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História O anjo de vidro - Capítulo XXIII - Sal Sepulcrum


Escrita por: Greenselves

Notas do Autor


CONSEGUI

TO TENTANDO POSTAR FAZ UMA SEMANA, E CONSEGUI!

Nossa, faz tempo desde a última vez que eu consegui postar com menos de um mês de diferença. Se não fosse a viagem de última hora que a minha família inventou eu teria conseguido terminar antes e postar ainda em julho... mas fazer o que.

Eu também esqueci de comentar no último capítulo que JÁ FAZ MAIS DE UM ANO QUE A FANFIC EXISTE, EU TO BEM LOKA! Eu não acredito que consegui manter essa história depois de tanto tempo sem escrever! Quero agradecer a cada um de vocês, os que comentam, os que não comentam, os que favoritaram para ler depois... tudo isso é muito importante pra mim, muito obrigada! Nunca pensei que essa estória boba chegaria a + de 120 favoritos, e ainda não acredito nisso.

<Só estou rindo da Greenselves do passado que acreditou que não levaria um ano pra terminar a fic e que ela teria no máximo 17 caps>

Bem, se divirtam com esse cap grande, boa leitura!

Capítulo 24 - Capítulo XXIII - Sal Sepulcrum


Fanfic / Fanfiction O anjo de vidro - Capítulo XXIII - Sal Sepulcrum

Capítulo XXIII – Sal Sepulcrum

<O Túmulo de Sal>

 

 

Píer.

 

 

- Eu me importo – sussurrou contra meus cabelos, o hálito quente contrastando com o ar frio. – Não diga que eu não me importo, porque eu me importo sim – ele me apertou ainda mais contra seu corpo, as mãos fincadas na minha jaqueta. – À ponto de me esquecer de coisas que eu não posso esquecer.

Me aconcheguei entre seus braços, o rosto escondido na curva quente do pescoço de Sehun. Ele cheirava exatamente como no natal e exatamente como a meses atrás, quando eu o vi pela primeira vez. Sehun tinha mudado muito desde que apareceu naquele quarto de hospital, mas seu cheiro continuava o mesmo. E só me dei conta do quanto eu senti falta daquilo quando me aproximei dele de novo.

- Então por que você sumiu? – Minha voz saiu fraca. – Por que agiu como se nada tivesse acontecido?

Sehun nos separou por alguns centímetros e ergueu meu rosto, me fazendo encarar um semblante preocupado que antes era tão raro naquele rosto. Não disse nada por uns instantes. Seus olhos escuros olhavam para os meus como se quisessem me dizer uma porção de coisas que ele não sabia como deviam ser ditas. Como se ele soubesse coisas demais e eu coisas de menos.

- Por que eu estou com medo – respondeu com sinceridade. Mesmo assim, tive a impressão de que aquilo não era nem metade da metade das coisas que ele tinha para dizer. E que essa relutância tinha a ver com esse medo.

Um milhão de perguntas surgiram e se esvaíram na minha cabeça. Um milhão de coisas que eu queria saber sobre ele e que não sabia. Um milhão de coisas que eu sabia que quebrariam aquela paz frágil.

- E por acaso não passou pela sua cabeça a possibilidade de eu estar com medo também? – Indaguei o que estava entalado em minha garganta há dois dias. – Você acha que eu não sei que isso é...

- Errado? – Sehun me interrompeu em um tom triste, a mão gelada em meu rosto.

Suspirei. Ele não parecia nada bem.

- Eu ia dizer perigoso. Arriscado. Algo do tipo. – Minha resposta pareceu devolver um pouco de cor ao rosto do anjo. Não por ser algo bom, algo que o acalmasse, mas sim porque, dos males, aqueles eram os menos piores. Pois nenhum deles levava o termo “erro”.

- Eu preferia que não fosse perigoso – comentou.

Concordei com a cabeça, procurando sua mão e entrelaçando-a à minha, que estava igualmente fria.

- Sehun, você não acha isso meio estranho? – Perguntei.

- Isso? – Rebateu confuso. – Nós?

- Não! – Neguei depressa. – Não nós dois, mas... não acha estranho que nada tenha acontecido? Eu sempre achei que os anjos fossem constantemente monitorados por superiores e também, você sabe... por Deus.

Sehun abaixou o olhar para nossas mãos, evasivo. Algo me disse que ele já tinha passado por perguntas como aquela muito antes de mim, e as repetido uma centena de vezes.

- Sabe, Catarina... nós somos muitos – voltou a olhar para mim. – Há um anjo para cada pessoa no mundo, apesar de existir uma exceção – Sorriu divertido antes de me puxar novamente para um abraço. – E além desses, existem mais tipos e quantidade do que uma pessoa muito boa em matemática poderia contar, espalhados pelos céus e por aqui também.

- Então você está dizendo que é impossível saber o que cada anjo está fazendo?

- Sim e não – soou como se nem ele compreendesse. – Ele sabe de tudo, e também dizem que está em todos os lugares ao mesmo tempo. Só que não parece se importar muito com tudo o que está acontecendo. A esmagadora maioria nunca o viu. Só os anjos do mais alto escalão.

Ouvi cada palavra daquilo com um pesar estranho, que eu não tinha sentido em nenhuma das outras vezes em que já tinha escutado Sehun falar do assunto. Seu tom não era o de alguém que falava de um acaso sem correção, que era aceitado por todos independente das circunstâncias, mas sim o de quem não estava satisfeito. De quem enxergava os erros e gostaria que fossem corrigidos.

Anjos como Sehun não eram muito diferentes de crianças sem pai nem mãe, órfãos jogados no mundo. Seres sem motivo, escolha, incentivo e propósito pessoal. Uma vez eu ouvi de uma pessoa no hospital que Deus gostava muito dos anjos e que estava com eles a todo momento. Os depoimentos que eu havia recebido de Sehun não se encaixavam em nada com isso.

- Você tem vontade de vê-lo? – Minha curiosidade falou mais alto que meu bom senso.

Sehun soltou uma risada baixa perto da minha orelha, me causando um pequeno arrepio.

- A única pessoa que eu sempre quero ver é você. -  voltou a sussurrar – Ninguém mais.

Aquela sensação gostosa de ter borboletas voando na boca do estômago me atingiu em cheio quando Sehun disse aquilo, sem dó nem piedade. Quis saber por um segundo onde aquele anjo irritante que havia aparecido para cuidar de Baekhyun tinha ido parar, mas logo depois resolvi que não queria saber. Eu preferia mil vezes receber as visitas daquelas borboletas de verão do que as dores de cabeça de antes.

Mas eu suspeitava que receberia qualquer coisa, desde que viesse de Sehun.

- Onde foi que você aprendeu a dizer essas coisas? – Ri envergonhada.

Sehun abriu um sorriso bonito, um que eu não me lembrava de já ter visto.

- Eu aprendi algumas coisas com os filmes velhos da mãe do Baek. – Curvou o corpo para encostar a testa na minha.

Mirei os olhos castanhos antes de encostar brevemente meus lábios nos dele.

- Senti saudades – segredei.

- Eu também senti – devolveu o selar. - Ainda não consegui decidir se eu gosto ou não de sentir saudades suas – suas mãos acariciaram minhas costas de leve. - É bom porque eu lembro de você, e ruim porque significa que você está longe.

- Bem-vindo à realidade humana – saudei de brincadeira, mas Sehun ainda estava um pouco sério naquela questão.

- Não parece muito bom viver sempre com isso – concluiu, não muito animado.

Contornei seu rosto morno com os dedos gelados, recebendo uma careta engraçada em troca.

- É exatamente como você disse antes, bom e ruim ao mesmo tempo – informei. – Saudade é o tipo de coisa que mata ao mesmo tempo que alimenta.

A mão que estava em minhas costas migrou para cima da minha que eu acariciava seu rosto, cobrindo-a.

- Você fala como se a conhecesse bastante – percebi preocupação em seu tom.

- Todos nós conhecemos – contei. – Alguns mais, outros menos. Tem gente que vive de saudade, enquanto outros definham devagarzinho por causa dela.

Sehun mudou sua expressão e ficou um pouco desconfortável. Minha resposta parecia tê-lo feito se lembrar de alguma coisa que o estava incomodando. Uma coisa que ele não parecia interessado em recordar naquele momento.

- O que foi? – Indaguei levando minha outra mão até seu rosto também.

- Nada – suspirou cansado. – Eu só me lembrei de alguém.

- Quem? Pode me contar? – Perguntei com cuidado.

Sehun hesitou por uns segundos, mas acabou concordando com a cabeça. Ele não precisou me dizer para que eu adivinhasse que aquele era um assunto delicado.

- Um... anjo que eu conheci – revelou contido. – A saudade nunca fez muito bem pra ele.

Fiquei me perguntando que tipo de anjo além de Sehun poderia sentir saudades. Eu sabia muito pouco sobre eles, ao contrário do que pensava antes.

- E ele está bem agora? – Quis saber mais sobre aquele ser.

- Não sei – respondeu. – Nunca entendi direito o que foi que aconteceu com ele.

- Vocês tem uma vida muito mais agitada do que eu imaginava.

- Você não sabe da missa a metade, mocinha. – Sorriu. – E ela é muito longa.

Infelizmente, precisei concordar.

- Espero que esse seu amigo fique bem um dia – desejei. – Ninguém merece viver assim.

Sehun beijou minha testa demoradamente.

- Eu também espero – falou extremamente sincero. – Ele sofreu por tempo demais.

Toda a preocupação de Sehun só me fazia querer ainda mais saber sobre aquele anjo e descobrir o que o tinha levado a ser daquele jeito. Aquela era a primeira vez que ele me contava sobre algum amigo em especial, ainda mais num tom como aquele. Como se cada palavra dita sobre esse desconhecido fosse um segredo que ninguém mais no mundo já houvesse escutado. E algo me dizia que era exatamente aquilo.

- Que tipo de anjo ele era? – Resolvi fazer uma última pergunta.

Sehun voltou a me apertar contra o peito e apoiou o queixo no topo da minha cabeça, se aproveitando da diferença de altura que havia entre nós dois.

- Um anjo da guarda, como o Tao. – Respondeu anormalmente paciente – Seu nome era... Suho.

Suho”, repeti mentalmente algumas vezes. Soava bem.

- Você também é um anjo da guarda – comentei.

- Eu sei, mas eu quis dizer que ele sempre foi um – explicou. – Eu não era antes, você sabe.

Sorri contra a jaqueta dele.

- Sei – falei. – Antes você saía por aí combatendo demônios, só de paletó.

Ele riu.

- Eu senti muita falta daquele traje.

- É meio óbvio que sentiu – alertei. – Acha que eu não notei o que você tentou fazer com aquela pobre camisa social?

- Foi uma transição um pouco... complicada de aceitar – admitiu.

- Somando isso à sua teimosia então...

- Você fala como se não fosse nem um pouquinho teimosa! – Nos separou mais uma vez, me acertando com um olhar teatralmente acusador.

Respirei fundo.

- Eu quero me defender, mas preciso de mais tempo para pensar em alguma resposta – falei.

