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História O Caminho da Andorinha - Planejamento


Escrita por: B4dWolf

Capítulo 28 - Planejamento


Bjorn fechou seus olhos, inclinando a cabeça. Manteve a boca fechada ao respirar, inspirando e expirando pelo nariz. Sentia os músculos de sua face relaxados, mas um pequeno sorriso se revelou nos lábios do Bruxo.

Seu “mentor”, Havenkar havia lhe ensinado a meditar meses depois do Teste das Ervas. Bjorn jamais foi um aluno aplicado. Achava a prática da meditação absurdamente ridícula, chegando ao ponto de dizer que homens de verdade não faziam aquilo. Claro que o Bruxo de Skellige não aceitou com agrado o seu argumento, entregando ao jovem herdeiro dos Tuirseach uma punição de dezenas de flexões a ponto de deixar os ombros doloridos. Mas não foram as flexões que fizeram Bjorn mudar de opinião, mas sim, sua vida no Caminho. Ferido após enfrentar alguns monstros, não tardou para que o Bruxo aceitasse colocar em prática os ensinamentos de Havenkar. Por mais tolo que pudesse parecer, meditar parecia agilizar a cura de seus ferimentos. E não é que tinha lá sua serventia?

            Ciri havia prometido entrar em contato com Yennefer de Vernemberg assim que conseguisse resolver o mal-entendido e libertar o Magistrado Godfrey. Bjorn poderia ter esperado em seu acampamento, mas decidiu fazer melhor: sem avisar a jovem de cabelos brancos, o Bruxo adentrou ao seu quarto na estalagem discretamente pela janela dos fundos e, depois de tomar banho em sua tina, aproveitar o espelho para se barbear e tirar uma boa soneca naquela cama, mais macia que o chão duro ao ar livre, o Bruxo resolveu fazer uma meditação, enquanto a aguardava. Já se passaram umas boas horas desde então.

            Mas ele não conseguia manter seus pensamentos longe por muito tempo. Seu estômago roncava, ansioso. Seus sentidos sobre-humanos de Bruxo lhe deixavam a desvantagem de descobrir o que o estalajadeiro Lucius estava preparando na cozinha, antes dos clientes. Na verdade, antes da comida estar propriamente pronta, o que se mostrava ser uma tortura. A carne de porco ainda assava, estando um pouco crua, mas o aroma exalado dela já chegava às narinas do Bruxo, que sentia seus lábios molhados de fome.

            -Uma tragédia, Lucius! Uma tragédia acaba de acontecer no Castelo!

            As palavras lacrimosas de uma mulher fizeram o Bruxo de Skellige imediatamente abrir seus olhos reptilianos. Uma conversa, acontecida dentro da cozinha, havia chamado sua atenção. Especialmente pela palavra “castelo”, afinal, Ciri estava prestes a ir até lá e resolver o problema do Magistrado. Bjorn não se desfez de sua posição meditativa, mas claramente sua mente estava voltada à conversa ocorrida em meio a panelas e caldeirões da estalagem.

            -O Magistrado Godfrey, ele... Ele foi morto! – chorava uma mulher. – Ciri tentou provar sua inocência, mas a acusaram de ser uma impostora. Parece que há um feiticeiro no Castelo do Barão e ele a desmentiu... – disse a mulher, em meio a lágrimas.

            -Um feiticeiro?! – retrucou Lucius. – Mas o Barão jamais gostou de feiticeiros!

            -Ele não está sozinho no Castelo, Lucius. Nobres de toda a Teméria estão lá. E o Rei Voorhis também.

            -Por Melitele! Agora entendo porque o Barão solicitou cinco porcos abatidos...

            -O Magistrado Godfrey não merecia morrer desta forma... Foi tão horrível! Onde está Dora?

            -Dora não vem trabalhar hoje. Ela fará parte da cerimônia da Festa de Melitele. Mas escute uma coisa, Eruwaedh. – disse o estalajadeiro, aos cochichos. – Ninguém pode saber o que aconteceu.

-Mas Dora, ela... Ela precisa saber o que aconteceu a Godfrey!

