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História Noite infernal - Quem sou eu? (Parte 1)


Escrita por: Bellalm

Notas do Autor


A história é dividida em poucos capítulos: cinco, no total, sem contar com o prólogo e o epílogo. Os capítulos são consideravelmente logos e dividirei cada um deles em duas partes na postagem, para evitar que acabe se tornando uma leitura cansativa e, assim, facilitar a vida de todos. Boa leitura!

Capítulo 2 - Quem sou eu? (Parte 1)


Aquelas palavras ecoavam pelos bosques. Teriam sido ditas no raiar do dia? Ou no final da noite? Teriam mesmo sido ditas, ou seriam apenas um pensamento? Uma ilusão? Não se sabia ao certo.

As preparações começariam logo cedo. Os comerciantes eram os que mais se engajavam, pois viam nas festividades uma excelente oportunidade de promover e vender seus produtos. As crianças também formavam um dos primeiros grupos a despertar. Elas corriam pelas ruas, gritando e rindo, contando histórias de terror que só poderiam ter saído de suas cabeças puras e inocentes.

Um homem já estava desperto. Mais do que isso, possuía plena disposição. Ele corria pela floresta, como se estivesse fugindo de algo. Mas não havia nada que o perseguisse, nem ninguém. Poderia possuir um compromisso? Dificilmente. Sua expressão era assustada e confusa, e ele olhava freneticamente para os lados. Parecia ver ou ouvir mais do que qualquer outro seria capaz, naquela situação. Correu por longos minutos. Quando suas pernas já pareciam prestes a ceder, tropeçou na raiz grossa de uma das árvores, e a queda foi inevitável. Tudo aconteceu tão rapidamente que ele sequer teve tempo de se proteger, e caiu com o rosto em direção ao chão. O golpe foi forte, mas era preciso muito mais para abatê-lo. Levantou o rosto quase que imediatamente. A queda pareceu ser o suficiente para despertá-lo de seu transe e, com olhos arregalados, percebeu que bem em frente aos seus olhos havia uma clareira e, a alguns metros de distância, uma casinha.

A casa estava cercada de plantas e árvores, que pareciam invadi-la. Saíam das janelas e também pelo teto. A natureza havia tomado conta daquele lugar, e era certo que ele devia ter sido abandonado há muitos anos atrás. A parte de madeira estava aos pedaços, e por entre suas frestas só se via escuridão. As paredes foram, um dia, brancas, mas agora eram esverdeadas pelo lodo. E, ao olhar mais cuidadosamente, ele notou que no teto havia dezenas de pássaros pousados. A visão, de alguma forma, o perturbou. O perturbou mais ainda quando, em seguida, todos os pássaros alçaram voo, ao mesmo tempo, e desapareceram por entre as copas das árvores na floresta.

Ele simplesmente se levantou, olhando para o casebre uma última vez, como que para se certificar de que não era uma mera ilusão, e voltou a correr pelo bosque, refazendo o caminho anterior, mas agora sem toda a inicial vitalidade e olhando fixamente para frente. Sempre para frente.

 

A cidade se tornava cada vez mais agitada. Ali, no meio da floresta, também havia dezenas de pessoas, que se esforçavam para que todos os lugares se enchessem de vida e brilho.

Quem sou eu? 

A voz parecia ecoar. Foi a primeira vez que a ouvi, e duvido que qualquer outro fosse capaz de ouvi-la também. Foi por aquele único motivo que decidi ficar.

- Ei, princesa! Chega de se enfeitar, ou os demônios vão acabar levando você! – o homem debochou, e os outros ao seu redor gargalharam.

Ele se referia a um rapaz que, a uma distância considerável de todos, olhava-se no reflexo do lago. As águas refletiam um rosto fino, delicado, belíssimo. Olhos verdes, levemente puxados, os cabelos loiros e compridos, cheios de cachos, caindo por seus ombros. A expressão era completamente enigmática. Mas aquele era um rostinho bonito demais para conter tanta preocupação.

A tristeza não lhe cai bem, Charles. Ela ofusca sua beleza.

Como se fosse capaz de ouvir aquelas palavras, ele levantou-se imediatamente e foi na direção dos outros, também rindo, mas não era um riso sincero. Era ensaiado, perfeito e talvez até um pouco agressivo. Mas ninguém notou.

- Ei, Charles, coloque essas faixas nos galhos daquela árvore. – o homem pediu.

- Por que não coloca você mesmo? - Charles questionou, mas continuou sorrindo.

- Preciso poupar energias, ou não encontrarei uma boa caça nesse maldito lugar. – o homem ergueu as mãos em seguida, como se estivesse se desculpando. – É, eu não trouxe o combinado para hoje. Não tive tempo, ontem estive muito ocupado...

- Eu o vi bêbado pelas ruas. – Charles completou, antes que o outro pudesse continuar sua argumentação.

