidando antes de construir um barracão para seus sobrinhos ao lado de sua casa. Felizmente, seus sentimentos eram correspondidos. O casal vivia feliz apesar das dificuldades financeiras; anos depois, a pequena e enérgica garota Rin integraria a família.

Toda a alegria dos Cotegipe se esvaneceu quando a moreninha foi enganada e desapareceu do Estado de Pernambuco. A fotografia de Irani Tibiriçá da Silva foi espalhada por diversas cidades da região e publicada exaustivamente nas redes sociais, nos postes e comércios locais, delegacias e até nas contas de luz. Sem sucesso.

Mestre Kouga era um homem turrão e forte, entretanto o baque do desaparecimento o abalara profundamente, tanto pela perda da garota quanto pela terrível sensação de culpa. O capoeirista chorou, diversas vezes, sentindo-se totalmente responsável por não ter sido mais enérgico com Rin e impedido sua partida.

Agora, sentado em uma calçada, sob a sombra de um pé de jamelão, ele tremia, exausto, sem conseguir se colocar de pé. Seu corpo inteiro doía. Por sorte, um gari o viu ali e se aproximou rapidamente.

— Mestre Kouga, o que tá acontecendo? Tá aperreado... Tá sentindo mal?

— Nada não, meu — desconversou Kouga, forçando um sorriso. — Só cansaço mesmo, é do calor.

Sendo popular como era, Kouga era conhecido por todos, mas não chegava a decorar o nome das pessoas. Tudo o que ele sabia do recém-chegado era que se tratava do sobrinho de uma Dona Jura costureira.

— Tu quer água? Eu tenho, acabei de pegar em casa. Não tá muito gelada, mas tá boa.

— Eu quero.

O truká pegou a garrafa e sorveu quase todo o líquido com ânsia. O mal estar o estava incomodando muito. O rapazote o olhou, condoído. Só então Kouga percebeu que tinha esvaziado a garrafa do outro e coçou a cabeça, meio envergonhado.

— Oxe... Desculpa, meu , eu tava mesmo com sede. E agora tu vai ficar sem água... Nesse calor...

— Nada, Mestre Kouga, minha tia mora aqui perto. Eu peço mais água lá para ela. E então, teve notícia da Rin?

— Não... — suspirou ele, amuado. — Nadinha.

— Eu acho que era bom tu fazer uma promessa.

— Macho, eu já fiz promessa pra Nossa Senhora Desatadora dos Nós. Fiz promessa pra Nossa Senhora do Carmo, fiz novena pra São José, pedi campanhas de oração nas igrejas de crente, já fiz de tudo... Já fui até em Recife num terreiro...

— Tu é doido? Ir a Recife só pra ir num terreiro, Mestre Kouga? — volveu o outro, espantado. — Em Santa Maria da Boa Vista tem terreiro! Não precisa ir tão longe.

— Pois é... — respondeu o moreno, encolhido. Não estava muito a fim de conversar, mas era melhor estar acompanhado, naquelas circunstâncias. — De umbanda, é?

— É, sim. É da Mãe Hitomiko de Oxum. Eu sou católico que nem tu, mas já fui lá. Devo o emprego a ela. Por que não vai lá conhecer? Quem sabe?

O capoeirista pareceu considerar por um instante. Quem sabe...?

— Oxum, é? Eu gosto de Oxum, ela protege os rios, as cachoeiras e as mulheres. Acredito e sou devoto dos santos da Igreja, mas acredito nos orixás também, eles que protegem a natureza. E eu amo a natureza, tá no meu sangue. Como é o nome dela mesmo?

— Mãe Hitomiko.

Vindo do fim da rua, Hakkaku se aproximava com a moto. Interiormente, Kouga se sentiu muito aliviado, apesar de incomodado com aquelas demonstrações de preocupação de sua família.

Era muito difícil para ele, sendo a pessoa independente de sempre, ter de receber cuidados alheios.

— Meu , obrigado pela água, Deus te pague. Agora vai trabalhar, vai, senão o sol esquenta mais — agradeceu ele, se levantando com alguma dificuldade e sendo auxiliado pelo gari.

— Amém, Mestre Kouga. Se precisar de mim...

Hakkaku enfim encostou perto deles, descendo afoito da moto e vindo ao encontro do tio. Foi recebido por um olhar interrogativo do mais velho, enquanto o gari o cumprimentava.

— Mestre Kouga, vambora — chamou-o Hakkaku. — Sol tá quente, tu não pode pegar sol.

— Ó macho, tu caísse, é? Tua roupa tá cheia de poeira.

De fato, a roupa do rapaz estava empoeirada. Ele riu, coçando a cabeça.

— Foi só um tombim. Machuquei não.

Kouga revirou os olhos. A perna de Hakkaku estava meio esfolada, contradizendo suas palavras.

— É mais seguro EU ir te levando, moleque. Tu não sabe andar de moto.

— Sei, sim, Mestre Kouga — retrucou o outro. — Só não tenho muito costume, né.

— Tu é um leso, Hakkaku. Ah, macho — fez ele, se voltando para o rapaz uniformizado ali ao lado. — Obrigado mesmo, viu? Quando tu quiser ir lá na roda...