-Se contar a ela, eles saberão que foi você, entendeu? Pois você sabe, o elfo sempre é o melhor culpado para qualquer problema. Essa gente é muito poderosa e se eles estão tratando sobre isso com tamanha discrição, é melhor que seja assim. Entendeu? Não se arrisque por Dora. O Magistrado está morto e não há mais nada que possamos fazer por ele. Mas e quanto à Ciri? Será que eles também a matarão?

-Acho que não. – afirmou a mulher. – Um deles falava dela como se ela fosse importante. Não sei. Ela ainda estava viva quando saí do castelo.

Bjorn não ouviu o resto. Claramente, não estava mais meditando coisa alguma. Levantou-se, com grande raiva, e caminhou até a cadeira do quarto, onde jazia recostada a sua correia com machados. Atando-as em suas costas, o Bruxo sabia que precisava fazer alguma coisa. Ciri não só detinha a informação de que ele precisava, mas apesar de todos os problemas, a jovem de cabelos brancos havia sido tão generosa para com ele que o mínimo que ele deveria fazer era salvá-la. Afinal, ele era o grande culpado. Sangue inocente fora derramado por sua causa e ele não deixaria que isso se repetisse.

 

 

§§§§§§§§§§

 

 

Mais uma vez, bandagem, pano, uma bacia com água, álcool e algumas ervas para ajudar na cicatrização. Além de um preparado para combater uma eventual infecção. Turiel reuniu todos os componentes e os colocou dispostos sobre a mesa. Cada vez mais, estava se tornando uma espécie de “curandeira”, tratando de feridos.

Seus olhos voltaram-se para Roche. Imundo, coberto de poeira, com o rosto tão coberto de sangue que mal dava para saber quais eram seus reais ferimentos. E sem seu inseparável chaperon, o que era uma visão ainda mais incomum aos olhos da elfa.

Turiel dedicou sua atenção aos ferimentos no rosto de Roche, resultados da luta com ares de surra que o temeriano teve com Iorveth. Depois que o temeriano lavou seu rosto, retirando a poeira que o cobria, os ferimentos ficaram mais visíveis. Um corte no canto do lábio, no supercílio e um olho que em breve ficaria roxo se não fosse tomada as devidas providencias.

-O que está passando ao redor do meu olho? Parece algo... Gelado. Como neve.

Turiel riu, enquanto espalhava na região de seu olho uma pomada.

-É um preparo que, digamos, “simula” a sensação do gelo aplicado à pele, então é quase isso. Para evitar que seu olho fique roxo.

-Entendi. Agora, e quanto a Anais? – questionou mais uma vez Roche, enquanto Turiel fazia um curativo em seu supercílio. – Pensei que a encontraria aqui, com você. Onde ela está?

Com um suspiro desanimado, a elfa terminou o curativo.

-Anais está nas mãos de Dethmold, o Conselheiro do Rei.

Roche arregalou seus olhos.

-O QUÊ?! – esbravejou o temeriano. – Justamente com aquele filho da puta? Como pôde ter deixado isto acontecer?

-Anais estava em uma cerimônia de Melitele. As jovens de Lathlake participam todos os anos. Achei melhor que ela participasse, para que ela agisse como uma camponesa comum. Eu não sabia que o Conselheiro do Rei Voorhis estava aqui, em Lathlake. Segundo Anais me avisou,  ele está dizendo que uma das moças do vilarejo é a verdadeira Anais La Valette e que ele faria um teste nelas.

-Caralho... Mas que porra de teste é este?

-Tenho quase certeza de que ele usará Magia de Sangue.

-A julgar pelo seu tom, isso não é algo bom...

-Não mesmo. É uma das Magias proibidas pelos arcanos, pertencentes a uma das ramificações da Magia Negra. Após o cair da noite, ele aplicará uma poção com gotas de sangue real, possivelmente de algum parente ou descendente de Foltest...

-Mas como ele fará isto? Foltest não deixou herdeiros legítimos. – negativou Roche. – Tem apenas um primo distante e... Droga! Adda! Usaram o sangue dela, tenho certeza! Merda!

-O problema não é este. – explicou Turiel. – Se Anais realmente não for filha do Rei Foltest, ela não resistirá ao ritual e morrerá.

-Ela não vai morrer.