Enquanto Sehun ria, fingi pensar enquanto olhava para trás dele, encarando os brinquedos e... a avenida.

Num estalo, lembrei que Jongdae estava vindo me buscar.

- Que estranho... – pensei alto.

- O quê? – Ele se virou e seguiu meu olhar.

- Meu tio está demorando – expliquei. – A minha casa é muito perto pra ele ter demorado quinze minutos desde que eu deixei a mensagem. Ele não é de se atrasar.

Sehun trocou o peso do corpo entre os pés, incomodado.

- Achei que você estava blefando quando disse que seu tio estava vindo – falou desanimado.

- Não, ele realmente vai vir. Nós... precisamos ir a um lugar juntos.

O anjo pendeu a cabeça para o lado, curioso.

- Onde vocês vão? – O jeito que ele perguntou me fez ficar confusa sobre o que o deixava desconfortável, o fato de eu ir embora ou o fato de eu estar indo a algum lugar com o meu tio.

Sehun, assim como seu humano, tinha tendência ao ciúme.

- Visitar a minha mãe – contei ansiosa, sentindo um frio na barriga.

Ele ficou um pouco em silêncio, pensando com os próprios botões. Olhou um pouco para o mar e para Baekhyun e Chanyeol na praia, que ainda estavam agarrados, antes de resolver falar.

- Vamos para a calçada – respirou fundo. – Quem sabe ele não está esperando você em algum lugar que não conseguimos ver daqui?

Concordei silenciosamente antes de começarmos a andar em direção à praça repleta de brinquedos. Não foi difícil notar que Sehun tinha colocado muito esforço naquela sugestão. Ele não parecia simpatizar muito com o meu tio.

- O que o seu tio faz? – Perguntou no meio do caminho, enquanto ainda estávamos no píer.

- Ele é enfermeiro num hospital de Seul, responsável pela ala pediátrica.

- Ah. – Não pareceu surpreso, foi seu único comentário sobre. – Quando é que vão colocar essas coisas para funcionar? – apontou para o parque.

- No ano novo, daqui a alguns dias – respondi. – Baekhyun provavelmente vai vir pra cá, o que significa que você vem também.

Ele parou de repente, olhando embasbacado para a roda gigante com a pintura descascada. Parecia uma criança.

- Você nunca andou numa dessas, não é? – Sorri.

Ele fez que não, ainda meio encantado.

- Essas lâmpadas que ela tem acendem? – Perguntou.

- Sim. – Coloquei nossas mãos no bolso da minha jaqueta. – Fica muito bonito de noite, colorido igual no natal.

Sehun gastou mais um bom par de segundos analisando sua nova descoberta.

- Eu não sei por que, mas eu quero ir nisso com você. Qual é o nome?

Senti meu rosto esquentar.

- Roda gigante.

- Não é nem um pouco original – torceu o nariz.

- Nem tudo precisa ser original, Sehun. – Falei – Humanos são bem preguiçosos quando querem.

- Eu acho você bem original – comentou tímido. – Quero dizer, eu não me lembro de ter visto outra pessoa como você por aqui.

Ri da inocência contida no que ele disse.

- Isso foi um elogio? – Perguntei.

Ele fez que sim.

- Então obrigada – agradeci.

Sehun pareceu divagar um pouco.

- Baekhyun sempre agradecia Chanyeol com um beijo – disse sorrindo, como quem não queria nada, bem diferente de alguns segundos atrás.

Bati de leve em seu ombro.

- Agora eu estou com cara de Baekhyun? Pensei que tinha dito que eu era original! – Rebati brincando, mas Sehun não pareceu entender isso.

- Eu disse alguma coisa muito errada? – Perguntou vermelho.

Revirei os olhos, tentando entender como ele conseguia ser tão adorável e irritante ao mesmo tempo. Fiz sinal para que ele se aproximasse e ele veio, relutante.

- Você é muito bobo – balancei a cabeça antes de deixar um beijo em sua bochecha.

Só que Sehun não era tão bobo quanto eu pensava. Se fosse, não teria se aproveitado da situação e me beijado de verdade.

Beijar Sehun era infinitamente diferente de beijar outros garotos. Não que eu tivesse muita experiência, mas era fácil de notar. Entre os poucos beijos alheios que eu tinha provado e as tentativas falhas e cheias de risadas de Baekhyun como professor não chegavam nem um pouco perto daquilo. Talvez por que ele fosse um anjo, ou por que não soubesse direito o que estava fazendo, mas a minha aposta estava em outra coisa. Sehun não parecia ter vergonha ou intenções ruins. Ele fazia o que achava que seria bom e o que tinha vontade de fazer, descobrindo as coisas aos poucos, sem pressa. E parecia, principalmente, querer que eu nunca mais saísse de seus braços. O que era o principal motivo para que eu realmente não tivesse vontade alguma de sair.

Sehun me fazia sentir mais estranha do que eu já tinha me sentido naqueles dezessete anos conturbados que eu chamava de vida.

E eu gostava.

Gostava disso e gostava dele.

Gostava do modo como suas mãos corriam pelas minhas costas, e de como ele acariciava meu cabelo. De como ele parecia querer me agradar. De como ele conseguiu me fazer pateticamente feliz só com aquilo, naqueles curtos instantes.

Me perguntei o que Baekhyun me diria se soubesse que eu estava aos beijos com seu anjo da guarda no meio de um parque de diversões fechado. Tive vontade de rir quando imaginei que ele provavelmente me diria para continuar fazendo o que eu estava fazendo.

Mal terminei de pensar em Baekhyun quando ouvi sua voz estridente me chamar ao longe.

Sehun não olhou para mim de imediato, ficou encarando o chão enquanto segurava minha mão.

- Precisamos voltar – falei.

- Eu sei – suspirou. – Acho melhor você sorrir menos, ou vão te perguntar...coisas – disse envergonhado.

- Eles provavelmente vão pensar que tem a ver com o Lay.

Ele franziu a testa.

- Eu não quero que eles pensem isso – respondeu incomodado e, em seguida, pegou meu cachecol desajeitadamente o arrumou de uma maneira que cobrisse a metade inferior do meu rosto.

Achei engraçado, mas ele não viu meu sorriso.

- Vamos ter que soltar – falei das mãos.

Sehun encarou as mãos entrelaçadas e as apertou mais um pouco antes de finalmente soltar.

Quando saímos da praça – Sehun alguns passos atrás de mim – vi que meu tio já me esperava fora do carro, conversando animadamente com Chanyeol e Baekhyun, que acenava para mim com uma expressão satisfeita que eu não via há muito tempo.

- Cathy! – praticamente gritou – Por que demorou tanto?

- Eu estava com fones de ouvido – usei como desculpa. Eu nem ao menos tinha tirado os fones do bolso.

- Achei que ia ter que te resgatar no meio daquela neve – a voz densa de Chanyeol saiu por detrás do cachecol vermelho.

- Não se preocupem com isso, se preocupem com a conversinha que eu terei com vocês depois. – Os deixei sob aviso – Não pensem que eu vou esquecer.

Baekhyun se mexeu desconfortável com Sehun ao seu lado. Tao continuava apenas a sorrir junto a Chanyeol, que estava igualmente feliz.

- Vocês vão precisar de sorte, garotos – meu tio riu. – Se ela for terrível com vocês como a mãe dela era comigo...

- Bom, eu estava precisando pagar pelos meus pecados mesmo. – Chanyeol disse sofrido.

Baekhyun concordou avidamente antes de olhar de Jongdae para mim e abrir aquele sorriso sacana que eu conhecia muito bem.

- E o Lay, foi embora faz tempo, Cathy? – Perguntou indecentemente.

Sehun beliscou o humano, mas aquilo não pareceu surtir efeito.

- Já faz um bom tempo – respondi – a avó dele ligou.

Chanyeol ergueu uma das sobrancelhas, confuso.

- Estranho... – começou – eu tenho certeza de que o vi com você lá no píer não faz nem dez minutos.

Olhei rapidamente para Sehun, que estava mais branco do que papel, encarando algum ponto além. De quem diabos Chanyeol estava falando? Yixing já tinha ido para casa há quase meia hora!

- Acho que você não está com uma boa noção do tempo, Catherine. – Baekhyun sacudiu a cabeça, irônico.

Encarei os dois, que me olhavam daquele jeito engraçado que já era um antigo conhecido. Aquela imagem era exatamente a mesma daqueles meses atrás.

- Que tal irmos agora para eu te salvar dessa saia justa? – Meu tio abriu a porta do carona, achando tudo muito engraçado.

Quase levantei as mãos para o céu.

- Você precisa vir de Seul mais vezes, oppa. – disse enquanto caminhava até o carro – Até mais, meninos. Não se percam pelo caminho e voltem logo para casa.

- Anotado – Baekhyun respondeu risonho. Chanyeol se limitou a se despedir com uma piscadela charmosa e alguns acenos.

- Tchau, Cathy. – Sehun falou hesitante antes de eu fechar a porta, quase como se estivesse com medo de mais alguém escutar. Sorri e acenei, deixando os dois humanos um pouco confusos com a dupla despedida.

- Seus amigos são muito animados – Jongdae disse assim que o carro começou a andar – Eles são namorados, não são?

Sorri ao ouvir aquilo. Para mim, poucas coisas eram tão certas quanto Baekhyun e Chanyeol juntos.

- Sim – confirmei. – Eles reataram hoje, inclusive.

Jongdae abriu um de deus lindos sorrisos.

- E isso tem dedo seu, certo?

- Imagina... – tentei parecer inocente.

Ele riu.

- Sua mãe sempre tentava me arranjar namorados também – contou. – Mas as coisas eram um pouco mais complicadas naquela época.

Observei-o silenciosamente, que dirigia concentrado. Conversar com meu tio sempre significava descobrir uma porção de coisas sobre a minha mãe que meu pai nunca me contaria, e sobre ele também. Quando se tratava da irmã mais velha, Jongdae só faltava escrever um livro.

- Ainda são – revelei. – Eu posso te contar o que aconteceu com eles outra hora.

Ele soltou uma das mãos do volante e bagunçou meu cabelo.

- Eu vou te cobrar – piscou. – Mas e aquele terceiro garoto? Quem era?

Olhei para ele sem entender.

- O Yixing? Que veio nos buscar? – Perguntei confusa, pelo que eu me lembrava já tinha falado do Lay.

- Não, não esse, o que estava do lado do... o baixinho é o Byun Baekhyun, não é? - Fiz que sim. – Estou falando do caladão que chegou com você.

Senti meu coração parar de bater por um instante inteirinho quando meu tio disse aquilo. Imediatamente, minhas mãos começaram a suar frio, e minha boca ficou seca. Não podia ser, meu tio só podia estar ficando maluco.

Aquilo era impossível.

Impossível.

- Cathy, você está bem? Parece que viu um fantasma? – ele perguntou preocupado, diminuindo a velocidade do carro.

Respirei fundo e limpei a garganta, com dificuldades para encontrar qualquer palavra. Esperei durante alguns segundos por algum sinal de meu tio sobre aquilo ser uma brincadeira, mas nada veio. Não importava o quanto eu tentasse forçar minha cabeça para encontrar uma explicação, tudo só continuava branco. A pressão do olhar de Jongdae em cima de mim começou a pesar.