— Qualquer dia eu vou mesmo, Mestre Kouga. Tchau.

Dolorido, o moreno pegou o capacete das mãos de Hakkaku e o enfiou na cabeça. Seu sobrinho ainda tentou argumentar:

— Mas, Mestre Kouga... Tu não tá com dor?

— Tô com dor, macho, mas sei andar de moto, e tu não sabe. Se eu te deixar levar a cegezinha, tu vai me derrubar com ela e aí quem vai ficar bem dolorido é tu, entendesse? Te meto uma mão de peia.

— ‘Tendi, Mestre Kouga — volveu o jovem, sem graça. Assim, ambos voltaram para casa, o mais velho gemendo com dores nas articulações do corpo todo.

Horas mais tarde, já banhado e deitado numa rede, o capoeirista olhava sorumbático para um retrato 15x21 em suas mãos: uma fotografia de Rin, em sua formatura do Ensino Médio. O sorriso dela era tão espontâneo e seus olhos tão vivazes que Kouga sentiu um nó na garganta. Tinha tanto medo de descobrir que algum infeliz tivesse apagado a luz dos olhos de sua menina...

Mas não. Kouga tinha fé, sentia que Rin estava viva em algum lugar e ansiava por tê-la de volta ao lar, mesmo que não pudesse lhe garantir uma vida regalada. Pagar-lhe-ia uma faculdade em Recife, faria dela uma mulher de bem, a veria se casar com um macho direito e honesto, que não fosse cachaceiro nem vagabundo. Rin merecia chegar ao topo, ao sucesso, e o capoeirista queria muito fazer aquilo por ela.

Ayame apareceu lá de dentro com um chá de cidreira e o entregou ao marido, que fez uma careta.

— Pra que isso?

— Pra dor.

— Nega, minha dor não passa com chazinho mais — afirmou ele, desanimado. — Sinceramente nem tô achando que essa pomada vai resolver alguma coisa. Olha só, tem uma mancha nova no meu pescoço.

Ayame baixou a cabeça. Vendo a angústia nos olhos da esposa, ele estendeu a mão, com um sorriso fraco, surpreendendo-a.

— Mas me dá esse chá, nega. Pelo menos vai servir para me dar sono.

Silêncio. Kouga bebericava o chá, sentindo o peso daquela quietude ruim.

— Kouga... Tá doendo muito?

— Tá.

Outro silêncio, ainda mais desconfortável. O capoeirista olhou para a ruiva, sentada num tamborete de madeira e olhando para os próprios pés. Kouga suspirou profundamente, envergonhado e frustrado. Sua esposa estava, possivelmente, sentindo falta de ter momentos íntimos com ele, que já não conseguia mais levar sua vida sexual normalmente desde que aquela doença estranha lhe acometera, tanto pela dor contínua no corpo quanto pela vergonha de Kouga por aquelas manchas na pele, outra tão bela e sensual, bronzeada e amorenada.

O que incomodava bastante o casal, também, era o fato de a ruiva não ter engravidado até o momento. Como eles eram pobres, não tinham condições de recorrer a médicos particulares e exames específicos. E esperar meses e meses na fila do SUS não era uma alternativa animadora.

— Ayame — chamou o moreno, passando os dedos pela franja de fios grossos.

— Fala.

— Deita aqui mais eu.

— Mas tu tá com dor, macho.

— E daí? Quero você aqui comigo, com dor e tudo.

Sem titubear, a mulher se foi até o marido e se acomodou como podia sobre o peito dele, planejando não se demorar para não torturar ainda mais o capoeirista. Ele conteve como pôde seus gemidos; doía demais, mas ele precisava do conforto do calor da ruiva, mesmo que por alguns segundos.

— Deixa eu te falar uma coisa — murmurou ele, abraçando-a.

— Fala.

— Tô querendo viajar pra Santa Maria da Boa Vista. Quero tomar um passe.

— Tu vai ao terreiro de macumba, é?

Macumba não, nega, o terreiro é de umbanda. Macumba é o nome de um instrumento.

— Mas a gente não conhece ninguém lá... Ou tu conhece e eu não tô sabendo? — volveu ela, arqueando uma sobrancelha. Mesmo dolorido, Kouga riu do ciúme de Ayame.

— Aquele sobrinho daquela dona Jura que mora perto do posto de saúde me disse que foi lá, aí a mãe-de-santo fez um trabalho e ele conseguiu o emprego.

— Kouga, ele passou no concurso da prefeitura. O que tem a ver o emprego com o trabalho da mãe-de-santo?

— Nega, aquele menino repetiu a quarta série quatro vezes! Me diz como um cabra burro desses consegue passar em um concurso a não ser por um trabalho?

A mulher se levantou cuidadosa de sobre Kouga, segurando-lhe a mão.

— ‘Bora conversar lá no quarto — disse ela. De imediato, o moreno ficou tenso. — Que foi, meu bem? É só pra gente ficar mais à vontade.

O capoeirista acompanhou a esposa, cuidando antes de trancar a porta da sala. A ruiva estava com a pele fresca de um banho recém-tomado. Ayame era muito bonita aos seus olhos; porém Kouga estava cheio de receios agora que estava manchado. Mais uma vez ele sabia que se deitaria ao lado dela e não conseguiria satisfazê-la. Já na velha cama, o casal se acomodou, sendo que o capoeirista estava constrangido e meio aborrecido.