-Não deveria ter tanta certeza. – recusou-se a aceitar Turiel. – Anais é fruto de uma relação extraconjugal da Baronesa La Valette com o Rei Foltest. E se, no fim das contas, Anais for filha legítima do Barão La Valette, e não de Foltest? Talvez nem a Baronesa saiba quem é o pai e Foltest se agarrou à ideia porque não tinha alternativas...

-Ela é realmente filha de Foltest. – interrompeu Roche, convicto.

-Nossa, você fala como se estivesse presente em todos os coitos da Baronesa...

-Eu conhecia muito bem o Rei Foltest. Na pouca convivência que tive com Anais, pude ver muito de Foltest nela. É verdade que Anais é parecida fisicamente com a Baronesa, mas... Como explicar... O jeito dela de se expressar, o olhar... Lembra-me muito o Foltest.

-Já parou para pensar que seu subconsciente está te enganando e fazendo acreditar nisso porque, no fundo, você quer que isso seja verdade?

Roche suspirou.

-O que importa – disse o temeriano – é que Anais não pode ficar nas mãos daquele puto do Dethmold. Não depois das coisas horríveis que ela presenciou em Loc Moinne.  Precisamos resgatá-o quanto antes, e melhor que seja antes desse teste acontecer. Em breve, a noite cairá. Precisamos agir, e logo.

-Pedi a ajuda de Saskia.

-Aquela pária, guerreira sem honra, protetora dos pobres e fodidos?

-Não adianta olhar com essa cara. – respondeu Turiel. – Ela fornecerá ajuda, agindo como uma distração. Eu tenho uma amiga naquele castelo que irá nos ajudar a entrar de modo oculto. Quando a Guarda estiver distraída, nós atuaremos.

-Espero que essa distração seja muito boa, pois se aquele viadinho do Dethmold está aqui, aquele balofo do Rei Voorhis também está. O que significa que toda a Guarda Pessoal dele também, o que nos faz considerar pelo menos uns cem Cavaleiros Negros prontos para protege-los.

Turiel riu levemente.

-A distração de Saskia será eficaz, confie em mim.

-Bom, que outra escolha eu tenho senão confiar? – deu ombros o temeriano. Um breve silêncio se instalou entre os dois. Roche fechou seus olhos, concentrado no que deveria fazer, enquanto Turiel correu para o papel, onde começou a traçar um rústico mapa do Castelo de Leftengord – ou ao menos, o que ela se lembrava, devido a suas visitas a trabalho ali. Os dois estavam compenetrados, pensando em um plano de ação, até que o som estremecido de um roncar rompeu o silêncio. Um tanto constrangido, o temeriano pigarreou.

-Eu...

-Sim, você está com fome. Seu estômago roncou duas vezes desde que entrou em minha casa, decerto por causa do cheiro de comida. Terá de se contentar com as sobras do almoço, porque não estou com cabeça para fazer o jantar. Na verdade, nem mesmo estou com apetite. – respondeu a elfa, adotando um tom triste na última frase.

-Comer também era a última coisa que gostaria, mas estou sem comer há quase dois dias.

Turiel surpreendeu-se, engolindo em seco.

-Pelos deuses, vá comer alguma coisa!

 

 

§§§§§§§§

 

 

-Pensei que estivesse furioso comigo por encontrar Iorveth aqui.

-E estou. Bastante. Mas para sua sorte, eu tenho algo mais grave com o que me preocupar agora.  – concordou Roche, após uma colherada. Faminto, o temeriano comia sem qualquer compostura e com ferocidade, a ponto de fazer Turiel desviar o olhar algumas vezes.

-Aquele calhorda do Iorveth, perto de Anais... Realmente, espero que ele não tenha feito nada contra ela ou...

-Se ele tivesse feito qualquer coisa contra Anais, a briga tola de vocês sequer teria acontecido, pode ter certeza. – disse Turiel, com convicção.

-Então... Vocês se conhecem há muito tempo?

-Não. – respondeu Turiel, com franqueza. – Conheci Iorveth depois de você. Foi um pouco depois de ter partido com Anais pela primeira vez.

-Pelo tom de nossas conversas, você nunca me pareceu uma elfa engajada com os Scoia’tael. Na verdade, você parecia reprovar o método violento deles. Admito que me surpreendi em ver que você é amiga dele. Contraria bastante as suas convicções.

