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História O anjo de vidro - Capítulo XXIV - Tertius Error


Escrita por: Greenselves

Notas do Autor


OI BBS

AINDA NÃO É NATAL, MAS O MILAGRE VEIO ADIANTADO!

Eu nem acredito que tô aqui, mas cheguei com a minha cara de pau e o capítulo depois de dois meses de atraso. Eu não valho nada mesmo, me desculpem.

Como justificativa, tenho um congresso de uma semana, meu TCC (que já foi escrito e defendido, estou passadíssima graças a Jongdeus) e os vestibulares/ENEM, esse último, inclusive, aconteceu no meu aniversário kkkkkkkkk cada k é uma lágrima. Mas eu estou um pouquinho feliz, pq acabei de descobrir que passei pra segunda fase da UFPR. Agora é só esperar a desgraça do dia 27, que vai ser a prova específica T.T

Mas enfim, não vou me alongar porque fiz vocês esperarem por tempo demais, e nem sei se alguém ainda vai ler. Só tenho a dizer que, depois desse, só tem mais dois capítulos e o epílogo. "O Anjo de Vidro" está chegando ao fim chuchus, e eu nem sei o que dizer... Só um imenso obrigada!

Boa leitura, anjinhos da guarda <3

Capítulo 25 - Capítulo XXIV - Tertius Error


Fanfic / Fanfiction O anjo de vidro - Capítulo XXIV - Tertius Error

Capítulo XXIV – Tertius Error

<Terceiro Equívoco>

 

Cemitério.

 

Abracei meu corpo com força enquanto sentia o vento que vinha do mar soprar o pouco de calor que eu ainda tinha nele. Sob a luz amarelada da lua, o túmulo manchado de Haesoo parecia ainda mais solitário do que nunca, mesmo com a minha presença. Eu não sabia se estava ali há 3 horas ou há três minutos, mas meus pés gelados relutavam em ir embora e deixá-la para trás. Seu retrato escondido pela umidade me lembrava de que ela já havia sido abandonada por alguém como eu antes.

Por Junmyeon.

Respirei fundo, o ar gelado arranhando meus pulmões. Eu sabia que não seria uma boa ideia prosseguir naquela vigília de última hora por muito mais tempo. Minhas mãos, que eu não sentia, tinham me contado.

Com esforço comecei a me afastar dali, o olhar custando a desviar do túmulo enquanto meus pés afundavam na neve ardida. Quando, finalmente, alcancei a via principal, tive a estranha impressão de que estava sendo observado, mas não me atrevi a me virar. Eu tinha consciência de que que um único lance em direção à Haesoo me faria girar sobre os calcanhares. O medo do que aconteceria depois que eu saísse daquele cemitério fazia presença em cada poro da minha pele arrepiada, sussurrando coisas que eu não queria ouvir apesar de saber serem verdades.

Haesoo, no fim das tristes contas, era a única que estava a salvo de tudo aquilo, já não estava mais vulnerável ao o que quer que pudesse fazer mal à ela. Contudo, ela tinha pago um preço muito mais caro do que qualquer um gostaria de pagar, e era exatamente isso que me amedrontava tanto sobre as coisas que poderiam acontecer a partir do momento que eu saísse por aquele portão de ferro. 

Saber demais nem sempre é a melhor opção.

Senti o peso do mundo sobre meus ombros depois de passar pelo casebre do sentinela dorminhoco e pisar do lado de fora. De alguma forma, meus ouvidos pareciam novos, tudo parecia diferente e até respirar era mais difícil. Mas talvez fosse só aquele frio que já parecia ter chego até meus ossos, ou pelo menos eu esperava que fosse.

Ao longe, na via beira-mar, um ou dois carros passeavam solitários enquanto as ondas quebravam bem ao lado, o som correndo solto naquela cidade vazia. O vento soprava mais e mais forte à medida que meus passos cansados avançavam, e a escuridão da estrada parecia afugentar o luar daquela parte da cidade que ficava escondida atrás do morro do cemitério.

Minha volta foi longa e exaustiva. Meus pulmões recebiam o ar fresco, mas não pareciam aproveitar muito dele, pedindo sempre mais e mais de uma forma que me esgotava, minhas pernas se moviam, mas demoravam demais para chegar a qualquer lugar. Quando finalmente cheguei, carregava comigo a impressão de ter dado duas voltas ao redor da cidade.

A luz fraca dos postes iluminava a rua sem vivalma, deixando à vista meu destino tão esperado: as casas gêmeas. Na calçada, exatamente em cima do ponto onde os dois terrenos se dividiam, estava o gato da vizinha, Senhor Félix. Os olhos felinos, negros como a noite, me fitando com um interesse quase humano.

Fui até ele sendo observado atentamente a cada passada. Depois, como quem diz “você demorou muito”, ele lambeu uma das patas e se espreguiçou enquanto se apoiava nos meus sapatos. Eu estava prestes a me abaixar para acariciá-lo quando ele pareceu mudar de ideia e foi até a varanda da casa de Catarina, miando baixinho.

Entendi seu miado como um pedido para que eu fosse até lá, apesar de saber que era uma desculpa que eu mesmo estava inventando. Uma desculpa para não ir para onde eu tecnicamente deveria ir.

Afinal, agora ela estava em casa, não é mesmo?

Fui em direção à entrada da casa dela, mas minhas pernas pararam logo em seguida. Eu sabia que a porta estava trancada, mas não era exatamente aquilo que me impedia de entrar. Era a força gigante da culpa que me forçava a olhar para a construção ao lado, olhar para Baekhyun e me lembrar de tudo o que Kyungsoo havia dito mais cedo.

O que eu faria se, por minha causa, Baekhyun ficasse em perigo?

Se ele morresse como Haesoo?

Sacudi a cabeça tentando, sem sucesso, espantar aqueles pensamentos terríveis. Sussurrei e sussurrei repetidas vezes que aquilo nunca aconteceria, que eu teria cuidado, que eu era diferente de Junmyeon, que eu não esqueceria Baekhyun e que Catarina estava sempre tão perto dele que isso faria o perigo ser menor. Aquilo era diferente. Eu podia ter controle, sabia de tudo o que Junmyeon não sabia enquanto tudo aquilo aconteceu com ele. Mas as palavras se diluíam como tinta na água, perdendo a cor/força segundos depois de serem ditas nos meus pensamentos. Eu tentava, desesperadamente, me convencer de que nada daria errado. Então por que nada daquilo soava firme?

Por que eu ainda sentia aquele medo gelado passear dentro de mim? Aquelas duas forças me puxando para os dois lados daquela rua?

Me forçando a escolher quando eu queria os dois.

Me fazendo ter que optar entre o dever e o pessoal.

Tentando arrastar meus cacos para que eu impedisse que outra pessoa se tornasse neles.

O que eu deveria fazer?

Quem era eu no meio de tudo aquilo? Não o Sehun anjo, mas sim o Sehun que era ninguém mais ninguém menos do que ele mesmo. O Sehun que sentia que, a qualquer momento, começaria a entrar em desespero e verter todas as lágrimas do universo. A pessoa assustada que não sabia se podia se manter sobre as próprias pernas por muito tempo.

Injusta.

Não havia outra palavra que conseguisse descrever a situação melhor do que aquela, que parecia ser sussurrada pelo vento. Foi ela também que pairou na minha mente quando vi a luz da cozinha da casa nº 121 acender e a silhueta de Catarina passar pela janela, arrastando meu olhar com ela como num feitiço.

Tudo aquilo era injusto, mas eu fui mais ainda quando, num impulso afobado, corri apressado até a varanda e bati com o nó dos dedos na janela da cozinha. Não achei estranho quando vi seu rosto surpreso ao me encontrar do lado de fora, a mão no coração e o copo d’água menos cheio. Também não precisei dizer nada para que ela me abrisse a porta.

Antes de entrar no calor da casa, meu olhar escapou outra vez, mas fiz questão de afastá-lo com ainda mais força. Até por que Tao estava lá, não estava? Em que confusão aqueles dois podiam se meter se estavam deitados?

Eu não conseguia pensar em mais nada.

Eu estava tão cansado... tão cansado que, por um momento, desejei esquecer de tudo, como Junmyeon. Fiquei bravo comigo mesmo, sem suspeitar que aquela era só a primeira vez das muitas que aquele pensamento me assaltaria.

