Foi difícil para os irmãos Wright conseguirem se desvencilhar da recepção hipercalorosa do francês Jakotsu. Depois de convencer o coordenador, com muita dificuldade, de que não era preciso que ele lhes mostrasse as instalações da faculdade, Ann Kikyou e Raymond Inuyasha conseguiram ir até a uma modesta área de alimentação que havia no primeiro andar do prédio. A movimentação de pessoas aumentava gradativamente.
— Ufa — fez a moça. — Pensei que ele não iria nos largar.
— Já estava preocupado. Ele não parava de me olhar com aquele jeito de, de... Sei lá — afirmou Inuyasha, coçando a cabeça. — De bicha louca!
— Raymond, respeite as pessoas. Isso são modos? A Bíblia diz que tudo o que quisermos que as pessoas nos façam, devemos fazê-lo a elas também — aparteou Kikyou, deixando o caçula revoltado. — E vice-versa. Portanto, se você quer respeito...
— Keh! Não me chame de Raymond, Ann!
— Não me interrompa, cadê a educação que eu te dei? Se você quer respeito, respeite!
— Dá um tempo, Ann! Aquele gay estava agarrando nós dois! — protestou o rapaz. — Para você não pega nada, mas e para mim? Eu sou muito macho! E comprometido!
A mulher revirou os olhos, enquanto abria sua pasta.
— Francamente, Inuyasha, você já é um adulto. Não deveria ficar se apegando a essas bobeiras. Mr. Jakotsu tocou apenas em nossos ombros. E... — ela franziu o cenho. — Inuyasha, as fichas de inscrição ficaram com você?
— Espere — disse ele, olhando seus pertences. — Não, mana.
— Ah, meu Deus! Esqueci as nossas fichas em casa! — exclamou Kikyou, nervosa. — E já são cinco e cinquenta e oito...
Inuyasha se pôs de pé.
— Não se preocupe, mana. Eu posso ir até a secretaria e pedir outras. Afinal, já estive lá; tem salas demais por aqui e você pode se confundir. Vá para a sala de aula.
— Mas e você?
— Eu te deixo na porta da sala e vou pegar as fichas. Não demoro.
Os dois irmãos se levantaram e seguiram pelo corredor que Inuyasha indicou; naquele momento, já havia uma quantidade considerável de alunos por ali, procurando por suas respectivas salas. De acordo com o conteúdo programático, Inuyasha e Kikyou teriam a primeira aula juntos. A disciplina em questão era Gestão de Pessoas.
Os dois seguiram até uma folha afixada na parede, que continha as respectivas salas de cada aluno do centro de Ciências Sociais e Aplicadas.
— 17 — disse o moreno. — Vem, mana.
Pegando a mão de Kikyou, Inuyasha andou decidido até encontrar a sala. A moça percebeu que alguns alunos os observavam; ela lutou para não imaginar que aqueles olhares seriam de desdém pelas roupas humildes de ambos. Com o rosto corado, Ann Kikyou decidiu refazer as contas assim que tivesse a oportunidade, para ver se teria condições de comprar ao menos uma camisa nova para Inuyasha. Ele era um pouco vulnerável em relação à própria aparência e a moça não queria vê-lo triste ou abatido por olhares fúteis de pessoas que não tinham a mesma dificuldade na vida.
— Aqui, a sala 17. Eu já venho, mana.
— Inu, espera... — pediu ela, insegura. Não estava muito à vontade. — Vamos juntos.
— Não, você fica aí, eu não demoro — volveu Inuyasha, sem entender o receio da irmã. — O que foi?
— Nada, eu só...
— Boa noite.
Os dois olharam para a pessoa que os cumprimentava: era Sandie Cameron, que acabava de chegar. A escocesa estava vestida com um terninho preto justo que valorizava suas curvas, brincos e acessórios vermelhos e uma maquiagem modesta, porém elegante. Ela trazia no rosto um ar divertido.