A ruiva notou seu desconforto e o abraçou calidamente.

— Meu bem, não quero nada assim não, só quero teu carinho — murmurou ela, olhando para os olhos tristonhos do marido.

— Mas por quanto tempo a gente vai ficar assim? Tu é nova, nega. Tu é bonita... E não tinha que ficar passando vontade por minha causa. Não tô prestando nem pra dar no couro.

— Kouga, para com isso. Quando tu ficar bom, vai conseguir dar no couro como sempre conseguiu. Até lá, eu espero.

Subitamente, ele se sentou na cama, desvencilhando-se dela.

— Que foi? — perguntou Ayame, achando que tinha dito algo errado.

— Vamos viajar hoje mesmo. Ainda não deu seis horas, dá tempo da gente pegar um ônibus pra Santa Maria da Boa Vista.

Móde que?

— Ora! — exclamou Kouga, olhando diretamente para a esposa. — Móde que? Móde eu ir atrás dessa mãe-de-santo tomar um passe!

— Mas, meu bem, tu já tomou um passe naquele terreiro em Recife e não valeu de nada. Só gastou dinheiro com passagem e com um despacho cheio de coisa cara. Gastamos todo o dinheiro da Bolsa Família pra nada.

O moreno saiu caminhando dolorido pelo quarto, procurando por roupas melhores na cômoda.

— Sinto que dessa vez vai ser diferente. Botei fé no que o sobrinho de dona Jura disse. Mas, se tu não quiser ir... Eu sei que tu não fica assim muito à vontade em terreiros, mas...

— Não, meu bem, eu vou contigo sim. Nós tá juntos, tu precisa de mim e eu preciso de tu.

Subitamente, Kouga envolveu Ayame num abraço agradecido. Ele já estava cansado de tanto sofrimento. Queria ter esperança.

 

***

 

Uma hora mais tarde, o casal chegou diante de uma casa não muito grande, branca e com uma placa “Tenda de Umbanda Luz e Amor”. Não foi difícil achar o local: os ambulantes da rodoviária de Santa Maria da Boa Vista informaram a Kouga e Ayame como encontrar o terreiro. Já era noite. O templo, que distava dois quarteirões da rodoviária, estava fechado.

— E agora? — indagou o moreno.

— Bem, deve ter alguém aí dentro... — e a ruiva bateu palmas ao portão. — Ó de casa!

O portão se abriu. Um garoto loiro de uns dez anos apareceu, olhando curioso para os recém-chegados.

—Oi, meu , onde eu encontro a Mãe Hitomiko? — perguntou Ayame, simpática.

— Tá aqui... Mainhaaaaaa! — gritou ele, para dentro do quintal. — Chamando senhora, mainha!

Poucos instantes depois, uma mulher não muito alta, com um turbante na cabeça, um único colar de búzios e roupas comuns, assomou ao portão. Parecia não ter mais de quarenta anos e tinha um olhar sereno no rosto redondinho.

— Boa noite — saudou ela.

— Ah... Boa noite — volveu o casal, ainda meio ressabiado. Aquela mulher parecia ser jovem demais para ser uma ialorixá¹, parecia mais uma professora de ensino fundamental. A ruiva perguntou: — É a senhora a Mãe Hitomiko?

— Senhora tá no céu, minha filha. É, sou eu a Mãe Hitomiko — respondeu ela, cortesmente. — Posso ajudar vocês com alguma coisa?

— A gente veio de Cabrobó — afirmou Kouga, tentando parecer seguro. — Me disseram que você é muito boa nos trabalhos...

— Oxe, meu amigo, eu sou apenas uma pessoa que tem muita fé em Deus e na Mamãe Oxum. Mas vamos entrando, vamos entrando.

Assim, Kouga e Ayame entraram atrás da sacerdotisa de umbanda, seguindo-a. O jardim da mulher tinha as mais variadas espécies de flores; havia também duas hortas no quintal, além de um galinheiro. O capoeirista olhou curioso naquela direção e foi surpreendido pela voz da dona da casa:

— Pode ficar tranquilo, meu , nós não sacrificamos bichos nesse terreiro. As minhas galinhas são pra gente comer mesmo — proferiu Hitomiko, com um sorriso. O casal corou até o último fio de cabelo.

— Oh, me desculpe, eu... — ia se explicando o moreno, aflito. A sala de Hitomiko tinha uma estante cheia de fotografias e pequenos bibelôs de orixás e anjinhos, um radinho de pilha, um livro evangélico chamado O Poder da Mãe que Ora, além de imagens de santos católicos pelas paredes e um crucifixo. No canto, abaixo do filtro de barro, uma estátua de uma mulher negra com um vestido amarelo com detalhes dourados, Oxum. A mulher convidou o casal a se sentar no sofá, dizendo:

— Não precisa se desculpar, essa é a dúvida de quase todo mundo que vem aqui. Tu é o...

— Kouga, e essa é Ayame, minha mulher.

— Cês vieram de Cabrobó só pra me ver? Oxe, como eu tô importante — riu ela, levando os dois a rirem um pouco também.