Eu precisava testar uma coisa no meio de todo aquele nervosismo.

- Jongdae... – falei com a voz fraca – por acaso você está falando do garoto de jaqueta preta? Um garoto alto?

Meu tio sorriu, aliviado por meu sinal de resposta.

- Isso! – ele confirmou, feliz por eu ter me “lembrado” – Cabelos castanhos, menor que o namorado do Baekhyun. A única coisa que ele fez foi se despedir de você, parecia ser bem tímido – tirou suas próprias conclusões. – Por que demorou tanto pra entender que era dele que eu estava falando?

Encarei o porta luvas do carro, completamente perdida. A imagem fosca de Sehun dançava vertiginosamente na minha cabeça. Nada se encaixava.

- Não sei... – minha voz quase não saiu.

O carro voltou a andar na velocidade de antes. Eu nem prestava atenção no caminho.

- Enfim, eu só queria saber quem ele era, já que não se apresentou. – Fez uma curva para algum lugar – Como ele se chama?

- Sehun – minha voz respondeu antes do meu bom senso agir.

- Sehun de quê?

Sem saber o que responder àquela pergunta, levantei a cabeça, olhando ao redor. Sehun era um anjo, não um humano, não tinha sobrenome e nem tinha a necessidade de um. Mas isso era diferente agora, e eu arranjei para ele assim que passamos em frente da casa da senhora Oh, a pedagoga do colégio.

- Oh Sehun – respondi meio incerta se aquilo tinha ficado bom.

Apavorada e com a certeza de que meu tio ia começar mais perguntas sobre Sehun, resolvi que precisava desesperadamente mudar de assunto e, depois, arranjar um jeito de entender aquilo. Bolei um jeito de desviar o assunto com a sensação de que seria difícil pensar em outra coisa.

- Por que você demorou tanto, Jongdae? – Perguntei um pouco rápido demais. – Passou em algum lugar antes de ir me buscar?

- Não notou o que está no banco de trás?

Me virei e flagrei dois lindos buquês de flores.

- Só agora. Isso são o quê? Tulipas?

- Elas mesmas – respondeu. – Eu passei na floricultura e acabei conversando demais com a senhora Zhang. Ela falou muito de você.

Engoli em seco. A conversa estava tomando outro rumo que eu não desejava.

- Minha mãe gostava de tulipas? – Não dei corda ao ocorrido, e Jongdae não demorou para perceber isso.

Um sorriso de quem sabia o que estava acontecendo mesmo sem eu contar precedeu suas palavras.

- Pra falar a verdade, eu nunca ouvi sua mãe falar de flores – admitiu. – Mas a questão é que a sua avó sempre me ensinou que não devemos ir de mãos vazias quando você vamos visitar alguém, seja em uma casa, um hospital, ou... bem, um cemitério.

Fiz que sim com a cabeça, notando mais uma vez o pouco que sabia sobre a pessoa que chamava de mãe. Não lembrava seu rosto, muito menos sua personalidade. Jongdae era tudo o que eu tinha de mais vivo quando se tratava dela. Meu pai parecia ainda mais distante, como se a história dos dois fosse algo tão particular que ele simplesmente não conseguia compartilhar.

Mirei o rosto de meu tio, tentando enxergar a semelhança que diziam que ele tinha com a mulher no retrato que ficava em cima da televisão da minha casa. Não consegui, como o esperado. Sem saber o que eu pensava, ele sorriu calorosamente para mim. No fundo, eu tinha a estranha sensação de que Jongdae se esforçava muito para preencher algo dentro de mim que nem eu mesma sabia a profundidade, como se ele se sentisse na obrigação de consertar alguma coisa que só ele enxergava. Era esquisito, mas eu nunca tive coragem de perguntar. Tinha medo de perder o único par de olhos que sabiam do que tinha acontecido comigo e ainda assim me olhavam sem aquela cautela excessiva de quem cuida de algo quebradiço.

Entre as lembranças dolorosas da minha infância monótona, meu tio parecia um dos anjos que eu via por aí, mas com a enorme diferença de que ele me via e falava comigo. Durante os dias em que passávamos no hospital, eu em um leito e ele estudando, a hora da visitação parecia ser o único momento de paz, tanto para mim quanto para ele. Talvez por que, como meu pai me disse algumas vezes, eu fosse parecida demais com a pessoa querida que ele perdeu, ou quem sabe ele só estivesse descansando a cabeça da faculdade. Eu não tinha tanta certeza quanto aos motivos dele, mas sobre os meus eu sabia bem. Eu gostava de vê-lo pois, por mais que fosse uma impressão boba, ele parecia acreditar pelo menos um pouco em tudo o que eu contava e rabiscava com os gizes de cera quebrados que os enfermeiros me davam.

Eu ainda conseguia ouvir claramente sua voz elogiando os toscos desenhos de bonecos de palitos com asas e gravatas borboletas. Um bando de garçons alados, como eu tinha ouvido os médicos conversarem certa vez, enquanto pensavam que eu dormia.

Jongdae nunca disse uma palavra ruim ou me olhou com os olhos tristes.

“São anjos muito bonitos”.

Eu arriscaria dizer que ele era a melhor pessoa que eu conhecia.

- Estamos quase lá – ele avisou, cortando meus pensamentos.

À nossa frente, o caminho para a casa de Chanyeol se perdeu quando fizemos uma curva que eu nunca tinha enfrentado com tanta calma. As casas iam diminuindo à medida que contornávamos o morro que interrompia a praia da cidade, a grande pedra da esquina. Era muito fácil esquecer que, do outro lado, escondido pelas árvores que bloqueavam a visão de quem olhava da cidade, havia um cemitério. E eu era uma das principais pessoas que faziam questão de que isso fosse esquecido.

Durante aqueles anos, eu havia feito o meu melhor para me convencer de que aquele era apenas um morro que ficava atrás da casa do meu amigo. Entretanto, eu não podia fugir da verdade para sempre.

E Jongdae parecia pensar a mesma coisa.

Quando o carro entrou na estrada estreita que ladeava a praia cheia de barcos e vazia de gente, parecia que aquela não era a mesma cidade. Sinuosa e imperando sobre tudo ali, a via subia o morro em meio aos pinheiros que se debruçavam preguiçosamente sobre ela, deixando a pouca luz do sol atravessar por entre seus galhos desnudos. Não havia neve bloqueando o caminho até o topo, o que tornou o percurso mais rápido do que eu imaginei que seria.

Antes que eu pudesse pensar mais à respeito do que eu finalmente estava fazendo, meu tio havia estacionado o carro.

- Chegamos – sua voz não estava mais tão descontraída.

Olhei pela janela, enxergando o alto portão de ferro aberto do cemitério que convidava a entrar sem prometer nada muito entusiasmante. Ouvi Jongdae suspirar longamente ao meu lado, as mãos ainda no volante e o cinto de segurança no corpo, assim como eu. Parecia estar pronto para dar a partida novamente e voltar pelo mesmo caminho, sem uma palavra dita. Eu não o culpava. Metade de mim gritava para que ele realmente o fizesse.

- Temos que entrar – soou como se falasse mais para si do que para mim.

- Eu sei – tirei o cinto de segurança, me debruçando em seguida por cima do banco para alcançar os dois modestos buquês de flores nos lugares de trás. Fiquei com o amarelo e depositei o outro em seu colo, esperando.

Jongdae olhou longamente para as tulipas vermelhas antes de se desprender do cinto e sair do carro. O segui, encontrando o vento gelado alguns instantes depois.

Quando encarei de frente o portão cinzento parecia que o estava vendo pela primeira vez. Aquele lugar tinha muitas coisas em comum com a minha mãe além de ser seu local de descanso: assim como eu não lembrava dela, eu não conseguia me lembrar da imagem daquele cemitério.

Parada ali, contemplei aquela imensidão de lápides e túmulos assentados na neve, pintados de cal branco e cheios das manchas escuras causadas pela maresia, como lágrimas negras derramadas pelo tempo. Poucas coisas na vida me pareceram tão solitárias quanto aquele cemitério vazio no topo do morro, isolado por quase todos os lados por conta das árvores que, mesmo sem suas folhas, o guardava dos olhos dos vivos.

Engoli em seco, me sentindo muito pequena ali. Não muito melhor do que eu, meu tio começou a andar e me puxou gentilmente pelo braço, como uma criança que carregava um bicho de pelúcia para não ter medo.

Uma trilha que quase não permitia duas pessoas andando lado a lado estava aberta entre a neve, fazendo as vezes de ruas entre aquela cidade silenciosa. Realizando seu trabalho com a paciência que só os que precisam têm, um homem de meia idade retirava a neve de entre outros túmulos com uma pá. Jongdae o cumprimentou com um aceno de cabeça quando passamos por ele, dando a entender que se conheciam.

- Quem é? – Perguntei curiosa, nada surpresa por não me lembrar do rosto daquele homem. – Não me lembro de ter visto ele na cidade antes.

Meu tio deu mais alguns passos antes de falar.

- O zelador – respondeu. – Você provavelmente nunca o viu porque ele mora do lado de cá da cidade. A família dele tem trabalhado aqui por umas quatro gerações, contando com ele.

Espiei o homem sobre o ombro por um curto instante, tentando imaginar o quão estranho devia ser trabalhar em um cemitério e ter o mesmo emprego que todos os outros que vieram antes dele. Eu não conseguia me ver cuidando da confeitaria do meu pai, e muito menos de um lugar como aquele. Não era medo o que eu sentia, mas eu não sabia expressar em palavras o que era.

Parecia uma mistura de saudade e solidão com uma pitada de realidade.

À medida que o zelador do cemitério e seu anjo da guarda mirrado iam ficando para trás, o penhasco que findava o morro e encontrava com o mar cinzento chegava mais perto. O barulho das ondas batendo nas pedras só ficava mais alto, me lembrando que estávamos cada vez mais próximos do nosso destino. Jongdae apenas me levava com ele, percorrendo o cemitério como se já tivesse estado ali uma centena de vezes.

A trilha principal acabava em uma enorme cruz de ferro retorcido, que parecia alertar sobre o perigo de chegar perto demais da ponta nua do morro. Do lado direito, assim como no esquerdo, a neve que não havia sido retirada cobria os túmulos e forrava o chão, sem marca alguma de pegada. Foi exatamente ali que viramos. Na última fileira do cemitério, onde os restos mortais daqueles que já andaram pelas mesmas ruas que eu repousavam, assistindo o céu e o mar naquele camarote involuntário.

Minhas galochas afundaram na neve fofa, que as engolia por inteiro, quase alcançando meus joelhos. Aos tropeços, fomos caminhando com cuidado até alcançar o túmulo branco que marcava o fim daquela fileira. À frente dele, o mar escuro se agitava brigando com o vento gélido sob o céu cheio de nuvens. A vista privilegiada.

