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História Polaroid - Kyle - 06h13


Escrita por: caulaty

Notas do Autor


(K2 e talvez um bocadinho de one-sided Style)

Capítulo 1 - Kyle - 06h13


Eu acordo. Acho que o dia nem bem amanheceu ainda; não tem cortina no meu quarto que segure a maldita luz do sol. Se o dia já tivesse raiado, minhas pálpebras finas teriam percebido a claridade agressiva tomando conta do quarto. Me sinto mal. O quarto não chega a girar quando eu abro os olhos, mas minha boca está horrivelmente seca e ainda há um restolho da tontura de ontem. O teto cinza começa a se formar na minha frente. Só que não é cinza. É um teto de madeira que não pertence ao meu quarto. Puta merda. Onde é que eu tô?

Não penso nisso com desespero. Nem tenho condições físicas para me desesperar, verdade seja dita. A cama é quentinha e confortável, isso é tudo o que me importa na vida agora. Eu me espreguiço de olhos fechados, virando de lado para amassar a bochecha no travesseiro fino. Definitivamente esse não é o meu travesseiro. Pra começo de conversa, eu sempre tive o hábito de dormir com dois. A textura dessa fronha é um pouco mais grosseira do que eu estou acostumado. Eu sei que isso soa como frescura, mas a minha pele é sensível pra cacete e eu fico vermelho com qualquer coisinha.

O que importa é que, no momento, mesmo esse travesseiro estranho me parece delicioso e por coisa alguma nesse mundo eu conseguiria levantar a cabeça agora. Deitar de lado não faz muito bem ao meu estômago. Talvez essa tenha sido uma ideia de merda. Sabe quando você fecha os olhos e ainda assim consegue enxergar tudo turvo? Credo. Eu preciso de água.

Que gosto medonho na minha boca. É dia dezenove de outubro, aniversário do Stan. Estou são o suficiente para conseguir lembrar disso. Nós saímos ontem pra passar a meia noite juntos em uma baladinha meia boca em Denver, que é melhor do que aquilo que se consegue na vida noturna monótona de South Park. Alguns anos atrás, a cidade inteira morria depois das nove da noite. Agora, pelo menos, você ainda consegue ir a lugares mais isolados que continuem abertos até meia noite. Já estamos acostumados a pegar carona com os poucos amigos que têm carro (Token, Cartman e Kenny) para ir ao mesmo lugar em Denver onde a cerveja é barata e sempre tem alguém vendendo erva. Geralmente esse alguém é Craig Tucker. De qualquer forma, Stan é o último de nós quatro a fazer aniversário. Vinte e um, finalmente. Agora todos os porres que ele vai tomar daqui pra frente não serão mais ilegais. Nada que as identidades falsas que Kenny conseguiu não resolvessem antes, alguém espera mesmo até os vinte e um pra começar a beber? Agora, eu desejaria nunca ter colocado uma gota de álcool na boca, porque parece que a minha cabeça vai explodir. Puta merda, eu bebi demais. O gosto amargo na minha boca não mente.

Eu sinto um calor confortável perto de mim. Uma respiração profunda, mas tranquila, que com certeza pertence a um ser humano e não a um animal. Separo as pálpebras um pouquinho, muito a contra-gosto, só por curiosidade. Não penso a respeito. Tem um monte de cabelo loiro na minha frente, do outro lado da cama. Dói demais rolar as órbitas dos meus olhos nas cavidades, mas é um mal necessário agora para eu ter certeza de que não fui sequestrado ou nada do tipo.

Caralho, acordar de ressaca na cama de um estranho. Não era isso que minha pobre mãe judaica queria pra mim.

Enxergo a tatuagem de um desenho que forma um sol em preto com umas espirais que me dão ainda mais vontade de vomitar; como se elas tivessem movimento próprio naquela pele branca. São costas largas, mas que mostram uma magreza familiar. Certo, está tudo bem. É só o Kenny. Ele está deitado pro lado de lá, só o quadril coberto pelo lençol azul envelhecido. Eu fico nervoso por um momento. Encho os pulmões de ar e seguro por um ou dois instantes, mordendo meu lábio seco. Ao mesmo tempo, há algo de tranquilizador em sentir um corpo conhecido aqui. É difícil de explicar.