— Oh... Sim, mas teu terreiro tá fechado... E já tá de noite — volveu Kouga, constrangido apesar da amabilidade da ialorixá. — Eu não queria incomodar não.

— Deixe de pantim, macho. Muitas vezes, uma boa conversa ajuda. E eu tô aqui pra ajudar qualquer pessoa. É essa a minha missão.

Kouga olhou para a ruiva, como quem busca incentivo, e recebeu um toque afetuoso na mão e um olhar de “vá em frente”. Pigarreando, o moreno voltou sua atenção para a mulher à sua frente e procurou sintetizar sua história, o desaparecimento de Rin e o surgimento daquela enfermidade.

O relato arrancou lágrimas de Kouga e de Ayame, que fazia um ou outro aparte no decorrer da conversa, onde Hitomiko ouvia pacientemente, vez ou outra ficando comovida também. Por fim, ela olhou profundamente para o casal e anunciou:

— É uma história bem triste. Mas o meu mentor, o Caboclo Flecheiro, me disse algo aqui agorinha.

— O que, Mãe Hitomiko?

— Procurem outro médico, pois tu tem tomado remédio pra uma doença que tu não tem.

— Como assim?

— Quis dizer que tu não tem a doença que o médico falou, seu Kouga. É outra.

— Mainha! — chamou o garoto loiro, lá de dentro. — Posso desligar o forno?

— Pode! — gritou ela de volta. — Aproveita, meu bem, e tira a broa do forno pra ir esfriando. E faz um café pras visitas também, por favor.

— Depois senhora vê meu caderno de tarefa? Tem um problema difícil da moléstia que eu não tô sabendo resolver.

— Vejo, meu bem, agora mainha tá ocupada, visse? E vou tomar a tabuada também — e a mulher voltou a olhar para Kouga. — O Kai é um ótimo aluno, graças a Deus. Meu marido morreu num acidente de caminhão, então ele é o homenzinho da casa. Não faz malcriação, não fala abobrinha, não me dá um pingo de trabalho.

O capoeirista parecia meio ressabiado agora, não ouvindo muito o comentário sobre o filho de Hitomiko.

— Tu falou que o médico errou a minha doença, é isso?

— É, seu Kouga.

— Ah... E... Eu tenho que mandar fazer um trabalho pra ficar bom?

Hitomiko assentiu.

— Olha... Podemos fazer um trabalho contigo e contigo também — afirmou ela, olhando para a ruiva, que perguntou de volta:

— E quanto a gente paga?

— Nada, minha filha. Eu não cobro pra ajudar os outros, Deus me livre.

— Mas o Kouga esteve num terreiro em Recife e cobraram dele pra fazer um despacho pra acharem a Rin.

— Pois então ele não esteve num terreiro de umbanda sério. Tem muitas imitações por aí, cheias de magia negras e assessoradas por guias que são, na verdade, espíritos que não evoluíram e se comprazem em enganar e fazer o mal pros outros. A umbanda não é isso aí, nossa religião é muito séria. Nós respeitamos o ser humano e a natureza. A Bíblia não diz que, sem caridade, ninguém verá o Senhor? Pois é. Essa é a nossa premissa. Se eu cobro pra te fazer um bem, tô fazendo por amor ou por lucro? Já tenho minha pensão de viúva, vendo meus queijos, ovos, galinhas... Não preciso explorar dinheiro de seu-ninguém pra viver — replicou a mulher, séria, mas com brandura.

Kouga estava impressionado; Ayame chegou a abrir um pouco sua boca, espantada. Logo o menino chamado Kai entrou na sala, com uma bandeja com pedaços de broa e uma garrafa de café, ganhando um beijo de sua mãe em seguida e escapulindo de novo, rubro de vergonha.

— Olha, seu Kouga, dona Ayame — voltou a falar a dona da casa, servindo o casal com o bolo e o café. — Hoje é quarta-feira, temos trabalhos todo sábado. Por que não vêm?

O casal se entreolhou. Esperavam uma recepção diferente, bem mais confusa. Aquela ialorixá parecia, realmente, muito centrada no que fazia. Por que não tentar?

— A gente vem — disse Ayame, surpreendendo o marido. — Tem que trazer alguma coisa pro despacho?

— Não se preocupe com oferenda agora, minha filha. Vamos participar da gira, vai ser bom pra limpar a aura dos dois. Tu também não tá muito boa. O fato de a menina ter sumido trouxe muita amargura pra vocês, isso atrai muita coisa ruim. Aliás...

A mulher se pôs de pé, subitamente, tendo a total atenção do casal para si.

— Eu não sou de fazer isso, mas me recuso a deixar vocês saírem daqui desse jeito, com essa tristeza toda. Vamos, os dois, de pé por favor. E de olhos fechados. Vou benzer os dois.

— Vai benzer a gente?! — indagou Ayame. — Nossa, quanto tempo faz que não vou a uma benzedeira!

— Elas estão acabando, infelizmente. Olhos fechados, vão rezando aí. Já volto.

— Mas o que a gente vai rezar?

— Oxe, o que vocês rezam todo dia. Falem com Deus, à sua maneira. E pensem somente em coisas de Deus, pra benzedura funcionar, não depende só de mim.