Com as mãos trêmulas, meu tio alcançou um galho que estava por ali e começou a retirar o excesso de neve que estava por cima do túmulo, revelando o material que um dia fora inteiramente branco. No canto, alguns ramos secos e retorcidos estavam grudados. Junto aos escritos, uma foto da minha mãe sofria com o contato direto da maresia e parecia mais gasta do que as fotografias dos moradores mais antigos daquele campo santo.  

Minha respiração rápida formava nuvens de vapor que pareciam ofender aqueles que estavam ali e não podiam fazer o mesmo. O vento batendo em minhas costas parecia me empurrar para cima do túmulo, como se tentasse me lembrar do que eu estava fazendo ali. Silenciosamente, depositei as tulipas amarelas embaixo da fotografia, querendo que aquela sensação de ansiedade diminuísse. Não consegui resultado nenhum.

- Foi sua mãe quem disse para mim que queria ser enterrada bem aqui – a voz de Jongdae cortou o vento, baixa. – Eu sempre me perguntei que tipo de pessoa viva tinha conversas sérias sobre a própria morte, mas a noona sempre foi alguém... extraordinária demais.

Ainda tremendo, ele colocou suas flores vermelhas junto às minhas fazendo um tímido sinal da cruz. Eu nunca tinha visto meu tio colocar os pés em uma igreja. Seu anjo, tão quieto que quase me fazia esquecer da sua existência, tampouco.

- Como foi quando... – as palavras pareciam lutar para não sair da minha boca – quando vocês vieram deixá-la aqui?

Jongdae soltou o galho que ainda segurava e entrelaçou a mão na minha, colocando-as no bolso da jaqueta grandalhona que ele vestia. Doze anos depois, aquela era a primeira vez que aquela pergunta saía da minha boca. Havia tanto tempo que eu a carregava que, às vezes, me esquecia dela.

Meu tio suspirou demoradamente.

- Eu lembro o quanto fiquei bravo com o seu pai quando ele me disse que não ia te trazer para o enterro – riu soprado, como se ainda concordasse com a pessoa que era no passado. – Tinham te dado alta no dia anterior, mas ele pediu aos pais do Baekhyun para que você continuasse lá. Acho que aquela foi a única vez em que eu senti vontade de bater nele.

Ouvi aquelas palavras atentamente, absorvendo-as com cuidado para não perder nenhuma delas. Existia muita coisa que eu não sabia sobre a época que a minha mãe havia falecido, e aquela era uma delas. Sem precisar de avisos, deixei-o falar livremente sobre aquilo, me esforçando para não interrompê-lo. Jongdae parecia tão necessitado de falar quanto eu de ouvir.

- Ironicamente, estava ensolarado como não tinha estado por semanas – lembrou, incomodado. – Até o mar estava menos cinza, ou talvez eu é que estivesse muito infeliz, tentando enxergar injustiça em tudo. Não duvido – sorriu fraquinho. – Apareceu muita gente, o que também me surpreendeu. Pessoas que eu não conseguia me lembrar de jeito nenhum de já terem falado com a sua mãe durante os últimos anos de vida dela. Eu nunca entendi direito por que tem gente que gosta de ir em enterros e velórios de quem não vai sentir falta... pra mim é algo tão... pessoal.

Pendeu a cabeça para traz, os olhos fechados. Mais do que um esforço para não chorar, parecia um ato para não enxergar o que acontecia no presente e fugir para as cenas de antes, as que eu não podia imaginar sozinha.

- Sua mãe é a coisa mais pessoal da minha vida, Cathy – disse em tom de confissão. – Não há nada que eu sinta mais do que sua morte, nada nem ninguém de quem eu tenha mais saudade. E então, quando tanta gente que só sabia repetir o desejo vazio dos pêsames se reuniu ao redor da cova que era a única dessa parte do cemitério na época, eu saí de perto – voltou a abrir os olhos, olhando seriamente para mim. – E fui para debaixo daquela árvore ali – apontou para um pinheiro alto, que balançavam sem suas folhas. – Assisti o padre falar coisas que eu não escutei direito e todas aquelas pessoas jogando flores quando o coveiro foi chamado. Seu pai deixou um punhado de areia que tínhamos encontrado com esforço debaixo da neve na praia. Não aconteceu muita coisa depois disso. Trouxeram o túmulo e lacraram a cova. Os outros começaram a ir embora, como se um espetáculo tivesse acabado. Depois de algumas horas, o seu pai foi também.

Um respirar sôfrego saiu dele, como se falar tudo aquilo fosse tão doloroso quanto a vontade que ele tinha de fazer isso. Apertei sua mão, sentindo que eu também tremia. Visitar aquelas memórias alheias parecia sugar minha energia como um parasita sugava o sangue de um animal, lenta e cansativamente, como se fosse o preço para acessar tudo aquilo. A parte da história da minha vida que eu não tinha vivido, a vida de quem eu conhecia e que sabia muito mais do que eu.

- Já era fim da tarde quando ficamos só eu e a noona por aqui – algumas lágrimas, cansadas de serem seguradas, caíram pelo rosto dele. – Eu me sentei ao pé do túmulo e só fui embora no outro dia. Teria morrido de frio se o zelador não tivesse me trazido um cobertor – secou as lágrimas com o cachecol de lã grossa. – Aquela foi a última vez que eu vim aqui. A última vez que vi a minha irmã.

Nem uma única palavra conseguiu sair da minha boca, como se todas tivessem sumido, como se eu tivesse me esquecido de como falar. Tudo o que eu conseguia fazer era fitar o retrato daquela mulher sorridente que não parecia ter vínculo algum comigo. Ouvir sobre a minha mãe era engraçado e digno de pena. Era como ouvir histórias sobre um estranho que diziam ter tudo e mais um pouco a ver com você, como uma mentira que alguém teve vontade de contar, só para matar o tédio. Jongdae e ela pareciam tão entrelaçados que eu chegava a me sentir uma intrusa.

Olhei de relance para ele, que não tinha nada da pessoa feliz e disposta de antes. Encarava o túmulo de pedra como se o amaldiçoasse por ter aprisionado o motivo da saudade que sentia tão intensamente, a irmã que tinha sido levada pelo fogo. Respirava pesado, o peito levantando as roupas grandes que usava, desconfortável. Naquele momento, parecia ter alergia do ambiente da cidade na qual havia crescido, asco. Como se estivesse esperando o pagamento de uma dívida que ele tentava com todas as forças esquecer, mas que sabia que não seria paga e nem esquecida. Jongdae não gostava daquele lugar, e o rancor que sentia se desprendia de todos os seus poros. Me perguntei se era por aquele motivo que havia ficado doze anos fora. Me perguntei tanto que, quando notei, já tinha verbalizado.

- É por isso que não voltou – foi muito mais uma afirmação do que uma pergunta.

O rosto de Jongdae relaxou, liberto das lembranças que tinham despertado aquele ranço.

- Você é muito esperta Catherine – se permitiu um pequeno sorriso – mas esse não foi o único motivo.

Me virei para olhá-lo, curiosa. Que outro motivo poderia ter sido tão suficiente quanto a morte da minha mãe para que Jongdae não quisesse mais voltar?

- Foi sua faculdade, então? – Arrisquei, não acreditando que aquela fosse uma desculpa sólida.

Ele fez que não.

- Outras coisas aconteceram comigo naquele ano – disse com a voz distante. – Uma coisa que também me fez relutar em todas as vezes que seu pai me pediu para vir para cá, tão fortemente quanto a sua mãe.

Ele desceu os olhos do além que encarava e me fitou demoradamente, lendo coisas em mim que só ele podia ler. Decidindo sobre algo que eu não podia opinar. Quando ele falou, não precisou dizer nada para que eu soubesse que era a primeira pessoa que ouvia aquilo.

- Eu o encontrei pela primeira vez pouco mais de um ano antes de tudo acontecer – revelou. – Um dia eu cheguei no hospital e ele apareceu do nada, como se tivesse brotado do chão.

Outra vez pareceu perdido em suas memórias, mergulhado em recordações que eu suspeitava que enxergaria se olhasse em seus olhos escuros. Não tive coragem nem voz para perguntar quem era o garoto de quem ele falava tão concentrado. A sensação de que aquela era a única vez em que eu e aquela história nos encontraríamos pairava no ar muito densamente para que eu me atrevesse a abrir a boca.

Daquela vez eu seria apenas a ouvinte.

- Eu nunca o tinha visto pela cidade, mas não me surpreendi com aquilo. Era impossível que alguém como ele fosse daqui. Ele era estranho, estranho e mais bonito do que qualquer pessoa que eu já tivesse visto na vida – sorriu. – Ainda lembro de como minhas mãos suaram quando falei com ele da primeira vez, e de como continuaram suando por um bom tempo até que meu coração se acalmasse e começasse a ficar agitado por mais motivos do que eu podia contar – parou por alguns instantes, respirando fundo. – Ainda acho que não os conseguiria contar, de qualquer forma. Muitas coisas mudaram, mas várias continuam as mesmas.

Dito aquilo, mirou minha mãe, que parecia devolver seu olhar, cúmplice. Em seguida, foi a minha vez. Ele continuou sorrindo, mas eu duvidava que tivesse encontrado o mesmo que havia achado antes. Eu provavelmente estava com a expressão de quem estava com o coração prensado.

- A questão é que, quando eu caí em mim, já estava mais apaixonado do que pensei que fosse possível – soou como se ainda não pudesse acreditar. – E se antes eu já sabia que não havia volta sobre quem eu era, ali tive a certeza. Eu comecei a vê-lo todos os dias, e nunca me cansava. Não me cansava de ouvi-lo falar, cantar, perguntar. E também sorrir – sorriu para o nada, assistindo seu próprio passado. – Eu ainda tenho aquele sorriso bem guardado na memória e, por mais que tenha tentado esquecer todos os dias, todos os dias eu me lembro. Todos os dias eu me lembro de tudo o que aconteceu conosco e também da sua mãe, de você e do seu pai. Eu ainda tenho a sensação de que tudo aconteceu ao mesmo tempo, as coisas boas e as ruins – suspirou. – Eu aprendi do pior jeito que tudo o que é bom acaba em um piscar de olhos, Cathy – deixou de encarar o além. – Não deu certo, como várias coisas naquele ano. Foi uma desgraça emendada na outra, como se alguém estivesse rindo de mim.

Uma risada desgostosa saiu por entre seus lábios, passando apressada pelo ar frio em forma de vapor quente.

- Eu tinha vontade de socar meus professores quando eles me parabenizavam por ter conseguido uma vaga na faculdade. Não foi uma nem duas vezes que eu precisei ouvir pelos corredores do colégio que “pelo menos eu tinha conseguido aquilo” – recitou como se fosse uma praga. – Eu teria desistido de tudo se isso trouxesse a minha irmã de volta. Talvez assim as coisas não tivessem terminado tão sem final.

Suas palavras foram levadas pelo vento, mas pude ter certeza antes disso de que não eram dirigidas à mim. Aquele era um apelo pessoal ao universo, uma esperança só dele, que o assombrava como cada esperança assombra seu humano. A grande sombra de um acaso impossível que paira sobre nós, nos lembrando de que poderia acontecer ou de que poderia ter acontecido. Assim como aquela vaga sensação de que, se tivéssemos insistido um milésimo de segundo a mais, teríamos conseguido o que queríamos.