- Sehun, o que aconteceu? – O sussurro da garota encheu meus ouvidos. – Você está bem?

O clique da porta trancada ecoou no andar silencioso. Por debaixo dos cabelos bagunçados e das sobrancelhas castanhas, os olhos preocupados de Catarina me acertavam em cheio, perguntando sem parar mesmo sem palavras ditas. Me dando uma vontade inumana de contar o que eu sabia que não podia contar porque não era segredo meu. Me fazendo lembrar em seguida que ela não deveria se incomodar com meus problemas, mesmo que eles tivessem algo a ver com ela.

Meu peito ficava ainda mais apertado só em imaginar a possibilidade dela saber daquilo tudo. Só de pensar que ela poderia ter todos aqueles pensamentos torturantes dentro da cabeça. Só em supor que ela poderia tomar um pedaço daquela culpa, minhas mãos voltavam a tremer.

Ela não podia saber.

- Estou... – respirei fundo, tentando meu melhor para sorrir. – Eu só estava andando por aí enquanto esperava você chegar.

- Shhh! – Ela cobriu minha boca de repente, olhando para a escada por cima do ombro. – Fale baixo, meu tio ainda pode estar acordado...

Me movi desconfortavelmente, jogando meu peso de um pé para o outro. Jongdae estar ali só dificultava minhas tentativas de fingir que tudo estava bem.

- Não tem problema, afinal, não é como se ele conseguisse me ouvir – Lembrei-a depois de descobrir minha boca e entrelaçar nossas mãos.

A garota arregalou os olhos e olhou para baixo.

- Sehun, eu preciso con... – começou, mas pareceu mudar de ideia. – Na verdade, se você não sussurrar eu vou acabar falando mais alto também. Não quero que ele venha me perguntar por que eu estou falando sozinha.

Tive uma pontada de vontade de perguntar o que ela pretendia dizer antes, mas o tom carregado com que tudo havia sido dito me conteve. Eu me esquecia facilmente das coisas que haviam acontecido com Catarina durante toda a sua vida, todas os problemas que sua condição misteriosa tinha causado. Eu tentava não pensar naquilo como algo ruim, uma vez que essa era a razão do nosso encontro, mas eu não podia apagar todas as coisas desagradáveis.

As lembranças ruins são as mais difíceis de serem esquecidas.

Lentamente, ergui minha outra mão e pousei em seu rosto quente. Contudo, ela se afastou.

- Sehun, você está congelando! – exclamou antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa. – Achei que era só impressão minha, céus, por onde você andou?

Abri a boca para contestar, mas não consegui inventar uma desculpa boa o bastante para fazê-la mudar de ideia quanto aquilo. Eu mal sentia meus pés, como poderia negar que estava com frio?

- Eu estava na beira-mar... o vento está um pouco mais gelado hoje – minha voz não saiu muito firme.

Catarina ergueu uma das sobrancelhas, exatamente como a senhora Byun quando o pai de Baekhyun fazia alguma besteira.

- Eu não me lembro de você ficar assim tão gelado antes... – ela envolveu minhas mãos e as esfregou. – Não acho possível que você possa pegar um resfriado, mas...

De repente, um barulho engraçado preencheu o cômodo. Eu havia espirrado ruidosamente. Abaixei o olhar, envergonhado.

- Mas acho que vai ser melhor se você tomar mais cuidado – ela completou, os olhos me fitando com uma preocupação diferente da anterior. Catarina abriu e fechou a boca algumas vezes antes de retomar a fala – eu vou esquentar um pouco de leite com mel pra você. Só por garantia – pareceu dizer mais para si mesma do que pra mim. – Vá para o sofá, tem um cobertor.

Tentei dizer que anjos não ingeriam alimentos, mas eu estava com tanto frio que acabei não falando nada. Não precisava, para ser sincero. Eu sabia que não era necessário avisá-la: Catarina tinha tanta consciência daquilo quanto eu. No fim das contas, tudo o que fiz foi sentar no sofá e me enrolar no cobertor felpudo enquanto esperava em silêncio.

Na cozinha, Catarina alternava sua atenção entre eu e o que preparava, lançando olhares como se estivesse checando minha presença na casa. Achei aquilo ligeiramente engraçado: a única coisa da qual eu tinha certeza era de que não iria a lugar algum.

- Pronto – ela anunciou.

A caneca de porcelana fumegante em suas mãos deixava um rastro de vapor que se perdia antes mesmo que o próximo passo da garota fosse dado. Catarina sentou ao meu lado e me deu a bebida. Estava quente, mas eu estava tão gelado que não me importei. Foi estranho quando o leite adocicado passou pela minha garganta, mas também foi reconfortante senti-lo aquecer meu corpo. Aquela era a segunda vez que ela me dava algo para comer, a segunda vez que eu ingeria alimento mesmo sabendo que era tecnicamente errado. Só que, dessa vez, algo estava diferente Quando não sobrou mais nenhuma gota do líquido na caneca, senti uma sensação incômoda. Eu queria mais.

- Você está melhor? – Catarina tirou a caneca das minhas mãos e a colocou em cima da mesinha de centro.

- Estou – fiz que sim com a cabeça, o sabor novo do leite ainda dançando em minha boca.

Em seguida, ficamos em silêncio. Novamente, Catarina me olhou com um olhar repleto de perguntas que não dizia, hesitando. As palavras para perguntar o que ela queria me dizer me vinham até a boca, mas eu acabava não as soltando. Tinha medo do que precisaria responder se ouvisse as perguntas dela.

- Por que você estava lá fora numa hora dessas? – Ela perguntou por fim, a voz com o incômodo aparente de quem não tinha dito tudo o que queria.

Respirei fundo enquanto sentia minha mente esvaziar. O que eu tinha a dizer além da verdade que ela não poderia ouvir?   

- Eu... – comecei, as palavras me fugindo como o diabo fugia da cruz – bom, eu estava esperando você chegar – falei a verdade. – Mas como você não vinha... então fui dar uma volta. Você demorou muito.

Arrependi-me do que disse logo em seguida, quando vislumbrei um traço de culpa correr pelo rosto de Catarina. Dizer que eu tinha ficado no frio porque ela não estava em casa não havia sido a melhor desculpa que eu já tinha inventado.

- Você não deveria ser tão imprudente – sua postura mudou rapidamente, a garota de sempre vindo à tona. – O que você faria se eu não voltasse? Ia ficar no frio até Baekhyun resolver abrir a casa amanhã? Não esqueça que ele tem péssimo costume de deixar tudo fechado...

O estalo do beijo que deixei em sua bochecha ecoou na sala e calou seu discurso inflamado, fazendo-a corar.

- Eu sei – concordei sob seu olhar rígido - mas você voltou – coloquei uma mecha dos cabelos bagunçados atrás de sua orelha -  e eu estou aqui com você.

Um suspiro incomodado saiu de seus lábios em tom de desistência. Sorri fraquinho, aliviado por não receber mais perguntas e por ter a chance de fingir que nada de assustador estava acontecendo. Não gostava de como aquele egoísmo me comandava, mas gostava menos ainda de me lembrar a cada segundo do que eu tinha ouvido de Kyungsoo no cemitério.

Eu não estava sendo justo ao afirmar nas entrelinhas que nada em incomodava. Injusto assim como tudo o que me envolvia. Tudo menos Catarina.

- Só... – ela se inclinou para mim e apoiou a testa em meu ombro – não faça mais essas besteiras, Sehun. Não me deixe preocupada desse jeito, eu não gosto de te ver assim.

- Tudo bem – passei meus braços ao redor dela. – Eu não vou mais fazer isso – prometi sem saber se realmente falava a verdade. – Vou ficar bem aqui, com você.

Ela voltou a se endireitar, os olhos gritando a pergunta que eu sabia que seria feita:

- E Baekhyun?

Suas palavras fizeram meu coração ficar apertado mais uma vez. Eu já tinha ouvido aquela pergunta de sua boca tantas vezes que pensava erroneamente que já estava acostumado, contudo, escutá-la ali parecia muito pior do que era antes.

- Ele está com Chanyeol e Tao – respondi sem saber se aquilo seria o suficiente para convencê-la.

Seu suspiro correu pela sala. Não soube dizer de qual tipo era.

- Você brinca demais com a sorte, Sehun – foi tudo o que saiu da boca da garota.

