Quando nós voltamos da Europa, as pessoas estavam sempre nos rodeando e nos enchendo de perguntas. Foi por volta dessa época que eu me desacostumei completamente com a solidão que, no velho continente, me era tão cara. Meu pai era a atração principal das festas e rendez-vous a que éramos convidados. Fossem grandes industriais, latifundiários ricos, fossem aristocratas decadentes, burocratas metódicos e socialites frívolos, todos queriam estar a par do clima ocidental pós-guerra, e interrogavam a mim, meu pai e minha mãe a respeito de cada pormenor dos costumes, arquitetura, lazeres e pontos turísticos dos países europeus os quais visitamos e moramos. Era 1920 e, ao ir embora da França, nós tínhamos deixado para trás tudo o que entendíamos por civilização e progresso. A proposta de voltar para a Coreia nunca havia falhado em me fazer uma careta de enfado e revirar os olhos. Paris me oferecia um sem-número de distrações e oportunidades, e eu não queria simplesmente abrir mão disso para voltar a um lugarzinho selvagem e atrasado. Eu podia já sentir o tédio que me aguardava, e no entanto, chegada a hora, eu apanhei minhas malas e embarquei no navio que nos levaria de volta à Coreia. A única explicação que posso dar para justificar minha decisão é que, além do tédio eminente, eu também pressentia o surgimento de algo que eu até então não conhecia. Foi uma voz inata, que emergia das minhas vísceras, o que me atraiu por todo o caminho até o meu país natal.
Se na infância a Coreia me parecia pacata e reconfortante, no fim da minha adolescência, ela não passava de uma terra de ninguém, provinciana e antiquada. Tudo tinha cheiro de mofo e retrocesso, dejetos e barro fresco. Eu não suportava aquele lugarzinho tedioso e mal via a hora de voltar para Paris e meus amigos, tão diferentes dos meus compatriotas servis e sem ambição. Eu só tinha que passar mais aquele ano lá, foi o trato que fizera com minha mãe, e então podia dar o fora. O combinado era que primeiro eu devia acompanhá-los na peregrinação pelo interior, visitando cada parente, por mais distante e caquético, na tentativa de angariar fundos e apoio para que meu pai pudesse agora ir ao Japão. Ele ia aonde acreditava estar a notícia. Seu jornal independente havia falido na França, e tanto ele quanto seus sócios haviam se dispersado, buscando novas fontes de renda ou patronos que lhes proporcionassem a vida boa e fácil com a qual estavam habituados. Eu nunca quis tomar parte na cruzada de meu pai, mas também já tinha aceitado que não me restava alternativa. Então, em pleno verão, partimos para o campo. A voz ia se tornando mais clara e autoritária a cada milha vencida. Longe de me incomodar ou me assustar com ela, eu a adorava e me enchia de bom ânimo e curiosidade sempre que ela me impelia a ir adiante. Eu estava no rumo certo, e ela me exortava a prosseguir.
A maior parte do caminho, nós percorremos a bordo de uma liteira claudicante, apoiada nos ombros de dois camponeses macilentos e pálidos. A aparência deles era péssima, meus pais e eu evitávamos contato direto com eles. Talvez fosse a cólera. Talvez a fome. Ao chegarmos ao nosso destino, os dois tiveram que ser socorridos pelo médico local, pois haviam caído de cama, com febre alta e suor frio. A sorte era que o médico era o próprio filho do dono do casarão. Primos nossos. A família Park, dizia-se, era dona de dois terços das terras da região e administravam a plantação mais extensa de arroz e chá. Possuíam não sei quantas cabeças de gado e investimento na indústria que, na Coreia, dava seus primeiros passos. Eles eram podres de rico e tremendamente desgraçados. Dali a alguns meses, a prima e irmã de criação do tal médico se suicidaria. Park Chanyeol tinha nutrido uma paixão por ela que já durava anos. Não que a garota algum dia tivesse se importado ou dado sinal de que chegaria a retribuí-lo. Nós tínhamos isso em comum, afinal. Pelo tempo que passei na fazenda de seu pai, eu alimentei por Chanyeol um sentimento proibido, que eu guardava só pra mim.