— Boa noite — murmurou Kikyou em resposta. A presença poderosa da outra a deixou um pouco atônita e mais do que nunca ela lamentou por não poder ter comprado roupas novas.
— Miss Cameron — saudou-a Inuyasha, com um meio sorriso. — Boa noite. A senhorita vai estudar conosco?
— Vou, mas de uma forma diferente. Eu sou professora — respondeu ela, olhando atentamente para ambos; Ann Kikyou tentara ser simpática, mas a timidez falou mais alto e ela estava muda. — Vocês devem ser irmãos de Andrew Miroku.
— S-somos — gaguejou a mais velha, porém, pigarreou e melhorou a postura. — Somos. De onde a senhorita o conhece?
— Nós somos amigos. Venho no ônibus que ele dirige — foi a resposta evasiva. A escocesa sentiu vontade de troçar do jeito acanhado de Kikyou, mas desistiu; não seria uma atitude honrada de sua parte. Era melhor ficar com suas impressões para si mesma e, também, não queria problemas com o seu mais novo objeto de interesse. Estendeu a mão, formalmente, para Kikyou e Inuyasha. — Sandie Cameron.
— Prazer. Ann Kikyou — respondeu a outra, devolvendo o cumprimento. — E ele é o Raymond Inuyasha...
— Só Inuyasha está ótimo — resmungou o rapaz. — Raymond, Raymond... Nome brega!
— Não seja bobo! — estrilou Kikyou. — Não repare, Miss Cameron. Ele só tem tamanho, é uma verdadeira criança.
— Mentira, Miss Cameron! Ela é que igual uma tia velha!
— Você me chamou de que?!
— Calma, crianças, não briguem — interveio Sango.
— Não somos crianças! — retrucaram os dois, em uníssono; a escocesa gargalhou e só então os dois irmãos caíram em si e se desculparam para ela, que agora dava um sorriso sincero a eles.
— Vamos entrar?
— Eu já volto — afirmou Inuyasha, se afastando. — Com licença, Miss Cameron. Mana, pode ficar tranquila.
— É que esquecemos nossas fichas de inscrição, Miss Cameron — explicou Kikyou, ante o olhar interrogativo da outra. — Ele foi buscar outras.
— Sem problemas. Ele não deve demorar, não é?
— Não. A senhorita é escocesa? Seu sotaque é diferente...
— Sou. E pode me chamar de você, certo?
— Tudo bem.
As duas entraram na sala de aula.
***
Inuyasha andou rapidamente até a porta do Instituto. Avistou uma silhueta com uma boina e o casaco dos Newcastle Falcons e não hesitou em chamá-lo:
— Andy, Andy!
— Inuyasha? — disse Miroku, se virando para ver o irmão. Ambos trocaram um breve abraço e Inuyasha estranhou o mais velho, que estava nitidamente nervoso.
— Mano, o que você tem?
— Você não deveria estar na aula, menino?
— Sim, mas Ann esqueceu as fichas. Vim pegar outras na secretaria e escapuli para vir te ver.
Miroku entrou com ele, andando lentamente e procurando falar em voz baixa.
— Olha, Inu, vamos fazer o seguinte? Vá assistir a aula, depois a gente conversa.
— Não, Andy. Dá para a gente se falar agora. Quem vai dar aula para nós é aquela professora gostosa que te deixou babando na semana passada.
O rapaz estremeceu e corou vivamente, o que não passou despercebido aos olhos do caçula.
— Que foi, Andy?
— Inu, Kikyou não pode me ver!
— Por quê? Você está tão estranho...
Miroku aproximou-se mais do irmão, falando o mais baixo possível.
— Cara, se Kikyou me vir desse jeito, ela... Ela vai descobrir, ela vai! — lamentou-se ele.
— Descobrir o que, cara?
— Eutranseicomela.
— Hein? Fale direito, não deu para entender nada.