No fim das contas, esperanças e ilusões não eram coisas tão distantes assim uma da outra.

- Talvez assim eu conseguisse me lembrar da minha mãe.

Jongdae passou o braço por cima dos meus ombros, como se tentasse me proteger. Mas não importava o que ele fizesse, seria impossível me livrar de mim mesma. E eu ainda me sentia culpada. Culpada por me sentir tão distante daquilo que devia ser extremamente meu.

- Vai ficar tudo bem, Cathy – ele disse com um pouco de incerteza, mais como se desejasse do que soubesse. – Você vai se lembrar quando chegar a hora.

- Ou quem sabe isso nunca aconteça – pronunciei aquelas palavras doloridas que gostavam de visitar a minha mente.

Meu tio fungou baixinho, denunciando novas lágrimas. Pisquei algumas vezes, extremamente surpresa por não estar chorando também.

- Eu não deveria ficar prometendo essas coisas pra você, não é? – riu fraquinho. – Você é exatamente como ela, Catherine. Não gosta de promessas sem fundamento.

Fiquei olhando para o túmulo, sem responder. Eu não sabia o que dizer quanto àquilo, eu não recebia tantas promessas assim.

- Por que é que as pessoas esquecem do que precisam lembrar? – Cuspi a única coisa que queria sair da minha boca.

Jongdae olhou por cima do ombro, flagrando o mar que começava a ganhar uma fraca cor alaranjada. O sol estava se pondo e estávamos envelhecendo mais um dia. Meu tio me parecia muito mais velho do que quando tinha entrado pelos portões do cemitério, e eu não tinha a sensação de estar muito diferente. Ali, só minha mãe não sofreria nas mãos do tempo. Ela permaneceria exatamente como esteve em seus últimos dias nas memórias daqueles que tinham o privilégio de guardar sua imagem.

- Não sei – foi sincero. – Deve ser pelo mesmo motivo que lembram das coisas que querem esquecer.

Olhei para trás também, observando a vista que minha mãe estava fadada a assistir pela eternidade. Aquela imensidão cinzenta se encontrando com aquele que podia se confundir com ela.

O mar e o céu pareciam quase os mesmos naquele dia.

Eu me perguntava se aquela cena era parecida com a de doze anos atrás.

 

~X~

 

Casa n° 122.

 

- O que é que você tem, Sehun? – Tao perguntou, sem saber se olhava para mim ou para Baekhyun e Chanyeol, que caminhavam à nossa frente.

Suspirei antes de responder.

- Eu não faço ideia – respondi, ainda sem ter encontrado palavras que pudessem explicar aquilo. Até por que só havia uma coisa na minha mente:

Catarina.

- Você está meio estranho... – ele me lançou um olhar desconfiado, como se ainda estivesse decidindo se eu escondia alguma coisa ou não.

Eu senti falta daquela inocência de Tao.

- Estranho como? – Soltei uma risada soprada, curioso para saber como eu parecia. Queria saber se aparentava estar tão feliz quanto me sentia.

- De um jeito abobalhado – fez uma careta engraçada.

A vontade de repreendê-lo por me chamar de bobo passou por mim tão fraca quanto um sopro.

- Abobalhado? – Quis saber mais.

- É – ele fez que sim com a cabeça. – Você está com um sorriso engraçado. Aconteceu alguma coisa?

Fitei nossos humanos, as mãos dadas e as vozes gentis. Fiquei pensando se eles se sentiam como eu e se também desejavam com todas as forças sentir aquele sentimento leve e deliciosamente agoniante para sempre. Depois encarei Tao, que me olhava como uma criança curiosa. Quis que ele pudesse ler tudo o que estava acontecendo na minha mente naquele momento, tudo o que se passava dentro do meu coração. Isso por que eu sabia que, mesmo se eu explicasse, ele não poderia compreender. Assim como eu não conseguia compreender antes.

- Eles – apontei com a cabeça. – Eles aconteceram.

Tao abriu um sorriso doce.

- Sim – concordou com veemência, como se verbalizar a veracidade daquele reencontro o fizesse ainda mais sólido. – Baekhyun e Chanyeol finalmente se encontraram novamente. E estão tão felizes...

Sorri, incapaz de contrariar. Era possível notar a felicidade deles à distância, e aura brilhante de Tao só tornava isso mais evidente. Olhei para mim mesmo, me perguntando como devia estar a minha aura agora. Anjos nunca podiam ver seu próprio estado de espírito.

- Você também parece muito feliz – comentei, recendo o sorriso dele diretamente. – Eu senti saudades suas, Tao.

O anjo da guarda de Chanyeol me empurrou de leve, rindo.

- Eu também, seu sumido – alfinetou. – Fazia tempo que eu não te via por mais de quinze minutos.

Baguncei seus cabelos escuros, ouvindo um resmungo infantil. O Sehun de meses atrás provavelmente não acreditaria que iria se importar tanto com o anjo que tentou enganar. Eu ainda me sentia culpado pela irresponsabilidade de ter tirado Tao de seu estado natural, mas me sentia feliz de tê-lo ali, me acompanhando naquilo. Sem querer, eu tinha ganhado um amigo.

- E como foi com a Catarina? – Ele se lembrou de repente, me pegando de surpresa. – Você saiu tão apressado e com uma expressão tão angustiada que eu nem me atrevi a fazer mais perguntas. Está tudo bem com ela?

Involuntariamente, minhas bochechas esquentaram e jurei sentir meus lábios formigarem um pouco. Mal Tao perguntou, e chegamos em frente às casas de meu humano e de Catarina. Espichei os olhos para a janela do quarto da garota, que estava com a luz apagada. Naquela observada rápida, vi que não havia ninguém na casa. Minha ansiedade pareceu crescer ainda mais. Eu queria vê-la.

- Agora está – respondi enquanto entrávamos na casa de Baek, apressados.

- Mas o que foi que aconteceu? – Tao não se deu por satisfeito.

Fui até a poltrona cafona da senhora Byun e me larguei lá, molenga. Eu me sentia quase líquido, derretido. O olhar instigado de Tao me atingia, pressionando a falar.

- Nós estávamos um pouco... – parei para procurar a palavra – brigados.

- Ah – ele exclamou, mais convencido. – Então não foram só Baekhyun e Yeol que se resolveram hoje!

Me engasguei, tossindo em seguida. Precisei de alguns instantes para me lembrar de que a resolução que Tao tinha em mente era bem diferente da minha. Meu rosto parecia queimar.

- O que foi? – Ele perguntou logo depois.

- Nada, não foi nada – me endireitei na poltrona, tenso.

- Ah, tudo bem então! – Sorriu.

Atrás de nós, Baekhyun e Chanyeol conversavam animados na cozinha, os sorrisos colados nas faces. Cada palavra dita parecia ser carregada com a intenção de acariciar o outro pelos ouvidos. Não se tocavam, estavam apenas ali, se agradando com os olhares dedicados que faziam às vezes de mãos e braços. Mais em paz do que provavelmente já tinham estado algum dia.

- Eu vou pedir uma pizza! – Baekhyun avisou, o telefone na mão. – Que filme você quer assistir?

Chanyeol, debruçado no balcão de mármore, só fazia sorrir.

- Eu não sei! – Disse como se sua indecisão fosse a coisa mais divertida do mundo. – E você?

- Por que acha que eu te perguntei? – Baek devolveu, igualmente sorridente.

- Então eu vou procurar, deve ter alguma coisa que você não assistiu ainda, apesar de eu achar difícil...

- Escolha qualquer coisa menos “E o vento levou...”, por favor! – Meu humano pediu, rindo.

Chanyeol, que estava na sala, se virou com as sobrancelhas erguidas.

- Eu pensei que era um dos seus preferidos – disse um pouco confuso. – O que aconteceu nesse meio tempo?

- Ainda é – confirmou. – Só que a minha mãe resolveu que assistiríamos toda vez que ela tivesse uma folga de noite, então eu estou um pouco cansado.

Tao se levantou do sofá, indo se agachar ao lado de Chanyeol. Na cozinha, Baek conversava ao telefone. Era raro ver aquela casa tão cheia de sons. Catarina e Baekhyun tinham lares silenciosos demais, e pensar nisso só me dava vontade de ir até ela e enchê-la de perguntas, fazer barulho e incomodar. Eu não estava convencido de que fazia muitas coisas bem, mas nisso eu era bom. Nada parecia tão fácil e tão difícil ao mesmo tempo quanto conversar com a garota que morava na casa ao lado. A única que me via e a única que eu queria ver.

- Xô, xô! – A voz de Chanyeol me despertou. – Pra fora bichano!

No parapeito da janela da sala, os dois olhos escuros se voltavam diretamente para mim, como se o gato me cumprimentasse. O felino encoleirado não se deu ao trabalho de mover um músculo sequer, ignorando os esforços do humano de Tao. Lentamente, ergueu a pata e começou a lambê-la, mostrando um pouco da barriga branca. Era o Sr. Félix, o gato da vizinha.

- Ah, deixa ele aí Chanyeol, é só um dos setecentos gatos da Sra. Lee – Baek riu, abandonando a cozinha e vindo até a sala. – Logo vai embora.

Chanyeol olhou para o namorado desconfiado, nada à vontade por dividir o espaço com aquele animal. Um elefante assustado por causa de um camundongo.

- Você sabe que eu não gosto de gatos – disse, acuado.

Baekhyun soltou uma risadinha, se aproximando do bichano e o acariciando.

- Se eu estivesse um pouquinho mais malvado eu o levaria para perto de você! – Riu consigo mesmo. – Mas acho que o gato não merece uma coisa dessas.

Chanyeol fingiu toscamente ter se ofendido.

- Você não pensa em mim? – Disse teatralmente, a mão sobre o peito.

Meu humano deixou o animal de lado e se virou para o namorado em silêncio, encarando-o por alguns segundos. Nem o Sr. Félix se atreveu a interromper.

- Penso sim – Baekhyun respondeu com a voz calma. – Até mais do que deveria.

As bochechas de Chanyeol ficaram vermelhas e ele sorriu, tímido. Sem pressa, Baek se aproximou dele e sentou no chão ao seu lado, colocando as caixas de DVD que o humano de Tao segurava no lugar.

- Acho que vai ser mais interessante se procurarmos alguma coisa na internet – abriu o notebook, que estava na mesinha de centro.

Chanyeol fez que sim, aparentemente nervoso por conta da aproximação inesperada. Eu não entendia o porquê daquela reação do garoto, afinal, não muito tempo atrás eles estavam praticamente grudados na praia. A gente nunca entende nos outros os sentimentos que sentimos.

Em poucos tempo o que estava na tela do computador apareceu na televisão: o filme tinha começado.

- Não vamos esperar a pizza? – Chanyeol perguntou.

Baekhyun demorou alguns instantes para perceber, corando logo em seguida. Eu sabia que ele estava dando o seu melhor para não parecer nervoso com aquela situação, fingindo uma naturalidade quase desinteressada, desinteressada e frágil. Sua atuação durou só até ser pego com a mão na massa, e sua ansiedade enorme preencheu o ambiente. Eu quase podia ouvi-lo gritar consigo mesmo sobre a “droga da pizza”.