Chanyeol se ocupou dos doentes sem titubear, dando a eles uma atenção que eu nunca tinha visto um nobre dispensar a um plebeu. O tempo todo eu estava do lado dele.
X
Eu não sei dizer ao certo como aconteceu. Foi tudo tão sutil e lento que eu teria que examinar cada instante segurando-os contra a luz e apertando os olhos com atenção. Pela falta do que fazer, todos os dias eu acompanhava Chanyeol nas visitas a seus pacientes. Ele fez o convite em nosso segundo dia, e eu aceitei sem hesitar, coisa que eu jamais me imaginaria fazendo. Eu o auxiliava quando ele me solicitava, e até quando não era preciso, eu estava lá, a postos. Nada me enojava. Nem as feridas mais repugnantes, nem abcessos pustulentos, sangue ou qualquer outro fluído humano, e tampouco perdia a paciência com o choro estridente das crianças ou com os gemidos insistentes dos velhos. As parturientes gostavam de mim porque eu segurava a mão delas, trocava as toalhas úmidas e não deixava que nenhum pedido delas fosse ignorado. Meu pai brincava, dizendo que eu tinha me descoberto ali, coisa que não tinha acontecido nem em Paris, nem em qualquer outro lugar do mundo. Eu não era só mais um estudante ocioso e boêmio, era o que ele queria dizer. De repente, nem eu me reconhecia. Não era só pelo fato de estar constantemente na presença de Chanyeol. Era a própria terra que me atraia. Eram as pessoas. Paris era como uma lembrança distante, uma memória puída e pertencente à outra vida a qual eu não poderia reaver. Em meio a essa onda de mudanças, houve uma manhã em especial que me trouxe lucidez e clareza. Eu me flagrei pensando que eu poderia passar o resto da minha vida ali. E foi aí que eu me dei conta de que o meu passado não tinha se tornado inacessível por acaso ou por que minha realidade agora era tão diferente que eu mal conseguia me imaginar em outro cenário. Eu mesmo tinha ateado fogo em tudo. Meu eu de antes tinha se desfeito em pó e eu não me apeguei às cinzas: apenas deixei que o vento as carregassem pra longe.
No começo do inverno, meus pais foram embora. 1921 chegou me surpreendendo ainda ali. O funeral de Park Sooyoung aconteceu de caixão fechado, não tanto pelo estrago que ela fizera ao se matar, e sim por causa da vergonha que estampava a carranca de todos os familiares mais próximos. Chanyeol chorou e ficou bastante abalado. Tão abalado que, passado alguns dias do sepultamento de sua prima, ele de repente enxergou o corpo, as expressões e os traços dela, nos meus.
X
Eu podia ter evitado. Podia ter me afastado, o rechaçado, negado, tentado chamá-lo à razão. No entanto, não só não tomei nenhuma atitude para prevenir o que estava para acontecer, como aceitei passivamente, com certo entusiasmo, inclusive. Feria meu ego saber que não tinha sido eu a inspirar aquele desejo em Chanyeol. Mas eu me consolava com a ideia de que sua prima tinha nos feito um favor, e que ele agia assim porque naturalmente era complicado pra ele assumir sua atração por outro homem. Ele precisava de estratagemas. Essa justificativa que eu mesmo inventei para absolvê-lo era o que bastava para eu tanto permitir os avanços dele como fazer os meus também.
“Você tem o mesmo olhar dela”, ele me dizia, me fitando fixamente. “Os mesmos olhos vagos e profundos. Você me olha como ela costumava fazer, cheio de desdém”
Ele estava enganado. Eu o contemplava com enlevo e a certeza de que ele era aonde a voz queria me levar. Eu fiz de Chanyeol meu refúgio, embora não carecesse de um. Tudo nele me sugeria conforto, segurança e amor.