O rapaz tirou a boina da cabeça, nervosíssimo.
— Droga, Inuyasha, você é surdo?! Eu estou dizendo que... — e ele murmurou, lívido. — Sabe... Mrs. Cameron?
— O que tem ela? E por que Mistress, ela é casada?
— Divorciada... Então, mano... Ela e eu...
Raymond Inuyasha arregalou os olhos; pelo estado de nervos e pelo rubor do irmão, não era preciso dizer muita coisa.
— Miroku, você não está querendo me dizer que...
— Hoje de manhã, lá no centro de Coventry... — começou a dizer ele, rapidamente, olhando para os lados, morto de medo. — Eu estava conversando com você, ela apareceu, me chamou para comer um desjejum escocês, me fez trocar uma resistência de chuveiro na casa dela, depois tirou a minha roupa e...
— Miroku...!!! — fez o outro, impressionado.
— Não acredito que fui cair nessa... Quando dei por mim, já estava feito um bicho em cima dela, um animal no cio. Ela é tentadora, deliciosa, sabe fazer um monte de coisas... — dizia ele, aturdido. — Não me olha assim, droga!
— Cara, eu também NÃO acredito! — murmurou Inuyasha, olhos enormes. — Você transou com a professora gostosa, mano?!
— Transei! — respondeu ele, com raiva. — Transei duas vezes! E, se você quer saber — completou, irritado. — Ela... Ela me convenceu a ir para lá hoje à noite para a gente transar de novo. Passei o dia inteiro nervoso, nem consegui comer nada hoje, além do café escocês que ela me deu, às nove. Eu não deveria ir, mas...
— SÉRIO QUE VOCÊ VAI TRANSAR COM ELA DE NOVO, CARA?! QUE INVEJA!
As pessoas olharam imediatamente para Inuyasha após ouvi-lo gritar.
— Não grite, seu idiota! — ralhou Miroku, enlouquecido. — Quer me matar de vergonha?!
—Desculpe, não foi por mal... É que eu não consigo acreditar! — volveu o caçula. — Andy, você não se sente culpado?
— Por que acha que estou nervoso?! É ÓBVIO! Eu amo Mrs. Cameron, mas...
— Ama?! Já?!
— Desde aquele dia. E você me conhece... Não brinco com essas coisas. Inuyasha, você vai se atrasar, volte para a sala.
— Vou voltar, mas... Mano...
— O que é?
— Vocês usaram camisinha?
— Não, claro que não — corou Miroku, sem jeito. — Não tinha planejado nada daquilo.
— Você enlouqueceu mesmo — retrucou Inuyasha, sério. — Já pensou se ela engravida?
O cérebro de Andy Miroku parou ao ouvir tais palavras.
— Tsc, tsc. Mano, como você foi esquecer isso? — prosseguiu o caçula. — Já pensou o tamanho do problema que seria para você criar um filho justo ag- EI!
O rapaz caiu desmaiado no chão.
***
Na sala de aula da disciplina Inferência em Processos Estocásticos, no segundo andar...
— Continuando — dizia John Sesshoumaru para uma classe de alunos absurdamente calados e nada animados a lhe fazer perguntas — O resultado não pode, então, ser predito a partir do conhecimento das condições sob as quais o experimento foi realizado. Neste caso, fala-se do experimento como sendo um experimento envolvendo o acaso ou, simplesmente, experimento aleatório.
Um rapazinho que usava um crucifixo grande no pescoço ergueu a mão no ar; Sesshoumaru, sem notá-lo, prosseguiu falando, de pé ao lado da lousa.
— Devido à imprevisibilidade ou ao elemento do acaso no experimento, o tipo de modelo matemático usual envolvendo equações determinísticas é inadequado e um novo tipo de estrutura matemática é necessário para representar os fenômenos de interesse, denominados processos estocásticos.