- É, foi isso. Não deixa de ser um motivo nobre. – ele gargalhou. – Mas irão me matar se souberem que não trouxe uma carne de qualidade. Essa é a época do ano que mais exigem de nós, caçadores. – ele fez uma careta.

- Quase sinto pena de você. – Charles sorriu novamente, afastando-se do colega. – Considere feito. - com destreza e rapidez, amarrou a faixa vermelha num dos galhos da árvore. – Não há nada que eu não faça perfeitamente bem.

 

- Anda logo, Vince! – o mesmo homem gritava.

Minutos depois, reunido com seus dois mais frequentes companheiros de caça, ele se afastou do antigo grupo e adentrou mais a floresta, já com a besta à mão, preparado para qualquer animal que pudesse aparecer. Quanto mais cedo o matasse e levasse a carne como contribuição, mais cedo poderia se afundar nas bebidas e aproveitar aquela festividade que não passava de baboseira, mas era também a oportunidade perfeita para comer e beber às custas daquele povo bobo e supersticioso, além de ter o dia inteiramente livre para festejar.

Vince vinha lentamente atrás dos outros dois. Era bastante ágil, mas pensava demais. Pensar demais sempre foi e sempre será um defeito. Seus pensamentos impediam que ele agisse impulsivamente como os amigos; ele sempre calculava todos os percursos, as vantagens e desvantagens, as consequências e as possibilidades do que fazia. E, indiscutivelmente, era um medroso. Olhava para os lados assustado, como se a qualquer momento uma fera pudesse atacá-lo. Os amigos o achavam engraçado, assim como sua aparência nada comum a um caçador: era franzino, muito branco e pálido, com cabelos escuros e olhos redondos como duas frutinhas. Apesar de todas as indicações contrárias, ele era um excelente caçador. Havia algo que fazia com que, não importava a distância ou animal, ele o acertasse com suas flechas impiedosas. Ele também levava um machado preso à cintura, mas nunca haviam o visto usá-lo. Ele dizia que era por precaução. 

Sequer puderam avistar um animal. Não sabiam, mas haviam se transformado na caça. Vince foi o primeiro a avistá-la e, estando a alguns metros de distância, foi capaz de esconder-se atrás de uma árvore. Sabia que os amigos ririam dele: era tão medroso que se escondia de uma simples garota. Mas ele logo pressentiu o perigo.

Os outros dois logo a viram também. Era possível que sequer a tivessem notado enquanto passavam. Ela estava num dos galhos mais altos e grossos da árvore, sentada, despreocupada, quase como se fizesse parte dela, como se fosse uma de suas folhas. Mas ela sacudiu os pés, chamando a atenção dos homens. Eles pararam imediatamente, confusos com sua misteriosa aparição.

Ela era linda como uma pintura. Tinha os cabelos tão compridos que chegavam até seus pés. E loiros, claríssimos, muito lisos e partidos de lado. Eles não poderiam ver de tão longe, mas os olhos dela eram muito verdes. Um tom de verde claro e pálido como o loiro de seus cabelos. Ela usava roupas simples, de camponesa: um vestido bege e encardido, pequeno demais para seu corpo, deixando parte das canelas e os pés descalços expostos, além das mangas que cobriam apenas metade do antebraço. Não usava acessórios nem maquiagem, mas havia alguma elegância naquela mulher. Talvez fosse o jeito com que estava sentada: a postura impecável, as costas retas, as mãos apoiadas dos dois lados do corpo, os pés balançando para chamar atenção à sua presença. Ela os olhava completamente sem expressão. De fato, parecia-se extremamente com uma pintura: fria, sem vida e completamente bela, mas inumana.

Parecia. Ela era humana. Todas aquelas deliciosas comidas postas em cada canto da cidade, com seus cheiros fortes que pareciam grudar nas narinas de quem quer os sentissem, não eram nada. Podiam entreter meus companheiros, mas não a mim. O cheiro que realmente me interessava era aquele. Estava naquela mulher, que acabara de entrar na fase adulta. Estava naqueles olhos verdes enigmáticos, naquela postura elegante que poderia pertencer a uma rainha, naqueles lábios carnudos que permaneciam imóveis, sem a menor menção de sorriso.

- Está perdida, meu bem? – um deles perguntou, caminhando na direção dela.

- Sim. – ela respondeu, virando a cabeça de lado. Sua voz era extremamente sedutora.

Os dois homens trocaram um olhar malicioso, sorrindo. Pensavam que aquele era um dia de sorte: não era sempre que encontravam uma linda e inocente camponesa perdida no meio da floresta.

- Podemos mostrá-la o caminho. – um deles continuou, extremamente insinuante. 

Com um único movimento ela pulou da árvore, caindo graciosamente no chão. Eles se surpreenderam com sua agilidade, mas logo foram distraídos por sua beleza, especialmente vista de tão perto. Enquanto a analisavam dos pés à cabeça, Vince observava, completamente paralisado, de seu esconderijo. Ele sabia que havia algo de errado em toda aquela situação.