- Eu não quero ir embora, Catarina – ouvi minhas palavras sinceras saírem de forma quase dolorosa de dentro de mim, contrariando tudo o que eu sabia que era correto.

Um silêncio tenso se fez presente. As mãos da garota se fecharam com força nas mangas da minha jaqueta.

- Então não vá.  

Não foi preciso mais palavra alguma.

Naquela noite, desejei como nunca poder dormir como os humanos. Quis fechar os olhos e sonhar com coisas boas enquanto tinha Catarina em meus braços, esquecer completamente por pelo menos uma noite que eu era diferente dela e que isso nunca poderia mudar. Esquecer que, na casa ao lado, o humano de quem eu deveria estar cuidando estava sem a proteção do seu anjo da guarda. Porém, nada disso aconteceu. Tudo o que pude fazer foi me aninhar junto com Catarina em sua cama e afundar meu rosto em seus cabelos enquanto sentia sua respiração leve bater contra minha pele. Durante aquelas horas que passaram rápido feito um míssil, me senti rodeado por uma sensação ruim, um mau presságio que eu não conseguia ver nem ouvir, apenas sentir seu cheiro de azedume.

Quando os primeiros pássaros começaram a cantar de madrugada deixei um beijo na testa de Catarina e, com cuidado, tirei seus braços de mim. O frio que fazia fora dos cobertores me atingiu sem dó, mas, mesmo assim, fiquei observando a garota dormir por mais alguns minutos. Depois disso, vesti minha jaqueta e peguei emprestado um cachecol verdolengo que estava pendurado atrás da porta, me virando para uma última olhada. Quase não a achei debaixo de todo aquele pano, mas fiz o máximo para não me esforçar em procurá-la. Se eu alimentasse a enorme parte de mim que queria ficar com ela, nunca conseguiria sair dali.

 

~X~

 

Cemitério.

 

O amanhecer tinha terminado de cair quando pisei no cemitério, o ar gélido da madrugada ainda pairando sobre a cidade. Naquela manhã um sol fraco tentava, em vão, aquecer aquele lugar que eu suspeitava ser frio independente da estação do ano. Na via principal, um homem retirava a neve que tinha se acumulado com uma pá. Quando me aproximei, seus olhos vieram furtivamente em minha direção, me fazendo estremecer. Por um momento aterrorizante, a ideia maluca de que ele tinha me visto me passou pela cabeça. Tratei de mandá-la embora o mais rápido possível, apertei o ramalhete de flores mirradas que eu tinha roubado dos arbustos da vizinha de Baekhyun e continuei a andar encarando fixamente meu destino.

O cheiro fresco de sal entrou pelas minhas narinas e alguns passarinhos passaram rápido por mim, os piares agudos competindo com o barulho da quebra das ondas lá embaixo, no fim do penhasco. De dia, o cemitério parecia um lugar um pouco menos hostil, entretanto, igualmente triste. Nem os raios de sol que passavam suavemente pelos galhos secos das árvores e davam brilho à neve conseguiam mudar aquilo. Talvez todos os cemitérios fossem daquele jeito.

Fiz a curva final para a direita, caminhando sem pressa até o túmulo de Haesoo. Eu não tinha certeza do porquê, mas algo me dizia que eu precisava ir até lá, como se a alma dela estivesse cobrando minha companhia. Como se tivesse um segredo que eu precisava saber para me contar.

Desajeitadamente, fiz um cumprimento torto e coloquei as flores meio murchas por entre dois buquês que já estavam lá, envergonhado por meu presente ser tão medíocre. Tudo sobre a falecida humana de Junmyeon me passava uma estranha sensação de que eu estava em dívida, apesar de eu não entender muito bem o porquê. Era quase como se a culpa por estar longe de Baekhyun se misturasse com a história daquela pessoa que eu nem sequer tinha conhecido. Como se houvesse um pouco de Junmyeon em mim.

Quem sabe, no fundo, todos os anjos da guarda fossem iguais, uma semelhança que ia muito além da roupa cafona que nos era dada.

Virei-me para o penhasco e contemplei o ponto onde a terra dava vez às duas imensidões cinzentas que eram o céu e o mar naquele dia. Fechei meus olhos ouvindo o barulho alto da água salgada, a única música que aquele lugar tinha direito de ouvir. Apertei o cachecol de Catarina contra meu rosto, sentindo seu perfume suave. Ali, mesmo durante aquela turbulência toda, eu ainda conseguia sentir o corpo da garota em meus braços quando me escondia da realidade.

Não consegui deixar de me perguntar se era daquele jeito que Junmyeon se sentia todos os dias enquanto se alimentava do eco daquela lembrança que ele chamava de Ele.

Voltei a abrir os olhos e respirei fundo, tentando encontrar a resposta que meu inconsciente tinha prometido que estaria ali. Voltei a olhar para o túmulo de Haesoo com uma certa distância, parado em frente à seu vizinho. Não que eu esperasse que seu espírito aparecesse, mas, de alguma maneira, esperei sua voz soar no meio daquele silêncio poluído. Esperei fazendo juras de que a ouviria com cuidado e que consideraria seu conselho, se fosse o que tivesse para me dar. Contudo, como o previsto, não ouvi nada vindo dela.

Naquela manhã azeda, não foi a voz macia de uma moça que se dirigiu a mim no cemitério.

- Bom dia – uma voz masculina, mas ainda assim suave, soou às minhas costas.

Um frio intenso correu pela minha espinha, me arrepiando dos pés à cabeça. Meus rápidos batimentos cardíacos que aparentavam acompanhar o tremelique de minhas mãos e o suor frio que apareceu como mágica em minha testa eram os mesmos sintomas que eu senti quando me deparei com Kai pela primeira vez. Todavia, aquela não era uma situação parecida. Eu arriscava dizer que era muito, muito mais desesperadora.

Me virei, sem saber exatamente por que o fazia. Mesmo gritando para mim mesmo que era impossível que alguém estivesse falando comigo, minhas pernas, muito mais sensatas que minha cabeça, resolveram que era melhor eu cair na realidade. Não havia desculpa no mundo que fosse suficiente para me convencer de verdade de que aquilo não estava acontecendo. E quando vi um Jongdae sorridente olhando para mim, tudo o que fui capaz de fazer foi engolir em seco toda a minha vontade de sair correndo dali e cumprimentá-lo de volta com a voz estremecida.

- B-bom dia – respondi num fio.

O tio de Catarina passo por mim e pousou em frente ao túmulo de Haesoo, arrastando meu olhar incrédulo com ele. Não quis acreditar no que meus olhos viam, mas estava acontecendo bem ali, na minha frente. O homem que tinha tirado Junmyeon dela para depois abandoná-lo estava, sem sombra alguma de culpa, visitando sua sepultura. E não havia nada que eu pudesse fazer quanto àquela injustiça.

Eu nem deveria estar sendo visto, para início de conversa.

Quando percebi que estava sendo óbvio demais ao encará-lo, voltei meu olhar para o jazigo ao meu lado, esperando fervorosamente que ele não se demorasse e fosse embora.

Muito mais novo que o sepulcro de Haesoo, este estava bem pintado de cal e tinha a foto de sua ocupante limpa para quem quisesse ver. Jung Gyemi parecia ter sido uma senhora simpática a julgar por pelo sorriso que fazia seus olhos pequenos parecerem duas meias luas, e pelas contas apressadas que fiz enquanto torcia para que Jongdae fosse embora, havia morrido naquele ano aos 86 anos. Juntei as mãos e fiz uma pequena oração por ela, a concentração me escapando a cada segundo. Eu queria ir embora, mas a paranoia de que seria suspeito demais sair tão rapidamente praticamente grudava meus pés no chão branco de neve.

Foi quando finalmente decidi que já era seguro escapar que o adulto voltou a falar comigo, quase como se quisesse me impedir de fazer aquilo.

- Não é comum ver adolescentes visitando túmulos – ele comentou de forma aleatória, me fazendo virar para ele. – É Oh Sehun, não é?

Pisquei algumas vezes antes de conseguir tomar ar para responder. Como diabos ele sabia o meu nome? E de onde tinha vindo aquele “Oh”?

- Sim – fui sucinto, mais pelo nervosismo do que pela intenção.

Jongdae sorriu simpático mesmo assim, me fazendo indagar como alguém responsável por tanta desgraça poderia ser tão bonito e parecer tão adorável.