Roche falava com calma, mas havia, ainda assim, amargura e ressentimento em sua voz. Estava claramente com raiva, mas sabia que não podia berrar ou dar uns bons tapas em Turiel. Talvez estivesse se contentando em fazer isso com ela apenas em seus pensamentos.

-Do mesmo modo que uma “amizade” como você também contraria minhas convicções. Mas não. Nós não somos grandes amigos, como deve estar parecendo. – retrucou Turiel. – Eu tenho uma dívida para com ele.

-Que dívida?

-Ele... Eu acho que nunca te contei, mas eu já fui casada.

Roche assentiu levemente, nem um pouco surpreso.

-Eu já desconfiava. O gibão vermelho que você me emprestou, a espada élfica que Anais encontrou em suas coisas... Imagino que tenham sido pertences de seu marido. Mas então, o que aconteceu? Seu marido era um Scoia’tael?

-Não, pelo contrário. Elendil era um ótimo caçador. Com o seu arco e flecha, ele ia até a floresta e caçava animais como cervos e coelhos, para o nosso alimento. Às vezes, vendia a carne e as peles, quando precisávamos de dinheiro. Um dia, ele saiu para caçar e nunca mais voltou. Procurei por um bom tempo, até julgá-lo como morto. Mas um dia, depois de alguns anos, ele reapareceu. Disse que havia sido preso, confundido por um Scoia’tael e mandado a uma prisão temeriana. Foi Iorveth quem o ajudou a escapar.

-Entendi. – disse Roche, após absorver os fatos. – E... Onde ele está?

Turiel percebeu um certo desconforto na voz de Roche, mas preferiu não questioná-lo sobre isso. – Morto. Ele escapou da prisão, mas acabou falecendo em um acidente bastante trágico e...

-Tudo bem, não precisa me contar dos detalhes. – decretou Roche. – E quanto a Iorveth? Ele está aqui há muito tempo?

-Não, apenas alguns dias. E foi a primeira vez que ele fez contato comigo. Ele foi embora um pouco antes de você retornar com Anais e deixa-la sob meus cuidados. Desde então, eu não o havia visto.

-Ele sabe sobre Anais?

-Não. Mantive a farsa.

Isso não foi o bastante para acalmá-lo. Inquieto, Roche massageou as costas de seu pescoço, inalando profundamente.

-Arriscado demais, Anais e este elfo sanguinário debaixo do mesmo teto...

-Vernon, esqueça Iorveth. – interrompeu Turiel o resmungo do temeriano. – Ele já foi embora. A esta altura, está acampado em algum lugar da floresta e não vai voltar mais.

-Se não se recorda, Turiel, eu posso trazer à sua memória. O Rei Foltest, pai de Anais, foi um dos maiores perseguidores dos Scoia’tael e é tido como um racista por muitos elfos.

Turiel riu. – “Tido”?! O que quer dizer? Que ele não era realmente um racista?

-Sim, ele era. – admitiu Roche. – Odiava os inumanos, especialmente elfos. Foltest tinha muitos defeitos, é verdade, mas era um bom Rei. E quem neste mundo não tem defeitos?

-Estou surpresa que considere o racismo como um defeito. Pensei que a concepção da superioridade da raça humana fosse um fato incontestável para você.

-Não posso ter esse pensamento, pois eu não sou humano. Seria me considerar um ser inferior e não sou tão estúpido a este ponto. É verdade que eu tenho os meus motivos pessoais para não gostar de elfos, mas não concordo com aqueles que adquirem uma repulsa gratuita por elfos simplesmente porque são elfos. E Foltest era um destes casos. Simplesmente preconceituoso, como todos os monarcas e nobres do nosso Continente. Uma raiva e repulsa por elfos sem qualquer explicação ou lógica.

-Ele sabia sobre suas orelhas?

-Obviamente que não. Do contrário, não estaríamos tendo esta conversa agora.

Turiel refletiu brevemente. Como Roche conseguia ser seu braço direito, basicamente pisando sob gelo fino e fingindo ser alguém que não era, tendo um segredo tão fácil de desmascarar? Como se adivinhasse seus pensamentos, Roche acrescentou.