Tudo o que Baekhyun queria era não deixar transparecer aquela saudade gigante dentro dele que precisava ser saciada, mas havia falhado. Olhei dele para Chanyeol, que ainda estava nervoso o suficiente para não fazer piadinha nenhuma. Ambos tinham muita coisa entalada na garganta e muito contato para gastar nas mãos.

Cada respiração de Baek soou dolorosa para mim antes que ele finalmente levasse Chanyeol até o sofá e se aconchegasse ao lado dele. Sem dizer nada, indicou a manta azul no canto do móvel, que logo foi desdobrada e estendida pelo namorado. Quando os braços do humano de Tao o envolveram após uma hesitação minúscula, Baekhyun relaxou e apoiou a cabeça em seu peito.

E como mágica, aquela tensão estranha se dissipou. Como se aquele abraço fosse a chave para os dois, muito mais do que aqueles beijos necessitados quando as duas bocas se encontraram na praia.

À minha esquerda, o gato, até então esquecido, miou. Consegui botar meus olhos nele antes que pulasse para o lado de fora, desaparecendo da minha visão com aviso feito de ações. Apenas uma espiada para o sofá foi o suficiente para que eu baixasse o olhar daquela cena tão pura e íntima. Cada partícula daquilo era tão pessoal que uma força que não era minha me fazia desviar as pupilas e procurar qualquer outro canto para mirar, me lembrando de que eu não tinha o direito de ficar encarando nada por ali. Diferentemente de Tao, eu não me sentia à vontade ali, participando daquela intrusão.

Lentamente, sem dizer uma palavra, me levantei da poltrona.

- Onde você vai? – Tao indagou, dividido entre mim e a cena do abraço.

Respirei fundo, nada certo sobre o que responder.

- Vou dar uma volta lá fora até Catarina chegar – inventei na hora.

O outro anjo finalmente olhou para mim, preocupado.

- Mas e se você não conseguir mais entrar?

Espiei outra vez os humanos.

- Eu vou dar um jeito – pisquei para ele.

- S-sehun! – O ouvi dizer antes de pular a janela da sala da casa de Baekhyun.

Quando me virei para acenar, ele já tinha voltado a prestar atenção nos dois humanos, hipnotizado. Ri soprado. Algumas coisas nunca mudavam.

Uma vez do lado de fora, caí na realidade que eu não tinha plano algum e que iria apenas passar frio de graça. Tudo para dar privacidade a Baekhyun, pensei com meus botões. Talvez tivesse sido melhor apenas trocar de cômodo, mas eu também precisava daquele tempo sozinho. Era só uma pena que eu precisasse passar por tudo aquilo em um quintal cheio de neve.

Na cerca para a casa da vizinha, o Sr. Félix prosseguia com seu olhar curioso, tão à vontade que alguém poderia pensar que nem ao menos estava sentindo frio. Elegantemente, saltou para o chão e se colocou ao meu lado, esperando sabe-se lá o quê. Sem pressa, comecei a caminhar com cuidado ao redor da casa, indo até o pequeno corredor que separava as propriedades de Baekhyun e Catarina. O felino me acompanhou em cada passo.

Apesar não ter escutado nenhum barulho de carro, espichei o olhar para a janela da garota com a esperança boba de encontrar a luz acesa. Catarina e o pai não costumavam sair muitas vezes, mas aquele tio parecia ter mudado um pouco as coisas na rotina da família. Eu não sabia onde ela tinha ido junto com Jongdae, mas não gostava nadinha da ideia. A simples figura dele já me dava calafrios estranhos, uma sensação ruim. Eu sabia que só conhecia o que Junmyeon tinha me contado e que estava tomando as dores dele, porém, também sabia que seria muito difícil acreditar em qualquer outra coisa. Jongdae estava ali e estava perfeitamente bem. Eu não conseguia encontrar desculpa alguma para ser usada sobre o porquê de ele nunca mais ter contatado Junmyeon.

Tudo o que eu conseguia era ficar com a cabeça quente.

Não me agradava em nada saber que Catarina estava tão perto de alguém como ele.

Suspirei, uma nuvem de vapor se formou na minha frente. Estava bastante frio ali, e o único som presente era o do mar, algumas quadras afrente. Encarando a janela fechada, me perguntei se ela não podia voltar mais rápido. Algo me dizia que, se eu visse seu rosto nem que fosse por um momento, aquelas coisas todas não pareceriam mais tão ruins. E eu queria vê-la mesmo sabendo que essa sensação se restringiria somente enquanto eu estivesse com ela.

- Está vendo aquela janela ali, Sr. Félix? – Inexplicavelmente, o gato seguiu a direção que eu apontava com o olhar, miando em seguida. – Posso te chamar só de Félix?

Outro miado saiu da boca do felino, que agora olhava para mim. Tomei aquilo como um sim.

- Sei que você não faz ideia do que eu estou dizendo, mas aquela garota dorme bem ali – voltei a apontar. – A Catarina. Cathy.

Como se estivesse realmente interessado no que eu dizia, ele tornou a miar e se esfregou nos meus tornozelos. Me abaixei para fazer um pouco de carinho no pelo macio. Agora eu entendia por que as pessoas tinham animais de estimação.

- Obrigada por aparecer de novo e não me deixar ficar sozinho – agradeci. – Só espero que ela também apareça, como da última vez.

Félix virou a cabeça para o lado, parecendo gostar do que eu disse e me lembrando de que provavelmente não estava entendendo minha colocação. Tudo o que ele queria era receber um pouco de carinho e, caso mais alguém chegasse, receber carinho em dobro. Eu não o culpava. Também gostaria que Catarina fizesse cafuné em mim.

- Espero que não tenha se importado com o que aconteceu daquela vez – comentei, sentindo meu rosto esquentar apesar do frio. – Eu não tinha planejado o beijo...

Outro miado ecoou.

- Pelo jeito você não se importou mesmo – continuei a falar sozinho. – Eu também não – sorri, visitando minhas memórias.

Gastei mais algum tempo passando os dedos entre o pelo do bichano e fitando a janela de Catarina como uma criança fita uma vitrine de doces. Fiquei ali com o Sr. Félix até a voz estridente de sua dona chamar pelos “gatiiinhos-tinhos-tinhos!” e ele sair correndo suavemente, indo atrás do que eu imaginava ser comida. Não o julguei. Baekhyun também ia correndo quando Catarina o chamava para comer bolo.

Levantei e segui até a cerca, me apoiando nela e esticando meu braço na direção do quarto da garota, agradecendo por ninguém conseguir ver o quão bobo eu estava naquele momento. Ficar sozinho era cada dia mais difícil, muito mais do que no começo. Antes andar por aí e ficar longe dos humanos parecia muito melhor do que conviver as 24 horas do dia com eles, mas eu tinha me cansado. No início, sentia falta de conversar com Minseok e Luhan hyung, mas as companhias mudaram de rosto e nome. Eu ainda me lembrava bem de quando não suportava ficar mais do que algumas horas ao lado de Tao e Catarina, e também achava engraçado o quanto isso tinha mudado. Achava engraçado como, principalmente, eu tinha acabado tão ansioso por uma humana.

Fechei os olhos para vê-la e me imaginar com ela. Houve um tempo em que tentei esconder de mim mesmo, mas eu sabia o que desejava no mais secreto canto do meu coração. Desejava poder sair por aí com ela, ir aos lugares onde Baekhyun e Chanyeol a levavam e passar os dias com todos eles, rindo e conversando. Desejava segurar sua mão em público e ser enxergado por todos naquele lugarejo. Desejava uma série de coisa que, também no fundo do coração, sabia que eram inalcançáveis. Isso porque essas coisas só seriam possíveis se eu fosse como eles.

E eu não era humano. Era só um anjo da guarda invisível.

Essa era outra razão pela qual eu evitava ficar sozinho. Ficar sozinho atraía tudo o que existia de errado comigo, tudo o que eu sabia que não podia conseguir, não conseguia fazer. Tudo o que era verdade, tudo o que me amedrontava. Era coisa demais para quem, antes, nem sabia o real significado da palavra “preocupação”.

Voltei a abrir os olhos, impaciente, ansioso. Eu tinha conseguido, de algum jeito, deixar meu coração desconfortável de novo pensando naquelas coisas que eu cansava de repetir para mim mesmo que tinha que deixar de lado. Eu sabia que, uma vez dada a largada, uma enxurrada de coisas ruins viria e demoraria para acabar. Não era uma boa ideia ficar ali daquele jeito, tão lamentável.

Frustrado, cheguei a cogitar ir atrás de Junmyeon, mas um arrepio que correu por toda a minha coluna me fez mudar de ideia. Eu não sabia se estava pronto para ir até lá depois de tudo o que ouvi. Não sabia se conseguiria encarar meu amigo sem começar a chorar ou dar meia volta e bater em Jongdae até que ele sentisse alguma coisa. Ainda havia muita coisa a pensar sobre o que eu tinha descoberto, muitas emoções para canalizar. Tudo me parecia tão surreal que eu não sabia se tinha digerido ainda.

Eu ainda tinha os olhos miseráveis de Junmyeon presentes na minha lembrança, me mandando uma mensagem silenciosa enquanto me encarava. Mensagem essa que já tinha chego à mim sozinha.

Engoli em seco, balançando a cabeça para espantar aquelas cosias. Não era uma boa hora para visitar Junmyeon. Eu não conseguiria segurar as dúvidas, e ele provavelmente não conseguiria respondê-las.

Não me restava muitas opções além de rezar para que Baekhyun e Chanyeol não tivessem fechado a janela da sala e eu pudesse voltar. Aquele silêncio todo estava me fazendo mal.

Mirei por uma última vez a janela de Catarina e suspirei.

- Não demore – sussurrei, relutante em dar as costas àquela visão que só precisava de uma lâmpada acesa para se tornar feliz.

Só que não demorei tanto assim para me virar.

- Não é nada inteligente ficar esperando a garota aqui fora, Sehun. Não agora que você pode sentir frio.

Precisei forçar minha visão para encontrá-lo nas sombras, mas já sabia quem era antes mesmo de poder enxergar seu rosto. Sorrateiro como sempre, o demônio de olhos escuros espreitava escorado à parede da casa de Baekhyun, me observando com aquela curiosidade preguiçosa habitual.

Não me movi um centímetro sequer, o coração batendo feito louco. Foi um susto diferente de todas as outras vezes em que eu havia topado com ele, um susto que só eu sabia que tinha tomado. Enquanto ele saía lentamente da escuridão, me amaldiçoei por não ter ido atrás de Junmyeon ou feito qualquer outra coisa. Aquele era o último lugar em que eu gostaria que ele estivesse.

Kyungsoo não falou de imediato, interessado em passear seus olhos rápidos entre mim e a casa de Catarina, analisando a situação em que eu estava. Mais do que qualquer outro ser das trevas que eu já houvesse encontrado, ele sabia como ser tão quieto quanto o silêncio se quisesse, facilmente passando despercebido pelo resto do mundo. Kyungsoo era assustadoramente perigoso, e eu podia sentir isso no ar que respirava, como se meu corpo todo me implorasse para correr dele mesmo sabendo que seria impossível fugir.