- Sou Kim Jongdae, tio da Catherine – se apresentou. – Provavelmente ela já deve ter te contado.

Fiz que sim, ainda atônito, um zilhão de teorias dançando em minha mente, nenhuma delas me levando a algo concreto. Nem Junmyeon nem Kyungsoo haviam feito alguma menção de que ele era especial antes, então como Jongdae poderia estar me vendo e ouvindo se ninguém além de Catarina poderia fazer aquilo?

- Pois é, ela me falou sobre – as palavras saíam quase de modo automático. – Desculpe a pergunta, mas como você sabe o meu nome?

Jongdae trocou o peso do corpo de um pé para o outro, fazendo exatamente o que Cathy fazia nas poucas vezes em que eu a tinha visto realmente animada.

- Catherine me contou – respondeu num tom óbvio, me pegando de surpresa mesmo assim. – Como você não se apresentou ontem quando nos vimos na praça do píer eu perguntei sobre você para ela.

Apertei as mangas da jaqueta sentindo a ansiedade correr eletricamente por cada uma das minhas células. Um flashback de todas as vezes em que Catarina havia hesitado em falar comigo durante a madrugada me atingiu em cheio, cada expressão cheia de cautela se apresentando muito clara depois de eu ter ouvido aquilo. Ela sabia, só não tinha ideia de como iria me contar. Não pude julgá-la e nem ao menos tentei: aquela não era uma coisa sobre a qual eu me sentia confortável em saber.

Só me restava firmar bem os pés no chão para não sair correndo.

- Ah, sim, me desculpe por isso também – tentei me lembrar de todas as cordialidades que tinha ouvido os humanos usarem. – Eu não sabia se deveria falar alguma coisa.

Ele fez que sim com a cabeça.

- Não se preocupe, está tudo bem, eu só... fiquei um pouco curioso – riu soprado. – Cathy nunca tinha me dito nada sobre você antes, Sehun. Há quanto tempo se conhecem?

De repente, me senti nervoso de um jeito diferente. Nunca tinha me passado pela cabeça ouvir perguntas como aquela, e também havia o fato de que Jongdae falava comigo como se estivesse fazendo um interrogatório que muito lhe agradava.

- Desde o início do ano – dei outra resposta curta, e ele sorriu mais ainda.

- Colégio? – Perguntou como se estivesse preenchendo um formulário.

- É – confirmei. – Foi ela quem me deixou a par do conteúdo que eu perdi, já que cheguei depois do início das aulas.

- Eu estava pensando que você não parece mesmo ser daqui... – me estudou. Senti uma resposta sarcástica na ponta de minha língua, mas a engoli.

- Sou de Busan – respondi rapidamente mesmo sem saber muito bem onde a cidade ficava no país. – Minha família se mudou pra cá porque a minha avó estava doente – indiquei a senhora Jung Gyemi, me desculpando silenciosamente por usá-la naquela mentira.

Jongdae seguiu meu olhar até o túmulo, seu sorriso diminuindo um pouco.

- Entendo – disse gentilmente – sinto muito pela sua perda.

Fiz meu melhor para sorrir.

- Obrigado – agradeci pelas condolências mesmo sem merecê-las. – Por acaso você a conhecia? – Emendei uma pergunta perigosa.

Jongdae balançou a cabeça negativamente.

- Não, apesar de seu nome não me soar estranho. Eu não venho pra cá há muito tempo, Sehun, então perdi a rotação de algumas pessoas.

- Cathy me disse que você mora em Seul – comentei para tentar sair daquele assunto.

O homem sorriu ao me ouvir chamar sua sobrinha pelo apelido e colocou as mãos dentro dos bolsos da jaqueta.

- É – sua voz soou um pouco nostálgica – Eu não venho aqui faz doze anos – suspirou.

- Bastante tempo... – não consegui evitar o pingo de desdém que acompanharam minhas palavras.

Contrariando o que eu esperava, Jongdae não pareceu perceber minha maldade em primeiro plano, quase como se minha censura pela sua ausência tivesse sido sussurrada pela sua própria consciência. Ou quem sabe fosse esse o caso.

- Não posso negar, foi muito mais tempo do que deveria ter sido – suspirou, os dedos correndo pela neve que estava sobre o túmulo. – Eu a deixei esperando por tempo demais.

Tentei ao máximo guardar minha pergunta cretina, assim como tinha feito com todas as outras que me surgiram desde que ele tinha aparecido, mas ela me saltou para fora da boca antes que eu pudesse notar:

- Quem? Catherine?

Jongdae me fitou com os olhos levemente arregalados, como se não entendesse por que estava falando todas aquelas coisas para mim. Como se fosse o único a não entender o que acontecia, o único confuso. Me olhou como quem é pego de surpresa enquanto faz algo que tem vergonha.

 - Não – confessou, o espanto aparecendo de leve na voz. – Minha irmã.

Assim como quando ele chegou, pisquei algumas vezes enquanto o encarava com uma confusão tremenda. Pela segunda vez no dia, algo que eu pensava ser improvável acontecer mostrava-se possível. Por que motivo Jongdae estava falando da irmã dele enquanto velava o túmulo da falecida protegida de Junmyeon?

Por que Kim Jongdae olhava com tanto remorso para a sepultura Kim Haesoo e citava a mãe de Catarina?

Por que diabos tudo o que eu pensava saber sobre aquela loucura estava se esvaindo como água pelo ralo bem na minha frente?

- I-irmã? – Gaguejei.

Desperto de seu torpor, o adulto pigarreou e voltou-se para o túmulo novamente, se dando conta da estranheza das suas ações provavelmente por conta da minha expressão assustada.

- É realmente... – ele parou por um instante - uma grande coincidência que sua avó tenha sido sepultada bem ao lado da mãe da Cathy.

Olhei outra vez para o letreiro do túmulo, conferindo se o nome escrito na placa de bronze era mesmo de Haesoo. Fechei os olhos com força mais de uma vez para ter certeza de que não estava ficando maluco, mas nada mudava. Olhei para a outra sepultura, na esperança de que ele pudesse apenas estar no lugar errado, mas ela pertencia a um homem. Busquei incessantemente por possibilidades, mas nada surgia. Kim Jongdae continuava em frente ao túmulo de Kim Haesoo, os dois tinham o sobrenome mais comum na daquele lugar e a mãe de Catarina estava enterrada ao lado da minha “avó".

Senti minhas pernas ficarem bambas e me desequilibrei, tendo que me apoiar na tumba ao meu lado para não cair no chão. Jongdae rapidamente veio até mim, os olhos arregalados enquanto me dizia coisas que eu não conseguia ouvir por conta da minha mente nublada.

A única coisa em que eu podia pensar era que, seja lá quem tivesse planejado tudo aquilo, não tinha limites, muito menos coração. Quando encontrei os olhos do tio de Catarina por um momento, procurei por alguma maldição que julgava ser a única resposta para todo aquele caos. A maldição que tinha se instalado no destino dos irmãos Kim e Junmyeon. Aquilo que tinha provocado a ruína de algo que tinha tudo para dar certo, afetando não só os três, mas também Catarina.

Passei a limpo tudo o que sabia sobre aquilo, tentando encaixar a nova informação que tinha recebido. Contudo, notei que só descobria mais e mais furos naquela história, uma enxurrada de contradições.

Junmyeon não tinha me contado tudo.

Junmyeon nem mesmo se lembrava de tudo aquilo. De que tinha se apaixonado pelo irmão de sua protegida. De que tinha deixado uma criança sem mãe.

Eu não tinha certeza dos detalhes, mas havia pelo menos uma coisa da qual eu sabia: eu precisava ir até a ala abandonada imediatamente.

- Sehun!? – Jongdae me sacudiu – Você está bem?

Sacudi a cabeça, firmando os pés no chão e me colocando em pé novamente. Jongdae, sem perder tempo, colocou uma das mãos em minha testa e fez uma careta. Em seguida, sem nem ao menos pedir, afastou minhas pálpebras, checando algo que eu não tinha ideia do que era, mas que achei melhor não perguntar.

Catarina tinha me dito que ele tinha o mesmo trabalho que os pais de Baekhyun.

- Eu... – comecei, mas ele me interrompeu.

- Você está branco feito papel, garoto – disse no mesmo tom de bronca que Cathy costumava usar. – Quando foi a última vez que você comeu?

- Ontem à noite – respondi sem jeito.

Ele fechou a cara.