- Façamos o seguinte. – ela disse, erguendo as mãos na direção dos dois. – Deixe que eu mostre o meu caminho.

Vince quis gritar para que parassem, mas, iludidos pela possibilidade de uma presa fácil, os tolos sequer notaram que aquela mulher era o predador. Seguraram sua mão e ela os guiou floresta adentro, sem olhar para trás.

De repente, dando-se conta da situação, Vince saiu de seu esconderijo e correu na direção deles, mas não havia nenhum sinal dos três. Desapareceram. 

 

- Merda. – Charles resmungou de maneira quase inaudível, mas outro rapaz ao seu lado, que não parecia passar de um adolescente, riu baixinho.

- O que foi? Está com dificuldades em arrumar essa mesa? – provocou.

Os dois estavam, juntos, organizando uma grande mesa de madeira onde muita guloseimas eram depositadas. Haviam ficado responsáveis por organizar as festividades na parte mais afastada e menos civilizada dos arredores, que nem fazia mesmo parte da cidade: a entrada da floresta. Ali se reuniriam muitos caçadores e camponeses, além de andarilhos ou pessoas que saíam do conforto de suas casas para aproveitar o clima sombrio e místico da floresta, que combinava perfeitamente com aquele dia. Algumas pessoas preferiam rondar pela cidade o dia inteiro, para que pudessem aproveitar melhor, mas alguns pontos eram inalcançáveis, como, por exemplo, a área nobre da cidade, com suas mansões e casarões, onde apenas os mais ricos e com maior prestígio social viviam.

Era lá que Charles queria estar. E não ali, no meio do mato, servindo a mesa com carnes gordurosas, que deixavam um cheiro pegajoso no ar e em seus cabelos, que ele se esforçava tanto para limpar e perfumar.

- Estou cansado de ajudar. – reclamou. – E nem queria estar aqui.

- Queria estar com seus “amigos”, não é mesmo? – o garoto riu debochadamente. Os dois pareciam se conhecer bem. – Talvez, quando sair daqui, possa ir até lá limpar a boca deles quando terminarem de comer.

- É melhor usar as mãos para servir pessoas de alta classe, do que para roubar de pobres ainda mais miseráveis que você. – retrucou.

O rapaz, completamente constrangido e desconcertado, se distanciou fazendo uma careta. Se ele queria mesmo tocar numa ferida, Charles também poderia fazê-lo. Agora estava sozinho, mas já tinha terminado. Só não tinha vontade de festejar ali, naquele lugar no qual ele não pertencia. 

As vozes altas e estridentes, misturando conversas a gargalhadas. As mulheres com seus vestidos sem cor e sem graça e perfumes baratos, ou sem quaisquer perfumes. Os homens com suas botas sujas de lama e cheiro de suor, e as crianças com roupas que só podiam ser chamadas de farrapos, descalças, com os pés encardidos de tanta sujeira. As comidas gordurosas e sem nenhuma classe, com cheiros fortes de temperos que eram passados de geração a geração. Os enfeites toscos, todos em tons de vermelho, uma verdadeira bagunça entre as árvores e a natureza. Aquele circo chamaria atenção de qualquer demônio ou presença maligna. Mais do que isso, chamaria atenção de qualquer um que tivesse olhos.

Não muito distante dali, Vince virava nervosamente uma caneca de cerveja. Pensou que a bebida poderia acalmá-lo, mas ainda precisaria de muito mais. Seus olhos estavam mais arregalados que de costume e cuidadosos, atentos, vigilantes. Olhava para todos os lados, como se estivesse sendo perseguido. Não vira mais seus companheiros e, por mais que tivesse se embrenhado na floresta, foi incapaz de encontrá-los, ou aquela mulher misteriosa.

Pressentia que algo terrível tivesse acontecido. Ninguém simplesmente desaparecia assim, principalmente num dia como aquele. O que mais o preocupava era que a carne que um de seus companheiros deveria trazer não estava ali e as pessoas praguejavam por sua falta de responsabilidade, pois ele já era conhecido por suas bebedeiras. Mas Vince sabia que, mesmo que tivesse mesmo ido beber e se divertir com aquela mulher ou com outras, ele teria cumprido com suas responsabilidades primeiro. Não por consciência, mas porque sabia que se não ajudasse, não poderia beber e comer com todos mais tarde. As pessoas ali se conheciam, e o conheciam. E aquele era o dia perfeito para festejar; ele não perderia essa oportunidade. A não ser que algo o tivesse impedido.

Bebeu mais um pouco, tentando esquecer. Aqueles dois não eram seus amigos, afinal, mas apenas companheiros de trabalho. Não deveria se importar demais. Mas estava com medo.

Tinha algo estranho no ar.  Bem, dessa vez, eu não era responsável por isso. Eu também sentia.



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