É bom também reconhecer o quarto. Eu não chego a olhar em volta, mas me espreguiço e rolo de barriga para cima, encontrando uma posição confortável para que meu estômago se ajeite no lugar. Isso é o suficiente para ver a cômoda de madeira que nunca foi pintada; há com uma zona absurda sobre o móvel, uma tevezinha que eu acho que nem funciona, dois cinzeiros cheios, um monte de lenço de papel amassado, maconha enrolada em um saquinho, ma garrafa vazia de vodka barata e outras duas de água, um saco vazio de biscoito com migalhas, panfleto de um sex shop, por aí vai. São coisas características do quarto de Kenny McCormick.

Fecho meus olhos porque é isso ou vomitar em cima de mim mesmo. Caralho, qual é a última coisa de que eu me lembro?

Então, me vem a memória distante do Butters enfiando o iphone na nossa cara pra tirar uma foto. Ou várias fotos. E aí o Kenny derrubou cerveja no Cartman sem querer (ou por querer) e eu não faço ideia do que aconteceu depois disso. Mesmo. Lembro que tocava alguma música pop ruim quando isso aconteceu… Taylor Swift? Ou alguma outra diva pop que as crianças de hoje em dia gostam. Eu já estava bêbado o suficiente para não achar ruim. Tinha muita gente na balada ontem, eu lembro do calor e da dificuldade de me enfiar entre os corpos, as luzes piscando e de conversar com o Token lá fora por um bom tempo sobre astrologia no começo da noite.

Kenny começa a se mexer ao meu lado. Eu não o vejo, pois permaneço de olhos fechados com o nariz apontando para cima, mas sinto o movimento lento dele porque o colchão de molas é pequeno (um híbrido estranho entre um colchão de solteiro e um de casal) e, por muito pouco, nós não estávamos dormindo em uma espécie de conchinha. Não que esse tipo de coisa nunca tenha acontecido antes, dormir abraçado a um amigo - ou mais - depois de uma noite fora. Mas isso aqui é diferente. Eu também ouço um grunhido de quem não queria estar acordando. Independente disso, ele acorda. Eu posso senti-lo erguendo o tronco, espreguiçando-se; viro o rosto na direção de Kenny e abro meus olhos bem devagar. Os músculos das costas dele são tão bonitos. Nessa luz semi-alaranjada de um dia que começa a nascer, a tatuagem dança na pele dele enquanto ele se espreguiça. É uma boa visão para começar - ou terminar - o dia.

Alguma coisa aconteceu aqui. Eu consigo sentir no meu corpo. Não sei exatamente o quê, talvez não tenha sido nada físico, mas alguma coisa aconteceu. Sempre existiu algo entre nós dois, só que nunca foi consumado. Eu não sei porquê. Quer dizer, se você não contar uma vez ou outra no ensino médio em que nós ainda não sabíamos beber direito e controlar os hormônios. Mas foram amassos escondidos de todo mundo, com uma puta adrenalina e medo de sermos pegos, uma esfregação rápida e só. Adolescente é um bicho inseguro que não sabe lidar com a própria sexualidade e tem pavor de assumir isso. Felizmente, as coisas nunca ficaram esquisitas depois, pois nós só fingíamos que nada tinha acontecido e nos tratávamos como de costume. Sempre houve atração, do tipo forte mesmo, que chega a latejar. Mas nós sempre fomos muito amigos. Era aquele tipo de flerte inocente, que fica muito mais no plano das ideias e ninguém tem pretensão de fazer algo a respeito, porque gostar basta. Não era algo em que eu pensasse com frequência, porque quando você tem tanta intimidade com alguém que conhece a vida inteira, a atração física não chega a ser algo que gere nervosismo.

Embora eu deva admitir, depois que Kenny saiu da puberdade, começou a tatuar e colocou os piercings, ficou mais difícil ignorar a vontade de beijar a boca dele. Mas isso nunca mais rolou.

Até onde eu sei.

Mas aqui estou eu, só de cueca e deitado na cama dele, sentindo a textura do lençol vagabundo na minha pele, tentando entender como caralhos eu vim parar aqui. Faz um pouquinho de frio, mas é gostoso.