- Eu espero que esse não seja um hábito e que você se alimente bem todos os dias – ralhou, puxando meu pulso para ele. – Eu tenho certeza de que tem algo de errado com a sua pressão.

O toque do estranho me transmitiu uma vibração estranha, quase como um pequeno choque, que me acordou.

Eu precisava sair dali.

Precisava resolver aquelas coisas.

- Jongdae, eu... – o chamei pelo primeiro nome sem nem ao menos pensar em formalidades, como se ele soubesse de mim o tanto que eu sabia dele. – Preciso ir. Minha mãe está me esperando no hospital – falei de forma mecânica.

- É claro que precisa! – O adulto exclamou, me assustando um pouco com sua preocupação inesperada. – Eu não te mandaria para nenhum outro lugar, vamos!

- O quê? – Indaguei quando ele passou por mim, indo apressado em direção à via principal do cemitério.

Ele olhou para trás e fez uma careta que teria sido engraçada em outra situação.

- Você realmente pensou que eu ia deixar você ir até lá sozinho e a pé? – Obstinado, ele voltou e me puxou com ele. – De jeito nenhum!

Em meio a tropeços e recomendações nada gentis sobre “como não desmaiar de fome”, atravessamos aquela cidade de túmulos debaixo da neve que tinha começado a cair e voltava a preencher os espaços que o zelador tinha aberto. Em pé na porta de sua modesta salinha, ele assistia sem muita expressão todo o seu trabalho ser desfeito pelos floquinhos brancos, como quem já estava mais do que acostumado a sempre fazer a mesma coisa. Quando nos viu, acenou para Jongdae, e em seguida, para mim.

Meu estômago se revirou e a neve parecia cair lá dentro também. O tio de Catarina não era o único que podia me ver.

- ... espero que August tenha deixado algo no carro... – Jongdae resmungou enquanto tateava os bolsos em busca da chave do automóvel ao nosso lado.

Encarei suas costas num silêncio que só se fazia fora de mim, tentando entender como ele podia não ter percebido nada do que aconteceu. Como, segundo a história de Junmyeon, ele parecia ser apaixonado por Haesoo se era, na verdade, seu irmão. Como ele poderia ter tirado o anjo da guarda da irmã e a mãe de Cathy numa tacada só.

Como ele podia não ter ideia de nada do que tinha feito, apesar de ter arrasado a própria família?

Eu não entendia. Não conseguia compreender como aquela simples informação de parentesco podia bagunçar tudo e levantar mais um milhão de perguntas e motivos que eu não fazia ideia que existiam. E, sobretudo, não conseguia explicar a mim mesmo por que eu descia o morro do cemitério no mesmo carro que o responsável por aquela bagunça enquanto agia como se nada tivesse acontecido.

Por mais que eu tentasse, naquele momento, não conseguia levantar a voz. Não conseguia soltar nem sequer um pio sobre quem eu era ou sobre o que sabia. Isso porque, a cada vã tentativa, minha cabeça era inundada por todas as complicações que eu teria se dissesse a verdade. Cada intenção de separar os lábios para deixar a verdade escapar era respondida pelo medo do que aquelas palavras iriam implicar em mim e, principalmente, em Catarina. Em nós. Eu sabia muito sobre Jongdae, mas aquele pressentimento ruim me lembrava de que eu não o conhecia e me avisava que aquele não era um bom momento.

Muitas perguntas deveriam ser respondidas antes que eu pudesse fazer as minhas a ele.

Atropelando meu monólogo interno, Jongdae atravessou a mão em frente ao meu peito e abriu um compartimento que estava cheio de tranqueiras. De lá, tirou um pacote de bolachas e deixou no meu colo.

- É uma sorte o pai da Cathy sempre deixar alguma coisa no porta-luvas, garoto – seu tom ainda era repreensivo. – Odeio ter que dar essas coisas industrializadas para uma criança, mas pelo menos vai te manter em pé para entrar no hospital.

Encarei a embalagem e juntei as sobrancelhas. Eu não gostei nem um pouco de ser chamado de criança, e muito menos de ter que aceitar a solidariedade dele mas, quando notei, já estava com a comida na boca. Mastiguei com desconfiança enquanto sentia aquela coisa que parecia sólida derreter entre meus dentes, inundando a minha boca com um gosto doce muito agradável. Peguei mais uma bolacha antes mesmo de engolir a primeira e percebi que algo estava estranho: quanto mais eu comia, mais eu queria.

- Você está mesmo faminto – Jongdae comentou com um pequeno sorriso, me fazendo olhar para ele pela primeira vez e fazer que sim.

Engoli o que antes eram bolachas sem me perguntar para onde aquilo ia ou se poderia me fazer mal. Só o que me importava era saciar aquela sensação agoniante que o tio de Catarina chamava de “estar faminto”. Olhei para o pacote, feliz por ainda restarem três e me perguntando por que parecia que eu tinha precisado daquilo a minha existência toda. Talvez fosse essa a razão pela qual os humanos comiam: o sentimento de complemento. Resolvi ali que não gostaria de saber como era não ter o que comer.  

- Catherine sabe que você fica por aí sem comer? – O adulto perguntou de repente, me fazendo olhar para ele com as bochechas cheias de comida.

Engoli e respirei fundo. Cathy saber que eu estava sentindo fome não estava nos meus planos, e eu faria de tudo para que Jongdae não vazasse a informação.

- Eu faço isso de vez em quando – dei de ombros, como se não fosse algo importante. – Eu preciso revisar a matéria, então não como muito.

Jongdae não pareceu muito convencido.

- Estamos em pleno feriado, Sehun.

Apertei a manga da minha jaqueta, me perguntando como eu tinha acabado ali, inventando desculpas para o homem que tinha desgraçado a existência de Junmyeon.

- Tem muita coisa acumulada – tentei soar natural, mas meu tom insolente apareceu por entre as linhas.

Um silêncio curto estava suspenso no ar por pura tensão enquanto eu esperava pela resposta do adulto.

- Certo – pareceu finalmente entender que eu não queria conversa.

Após ouvir aquilo, me afundei um pouco no banco e puxei o cachecol que tinha pego emprestado mais para cima, cobrindo minha boca. Espichei os olhos para a via que percorríamos e senti o alívio correr por meu corpo quando notei que estávamos a poucas quadras do hospital. Mesmo assim, o curto caminho pareceu se arrastar até que o carro estacionasse em frente ao prédio antigo.

- Chegamos – ele anunciou com um sorriso cordial, pousando sobre mim aquele olhar que eu conhecia bem: o mesmo que Catarina me lançava quando sabia que eu estava fazendo algo de errado.

- Sim – falei. – Obrigado pela carona, Jongdae – voltei a falar com ele sem formalidades, minha mão pronta para abrir a porta.

- Não tem de quê – ele respondeu, ainda me observando daquele jeito esquisito.

Eu já tinha aberto a porta e estava quase saindo quando sua voz voltou a soar. Olhei para ele por cima do ombro, o vento gelado que vinha do mar entrando pelas mangas da minha jaqueta.

- Sehun, posso saber por que sua mãe está no hospital? – O humano tentou fazer sua pergunta parecer despretensiosa, mas não funcionou.

Fiz que sim, entrando no jogo.

- Ela trabalha aqui – falei sem pensar muito.

- O que ela faz? – Ele não se deu por vencido.

Senti um frio correr pela minha espinha.

- O mesmo que você – respondi antes de sair do carro e acenar com um sorriso cálido que não condizia em nada com a situação.

Subi os degraus que levavam até a enorme porta de madeira aberta do hospital e voltei a olhar para o carro. Jongdae continuava me encarando com os olhos desconfiados, como se estivesse esperando que eu me desfizesse em fumaça a qualquer instante. Mesmo contra a minha vontade eu conseguia entender um pouco o que ele devia estar sentindo: como nunca tinha ouvido falar de mim se eu era amigo de sua sobrinha? Por que eu parecia tão assustado e defensivo se tudo o que ele estava fazendo era perguntar sobre coisas simples? Muitas perguntas pareciam rondar sua cabeça, mas ele fez o que todo bom adulto faria: acenou de volta e deu partida no carro.

No fim das contas, tudo o que havia restado ali era um anjo da guarda falido, uma praia e um hospital. Jongdae tinha partido com todas as suas dúvidas, assim como tinha feito doze anos atrás.