X
Eu não me arrependo. De ter atraído Chanyeol pra mim, eu não lamento. De tê-lo seduzido e iludido com promessas que eu não poderia cumprir mesmo se quisesse. Não tenho remorsos por ter concordado em embarcar na alucinação que me metamorfoseava em Park Sooyoung diante dos seus olhos. Eu me comprazia. Eu, para ele, era o que havia de mais precioso, belo e inigualável. Eu tinha o homem que amava, ele enfim me pertencia. Nós dormíamos na mesma cama, ele me tratava como se eu fosse seu senhor. Os serviçais da casa percebiam, mas eram sábios o suficiente para nada comentar. Os pais dele faziam vista grossa. Os pacientes não podiam se importar menos, pobres e enfermos como eram. Às vezes Chanyeol me chamava pelo nome de Sooyoung e eu atendia mesmo assim. Não havia nada que eu quisesse mudar, e genuinamente pensava que podíamos viver assim por um tempo indefinido.
X
Eu também não me sinto culpado pela série de surtos e crises que foram aos poucos conduzindo Chanyeol à porta de um hospício. Ele queria filhos, eu disse que poderia dar vários a ele, quantos ele quisesse. Ele queria se casar comigo na igreja, me deu o anel de noivado que pertencera à sua avó paterna, encomendou um enxoval, pediu para que eu deixasse que meus cabelos crescessem. À noite, ele me abraçava, seu peito colado às minhas costas, e respirava contra o meu pescoço. Em todos esses momentos, até naqueles em que ele se mostrava mais insano e desconectado da realidade, eu o amei. Nós fazíamos amor quando ele acordava e quando ia dormir. O lento declínio de Chanyeol teve início com a morte de Sooyoung, mas não foi tudo culpa dele. Ele tinha a semente da loucura crescendo na alma há muito tempo, capaz de já ter nascido com ela. Lentamente ele foi afundando. Não sei de nada que poderia salvá-lo, não àquela altura. Se eu tive algum papel nisso, foi o da sereia que entoa seu canto hipnótico e encanta marujos incautos para uma armadilha fatal.
E é mentira o que eu disse antes. Eu tenho culpa, sim. Eu estava ciente do que estava prestes a acontecer. E se é verdade que eu não era um escravo do destino como Chanyeol certamente o era, eu também não posso afirmar que eu tinha livre-arbítrio suficiente para me desvencilhar de suas armadilhas. Eu me tornei seu agente, pois sabia que, contra ele, era inútil qualquer rebelião. Afinal, se ele não fosse infalível, eu jamais teria deixado a França.
X
Em 1927, eu voltei para Paris. Na primavera daquele ano, eu tinha visto Chanyeol pela última vez. Nós dois estávamos sentados num banco de pedra, defronte a um jardim simples, mas muito bonito e vistoso. Ele colocou a mão sobre o meu joelho e deu um aperto afetuoso, um gesto que transbordava intimidade e ternura. Nós olhávamos para frente, como se contemplando um cenário intrigante e magnético. Em todas as coisas, havia nostalgia. Pendendo dos galhos das árvores, adejando na brisa suave, nas unhas impecáveis e recém-feitas de Chanyeol, no orvalho que cobria a grama mais adiante. Eu ia sentir saudades dele. Ele me amou como Sooyoung, mas eu sempre o amei como Chanyeol.
“Você vai voltar aqui?”, ele perguntou, sua cabeça se inclinando e seus ombros se estreitando. Ele parecia tímido ao me pedir aquilo; um sorriso nostálgico e de doer o coração havia surgido em seus lábios. Eu o via de perfil. Ele sequer me via. Tudo parecia muito metafórico e definitivo.
“É claro que sim”, eu menti. Mais do que uma mentira, foi uma promessa que eu fiz sem intenção alguma de cumprir. Nesse caso, o que eu falei foi mais grave. Era uma espécie de tortura a longo prazo, pois eventualmente Chanyeol perceberia que eu o havia enganado. Mesmo então ele parecia sentir que se tratavam de palavras vazias. Chanyeol apanhou meu rosto e o afagou de um modo tão delicado e gentil que, mesmo de olhos fechados e numa multidão, eu saberia que era ele quem estava comigo.
“Tudo bem se você não puder vir”, ele quase sussurrava, sua voz tão frágil e quebradiça que eu poderia senti-la se desfazendo entre os dedos. “Eu irei até você”
No dia seguinte, eu embarcava num navio. Eu nunca mais retornei à Coreia, ou soube notícias de Chanyeol, ou voltei a amar e me entregar a alguém. Mas continuo esperando Chanyeol e sei que ele virá.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.