Ele está sentado na beirada da cama, com os dois pés no chão. Esfrega o rosto e levanta. Pega um cigarro do maço na cabeceira - ele está só de cueca também, todas as tatuagens expostas -, acende, traga uma vez e vai até o banheiro. Ele não vê que eu estou acordado e se move o mais silenciosamente possível. Eu ouço ele mijando com a porta aberta, depois o barulho da descarga. Ele lava a mão rapidamente e sai com o cigarro na boca, arrastando os pés preguiçosamente para sair do quarto. Fecha a porta cuidadosamente para não fazer barulho alto.

Que horas devem ser? Aliás, onde é que está o meu celular?

Caralho, que enjôo. Parece que tem uma porra de uma pedra no meu estômago. Eu não vou conseguir dormir de novo. Se eu virar um pouquinho de lado…

Não. Foda-se. Eu vou vomitar.

É sempre melhor botar pra fora de uma vez, isso é algo que eu aprendi com todos os porres que eu já tomei na vida. Eu quase caio da cama pra correr até o banheiro - felizmente, Kenny não tem o costume de fechar a porta ou abaixar a tampa do vaso, o que eu normalmente acho nojento - mas chego a tempo. A essa altura, eu só tenho suco gástrico pra gorfar. Arde tanto a minha garganta, eu lacrimejo como se estivesse em prantos, me agarrando no vaso sanitário como se a minha vida dependesse disso, tremendo. O gosto é uma merda. É redundante dizer, eu sei. É que vômito de ressaca não tem gosto só de vômito, mas também de derrota. O que é pior.

O meu corpo agora rejeita e expulsa tanta toxina de uma vez só que tudo que eu quero é me encolher no chão gelado de ladrilho desse banheiro minúsculo e chorar. Toda vez que eu penso em me levantar, tem mais vômito já subindo pela minha garganta, meu estômago resmungando e se revirando até esvaziar completamente.

Eu acho que nunca vai terminar, mas termina. E parece que eu levei uma surra. Encarar o seu próprio gorfo em uma privada é uma das coisas mais degradantes que alguém pode viver. Mas tudo bem. Eu levanto, abaixo a tampa e dou descarga. Vou para a pia enxaguar a boca. Uso a escova de dentes do Kenny que ele guarda dentro de um copo plástico azul junto com a pasta de dentes. A gente tem intimidade o suficiente para isso, eu espero. Eu tenho um nojo mortal de usar a escova de dente dos outros, as únicas pessoas com quem eu já fiz isso foram Stan e Kenny. É menos pior do que continuar com esse gosto na boca, afinal de contas. Se eu não conhecesse Kenny McCormick tão bem, até procuraria no armarinho de madeira se não tem uma escova de dentes fechada, mas tenho certeza absoluta de que ele não gastaria dinheiro com isso. E eu não o culpo. O gosto de Colgate de menta já faz com que eu me sinta melhor.

Eu ajeito o tapetinho do banheiro com o pé, porque ele estava com a borda dobrada. Sinto que ele está meio úmido e tem um cheiro de shampoo forte dentro do banheiro, como se alguém tivesse tomado banho há poucas horas. Os azulejos beges ainda estão um pouco suados. Eu jogo água gelada no rosto e depois seco com a toalha verde que está jogada na bancada da pia, porque por algum motivo que eu não posso entender, Kenny nunca a pendura no porta-toalhas que ele mesmo instalou ao lado do espelho.

Por fim, eu vou procurar minhas roupas. Minha pele está gelada pra cacete. Eu encontro minhas roupas no chão, relativamente perto da cama. Na verdade, meu jeans está jogado bem longe da minha camisa. Isso não me parece um bom sinal. Eu entrei tentando tirar a roupa? Porra, como eu me sinto melhor depois de vomitar. Parece que eu sou outra pessoa agora.

Meu Deus, como eu quero um banho. Penso em tomar um agora, sem falar com Kenny antes, porque eu já conheço muito bem essa casa, esse chuveiro e onde ele guarda tudo (ou deixa de guardar). Mas me incomoda muito não saber como eu vim parar aqui. Então o banho fica pra depois. Vou arrastando os pés para fora do quarto, depois de vestir a minha calça amassada, mas não boto a camisa porque ela é formal e desconfortável demais pra essa hora da manhã. Ou seja, minha pele continua gelada.