-A minha sorte – ele disse, dando uma última colherada. – é que ele jamais me pediu para tirar o chaperon. Acho que vou pegar mais sopa.

-À vontade. – deu de ombros Turiel, enquanto observava o temeriano devorar sua simplória sopa de cenoura com velocidade. Algo naquilo a fez se lembrar do primeiro dia em que o recebera. Uma noite chuvosa, onde encontrou um estranho e grosseiro homem acompanhado de uma menininha febril. Curiosamente, seu apreço por Anais nasceu logo no primeiro momento. Turiel não sabia se seu amor por Anais germinou por causa do vazio que a morte de seu filho Berdulon, mas ela só tinha certeza da sinceridade, que não fez tornar um fardo a tarefa de cuidar Anais e prepara-la para o Trono.

Roche estava prestes a comentar sobre a sopa quando ouviu um soluço. Era Turiel, chorando. O temeriano franziu o cenho. Droga... O que eu faço? Detesto mulheres chorando... E eu sou péssimo para consolá-las.

-Turiel... – ele começou, incerto do rumo que adotaria. Tendo a cabeça enterrada em suas mãos, Turiel chorava e soluçava. Timidamente, Roche pôs a mão em seu ombro. Não parecia ser o bastante. Decidiu, então ser mais ousado. Colocando o prato meio vazio de sopa de lado, o temeriano a abraçou, um tanto incerto se ela aceitaria o seu abraço. Mas curiosamente ela não se afastou. Pelo contrário, apoiou seu rosto em seu ombro. Sua atitude inesperada preocupou Roche. Ela estava tão péssima assim, para ignorar o seu famoso mau-cheiro?

Talvez não tanto. O abraço nem durou um minuto, pois Turiel afastou seu rosto do ombro de Roche, com a tez um tanto confusa e tonta. O temeriano teve vontade de rir, mas se conteve. Não era justo transformar um momento daqueles em piada. Roche agachou-se à altura de Turiel e afastou suas mãos do rosto, para observá-la melhor. A elfa chorava copiosamente. E por Anais.

-Nós vamos resgatá-la das mãos de Dethmold. – ele disse.

-Ele deveria estar fazendo os testes após o cair da noite, mas... E se já estiver fazendo os testes agora?

-Não podemos pensar o tempo todo no pior. – disse o temeriano. – Poderia ter agido no instante em que soube, mas a única coisa que sua ação provocaria seria a sua própria morte. E Anais não precisa de mártires.

-Eu não quero perde-la, Vernon. Não sei se vou aguentar mais uma perda...

-Anais não terá o mesmo destino que o seu marido.

-Não estou falando de Elendil, Vernon. Eu... Eu já fui mãe.

Mãe. Mas é claro. Os brinquedos que encontrara em seu baú, junto do pequeno arco infantil. Roche havia suspeitado levemente disto, mas nada superava a verdade posta diante de seus olhos. Esses brinquedos pertenciam ao filho de Turiel. Um menino elfo que ele jamais viu e que, ao que tudo indicava, não mais estava presente neste mundo.

-Fui atacada por alguns fanáticos e meu filho me defendeu. Pessoas morreram e ele foi condenado ao enforcamento pelo vilarejo. Nada pude fazer pelo meu filho porque eu estava presa e não sabia da sentença.

-Pelos deuses... Infelizmente, este tipo de coisa acontece por todo o Norte.

-Não deveria acontecer. – retrucou Turiel, com certa rispidez.

-Muita coisa não deveria acontecer. Por exemplo, como um homem sádico como Dethmold conseguiu ocupar o assento de Conselheiro da Teméria? Esse Voorhis deve realmente ser louco. Ou Dethmold deve ter alguma utilidade. Vai saber o que se passa na mente daquele leitãozinho nilfgaardiano...

-Dethmold mexe com Magia Negra. Deve aceitar fazer qualquer coisa.

-Não me surpreende. Aquele filho da puta não tem escrúpulos algum.

Ficaram mais um tempo em silêncio, aproveitando o calor da lareira acesa. Roche dava mais um gole em seu copo com suco de framboesa. Em virtude dos acontecimentos, sentia falta de uma bebida forte para estremecê-lo um pouco, mas sabia que nada teria na casa de Turiel. Ela odiava bebida alcoólica.