Respirei fundo por um momento, fechando os olhos para tentar absorver pelo menos um pouco daquela situação que deveria ser impossível, mas que não era. Às minhas costas, o burburinho dos pacientes e trabalhadores do hospital soava apressado e distante enquanto o mar quebrava impaciente na praia cheia de neve que estava logo em frente. Aquela não era uma cena aconchegante e eu não queria abrir os olhos. Havia algo de esquisito naquele prédio e também naquele mar. Quase como se o segundo não concordasse com a presença no primeiro. Como se houvesse mais coisa além de Junmyeon naqueles dois prédios cheios de pessoas que vinham tentar escapar da morte que, ironicamente, rondava os corredores.

Abri os olhos e girei sobre os calcanhares tentando tomar coragem para encarar mais aquele problema. Jongdae tinha me visto e o zelador do cemitério também. O hospital estava cheio de gente. Como eu faria para passar por todas elas e chegar até a ala abandonada sem ser pego?

 Eu teria ficado pelo menos mais meia hora bolando um plano para conseguir entrar, mas o frio acabou me obrigando a jogar tudo para o ar e a cruzar a porta. Foi só quando o aquecedor da sala de espera devolveu calor para o meu corpo que realmente percebi que todas as minhas curtas esperanças de que aquilo fosse uma coincidência não me serviam de nada. Ao meu lado, uma senhora que estava sentada me lançou um sorriso enquanto era escoltada pelo anjo, que parecia muito empenhado em manter sua coluna no lugar. Logo em seguida, um enfermeiro me desejou bom dia e me indicou um local para pegar senhas.

Coloquei as mãos nos bolsos enquanto as sentia tremer. Nunca tinha sequer imaginado que ser visto por humanos que não fossem Catarina seria tão intimidador.

Fixei o olhar no corredor que devia seguir, entendendo que, quanto mais tempo eu ficasse ali, maior seriam as chances de alguém vir me perguntar algo. Sem perder tempo, como quem não queria nada, iniciei meus passos lutando para não correr, tentando manter a cabeça alta e não parecer suspeito. Meu sucesso na operação não durou nem trinta segundos.

- Ei, garoto, aonde você está indo? – a voz da mãe de Baekhyun me fez empacar, o frio voltando a embrulhar meu estômago.

Olhei por cima do ombro para encontrá-la bem no início do corredor, prancheta na mão e uma desaprovação no olhar que eu conhecia bem. Engoli em seco, esquecendo qualquer intenção de me fingir de desentendido ou de inocente. Eu havia sido pego e cheirava à culpa.

Myunghee se adiantou alguns passos como quem caminhava feliz para dar uma sentença de morte que, no caso, era a minha. Comecei desesperado a procurar desculpas para justificar minha presença ali, e estava pronto para contar uma história fajuta de como tinha me perdido enquanto procurava o banheiro quando um homem apareceu de repente.

- Enfermeira Byun, enfermeira Byun! – O humano de meia idade veio apressado, a respiração acelerada e um anjo mais desesperado ainda em seu encalço. – Você precisa ir até o segundo andar...

Não esperei para ouvir o resto do ocorrido. Assim que a mãe do meu protegido olhou para trás, fugi em passos rápidos para o corredor seguinte, que logo me levaria até a porta de alumínio que dava passagem ao pátio que antecedia a ala. Impressionantemente, ninguém apareceu durante meu percurso, e quando cheguei até a porta, soube que não havia outra explicação além da ajuda divina para tudo aquilo. Afinal, quem mais se daria ao trabalho de ajudar um anjo de araque feito eu?

Olhei para o céu através da vidraça da porta, perguntando se minhas especulações estavam certas. O firmamento cinzento daquela manhã, assim como o dos outros dias, nada me respondeu. Girei a maçaneta e voltei para o frio, observando o caminho cheio de varais vazios e neve que me aguardava. Talvez aquela fosse a grande graça de comandar o universo: plantar a dúvida na cabeça dos que lá estavam. E eu não podia deixar de reclamar: já tinha perguntas demais para lidar.

No oposto do pátio, a ala me esperava, resistindo ao vento e à neve mesmo parecendo frágil a ponto de ser derrubada com um simples sopro. As paredes de pedra, apesar de não aparentarem, ainda estavam firmes, como se algo maior estivesse sustentando-as em pé somente à espera do momento certo para deixá-las cair. Assim como Junmyeon esperava Jongdae, mas sem saber dessa última parte.

Passei os braços em volta de meu corpo e voltei a cobrir meu rosto com o cachecol, adiantando meus passos trêmulos para a porta que eu precisava cruzar, atravessando o pátio coberto de neve. Parei ao pé dos degraus que conduziam até ela, estudando o portal que eu já tinha atravessado várias vezes. A madeira antiga estava riscada e caída de um dos lados, possibilitando a passagem. Me perguntei pela primeira vez quantas pessoas já tinham entrado por ali e qual havia sido o fim de cada uma delas. Nada de bom me veio à mente.

Suspirei, tentando afastar a teoria sobre os supostos “pacientes” e suas estadias ali. O fato de Junmyeon viver naquele lugar me incomodava mais do que nunca.

Quando entrei, de alguma forma, o saguão parecia mais claro. Eu não sabia se a luminosidade se devia à hora do dia ou à adaptação dos meus olhos, mas sabia que estava diferente do usual. Mesmo a energia estranha que aquelas paredes carregavam parecia mais leve, menos sufocante. Quase como se a construção estivesse menos triste.

Às vezes, a ala parecia demais com um ser humano.

Cozinhando os passos, fui arrastando meu percurso pelo corredor o máximo que pude. Parei e observei as paredes com uma atenção que nunca me fora permitida, por conta da falta de luz. Contei os insetos que passeavam por ali sem se importarem com a minha presença, e encontrei padrões nos riscos que as dezenas de pessoas que já tinham andado naquele corredor haviam deixado no assoalho.

Quando cheguei até a escada, notei também os enfeites do corrimão e a camada grossa de poeira, que continha algumas pegadas fracas que eu imaginava serem minhas. Senti cada degrau ranger debaixo das solas dos meus sapatos e escutei seu lamento como se fosse uma música inédita. Minha mente ainda parecia procurar e encontrar uma série de coisas para adiar meu encontro com Junmyeon quando cheguei ao primeiro e último andar.

Mais claro do que nunca, o pequeno saguão tinha um monte razoável de neve acumulada sob a janela quebrada, formando uma modesta poça d’água com suas partes derretidas. Passei os olhos pelo lugar e, inicialmente, achei que estava sozinho ali.

Em pé, Junmyeon me observava em silêncio no meio do corredor que conduzia à outra escada, camuflado no jogo de sombras e penumbras que moravam ali junto com ele. Ao longe, mesmo sem conseguir encará-lo, soube que ele estava me esperando.

E diferente de todas as outras vezes, senti receio ao vê-lo.

- Você demorou – disse com uma calma dura.  

- Eu... – observei a nuvem de vapor se formar em frente à minha boca – estava visitando alguém.

Junmyeon ficou mais alguns segundos em silêncio antes de vir em minha direção e mostrar seu rosto. Sua expressão de incômodo era tão nova para mim que não parecia fazer parte daquele rosto delicado. Imediatamente, comecei a elencar quais seriam os motivos. Teria ele finalmente notado que Jongdae não viria? Ou percebido novamente que não conseguia sair dali?

Olhei para baixo antes que precisasse encarar aquele semblante tão de perto, e acabei me deparando com seus pés descalços e cheios de lesões novas. Seus pés machucados eram outra coisa que eu não conseguia entender: como Junmyeon podia estar sempre cheio de feridas abertas?

Não houve tempo para perguntar. Junmyeon não estava para enrolações naquele dia.

- Sem o seu humano – pronunciar a palavra “humano” pareceu ser extremamente doloroso para ele. – Por que você nunca está com o seu humano, Sehun?

Troquei o peso do corpo de perna, me sentindo desconfortável. Ser repreendido por Junmyeon era estranhamente vergonhoso e me enchia de culpa, me passando a sensação de que eu tinha feito algo errado mesmo sem fazer ideia do que poderia ser.

Voltei a encará-lo, receoso. Eu já tinha escutado aquela pergunta mais vezes do que as minhas mãos podiam contar, mas fazia pouco tempo desde que ela tinha finalmente tomado um significado de irresponsabilidade. De culpa.