Kenny tem uma gata que ele toscamente batizou de Gata. Ela é cinza-escura com as patinhas frontais brancas, como se vestisse meinhas. Eu a encontro na sala assim que abro a porta do quarto, andando sobre o braço do sofá velho xadrez. A sala é conjugada com a cozinha, separada só pela bancada onde fica a cafeteira; Kenny está ali de pé apoiado, esfregando a cara inchada desono, bocejando. Ele tem os olhos um tanto avermelhados, como se tivesse dormido pouco mais de uma hora ou ainda estivesse chapado. O cheiro de café toma conta da sala e é delicioso.

-Ei. - Digo timidamente, porque ele não percebe a minha presença até então.

Mesmo de ressaca, passando mal, com quase nada de sono, Kenny ainda me oferece um sorriso iluminado quando me vê. Qualquer um que visse essa cara precisaria sorrir também. A minha dor de cabeça chega a aliviar por um momento.

-Oi, você. Eu te acordei?

-Não. Eu não consegui dormir muito, meu estômago tava doendo.

Ele faz uma careta como se soubesse exatamente de que tipo de dor eu falo. Ele não parece muito bem, mas Kenny tem um fígado de ferro, talvez seja genético. Ele sempre diz que judeus não tem resistência ao álcool. Eu me apoio no lado oposto da bancada, deitando a cabeça na superfície gelada de mármore por alguns instantes. A sensação fria é quase agradável no meu rosto corado. Ele tira uma garrafa de água da geladeira pra mim; é a única coisa que costuma ter na geladeira dele.

-Toma. Você vai se sentir melhor. Volta pra cama, tá muito cedo.

Eu bebo água até a garrafa estar pela metade. Porra, como é bom. Mas até isso é violento pro meu estômago, ainda fragilizado. Por um momento, eu acho que vou gorfar de novo. Em vez disso, fecho a garrafa e respiro fundo, sentando na banqueta. Cubro o rosto com as mãos.

-Meu Deus, o quanto a gente bebeu ontem?

-”A gente”? Eu bebi muito menos do que eu gostaria porque alguém tinha que cuidar de você.

Eu ergo o rosto e estreito os olhos pra ele, desconfiado. Tem um sorriso barato típico de McCormick, uma marca registrada de provocação.

-Como assim?

Ele ri, apertando o meu ombro e me sacudindo um pouco.

-Calma, eu tô brincando. Foi até bonitinho, você nunca fica daquele jeito.

-De que jeito? - Eu não tenho nem energia pra mudar o meu tom apático.

Kenny começa a servir o café em uma caneca vermelha de plástico, tão fumegante, o cheiro muito forte. Kenny faz um puta de um café, bem forte, exatamente como eu gosto (ou preciso, nesse caso). É a única coisa que ele sabe fazer direito na cozinha. Em vez de beber, ele me oferece a caneca em um tom de “você não tem escolha”.

-Soltinho. - Ele responde mantendo o sorriso sacana que me dá vontade de dar um tapa nele. Mas de repente, ele fica sério. - Você não lembra do que rolou com o Stan?

Agora isso me deixa tenso nos ombros. Meus músculos endurecem de imediato, eu chego a endireitar a coluna vertebral. Encaro a caneca de café, mas ainda tenho a garrafa de água na mão. Franzo as sobrancelhas e estudo cuidadosamente a expressão dele, tentando entender se é sacanagem dele ou se Kenny está falando sério.

-Stan? Ele tá bem?

-Sim. Quer dizer, sei lá. - Ele faz uma pausa longa, encolhendo os ombros. Parece irritado por um momento, mas logo isso desaparece do seu semblante. - Você não lembra mesmo?

Por instinto, eu largo a garrafa de água e levo a mão ao bolso da calça, tateando até perceber que meu celular continua no bolso traseiro junto com a minha carteira. Ótimo, menos mal. Eu puxo o celular e o desbloqueio rapidamente, analisando o que aparece na tela. Seis ligações perdidas, cinco do Stan, uma da minha mãe. Trocentas notificações do instagram, fotos em que o Butters me marcou. Três mensagens do Stan enviadas às 4h43:
 

Kyle

me atende

por favor
 

Eu coço um dos olhos que começa a arder, não sei se pela falta de sono, pelo lacrimejo ou pelo brilho da tela do celular. Volto a encarar Kenny, que tem o cotovelo apoiado na bancada e bebe o seu café como se nada houvesse.

-Kenny. Que merda aconteceu ontem?



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