Kouga e Ayame, então, iniciaram suas preces em pensamento. Ouviram a dona da casa de afastar e voltar, muito silenciosa. Alguns instantes depois, uma serenidade envolveu os dois capoeiristas e Hitomiko, enfim, anunciou que havia terminado sua atividade. Ela agora estava com dois copos de água nas mãos.

— Tomem — ordenou ela. — Vão se sentir melhor, tenho certeza.

— Eu me sinto mais calmo — afirmou o moreno, olhando em seguida para a esposa, que concordou com um gesto de cabeça.

— Eu também... Tô mais leve — ecoou a ruiva, já tomando sua água. Kouga escondeu um sorriso; Ayame parecia totalmente disposta a aceitar as sugestões da ialorixá. Após ambos ingerirem a água, olharam para a dona da casa cheios de gratidão e até mesmo comoção. Hitomiko era uma mulher humilde e altruísta.

— Mãe Hitomiko, isso é água benta?

— Fluidificada. Mas pode chamar de benta, se quiser. Então, posso contar com vocês dois aqui no sábado às quatro da tarde?

— Pode! — disseram os dois, abraçando fortemente a mulher, que ficou surpresa e muito feliz com o gesto de carinho.

 

***

 

Apesar de toda a insistência de Hitomiko, o casal capoeirista não quis ficar para pernoitar. Mas ficou decidido que no sábado os dois estariam presentes no templo umbandista.

Kouga e Ayame, então, chegaram à casinha onde viviam. Já eram mais de dez horas da noite, mas, desta vez, o moreno não se sentia cansado. Seu corpo ainda doía, porém, bem menos do que antes. Como Mãe Hitomiko havia explicado, a benzedura os “limpou” das energias negativas e o fato de dizer em voz alta tudo o que lhes incomodava também foi um fator importante naquele revigoramento do casal.

Grato, Kouga se deteve na pequena sala, fazendo um sinal-da-cruz diante de uma imagem de Jesus Cristo, enquanto sua ruiva anunciava que iria tomar um banho. O moreno agora conseguia erguer a cabeça, respirar mais livremente. Suas lesões não ardiam no momento. Ele mordeu o lábio, imaginando se deveria ou não entrar no banheirinho com Ayame; afinal ele poderia não conseguir satisfazer a esposa e angariar mais uma frustração. Entretanto...

Se eu não tentar, não vou descobrir...”

Assim, o capoeirista se dirigiu ao banheiro, confiante e louco de saudades do corpo de sua querida, que, distraída com as lembranças da viagem à casa da ialorixá, chegou a se assustar com a entrada do seu índio másculo no local. Kouga havia despido a camisa, exibindo o peitoral e os braços musculosos e fortes. As manchas vermelhas eram apenas um detalhe. O coração da jovem capoeirista disparou.

— Kouga? Tu tá bem?

— Tô não... — retrucou ele, sensualmente. Aquele homem sempre conseguia derreter Ayame com seus gestos e posturas na hora do prazer, mas, naquele momento, tudo parecia mais intenso. — Tô carente de chamego.

— Oxe, sério?! — volveu ela, já bem empolgada. — Tá esperando o que, então, meu bem? Te enfia debaixo d’água mais eu!

— Enfiar debaixo d’água... Ideia boa, a sua. Vou enfiar tudinho.

As calças desceram pelas pernas torneadas do truká. Doeu se abaixar para retirá-las, mas ele ignorou o protesto de suas articulações e, ainda de cueca, ajoelhou-se diante de Ayame, que mal podia acreditar no que seus olhos viam. Kouga ergueu as mãos calejadas e as deslizou pelo sexo da ruiva, que gemeu alto pela grande expectativa. A água do chuveiro caía também sobre ele, que fitava malicioso a nudez dela.

— K-Kouga...! — balbuciou Ayame, já bem excitada apenas com a visão do interesse do marido, que ordenou-lhe:

— Tá esperando o que, nega? Abre logo as pernas, eu vou mostrar que ainda dou de conta de tu!

Mal se contendo, Kouga não esperou que a esposa afastasse as pernas e mordeu-lhe, de um jeito especial, o monte-de-vênus. Logo passou para a parte interna das coxas e não hesitou em lamber o clitóris pulsante, levando Ayame a gemer mais alto, esquecida de se segurar para não se denunciar para a vizinhança. Kouga adorava morder Ayame, era o seu principal fetiche. Ele sabia com que intensidade aplicar as mordidas de maneira a não ferir a mulher e, ao mesmo tempo, levá-la às alturas do tesão.

Então, ele a estimulou por alguns instantes naquela área sensível e resolveu ergueu o corpo, sem parar de beijá-la e mordiscá-la, passeando com seus lábios, dentes e língua pela barriga, costelas, seios e pescoço da ruiva entontecida de deleite. Ela abriu os olhos e contemplou a beleza do moreno já inteiramente molhado, com seu grande membro rijo, naturalmente livre de pelos e oprimido pela cueca, olhando-a com fogo e intenso desejo. Agarrou-lhe o rosto e beijou-o vorazmente, se lembrando a custo de não tocá-lo de qualquer jeito por causa das lesões. Enfim Ayame o soltou, ofegante e inebriada.