As pessoas se entreolhavam ao notar que Sesshoumaru não dera espaço ao jovem para fazer sua pergunta.
— Uma vez que o resultado do experimento não é previsível, ele vai ser um dentre os muitos resultados possíveis. O espaço amostral de um experimento aleatório é o conjunto de todos os resultados possíveis do experimento... Posso saber o motivo do burburinho? — indagou ele, incomodado com o som de conversas paralelas.
— Mr. Craddock, eu queria lhe perguntar algo — disse, inseguro, o aluno.
— E por que não pergunta?
— Eu ergui a mão e...
Batidas à porta; o loiro arqueou uma sobrancelha. Odiava alunos que chegavam atrasados.
— Entre! — exclamou ele, incomodado. Os alunos ficaram surpresos ao ver o presidente do Instituto assomando à porta.
— Com licença, boa noite — afirmou Toga Ferguson, carismático como sempre em um terno risca-de-giz, entrando na sala. Era notória a diferença de gênio entre pai e filho, cuja semelhança física era imensa. — Desculpe por interromper sua aula, Mr. Craddock.
— Boa noite, Sir Ferguson — respondeu Sesshoumaru, que tinha o costume de tratar o pai formalmente dentro da faculdade. — Fique à vontade. Para quem não sabe, este é o fundador deste Instituto — disse ele à classe, agora extremamente interessada.
— Vim apenas conhecer esta turma. Bem, meus prezados — disse o homem, educadamente. — É um prazer tê-los conosco. Não sei se vocês todos me conhecem... Sou o Toga.
— O senhor é parente do Mr. Sesshoumaru? – indagou uma mulher, curiosa.
— Apesar de eu ser bem mais bonito, sou o pai dele, senhorita.
A classe riu, se descontraindo um pouco. John Sesshoumaru voltou os olhos aborrecidos para Toga, irritado pela interrupção.
— O senhor deseja alguma coisa, Sir Ferguson?
— Sim, Mr. Craddock. Quero falar à classe.
Discretamente, o loiro mais jovem tateou a parede, procurando a cadeira.
— Bem... Queridos, espero de coração que vocês gostem de estudar conosco. O motivo de eu estar aqui é porque gosto de estar, pelo menos, uma única vez com os alunos do Instituto Craddock. Nossa escola foi fundada há onze anos e, sim, o nome dela é uma homenagem a este garoto aqui, o meu amado filho John Sesshoumaru.
— Sir Ferguson, não sei onde está vendo um garoto aqui – rosnou Sesshoumaru, nitidamente constrangido.
— Oh – fez Toga, fazendo-se de envergonhado. – Sorry. Permitam-me fazer uma correção: O nome de nossa escola é uma homenagem a este garoto ranzinza e rabugento aqui.
A classe riu de novo.
— Enfim, caros alunos... Gostaria também de ressaltar que estamos arrecadando agasalhos para doação a pessoas carentes do subúrbio de Londres. Há caixas decoradas em cada corredor do prédio. Quero contar com sua valiosa colaboração.
— Sim, claro — afirmavam uns e outros faziam gestos de aprovação com a cabeça.
— Também mantemos um grupo de apoio a crianças e adolescentes em situação de risco e precisamos de voluntários. Alguém gostaria de obter mais informações sobre nosso trabalho? Se sim, peço que procure pelo coordenador geral, Mr. Naraku Octavio, na sala 21 do segundo andar.
— Eu quero — afirmou o rapazinho ignorado por Sesshoumaru durante a aula.
— Que bom. Qual é seu nome, jovem?
— Kohaku Agnelli, Sir.
— Italiano? — indagou o homem, simpático, levando Kohaku a sorrir.
— Não, sou de San Marino.
— Que interessante! Muito obrigado, Mr. Agnelli. Aguardamos por você na sala 21. Teremos um breve intervalo para lanche às 20:30. Vá até lá para conversarmos.
— Obrigado — murmurou o garoto.