- Já devia ter aprendido a não brincar com a sorte desse jeito – continuou, me fazendo ouvir pela segunda vez em tão pouco tempo sobre a sorte que me rodeava. – Até, porque, não é a sua sorte que está em jogo.

Engoli em seco. O tom que Junmyeon usava me fazia ter vontade de ir correndo até Baekhyun, ou de encolher até sumir. Era muito, muito pior do que ouvir as repreensões de Catarina. Ali não havia nada de gentileza ou birra. Ele fazia com que uma necessidade gritante de dar explicações corresse por minhas veias.

- Eu sei disso, Junmyeon, eu sei – deixei as palavras dolorosas escaparem pela minha boca, arrastadas como se soubessem que não eram agradáveis de serem ditas. – Mas eu precisava resolver um problema, ontem eu...

- Você não deveria ter problemas, Sehun – fui interrompido rudemente. – É um anjo da guarda, não um humano, se lembra? – Riu com um resquício de desdém. – Ou será que já se esqueceu?

Pisquei algumas vezes, desnorteado. Tentava encaixar as coisas em seus devidos lugares, mas continuava confuso como uma criança em seu primeiro dia na escola. Tudo o que minha mente nublada conseguia processar era a respiração ofegante de Junmyeon, que preenchia todo o espaço onde estávamos. Ele estava nervoso, e qualquer pessoa que o visse se afastaria ou pensaria que estava passando mal. E eu suspeitava que estava.

Junmyeon nunca havia me parecido tão humano quanto naquele momento.

- Claro que me lembro – percebi a urgência de afirmar aquilo quando ouvi minha própria voz. – Eu sei quem eu sou.

Ele olhou para mim como se soubesse que eu não tinha certeza da última parte.

- Eu não estou falando de quem você é – disse debochando de meus esforços. – E sim do que você é. Como anjo da guarda, quem você é não tem que importar, Sehun. Sua existência não é sua.

As palavras finais dele ecoaram em minha cabeça, parecendo visitar cada cantinho dela. Separei os lábios para falar, mas não achei minha voz para fazer isso. Aquela pequena e simples verdade era tão dura que eu não sabia o que responder. Não sabia o que fazer além de imaginar qual era o motivo da súbita revolta.

- Pela sua cara, não descobriu isso agora – continuou com seu sorriso cheio de escárnio. – Eu sei o que está acontecendo, Sehun – um arrepio percorreu minha espinha. – E você precisa parar agora.

A entonação de sua última fala tinha, de alguma forma, me lembrado Kyungsoo. Olhei em seus olhos, tentando descobrir se ele realmente sabia o que estava acontecendo comigo. Se tinha consciência daquelas mudanças estranhas e das coisas que eu sabia sobre ele. Eu não tinha certeza quanto à última, mas seu olhar, sozinho, me denunciava que as mesmas coisas estranhas já tinham acontecido com ele há doze anos. E era justamente aquilo que me incomodava tanto no meio daquela situação.

- Sim, você sabe – senti a razão me voltar aos poucos. – E sabe também o quanto é difícil. Não consigo entender por que está me julgando assim.

Junmyeon chutou levemente um acumulado de tinta descascada enquanto ria soprado, expulsando as aranhas que estavam escondidas lá.

- Tem razão, eu não deveria – disse, apesar de não parecer desaprovar suas próprias ações – mas já estou fazendo isso. Como você acabou de dizer, eu sei. Sei muito mais do que você pensa.

- Então não deveria agir desse jeito comigo – retruquei, incrédulo com a postura dele. – Você deveria me ajudar, Junmyeon.

Ele se aproximou mais alguns passos de mim, me olhando como quem encarava uma criança.

- É o que estou tentando fazer, mas você só está complicando as coisas – falou sem um pingo de gentileza.

Encarei-o perplexo.

- Chama isso de ajuda?

O antigo anjo da guarda revirou os olhos.

- Sim, chamo – confirmou. – Estou tentando fazer você entender que não há tempo a perder.

A falta de compreensão naquela frase pareceu esgotar qualquer resquício de paciência que eu tinha.

- É você quem está me fazendo perder tempo! – Exclamei, exausto de ouvir tudo aquilo depois de descobrir tanta coisa nos últimos dias. – Minha vida está virando de cabeça para baixo, e tudo o que você está fazendo é me criticar por algo que você fez também! E que nem ao menos conseguiu resolver!

Pela primeira vez, desde o início daquela conversa, minhas palavras o atingiram em cheio. O curto momento onde Junmyeon ficou sem fala quase serviu para me fazer ficar arrependido pelo que eu tinha dito. Contudo, ele tratou de acabar com a sensação logo depois.

- Você não acha que está sendo ingrato? – O tom de sua voz subiu também. – Quem é que vai te ajudar além de mim? Quem é que você tem? Kyungsoo, um demônio? Aquele anjo estúpido que você chama de amigo? Ou quem sabe a humana que você segue feito um filhote perdido? Acredite, Sehun, se tem alguém que não está te ajudando, esse alguém é ela!

Tencionei minha mandíbula e apertei os punhos, os olhos arregalados de espanto por ter ouvido aquilo sair da boca dele. A reação de não acreditar no que Junmyeon tinha dito foi passageira demais, e antes que eu pudesse refletir melhor sobre a situação, a adrenalina já estava empurrando a resposta para fora de meus lábios.

- E o que é que você sabe? ­– Minha voz ficou mais baixa, o peso das palavras me impedindo de gritá-las. – Você nem a conhece, Junmyeon. Não pode falar dela.

- Posso – prosseguiu com a mesma certeza de antes. – Posso justamente porque eles são todos iguais. Tudo o que podemos fazer é proteger aquele que é nosso, e conhecer outros só destrói tudo – praticamente cuspiu as palavras.

Foi a minha vez de rir.

- Você está se esquecendo de uma parte muito importante em tudo isso, Junmyeon – falei, cínico. – Catarina não é Jongdae. Ela sabe quem eu sou. Não vai fugir para algum lugar e voltar doze anos depois, como Ele fez. Ou você se esqueceu de que ele está na cidade e não veio te ver?

O veneno contido em minha voz pareceu ir até o lugar certo em seus ouvidos. Ele não tinha gostado nadinha de ser recordado daquele detalhe.

- Ele não sabe que eu ainda estou aqui... – tentou arranjar um motivo.

- É exatamente esse o ponto: ele não sabe mais nada sobre você. É aí que está toda a diferença entre nós – me aproximei a ponto de poder sentir sua respiração rápida. – Não importa o que aconteça, eu ainda vou ter Cathy e Baekhyun comigo!

Quando seus olhos encontraram os meus e pareciam ferver de pura raiva. A cada instante que passava, Junmyeon se parecia menos com o anjo da guarda que havia sido um dia. Assim como eu.

- Você não sabe o que pode acontecer! – voltou a aumentar a voz de forma quase descontrolada. – Não sabe de verdade o que vai acontecer daqui pra frente, Sehun! Vai tudo dar errado se você não parar agora! – Ergueu o indicador e apontou meu peito com tanta força que chegou a machucar, mesmo por cima da jaqueta.

- Por que você não para?! – Fiz menção em me afastar dele, mas Junmyeon me segurou pelo colarinho e me trouxe para ainda mais perto. – Que diabos deu em você?

- Suas asas não serão a única coisa que você irá perder, Sehun!

Eu não conseguia mais entender se era raiva ou arrependimento que saía da boca dele em forma de gritos. Tudo o que eu sabia era que aquele desespero nada esclarecedor só estava me deixando mais e mais confuso sobre o que estava acontecendo. O anjo sem asas parecia desaprovar mais do que apenas as minhas ações: desaprovava algo que era muito mais pessoal. Algo que eu sabia que não tinha a ver comigo, mas que não conseguia ver com clareza ali, pelo menos não enquanto escutava meu melhor amigo me acusar de coisas que eu não fazia ideia de que estava fazendo. Naquela manhã conturbada, suas palavras soavam para mim como uma praga, cheias de inveja e egoísmo, uma comparação repleta de má intenção. Era como se cada célula dele desejasse que eu fosse infeliz. Como se estivesse dizendo para mim tudo aquilo que não tinha ouvido. A única coisa na qual eu conseguia pensar era que ele estava sendo extremamente injusto. Comigo e com ele.

- Junmyeon, eu não sou você! – Devolvi num grito tão carregado que beirava a choro, a confusão e a mágoa escondidas em minha voz.