— Vambora pra cama, macho — afirmou ela, coração a mil. — Não aguento mais.

— Cama pra quê? — volveu Kouga, virando-a de costas para si e levando os dedos até seu clitóris, dedilhando-o e se inflando de felicidade por ver que sua esposa ainda o desejava como antes de ele adoecer. — Vai, abaixa... Vou te f**** aqui mesmo — Ayame inclinou o tronco, empinando as nádegas para o capoeirista. Ela estava ansiosa e curiosa, já que eles nunca haviam feito aquilo no banheiro.

— Oxe, vamos fazer isso aqui?!

— Vamos.

— Mas o chuveiro tá ligado.

— Melhor ainda — riu o moreno, enfim retirando a cueca e aproveitando para introduzir dois dedos na genitália de Ayame, sentindo-a bem lubrificada apesar do estímulo anterior ter sido rápido. A água fria caía sobre os corpos, mas não os incomodava. De fato, o prazer era mais intenso com a novidade da sensação fria da água sobre a pele do casal quente. Kouga, então, posicionou seu pênis entre as nádegas da ruiva ofegante, esfregando-o nelas devagar e sentindo o prepúcio ser afastado da glande com a fricção.

— Ahh... Kouga! Anda, enfia logo essa rola em mim!

— Me chama daquele jeito que eu gosto... — retrucou ele, ligeiramente rouco.

— HOMÃO DA P****! — exclamou ela, bem alto. No mesmo instante, o homem a preencheu com ímpeto, fazendo-a se desmanchar de prazer. — AHH! ME TORA NO MEIO, MEU MACHO GOSTOSO!

Kouga segurou os quadris de Ayame, que se apoiava na parede, e começou a penetrá-la fortemente, até a assustando um pouco. Não que ela não estivesse apreciando a desenvoltura de seu amado; é que ele esteve tão desanimado nas últimas semanas que sua energia para o sexo agora a impressionou.

— Ohh...! Eita p****! — ofegou o moreno, em transe. Suas pernas doíam, mas ele mal se dava conta disso. O importante era dar prazer à sua esposa, o que era extremamente prazeroso para ele também. — Saudade de comer essa boceta!

— Mais! Mete mais! — pedia ela, desesperada, olhos fechados. — Ai, que gostoso! Mais forte! F*** mais forte, amor!

O som dos corpos se chocando era alto e ecoava dentro do pequeno banheiro. Nenhum dos dois se continha em seus gemidos; a ânsia por se amarem era imensa. O moreno olhava extasiado para o próprio membro que entrava e saía rapidamente no corpo da mulher que ele amava.

— Não consigo me segurar mais não... — afirmou Kouga, meio preocupado em desapontar a esposa. Por sorte, Ayame estava mais do que excitada e também não faltaria muito para que ela atingisse o clímax.

— Segurar pra que, doido?

— Pra nossa trepada não acabar tão depressa... Eu tô morto de tesão...

— Não segura nada não, só continua metendo! AH! KOUGA! Homão gostoso da p****! Mais forte! Eu... — e ela gozou rapidamente, emitindo um alto brado de satisfação.

— P*** QUE PARIU! Mulher gostosa da p****! Vou gozar também!

Os espasmos da musculatura vaginal de Ayame enlouqueceram o moreno, que poucos segundos depois também obteve um forte orgasmo, ejaculando dentro do canal estreito enquanto erguia o rosto para cima, trêmulo de prazer.

Desligando-se do corpo dela, Kouga de imediato procurou se apoiar na parede. Ficara exausto e suas pernas não queriam mais suportar o peso de seu corpo graúdo. Ayame ainda gemia um pouco; puxou-o de leve para o chuveiro, no intuito de lavá-lo. Ao olhar o rosto do marido, viu, além da expressão de fadiga, um belo sorriso aliviado.

— Tava preocupado, sabe? Pensei que nunca mais iria conseguir dar no couro contigo — admitiu ele, olhando para Ayame com ternura. — Foram oitenta e nove dias sem a gente conseguir trepar.

— Ave Maria, macho, tu tava contando?!

— Tava.

— Oxe... Como se eu fosse deixar de te amar, seu abestado...

— Ah, eu sei lá, nega... Tu é tão nova...

— E tu é tão bobo... Tá vendo que vou deixar meu cabra sozinho? Eu gosto de tu com doença de pele e tudo. Deixe de pantim.

Ayame enrolou uma toalha no marido e se pôs a ajudá-lo a sair do banheiro, cuidadosa. Logo chegaram ao quarto do casal e ela o auxiliou a vestir uma bermuda, colocando suas roupas em seguida.

— Vou te trazer comida, visse? — disse a ruiva, fazendo menção de se afastar, mas teve seu braço retido pelo marido, que a olhava profundamente.

— Eu te amo, Ayame.

Ela parou por alguns instantes, comovida com aquela declaração à queima-roupa. Kouga não era homem de dizer “eu te amo” com muita frequência; ele era de poucas palavras. Preferia demonstrar seus sentimentos por ações. Os olhares se encontraram: eles, apesar de tudo, estavam genuinamente felizes um com o outro naquela noite abafada.

— Eu também te amo, meu bem. Vou trazer tua comida.

— Bota bastante macaxeira, eu gostei.