-Caralho, preciso de um trago forte para digerir toda essa merda... O que é isto? – perguntou o temeriano, não escondendo sua confusão ao ver Turiel colocar sobre a mesa uma garrafa.

-Não está reconhecendo?

-Claro que sei reconhecer uma legítima garrafa de Licor de Mahakam quando estou diante de uma. Não é esta a questão. O que me pergunto é: o que alguém como você faz com uma dessas em casa?

-Assim que você me entregou Anais, eu fui até a taberna e gastei alguns Orens na compra dela. Como pode ver, está lacrada.

-Seria ainda mais surpreendente se não estivesse. Mas você ainda não me explicou o propósito dessa bebida. Até onde eu sei, você não aguenta um trago sequer disso.

-É que eu queria guarda-la para... O dia em que você retornasse.

-Para comemorarmos o meu sucesso em conseguir o Trono para Anais, é isto? Devo admitir, você foi bastante otimista. Houve dias em que eu mesmo acordava duvidando de que iria conseguir.

-Não se tratava disso, Roche. – interferiu Turiel. – Tratava-se de... Você retornar. Bem-sucedido ou fracassado, mas retornar. Vivo. Apenas isso.

Fitando a garrafa de vidro arredondada e seu líquido incolor, Roche considerou as palavras da elfa. Lembrou-se do primeiro instante em que a viu. A desconfiança que permeou o momento em que se encontraram e que se aprofundou quando Roche descobriu que ela era uma elfa. Como Comandante dos Listras Azuis, Roche matou e comandou a morte de inúmeros elfos, estando sempre preparado para retaliação da parte deles. Mas Turiel agiu diferente. Importou-se com Anais. Demonstrou carinho, zelo e afeto para uma criança humana, sem pedir nada em troca. Não que seu gesto de caridade tivesse amenizado o relacionamento dos dois, construído por momentos de rispidez e palavras ariscas. Mas apesar das farpas e pedras no caminho, Roche sentiu uma estranha empatia e confiança em Turiel, muito embora sua racionalidade lhe alertasse para o perigo daquela parceria inusitada e improvável.

-Mas não há o que comemorar. – acrescentou Turiel, com os olhos lacrimejando. – Anais não está aqui para brindar conosco. Claro, ela brindaria com um suco de amoras, mas não é isto o que importa. Ela esteve aguardando tanto por sua volta, ouviu coisas horríveis sobre você, em sua maioria boatos vulgares, e ainda assim, ela teve esperanças de que você estava vivo. Em nenhum momento, ela deixou de acreditar em você.

-Guarde esta garrafa para o dia da Coroação dela.

Aos prantos, Turiel assentiu.

-Sim. É o que farei.

Palavras começaram a se formar nos pensamentos de Roche.

“Acho que nunca vou conseguir agradecer o bastante pelo que fez a Anais. Não só pelo que fez a ela, mas também pelo que fez a mim. Sob minha tutela, ela não estaria viva. Foi a certeza que tive, naquele dia em que me encontrou naquela caverna. Mas você apareceu e não nos deu as costas, como qualquer pessoa sensata teria feito. Talvez, até como eu teria feito, menos não sendo o mais sensato dos homens. Mas você nos acolheu. Minha gratidão a você certamente se estenderá para além desta vida.”

No entanto, tudo o que o temeriano foi capaz de dizer foi “obrigado”. Ele sabia que era pouco, que Turiel merecia mais, mas um discurso bonito e comovente jamais foi o forte de Roche. Ele só esperava que ela compreendesse o quão grato ele era.

“Pare de se preocupar com isso, Roche. Já li seus pensamentos e entendo a profundidade da sua gratidão”, pensou Turiel, contendo-se para não dizer isso em voz alta. Afinal, não queria deixa-lo constrangido ou irritado, nem provocar uma discussão desnecessária sobre o uso da Magia na quebra de sua privacidade. Não quando Anais precisava de toda a atenção deles.

-Temos muito trabalho a fazer. Daqui a pouco, o sol começará a se pôr, então é melhor formarmos um plano. Quando terminarmos, teremos tempo o bastante para beber essa garrafa inteira. Aliás, espero não beber sozinho, como da última vez. – disse Roche, já metido em seus ares de Comandante, caminhando até a mesa onde, de modo improvisado, a elfa já havia traçado de modo improvisado os arredores do Castelo de Leftengord.