Parou só alguns passos distante de mim, a pele leitosa manchada pela penumbra, que fazia com que seu terno escarlate parecesse realmente ter sido tecido com fios embebidos em sangue. Àquela altura, eu não duvidava de mais nada. Tudo o que eu queria era que ele não estivesse ali.

- Achei que tivesse sido bem claro da última vez – soei mais rude do que o perigo permitia. – Você não é bem vindo aqui.

Kyungsoo riu baixinho, os lábios se comprimindo em um sorriso lateral, provavelmente achando engraçado minha audácia.

- Pensei que você estava se referindo ao quarto do seu humano, e não ao resto do bairro. Relaxe, Sehun, eu não vou fazer nada com ele. Palavra de demônio – disse com ironia.

- Por que você ainda insiste em tentar me fazer acreditar em você? – Perguntei, irritado. – Você sabe que eu não vou fazer isso.

- Nunca diga nunca, Sehun – continuou com aquele sorrio petulante. – Eu já disse e continuarei dizendo que posso ser de grande ajuda sempre que você precisar. Eu não fico a noite inteira tentando pessoas inocentes. Ser um demônio é cansativo.

- Então me diga logo que diabos você quer, para que possa ir embora logo – fui direto, os dentes cerrados.

Kyungsoo ajeitou as abotoaduras negras antes de voltar a se pronunciar.

- Como eu acabei de avisar, não pretendo chegar perto do seu precioso humano hoje, de nenhum deles, para falar a verdade – não precisei de explicações para saber que ele se referia à Catarina. – Eu estaria do outro lado da cerca, mas vi você aqui e pensei se você não queria jogar conversa fora. Soube que o Suho te contou umas coisinhas.

Ia lhe responder, mas parei por um instante, me atendo ao detalhe dito em sua resposta. O que ele faria do outro lado da cerca?

- Por que você está interessado naquela casa? – Perguntei tenso.

- Você, mais do que eu, sabe quem está vivendo aí nesses últimos dias – revirou os olhos, entediado com o que ele facilmente chamaria de lerdeza. – Eu apenas queria vê-lo mais de perto, é só um infortúnio que ele esteja tão ligado à sua humana.

Algo naquele tom enquanto ele falava sobre Catarina me incomodou, enviando um calafrio ruim por meu corpo. Eu não gostava de como Kyungsoo e Jongin se referiam aos humanos como coisas, propriedades.

- Você já sabia, não é? – Cuspi uma das principais dúvidas que rondavam minha cabeça desde que Junmyeon tinha me contado aquelas coisas. – Já sabia que Jongdae era tio dela.

Kyungsoo fez que sim enquanto sorria para os próprios pés, visivelmente agradecido por eu finalmente ter descoberto. Já havia algum tempo que eu sustentava a teoria de que, por baixo de todo aquele desinteresse que ele esbanjava, existia um mar de ansiedade que era demonstrado através de pequenos gestos como aquele.

- Eu estava aqui me perguntando se você já tinha notado – suspirou. – Mas, sim, eu sabia.

- E por que não me contou?

Minha frustração parecia deixá-lo ainda mais animado.

- O que você iria ganhar com isso? – Ergueu uma das sobrancelhas – Só atrapalharia seu relacionamento com... como é mesmo o nome dela? Ah, sim, Catarina – fechei minhas mãos em punho ao ouvi-lo chamá-la daquela forma. – E, além do mais, eu não pensei na possibilidade de ele reaparecer por essas bandas tão cedo.

A maneira como Kyungsoo dizia tudo aquilo, como se nada tivesse importância, fazia meu sangue ferver. E ele sabia. Ele conhecia exatamente o tipo de coisa que me tirava do sério, e sabia como e quando dizer.

- Exatamente por isso não entendo por que não me contou.

Ele suavizou o rosto, quase teatralmente decepcionado comigo.

- O que eu tenho que fazer para que você me considere um aliado, Sehun? Por que continua pensando tão mal de mim, insinuando esse tipo e coisa?

O encarei um pouco, segurando toda a enorme vontade que eu tinha de partir para cima dele. Por mais que fosse difícil, eu deveria me concentrar em não dar a ele exatamente o que ele queria, apesar de suspeitar que qualquer coisa que eu respondesse se encaixaria nisso. Só me restava unir o útil ao agradável.

- Quem sabe se você parasse de me esconder coisas importantes eu te desse mais crédito – sugeri, mais como uma brincadeira do que como algo sério.

Kyungsoo abanou a cabeça, comprimindo os lábios.

- Tudo bem – respondeu, me pegando de surpresa. – O que você quer saber?

A naturalidade com que ele concordou com aquilo foi tão absurda que precisei de um momento para compreender o que realmente tinha ouvido. Era impossível que ele tivesse caído naquilo, então entendi que ele não havia caído em nada. Ele só estava esperando por aquela pergunta, como esperava por muitas outras, como eu tinha imaginado. Kyungsoo era como uma casa sem portas ou janelas: você não sabe como foi parar lá, e já é tarde demais quando você percebe que está cercado.

Muito, muito arriscado.

Mas poderia me dar pelo menos um pouco do que eu queria.    

- Primeiro, quero saber se vai me dizer a verdade – soei quase infantil.

Ele riu.

- Acho que seria melhor saber do que se trata antes, apesar de eu já ter uma ideia… - deu de ombros – mas vamos lá, eu prometo que vou contar a verdade. Não que eu ache que você vá levar isso em conta, de qualquer jeito.

Suspirei. Ele tinha razão, eu não confiava na palavra dele.

- Na última vez em que estive com Junmyeon, ele me contou sobre muitas coisas – comecei, cauteloso. – Me contou sobre sua humana e sobre ele e Jongdae... mas deixou alguns furos.

- Ele sempre deixa – o demônio comentou, como se me avisasse que não era algo novo sob o sol. – E, me conte Sehun, qual é o furo em especial para hoje?

Fixei meu olhar no dele, que parecia prestes a explodir de excitação. Às vezes eu tinha a impressão de que eram aquelas expectativas que o alimentavam.

- Eu quero saber sobre o que aconteceu com ela – respondi decidido. – Haesoo.

O sorriso de Kyungsoo me alertou mais uma vez de que ele já esperava por aquilo.

- Um nome muito bonito – comentou com sua voz de chocolate. – Tão bonito quanto sua dona.

Os olhos do demônio de repente despertaram um olhar felino, que parecia ver algo que eu não via. Aquilo durou poucos segundos, mas foi o suficiente para me deixar desconfortável.

 - Eu não tenho a noite toda, Kyungsoo – resmunguei, pronto para desistir de tudo caso ele continuasse a fazer caso.

Ele concordou, risonho.

- Claro que não – piscou. – Precisa encontrar a sua garota depois, não é?

- Isso não é da sua conta – disse, seco.

- Ciumento, como o de esperado. Acho que todo anjo da guarda acaba sendo assim quando se trata dos humanos queridos... – continuou a jogar conversa fora. – Você ainda consegue voar, Sehun?

Franzi a testa confuso.

- Não tenho certeza – admiti contra minha vontade. – Por quê?

- Há um lugar que você precisa ir comigo, só assim posso responder sua pergunta – Ele começou a andar em direção à rua. – Não está ventando tanto, e vai ser muito mais rápido se não formos à pé.

Olhei para ele desconfiado.

- Não pode me dizer aqui? – Relutei. Não me agradava em nada a ideia de ir com ele até um lugar desconhecido.

De costas para mim Kyungsoo inspirou profundamente, fazendo seus ombros estreitos subirem.

- Acredite em mim Sehun – sua voz se tornou ainda mais misteriosa. – Você vai entender muito melhor se ver o que eu quero te mostrar. E poderá voltar para cá ainda mais rápido.

Ele continuou a andar sem me dar mais detalhes, desaparecendo da minha vista.

- Mas onde vamos? – perguntei quando o avistei de novo, na calçada. As ideias de refutar o convite indo por água abaixo.

O demônio sorriu, camuflado na penumbra.

- Eu vou pelas sombras que é mais rápido – avisou. – Eu até poderia te dar uma carona, mas não acho que fará bem para a sua saúde, anjinho. Te encontro no topo do morro – apontou o morro que ficava além da casa de Chanyeol.

E então, como se nunca houvesse estado ali, desapareceu. Como poeira levada pelo vento. No caso dele, pelas sombras.

No meio tempo em que estive sozinho na calçada daquele bairro deserto e cheio de neve, me senti tentado a não ir. Nada me impedia de voltar para dentro da casa de Baekhyun ou continuar ali, esperando Catarina. Nada a não ser aquela necessidade assustadora que eu sentia de descobrir mais e mais sobre aquela história que não era minha, mas que cada vez mais parecia ser.

Segundos depois minha jaqueta já estava em meus braços e minhas asas me sustentavam sem o equilíbrio de antes no ar, só um pouco acima da fiação elétrica. Eu não queria correr o risco de levar um tombo, não depois de ver o quão instável eu estava por conta das penas que tinham caído.

Muito diferente da sensação antiga, voar não era mais algo que me dava prazer, mas sim algo que beirava ao desastre. Eu me sentia como um passarinho aprendendo a voar, com a enorme diferença de que eu, na verdade, tinha desaprendido. Mesmo com o frio que entrava por todos os poros da minha pele eu podia sentir o suor frio escorrendo pela minha testa e umedecendo as palmas das minhas mãos. Eu estava com medo, tanto medo que nem me atrevia a olhar para baixo.

A cidade foi passando sob mim, mais silenciosa e vazia do que nunca, dando a impressão de que nada existia abaixo do meu corpo além de um vazio fracamente iluminado. Deixei para trás a mansão dos Wu, o hospital, e alcancei a área onde se concentravam as casas dos pescadores, perto do meu destino final. Os casebres simples se encontravam por pontes formadas por barcos, que se espalhavam pelos quintais espaçosos. Abaixo de mim, a casa de Chanyeol estava com as luzes acesas.

Com receio de diminuir a velocidade e perder altitude, continuei sem parar em direção ao morro, tentando não pensar em nenhuma das dezenas de coisas que poderiam dar errado naquele percurso. Eu não sabia o que Kyungsoo queria lá em cima, mas a suspeita de que era só um plano para me derrubar na água não parecia nada descartável. O vento estava forte e me carregou muito mais de uma vez, gelando meu sangue e fazendo várias penas debandarem com ele. Era bom que houvesse algo lá em cima, porque eu não estava nada disposto a dar de cara com pinheiros sem folhas.

Quando eu cheguei ao topo, foi como se minhas asas enviassem uma mensagem de despedida avisando que aquela era a última vez que poderiam me ajudar. Tive certeza disso assim que caí entre os galhos secos de uma árvore, a neve amortecendo a queda e congelando minhas mãos, que me impediram de dar de cara nela.

Aquela não estava sendo uma boa noite, e algo me dizia que não melhoraria muito.