— Pra já — afirmou ela, saindo para a cozinha. — E ovo?

— Quero também.

— A febre passou?

— Passou.

A mulher foi rápida para a cozinha, mas, ao retornar com a porção de comida para Kouga, o encontrou já adormecido.

— Tadinho de Kouga... Bichinho teimoso... — comentou ela, soltando os cabelos do capoeirista exaurido e o acarinhando suavemente.

 

***

 

Enfim, o sábado chegou. Kouga e Ayame fizeram todos os preparativos que a ialorixá Hitomiko lhes impôs para a participação no trabalho — abstinência de bebida alcoólica, a não-conversação sobre coisas negativas, o uso de roupas claras e confortáveis. Então, a gira começou.

Seria um dia emocionante para o casal de capoeiristas. Ambos bateram palmas para acompanhar o cantar dos pontos para o início do rito.

Eu abro a nossa gira com Deus e Nossa Senhora, eu abro a nossa gira, samborê pemba de Angola...

Houve o momento da defumação com a queima de incensos para ajudar a purificar o ambiente de trabalho e a aura dos presentes. Mãe Hitomiko, trajando um grande vestido amarelo com detalhes em ouro, um adereço como uma coroa em sua cabeça, brincos de argola e postura imponente, veio para o centro da roda, enquanto os ogãs² com seus tambores e atabaques determinavam o ritmo de uma canção que invocava a presença de Oxalá e outros orixás, além de outras entidades que pudessem vir para orientar os consulentes³.

Foi quando a sacerdotisa começou a dançar no centro da roda, com delicadeza e suavidade, quase como que se estivesse valsando sozinha. Apesar da recomendação de não se dar a assuntos supérfluos durante o trabalho, Ayame não resistiu e cutucou o marido:

— Macho, por que ela tá dançando fora do ritmo desse maculelê?

— Amor, ela não tá ‘dançando fora do ritmo’, ela tá incorporada. E não é maculelê, é ponto cantado de umbanda.

Outros médiuns começaram a rodar em vários sentidos, em transe. Isso, Kouga reconheceu: era a incorporação dos caboclos, que usualmente provocavam aquele tipo de movimento em quem os recebia. Nenhum, porém, tinha a mesma imponência da ialorixá Hitomiko, que girava menos e movia graciosamente suas mãos.

De repente, um dos médiuns se colocou à frente de uma senhorinha, iniciando um diálogo. Ela lhe pedia uma graça em favor de um filho doente. Kouga estava totalmente concentrado para ouvir a conversa da idosa com o espírito, quando se assustou ao ver outro médium parado na frente dele, fumando um charuto, com expressão brincalhona. O médium era pequeno em estatura e magro, porém tinha uma voz poderosa, que arrepiou o capoeirista.

— Tá com medo, meu ?

— N-não, não senhor.

Ele fez menção de se abaixar para ficar de joelhos, mas foi impedido pelo guia incorporado no médium.

— Que ideia é essa, rapá, eu sou teu irmão... Sou o Caboclo Flecheiro. Eu que ajudo os irmãos que vêm aqui. Deixe pra te ajoelhar numa missa.

— Oh... S-se é assim, então eu fico em pé mesmo — afirmou Kouga, meio cismado ainda.

— O que tu quer, seu menino?

— Eu... Eu tô doente. E Mãe Hitomiko disse que erraram minha doença.

— E erraram mesmo. Toma um banho de descarrego com sete ervas. Assim que tu tomar esse banho, vai bater uma pessoa na porta da tua casa... É uma professora, não estranhe não — o médium tragou o charuto. — Essa pessoa não te conhece muito bem, mas vai te dar um dinheiro. É pra tua consulta em Recife. Tu vai procurar um reumatologista, entendeu?

— E-entendi... Mas por que reumatologista?

— Porque o reumatologista que vai saber que doença é essa. Vai lembrar o nome das ervas pro banho?

— Vou... Mas eu vou sarar da doença com esse banho, não vou?

— Não.

— Não?!

O médium encarou profundamente o moreno, tragando o charuto mais uma vez.

— Pra tudo na vida há um porquê, meu . Tu vai tomar o banho pra limpar a alma, porque tu tá carregado de amargura. Com a alma limpa, tu vai conseguir lidar com essa doença.

— Mas... Eu preciso sarar, eu preciso trabalhar! Eu tenho família pra dar de conta!

— Calma. Apenas vai fazer o que te mandei. É pro teu bem. E não fica pensando besteira. Deus sabe o que faz. Fecha os olhos, toma o passe.

— Espera, seu moço, espera — volveu Kouga, nervoso. — Eu perdi a minha filha de criação e...

— Sim, eu sei que tu perdeu a tua menina. Mas não te avexe não, ela tá viva e bem.

Os olhos do capoeirista se arregalaram e seu coração disparou no peito.

— Mas onde? Onde, pelo amor de Deus?!

— Tá no outro lado do mundo. E por enquanto é só isso que tu precisa saber, não posso dizer mais nada enquanto tu não deixar de ser ansioso e pessimista. Até lá, tu vai ter que passar por isso, sinto muito. Reze por ela, que é melhor. Agora o passe.