— Por ora, é isso... — exclamou Toga. O clima da classe agora estava consideravelmente mais leve. — Muito obrigado a todos vocês, queridos. Espero que apreciem a aula de Mr. Craddock. Não é por ser meu filho, é que ele é simplesmente brilhante. E nosso corpo docente é composto dos melhores professores do Reino Unido... E, cá para nós, este meu filho é o melhor, em minha singela opinião.
— Pai, pare com isso! — reclamou o loiro, corando. Morria de vergonha de elogios e os alunos se divertiram ao ver o tão sisudo e austero John Sesshoumaru com as faces rosadas. Toga o ignorou solenemente.
— Afinal de contas, quem mais vocês conhecem que defendeu uma tese incrível de doutorado em Física Nuclear, com apenas trinta por cento de visão?
O silêncio se instaurou na sala e as pessoas se entreolhavam, atônitas. Sesshoumaru quis morrer.
— Paaaaaaai! — gemeu ele, furioso. — O que está fazendo?!
— Ué... Ele é deficiente visual? — indagou uma mulher alta, lá atrás.
— Eu não sou cego! — afirmou Sesshoumaru, se sentindo aviltado. Sir Ferguson, atônito, meneou a cabeça.
— John, qual foi o nosso combinado na reunião?
— Nem vem, pai! Eu não vou expor meus problemas pessoais para ninguém! — exclamou ele.
— Isso não é expor seus problemas pessoais, rapaz. Isso é ser realista! Seus alunos precisam saber que você está com dificuldades para enxerg-
— CHEGA, PAI! SE EU ESTOU FICANDO CEGO, É PROBLEMA APENAS MEU! — berrou ele, se levantando e pisando duro até ao borrão escuro que ele sabia ser a porta da sala de aula. Deu uma trombada em alguém que estava parado à porta; a pessoa quase caiu.
John Sesshoumaru apenas disse um “I’m sorry” entredentes e se foi. Não reconhecera que a pessoa que agora o olhava intensamente era Rin Tibiriçá. O coração da brasileira ribombava no peito; ela presenciara toda a discussão, apesar de não haver entendido nada. Suspirou fundo de alívio ao ver que Toga não a convidara para entrar com o loiro lá dentro; as coisas poderiam ser piores.
— Eu sinto muito por isso — afirmou Toga Ferguson. Sua alegria fora varrida de seus olhos. — Peço que perdoem meu filho. Ele não está acostumado a essa nova realidade.
— Nós não sabíamos — comentou a mulher alta, lá do fundo, constrangida. — Kohaku ergueu a mão para perguntar alguma coisa para ele e ele não disse nada... Pensamos até que fosse por... deselegância, Sir Ferguson.
— Eu lamento muito — afirmou Kohaku. — Não deu para notar que Mr. Sesshoumaru não estava enxergando bem.
Toga enxugou o suor do rosto com um lenço.
— Não há problema, queridos. Tivemos uma reunião antes das aulas e ele havia concordado em não esconder sua dificuldade, mas... Enfim, como eu disse, não há problema em relação à aula de hoje. Aguardem, por favor, enquanto envio outro professor para cá. Vocês não ficarão sem estudar. Com sua licença...
E o diretor do Instituto Craddock, fazendo uma mesura, se despediu daquela turma. Rin continuava ali, à porta, apreensiva.
Não era necessário que Toga dissesse nada; ela sentiu a amargura nos olhos dele.
— Eu te ajudo a procurar por ele — disse ela, pausadamente.
— ¿Vas a ayudarme?
— Vou.
O imponente Toga saiu lado a lado da jovem indígena, preocupado com o filho.
~~~
— Eu não consegui, Octavio...
— Você é infinitamente mais burro do que eu pensava. Como esperava conseguir dar aula sem explicar aos alunos sua condição? Sem assistente, sem merda nenhuma?