- Eu sei me respondeu entre dentes. – Não quero que você seja como eu! É por isso que você tem que me ouvir! – Ele me chacoalhou como se aquilo fosse me fazer mudar de ideia. – Essa garota vai sei a sua ruína, Sehun, ela vai acabar com você! Ela...

Ele não conseguiu terminar sua fala. Antes que pudesse fazer isso, foi impedido por algo que, se alguém me contasse, eu não acreditaria. Para mim, até poucos minutos antes, encostar em Junmyeon de uma forma que não fosse amigável era algo de outro mundo. Entretanto, foi exatamente o que aconteceu. No meio tempo minúsculo entre um pensamento e outro, minhas emoções se tornaram tão intensas que ficaram fora do meu controle. Naquele intervalo ridículo entre suas palavras indesejadas, meus braços o empurravam com força e vontade, jogando-o cerca de dois metros para trás. O impacto do corpo de Junmyeon batendo contra a parede foi oco e doído de se ouvir, servindo como um estalo para que eu notasse o que tinha feito. Contudo, já era tarde demais.

Quando seus olhos castanhos me encontraram, seu olhar tinha perdido um pouco daquela dureza e cedido espaço para o mesmo espanto que o meu. Lentamente, ele limpou as mãos sujas de poeira nas calças e suspirou pesadamente, ainda sentado. No silêncio que se seguiu, senti que eu não era o único que tinha sido acordado de alguma coisa: Junmyeon parecia finalmente ter entendido que me sacudir insistentemente não iria mudar nada.  

E foi do chão em que eu o tinha jogado que ele me deixou o último recado cheio de mágoa daquela manhã cinza, que mais parecia uma maldição.

- Ela vai te tirar tudo o que você tem, tudo o que você é – a calma gelada em sua voz fazia tudo parecer ainda mais difícil de se ouvir. – Quando você menos esperar, estará como eu. Você nunca vai ser capaz de ter as duas coisas Sehun. É impossível.

Impossível.

Eu não conseguia pensar em nada além daquela palavra quando dei as costas a ele e comecei a descer as escadas, batendo em retirada. A vi escrita nos degraus, nas paredes e nas portas, riscadas no assoalho velho. Até a corrente de ar gélido que passeava pelo saguão parecia sussurrá-la para mim quando passei por lá. Naquele dia, assim que saí da ala abandonada, tudo e mais um pouco do que me rodeava me dizia que ele estava certo e eu errado.

Que cada esperança minha deveria ser impossível também.

Meus passos pesados deixavam marcas fundas da neve, formando com pressa uma trilha desuniforme que denunciava meu trajeto ansioso. Havia algo apertando meu peito, pesando em meu corpo e me empurrando para baixo. A sensação de que alguma coisa ruim estava prestes a acontecer corria queimando pelas minhas vias, alimentando meu desespero como lenha alimentava lareira.

Abri a porta de alumínio sem cuidado, provocando um ruído arranhado que ecoou no corredor aquecido. Virei à esquerda e continuei meu caminho, esquecendo-me totalmente da possibilidade de ser pego circulando onde não era permitido o livre acesso. Com aquela sorte maldita sempre ao meu lado, cruzei apenas com uma criança e um anjo da morte, que seguiam juntas de mãos dadas. Não houve tempo para comoções. Eu precisava sair dali o mais rápido possível.

Precisava encontrar Catarina.

Precisava encontrar Baekhyun.

O “impossível” de Junmyeon ainda me perseguia quando atravessei a via beira-mar e fui até a orla, me fazendo entender que não me abandonaria tão cedo. Enquanto eu corria com todas as minhas forças, me amaldiçoando por não ser mais capaz de voar, repetia em vão que tudo estava bem, que era só uma impressão ruim. Que eu chegaria até eles e os encontraria tranquilos, juntos em uma das duas casas. Que a nossa história seria diferente da de Junmyeon, Haesoo e Jongdae.

Contudo, não foi tão fácil quanto antes. Nada mais seria fácil. Nada mais seria como antes. E isso, simplesmente, porque era impossível. Começou a mudar no instante em que coloquei meus olhos nela, no instante em que notei que Catarina me percebia naquele quarto de hospital, meses atrás, quando a neve ainda não caía. Mudou quando, de repente, sem planejamento ou conhecimento algum, comecei a ter meu próprio destino, a traçá-lo com minhas próprias palavras e minhas próprias escolhas. A me tornar mais Sehun do que algum dia eu poderia ter sonhado ser.

Ali, dentro de mim, eu suspeitava que não era mais um anjo da guarda, ou que pelo menos era muito pouco. Espantava aos pontapés cada vez que esse pensamento vinha, mas a frequência com que ele me ocorria dificultava as coisas. Pensava nas minhas asas quase inexistentes, no meu frio, na fome e na minha visibilidade. Ouvia minhas ganâncias e egoísmos, minhas tristezas e aquilo que eu chamava de pequenas luxúrias. Olhava para mim e me lembrava de Junmyeon, comparando-nos antes que conseguisse perceber que o fazia. Suprimir tudo aquilo e repetir que nunca tinha ouvido falar de outros casos não era mais o suficiente.

Pela primeira vez em toda a minha existência, eu sabia quem eu era, mas não o quê.

Quase colocando os pulmões para fora, corri ainda mais rápido quando me aproximei do centro da cidade, sabendo que as casas gêmeas estavam a apenas algumas quadras de mim. Mirei na esquina da padaria do pai de Cathy, contando os segundos longos que me separavam da curva que eu precisaria fazer, mas que não fiz. Quando eu estava a uma quadra de lá, vi Baekhyun e Catarina saindo do estabelecimento e diminuí um pouco meu ritmo, sentindo as pernas falharem por conta do esforço incomum. Vi quando eles riram e quando a garota me deu um tchau discreto, seu sorriso se transformando em confusão quando notou minha expressão esbaforida. Vi quando meu humano desprendeu a bicicleta da árvore e me olhou, curioso. Vi os lábios de Catarina se mexerem dizendo algo antes de ela ir até sua própria bicicleta, um milésimo de segundo antes de Baek se lançar pedalando. Vi tudo aquilo correndo diante de mim em uma câmera lenta desgraçada.

Só não vi a moto.

Nem de onde ela veio.

Ninguém viu.

 

E, quando o grito aterrorizado de Catarina alcançou meus ouvidos,

 o ar já me faltava.

 

 

~X~

 

“Só mais uma vez, volte àquele dia

Só mais um dia, volte àquela época

Se eu ao menos pudesse voltar

Se eu pudesse voltar

Oh, eu sei que eu

 

Eu te abraçaria

Então, por um momento

Você não estaria distante de mim

Eu teria te dado tudo de mim

Eu teria”.

 

It Would Have Been, Day6.

 

~X~


Notas Finais


OI CRIANÇAS
MUITO OBRIGADA POR LEREM

Resuminhoh: Sehun desolado depois das verdades que o Kyung jogou pra ele rs; Sehun e Cathy juntinhos (SERINE/NA <3); Sehun e Haesoo; Sehun aparecido; Sehun e JONGDAE batendo um papo no cemitérioh; Bom dia pro Sehun e pra quem descobriu que a Haesoo é a mãe da Cathy pq eu já sabiah; Sehun passando mal e não é por causa da beleza do Chen; Chen mais desconfiado que detetive particular; Sehun cumprimentando todos no hospital; Sehun circulando onde não deve; Sehun e Suho na maior gritadera; Sehun e Suho nos tapass; Sehun desesperadoh, sebo nas canelas; Todo mundo vendo o Sehun; E uma moto atropelou alguém. Fimmm

E aí, alguma teoria? Jesus, que direito eu tenho de perguntar isso

Esse capítulo não foi exatamente difícil de escrever. Foi só a falta de tempo mesmo, que foi tremenda. Espero que possamos aproveitar juntxs as próximas três postagens, que já estão todas planejadas, porém não escritas, só para variar hehe. Mas não se preocupem quanto a abandono. Eu nunca farei isso, é uma promessa pra vocês e pra mim.

AH, E ANTES QUE EU ESQUEÇA, VOTEM NO EXO E NO DAY6 NO MAMA! Pq agr eu sofro em dobro por coreano T.T

Até a próxima, e que Jongin fantasiado para o Halloween esteja sempre com vocês, aquele lindoh.


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