 

 

§§§§§§§§§

 

 

-Acho que você foi longe demais com ele.

Iorveth resmungou. Estava sentado á beira de uma fogueira. O céu começava a tomar uma forma alaranjada e em breve a escuridão tomaria lugar. A floresta já parecia adormecida, salvo o som das corujas e os morcegos que vez ou outra sobrevoavam seu acampamento. Saskia estava terminando de comer um cacho de uvas que surrupiou da cozinha de Turiel antes de partir de modo apressado dali com Iorveth. Conversaram sobre coisas triviais durante boa parte do assunto. A guerreira fez seus curativos e tratou seus hematomas em silêncio, mas agora que seu estômago já estava satisfeito, ela decidiu se pronunciar sobre a briga.

-Foi pouco. – disse Iorveth, mexendo na fogueira com uma vara. – Todo este tempo e aquele verme enganou todo mundo.

-Enganou a você, melhor dizendo. – acrescentou Saskia. – Sei que o motivo de sua raiva é que você se sentiu enganado por ele.

-Ele me fez pensar que era um dh’oine quando na verdade...

-Ele é um meio-elfo. Ou quadroon, como Turiel disse. Um mestiço. E que perspectivas um mestiço pode ter em nosso mundo, afinal? Acha que os humanos o aceitariam de bom grado? Ou os elfos? Seria difícil para alguém com as características físicas dele se passar por um elfo, então ele optou por ser humano. Foi a alternativa mais fácil.

Iorveth voltou seu olhar para a fogueira, e depois para Saskia.

-O que mais me incomoda – confessou o elfo – é que eu tenho a sensação de ter odiado uma fraude. Não sei mais o que pensar de meu próprio inimigo. Eu tinha uma convicção de que o odiava, enumerando facilmente todos os motivos para tal. Mas agora, eu não consigo odiá-lo da mesma forma. Sempre coloquei Roche como a personificação de tudo que os dh’oine tem de pior a oferecer, e no fim das contas, descubro que ele é um mestiço, um fola salach que possivelmente passou a caçar suas próprias raízes não por mera convicção da superioridade da raça humana, mas por alguma razão pessoal. Vi a cara que ele fez ao mencionar a mãe. Tenho quase certeza que o lado elfo foi obtido através do pai.

-Bom tocar neste tópico. – começou Saskia. – Você foi longe demais falando da mãe dele. E não adianta olhar para mim deste modo. Concordo que ele é um grande hipócrita, mas a mãe dele nada tem a ver com essa guerra de vocês. Como mulher, senti um profundo desgosto ao ver você usar termos tão pejorativos ao tratar sobre a mãe dele. Se a mãe desse Vernon Roche vendia o próprio corpo, problema é dela. Ao contrário do que pode parecer, nem todas as prostitutas escolhem essa profissão porque acham “prazeroso” entregar os seus corpos a desconhecidos por moedas. Não é nosso direito julgar.

Os dois ficaram em silêncio, mais uma vez.

-Vai ajudar Turiel?

-Sim, eu dei minha palavra. Aquela menina é importante para ela.

-Cada vez mais acho Turiel uma vergonha ao povo Aen Seidhe. Abrigou um homem, ou melhor, um fola salach como Vernon Roche em sua casa e agora arrisca a própria vida por uma dh’oine. Mas não posso impedi-la, posso? De qualquer modo, passarei a noite aqui, e assim que amanhecer, partirei para Mahakam. Espero que não se atrase.

-Não vou. – disse Saskia, olhando para o céu. Quando uma estrela começou a piscar fortemente, a guerreira riu internamente. “É o sinal”. Fechou seus olhos, e em segundos, foi tomada por uma forte áurea, que ao se dissipar, revelou sua forma draconiana. Quando Saskia começou a bater suas asas para voar, boa parte do acampamento se desfez, com objetos se espalhando pela mata e poeira atingindo o rosto de Iorveth.

-Odeio quando faz isso, Saskia! – disse o elfo, cuspindo poeira, mas já era tarde. Saskia já voava pelos céus, livre como um pássaro.



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