Sesshoumaru e Naraku estavam sentados na sala da coordenação geral; o espanhol havia empurrado nas mãos do amigo uma barra de chocolate amargo, que era devorada com avidez. A ansiedade estava corroendo o loiro. Uma playlist de música pop era reproduzida no computador.
— Eu já disse que não quero expor essa cegueira...
— Sesshoumaru, largue de ser fresco — fez o outro, revirando os olhos e analisando fichas de inscrição. — O pior erro do seu pai foi ter te mimado. Entenda, lordezinho, fingir que enxerga não vai melhorar sua visão, seu grandessíssimo filho da p***!
— Você não sabe ser solidário em momento algum, não é, seu merda? Eu estou sofrendo!
— Para que ser solidário? Você está nadando no mar da autopiedade, não sou obrigado a aturar choradeira de gente que não quer superar as próprias dificuldades! Sofre é quem não tem o que comer!
— Está louco?! É óbvio que eu quero voltar a enxergar, seu idiota!
— Você deveria era se adaptar à falta de visão, desgraçado! Eu estou tentando te ajudar com isso há tanto tempo. A vida não é como nós planejamos.
— É fácil para você falar disso, porque você enx-
— Fácil o carajo! — exclamou Naraku, indignado. — Sabe de uma coisa, John? Você cansa a minha beleza!
— Beleza? Acho que você deve estar ficando cego também. Você é horroroso...
— Isso é recalque...
Batidas à porta. Uma, duas, três vezes.
— Onde está Jakotsu, Naraku?
— Deve ter saído para comprar mais porcarias. Aquela mona vai ter diabetes em breve se não parar de se entupir de doces — respondeu o espanhol, se levantando de onde estava e indo à porta do escritório.
Lá estava Raymond Inuyasha, meio afobado; não fora fácil escapar tranquilamente da situação desmaio seguido de surto do irmão mais velho. Entretanto, ele agora estava ali, finalmente, para pedir as fichas.
Os olhares se encontraram e Naraku Octavio pareceu deslumbrado pela imagem do rapazinho à sua frente. O espanhol se sentiu imediatamente atraído pelo moreno e sorriu enigmaticamente, perguntando de forma provocativa:
— Pois não, o que deseja?
— Ah... Eu... Boa noite, senhor, eu preciso d-de...
Aquele olhar predatório mexeu com algo no íntimo de Inuyasha, que agora corava e gaguejava, envergonhado. Não bastasse a forma descaradamente franca com que o homem diante de si o admirava; algo não estava certo, e o jovem Wright não sabia explicar o que estava acontecendo.
— Pode falar, meu jovem — afirmou Naraku, com voz macia e sensual. Ele não demonstrava afetação qualquer na hora de conquistar alguém; pelo contrário, o psicanalista agia e falava de forma viril e dominante.
— B-boa noite... Eu p-preciso de fichas d-de inscrição.
— Oh, claro. Pode esperar um minuto? Vou pegar... Quer quantas, muchacho¹? Como se chama?
— D-duas, senhor. E m-meu nome é Inuyasha Wright — gaguejou o rapaz.
— Oh. Japonês?
— D-descendente de imigrantes japoneses, senhor.
— Interessante. Eu sou Naraku Octavio...
— Prazer em c-conhecê-lo...
— O prazer é todo meu — replicou o espanhol, carregando a voz de sensualidade.
Esse garotão não me engana, está louco por mim, pensou Naraku ao analisar a expressão corporal do jovem moreno à sua frente. De fato, as posturas de Inuyasha mostravam tudo, menos indiferença.
— Eu já volto... Mr. Wright — disse ele, sensualmente, fitando sem pudor os lábios de Inuyasha, que imediatamente desviou os olhos. Seu coração batia forte no peito e o jovem Wright se sentia apavorado
E o homem voltou para dentro da sala, abrindo um arquivo de aço e consultando algumas pilhas de papel. O loiro terminava de comer seu chocolate e indagou:
— Para quem você estava se insinuando fazendo aquela voz de viado ativo?