Kouga fechou os olhos, ainda muito aturdido com aquilo que ouvira. Enfim, decidiu parar de se preocupar. Se as previsões do guia se cumprissem, ele saberia que não estava abandonado pelos seres superiores. Lágrimas rolaram por seu rosto.

Meu Bom Jesus... Nossa Senhora... Mamãe Oxum... Cuidem da Rin por favor, não aguento mais de saudade dela...”

 

***

 

John Sesshoumaru se esforçava por ler o e-mail caprichado de Kagura Thompson sobre a misteriosa mulher que perturbava seu melhor amigo. Por mais que se esforçasse, porém, não conseguia enxergar sem aproximar totalmente o rosto da tela do Ultrabook. Já que não havia remédio, o loiro pegou o aparelho e o aproximou dos olhos. Ele não queria depender do leitor de tela.

— Hmm, Kagura mandou tudo em fonte tamanho 36, coitada, achando que eu conseguiria ler... Pelo menos não vou precisar forçar tanto. “Ann Kikyou Wright, 27 anos, graduada em Serviço Social pela Universidade Metropolitana de Leeds, autora dos artigos ‘Representação social do envelhecimento, exclusão e práticas institucionais’ e...”

— John? — chamou seu pai, assomando à porta. — Estudando, filho?

— Não, eu... Só estou conferindo meus e-mails, pai. Entre — respondeu ele, concentrado. Toga Ferguson veio e sentou-se ao seu lado na cama.

— Quer que eu leia para você?

— Bem... Okay. Leia esse aqui — afirmou Sesshoumaru, com um sorriso maldoso. — Leia tudo e eu vou te contar uma coisa.

— Tudo bem.

O nobre loiro leu em voz alta o e-mail com todas as informações acadêmicas sobre Kikyou, enquanto seu filho continha a custo sua vontade de rir, imaginando o que o pai diria ao saber que Naraku poderia estar apaixonado por aquela moça. Após narrar o que estava naquele e-mail, Toga voltou o olhar deslumbrado para o filho.

— Sesshoumaru...

— Gostou do perfil dessa mulher, pai?

— Mas é claro! Eu estou encantado! — exclamou Toga, surpreendendo um pouco Sesshoumaru, que não entendeu direito o porquê da empolgação. — Sesshoumaru, Iza e eu estamos à procura de um assistente social com esse perfil para trabalhar na ONG que ela pretende formar a partir do nosso grupo de apoio a crianças e adolescentes em risco. E essa Ann Kikyou é perfeita para isso!

O queixo de John Sesshoumaru caiu. Ele nem tinha pensado nesse detalhe.

— Você quer que eu contate a moça, pai?

— Não, deixe que eu mesmo faço isso! Vou marcar um almoço num domingo e convidá-la para vir aqui nos conhecer.

— É uma boa ideia — afirmou o loiro mais jovem, mordendo os lábios em expectativa. Ah, que oportunidade maravilhosa ele teria para espicaçar Naraku e provocá-lo! Seria a melhor das vinganças. — É uma grandiosa ideia, pai.

Como que lendo seus pensamentos, Toga comentou, ainda com o olhar na tela do Ultrabook:

— Tenho que mandar este e-mail para Naraku também, ele vai gostar muito de saber que achei uma assistente social e...

— Nããão, pai, não! Pode deixar que eu falo com ele. Você procura a moça, eu aviso Naraku, pode ser?

— Pode ser, meu filho. Faça como quiser, desde que avise seu irmão — respondeu o nobre, inocentemente, sem desconfiar das verdadeiras motivações do filho. — Que achado, essa Ann Kikyou! Estou muito feliz. Espere aí, vou falar com Iza. Posso levar seu Ultrabook, Sesshoumaru?

— Claro que pode, pai — retornou o loiro, com um sorriso enorme. — Fique à vontade. Acho que Izayoi também vai gostar disso.

E o empolgado Toga se retirou do quarto, fechando a porta e deixando Sesshoumaru sozinho. De imediato, ele começou a rir, baixo, para não ser descoberto. Imaginava as caras e bocas do amigo ao presenciar Kikyou andando para lá e para cá dentro de Ferguson Manor.

— Hu, hu, hu, hu... — ria o loiro, com ar de menino travesso que está aprontando uma grande peraltice. — Meu prezado Naraku, vou me divertir vendo você tomar no c*!

 

***

 

¹ — Ialorixá: sacerdotisa de umbanda, conhecida popularmente como mãe-de-santo.

² — Ogã: médium que toca os instrumentos durante os ritos de umbanda.

³ — Consulente: aquele faz uma consulta.

 

 


Notas Finais


Fique à vontade para entrar no grupo "Fics da Okaasan" - https://www.facebook.com/groups/254208075030050/
#Curiosidade - Por que eu escolhi a Oxum como orixá da Hitomiko? Simples: ela é uma orixá super materna! (E tudo que é materno eu curto, hahahaha) A propósito, eu sou evangélica que gosta de ler sobre religiões. ;-)

A expressão "homão da p****" é dedicada a vocês, @Yasamina e @pifranco! Obrigada, @MoniOliv, por me explicar a função da benzedeira (sério, eu não sabia o que elas faziam) =O

Depois volto para editar as notas finais corretamente!

Beijos e bom feriado para todos!
@Okaasan


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