Com os braços ardendo dos arranhões que ganhei na aterrisagem nada planejada, me levantei e resgatei minha jaqueta, agradecendo por ela não estar tão molhada assim. Limpei a neve da roupa sem muitos resultados satisfatórios e tratei de vestir meu agasalho gelado, escondendo aquelas asas que tinham se aposentado depois de todo aquele tempo. De alguma forma, agradeci por estar naquela situação tensa. Em outra ocasião, eu não estaria nada bem por ter voado pela última vez.

Quando finalmente olhei ao redor, notei que havia um grande campo aberto à minha frente, rodeado por quase todos os lados pelas árvores secas. No céu, a lua cheia iluminava precariamente aquele lugar cheio de grandes caixas em formatos variados, que formavam fileiras no meio da neve alta. Em cima de uma das caixas brancas, Kyungsoo me observava sentado com as costas apoiadas em algo comprido, o terno vermelho brilhando à luz do luar.

Sem pressa, me aproximei dele em meio ao vento, as pernas afundando na neve ardida até a canela. O sorriso desagradavelmente promíscuo de Kyungsoo parecia crescer mais e mais a cada passo que eu dava, e eu logo entendi o porquê. Aquelas não eram caixas feitas de cimento branco. Eram pelo menos uma centena de túmulos pintados com cal.

Estávamos em um campo santo.

Um cemitério.

- Você demorou – ele comentou, a voz novamente desinteressada.

Naquele momento, quase não senti o frio que arranhava a minha pele sem dó. Eu não estava entendendo mais nada.

- Esse lugar... – balbuciei com dificuldade.

- Sim, é um cemitério – ele abriu os braços, tal qual um guia turístico que apresentava um museu. – Não sabia que ele ficava aqui em cima?

Não respondi. Era óbvio que o demônio já sabia da resposta.

- Como é que você está aqui? – Minha voz saiu feito um assombro. – Kyungsoo, demônios não podem...

- Pisar em campos santos, eu sei, eu sei – me interrompeu, apressado. – Mas quem disse que eu estou aqui?

- Espera, o quê? – Indaguei extremamente confuso. Como ele podia não estar ali se eu o estava vendo?

Kyungsoo pendeu a cabeça para um lado de cada vez, estralando o pescoço branco preguiçosamente, o sorriso arrepiante deixando claro que estava se divertindo às minhas custas.

- Olhe direito para mim, Sehun – cruzou as pernas e apoiou o rosto nas mãos. – Eu não pareço meio... apagado? Translúcido?

Cheguei ainda mais perto, meus joelhos encostados no túmulo onde ele estava, os olhos apertados para enxergá-lo melhor. Depois de me concentrar em sua imagem, percebi que suas cores, antes tão marcantes, agora estavam foscas, pelo menos três tons mais claras. Era por isso que ele parecia tão branco.

- Buh! – Ele exclamou de repente, me fazendo pular de susto e explodindo em um risadas nada agradáveis em seguida.

Recuei, sem a intenção de me aproximar daquele jeito de novo. Eu estava tão atônito que não senti a mínima vontade de tirar satisfações por conta daquela brincadeira de mau gosto.

- Não é possível – foi tudo o que saiu da minha boca.

Kyungsoo parou de rir e se endireitou, a velha postura intrigante de volta.

- Lógico que é – fez uma pausa. – Quero dizer, nem tão lógico assim, mas é real. Nós podemos fazer muitas coisas que a maioria de vocês desconhecem, Sehun. Ficar algum tempo em um cemitério é só uma delas.

- Mas isso não deveria te fazer mal? – Insisti, não totalmente convencido.

A expressão de Kyungsoo mudou por alguns segundos, sombria.

- Não à mim e aos que são como eu – disse, a voz distante. – Isso que você está vendo é o meu eco. Alguns de nós, mesmo que sejam poucos, já foram alguma outra coisa um dia... – suspirou longamente. – Mas isso não convém agora, se é que me entende. Tudo o que você precisa saber é que agora eu não tenho poderes e posso gastar quase meia hora antes que as forças sagradas consigam me evaporar daqui.

Fiz que sim, ainda embasbacado. Eu havia ganhado mais uma loucura para a coleção.

- Kyungsoo... eu não acho que você deveria estar sentado em cima desse túmulo – falei aleatoriamente, tentando desviar o assunto daquilo.

Apesar de imaginar que ele nem ao menos responderia àquilo, o demônio se levantou sem relutar.

- Você tem razão – concordou, a voz ainda com o tom cansado. – Deveríamos estar duas fileiras à frente.

E se colocou a andar, tão sem esforço que parecia quase levitar sobre a neve enquanto eu tropeçava a cada passo. À nossa frente, a vegetação abria espaço para um penhasco sobre o mar escuro, logo depois da última fileira de túmulos para onde Kyungsoo me levava.

Talvez por meu cérebro ainda estar muito bagunçado com a presença dele ali, ou quem sabe por causa do frio que fazia, eu não tinha percebido o motivo de estarmos ali. Tanta coisa havia corrido pela minha cabeça no caminho até lá que, só quando alcançamos o último túmulo branco, consegui entender o que as respostas de Kyungsoo sobre a humana de Junmyeon e aquele lugar tinham a ver um com o outro.

Eu já sabia que aquele era o túmulo de Haesoo antes mesmo que demônio de olhos escuros limpasse a neve da placa de bronze que tinha seu nome gravado.

 

Kim Hae Soo

1974 – 2004

 

Ao lado dos escritos, uma foto gasta demais para a idade estava escondida pelas sombras, me impedindo de enxergar decentemente os traços da pessoa que um dia havia sido a maior preocupação de Junmyeon. Ramalhetes de flores novas deixavam claro que ela havia recebido visitas não fazia muito tempo. Gente que ela havia deixado para trás, assim como seu anjo havia feito com ela.

Só então eu entendi o que Junmyeon quis dizer quando me contou que havia feito algo terrível. E ali, encarando aquele túmulo marcado pelo mar, fui tomado por um assombro muito maior do que quando soube que Kyungsoo podia pisar em um cemitério. Fiquei assombrado porque, de todas as inúmeras possibilidades que eu tinha elencado sobre o que poderia ter acontecido com aquela humana, a morte era a única que não tinha entrado na lista.  

A história de Junmyeon não me parecia mais só uma triste história de amor que não tinha dado certo. Havia algo de muito mais trágico no modo como tudo aquilo tinha terminado, muito mais preocupante. Alguma coisa que soava estranhamente satisfatória para Kyungsoo. O olhar e o sorriso que ele lançava para aquele túmulo o fazia parecer com uma criança atormentada, que gostava de colecionar histórias sem finais felizes.

Algo me dizia que aquela não era a primeira vez que o demônio ficava encarando o túmulo de Haesoo daquele jeito.

- Eu disse que seria extremamente rápido se eu mostrasse ao invés de contar – a voz adocicada relembrou, orgulhosa. – Aqui está, Sehun. Foi isso o que aconteceu com a humana do Suho, ou Junmyeon, como você prefere.

Não fui capaz de olhar para ele, ainda preso pela atração principal. Agarradas às mangas da jaqueta, minhas mãos tremiam por um motivo que eu sabia não ser o frio. Se algum dia eu havia chego a pensar que Kyungsoo podia fazer algo decente, me arrependi naquele instante. Ele era um demônio, e não importava quantas palavras enfeitadas usasse, nenhuma delas seria capaz de mudar aquilo.

- Ele já estava muito afastado dela nessa época, na maioria das vezes nem se lembra – Kyungsoo continuou a falar, como se aquela fosse uma conversa corriqueira entre colegas de trabalho. – O dia em que ela faleceu foi o pior de todos, você não vai gostar de saber. Ele sentiu na hora, apesar de estar tão esquecido. Uma pena... – suspirou nada abalado – o mundo humano é cruel, Sehun. Nem todos os humanos vingam. Ainda mais sem os cuidados de um anjo da guarda.

Respirei fundo, fazendo meu melhor para não surtar depois de ter ouvido aquelas palavras carregadas do veneno adocicado que Kyungsoo destilara. Atrás de mim, o barulho das ondas quebrando contra o morro formava um zumbido quase ensurdecedor, como se alguém de repente tivesse aumentado o volume do mar. Minha cabeça fervia, acompanhando meu sangue.

 - Como ela morreu? – Perguntei entre dentes.

Kyungsoo mergulhou um pouco no próprio silêncio antes de me responder.

- Não tenho certeza. Só sei que a levaram para o hospital pouco antes de atestarem o óbito e Suho surtar – foi bastante vago. – Ele não veio, ela se foi... nosso amigo teve um dia difícil.

Fechei meus olhos com força.

- Ele não é seu amigo.

O demônio soltou uma risadinha.

- Bom, cada um com as suas convicções – deixou dois tapinhas em meu ombro. – Algo me diz que você precisa de um tempo sozinho, ou prefere que eu fique mais um pouco?

Não respondi. Não sabia o que faria se abrisse minha boca naquele momento. Eu não era um adversário páreo para Kyungsoo, e muito menos podia bater em seu “eco”. Tudo o que eu podia fazer era ficar ali, remoendo tudo aquilo.

Inútil. Outra vez.

- Vou tomar isso como uma despedida então – concluiu com seu desinteresse, como se estivesse farto de mim.

Ouvi seus passos passando por mim, indo adiante. Logo depois, ele parou.

Só um último conselho antes de ir, Sehun – a voz enjoativa pareceu ecoar dentro da minha cabeça. – Eu espero, do fundo do coração que eu não tenho, que você tenha entendido o recado.

Ao ouvir aquilo, levantei meus olhos.

Só estávamos eu e Haesoo.

O eco de Kyungsoo tinha desaparecido.

 

 

~X~

 

“O amor é feio

Tem cara de vício

Anda pela estrada

Não tem compromisso

 

O amor é isso

Tem cara de bicho

Por deixar meu bem

Jogado no lixo

...

O amor é lindo

Faz o impossível

O amor é graça

Ele dá e passa”

 

O Amor é Feio, Tribalistas.

 

~X~


Notas Finais


BOM DIA-TARDE-NOITE E OBRIGADA POR LER

Espero que estejam estáveis depois desse capítulo cheio de informações! Fazia tempo que um desses não aparecia!

Resumo da ópera: Serine/na e vários beijos e fofuras; Sehun só nas audácias; Chen e Chanbaek no maior papo; Cathy e Chen no carro em: "O Sehun está estranho, eu tenho medo" ou Sehun aparecido; cemitério e Chen, a dupla revelação; Cathy triste só pra variar; Sehun e Tao s2; Sehun carente; bom dia D.O, que saudade; último voo do Sehun; Kyungsoo muito quebrador de regras entrando no cemitério; Sehun assustado feat. lerdo; túmulo da Haesoo e pensem o que vocês quiserem sobre isso; Kyungsoo muito malvado.

Só tenho a dizer que eu gostei de escrever esse capítulo, principalmente as duas primeiras partes! ~E que preciso planejar o resto certinho kk~ Adoraria saber as teorias, pq o circo vai pegar fogo em todos os capítulos seguintes, acreditem.

Me contem o que acharam, certo? ;)

Até a próxima, e que a coreografia de The Eve esteja com vocês.


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