Naraku pegou as fichas em branco e se aproximou de Sesshoumaru, dizendo em tom sigiloso:
— Um aluno novo que é uma delicinha! E, para completar minha sorte, acho que ele ficou bem interessadinho em mim!
— Aluno novo, viado como você? Quero distância — volveu o outro, no mesmo tom. — Como sabe que ele é viado? Ele desmunheca como Jakotsu?
— Não, é bem sério esse aí. Mas foi fácil descobrir... Ele não parava de olhar para a minha boca e ficou vermelho como um pimentão. Imagine, John... Alto, moreno, olhos cor de mel, tímido... Umas coxas grossas...
— Argh! Me poupe! — protestou o loiro. — Não quero saber de macho não.
— Pois eu, sim — respondeu Naraku, sonhador. — Ainda vou ter o privilégio de ver esse garoto de quatro na minha frente. Já volto.
Alheio a tais conversas, Inuyasha esperava, um tanto apreensivo, do lado de fora. O rapaz tremera na base ao ver aquele funcionário do Instituto flertando consigo, ainda que discretamente. Naraku não era corpulento, mas era bastante sensual em seus olhares e gestos comedidos. Seus cabelos cacheados e com certo volume que lhe davam pouco abaixo das omoplatas pareciam ser macios ao toque. Aquelas mãos magras de dedos longos pareciam ser capazes de... Meu Senhor! O que estou pensando?!?
Agoniado, Inuyasha balançou a cabeça. Ficou surpreso ao ver que o homem já estava ali, ao seu lado, com as fichas.
— Perdoe-me pela demora. O outro coordenador precisou sair e não me disse ...
— S-sem problemas, Mr. Naraku — murmurou o jovem, estendendo as mãos para pegar as fichas. Contudo, Naraku deixou-as cair no chão propositadamente.
— Oh, me desculpe. Vou pegar os papeis, querido.
E, sem dar tempo a Inuyasha para se abaixar, o espanhol se inclinou rapidamente e pegou as fichas caídas. Todavia, ainda abaixado ele ergueu os olhos para o jovem, percorrendo o corpo do outro com seus olhares óbvios de flerte. Foi com absoluto pavor que Inuyasha sentiu o sangue fluir rapidamente até seu baixo ventre ao ver o espanhol praticamente de joelhos à sua frente, olhando-o lascivamente. O jovem Wright estremeceu por dentro e, fazendo um grande esforço, desviou o olhar do de Naraku, que agora estava de pé, com um sorriso felino no rosto.
— N-n-não precisava, Mr. N-Naraku... Obrigado — afirmou ele, realmente desesperado, e saindo às pressas da presença do mais velho, sem sequer se despedir.
Ainda de pé à porta da sala, o espanhol sorriu, orgulhoso de si mesmo. Conseguira deixar um homem excitado sem qualquer esforço. Jakotsu voltava para o local, com mais refrigerantes e donuts, e quase foi derrubado pelo Inuyasha que praticamente corria pelo corredor do segundo andar.
— Ui... O que deu no boy magia? Uma diarreia? — comentou o francês para o espanhol que estava observando a cena.
— Nada, Lefevre. Ele só paudureceu ao conversar comigo.
— Comment? Ah, Octavio, o que você fez desta vez, salope²?!
O psicanalista gargalhou. Os dois agora entraram para a sala.
— Desta vez, nada! Só olhei para ele... Daquele jeito.
— Conta isso direito, sua safada. Ele é muito religioso; eu o conheci antes da aula começar. Não ia ficar animadinho assim sem que você o provocasse, não acha? Quer uma Coca-Cola?
— Mas é sério, Jakotsu. Eu o provoquei bem menos do que aos outros alunos com quem já transei. E ele sequer soube disfarçar... E, não, eu não posso tomar isso.
— Olha... Agora que você falou, eu parei para pensar... Ele é meio inseguro, não é? Reparei isso. Ele parece ter receio da irmã julgá-lo, é muito agarrado a ela.
— Muito inseguro. Ele tem uma irmã?
— Tem. Ela é desenxabidinha, daquelas fanáticas religiosas que usam saia e cabelão. Mas é tão bonita como ele. E olhe que eu não acho graça em mulher nenhuma!
— Não tenho paciência com fanáticos — comentou o espanhol. — Já não quero nem ver essa irmã do cigarrón³ delicinha.
— Dá para parar com as conversas de viado, seus dois arrombados? Eu ainda estou aqui — protestou Sesshoumaru, sentado na poltrona, emburrado.
— Continue aí, lordezinho cegueta. Se não quer nos ouvir, coloque fones de ouvido. Os meus estão a dois palmos à esquerda do grampeador, na mesa de centro.
— Pois vou colocar mesmo... — e Sesshoumaru estendeu as mãos, tateando pelos fones até encontrá-los e acoplá-los em seu iPhone e ouvir suas músicas favoritas. Aproveitando a distração do loiro, Jakotsu inquiriu de Naraku, em voz baixa, apontando para o outro com o queixo:
— Ele não curte a fruta mesmo, Octavio?
— Quem, Sesshoumaru? Não, ele é hetero de verdade.
— Ah... Tem certeza?
— Absoluta, cariño. Fomos criados juntos, esqueceu?
— Que pena. Eu faria qualquer coisa para ter uma noite com um loirão gostoso desses. Quer uma balinha de menta? — ofereceu Jakotsu, tirando uma bala do bolso.
— Quero. A propósito, preciso de água...
— Mas, e você, Octavio? Convivendo com uma delícia de macho como Sesshoumaru, nunca sentiu vontade de...
— Sendo sincero? — volveu Naraku, bebendo água em grandes goles. — Não. São tantos anos com ele, dormindo juntos, tomando banho juntos, dividindo tudo... É como se ele fosse meu irmão. Não consigo vê-lo como um homem. Qualquer dia desses, vou te contar nossa história.
— Me conte mesmo, morro de curiosidade... — suspirou o outro. — Acho que não resistiria. É tão ruim ficar sozinho, Octavio! Estou na seca, sabia?
— Não se preocupe, Jakotsu, eu te ajudo a descolar uma aventura... — piscou Naraku.
Foi a vez de o francês olhar maliciosamente para o psicanalista.
— Não quer se aventurar comigo?
— Ah, mais essa... — riu Naraku. — Claro que não, gulosa. Você sabe que não me envolvo com colegas de trabalho.
Jakotsu se aproximou do outro homem e sussurrou próximo a seu ouvido:
— Do lado de fora daqui, não precisamos ser colegas de trabalho. Ah, mon cher4... Você nunca me deu a honra de provar seu gosto... Sabia que eu te acho delicioso, salope?
— Todo mundo me acha delicioso — troçou ele. — Acho que até a Rainha toparia ir para a cama comigo, se me conhecesse.
— Convencida — riu o francês. — Então... Posso ter esperança?
— Posso pensar no seu caso, gulosa — replicou o outro, afastando o francês de si com delicadeza, ainda sorrindo. — Mas hoje não. Tenho outros planos.
— Sério? Quais?
— Hoje quero uma cheirosa... — Jakotsu fez cara de nojo ao ouvir essas palavras.
— Quelle horreur! Une femme? Je dispense!5
O espanhol riu a valer.
***
1 — Muchacho: rapaz, em espanhol.
2 — Salope: cadela, em francês. Também é uma gíria para “bicha”.
3 — Cigarrón: gíria em espanhol para “bicha enrustida”.
4 — Mon cher: meu querido, em francês.
5 — “Que horror! Uma mulher? Eu dispenso!”, em francês.
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