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História Polaroid - Stan - 02h30


Escrita por: caulaty

Capítulo 2 - Stan - 02h30


-Sorriam, gente! - Butters gritou, mas sua voz fina era abafada pelo som desnecessariamente alto da música pop que eu não conheço e também não faço questão nenhuma de conhecer.

Eu não quero soar como um babaca. É meu aniversário, eu já bebi suficiente pra estar sorrindo e dançando a essa hora da noite. Não é que eu não goste do meu aniversário ou de sair à noite com meus amigos. Eu tô feliz, de verdade, mas tem algo me incomodando. Eu coloco o braço sobre os ombros de Kyle de um lado e abraço o tronco de Kenny com o outro, bem apertado, como se eles fossem sumir de repente. Merda, logo eu vou começar a ficar emotivo. Todo mundo tá cansado de saber o que acontece quando eu fico bêbado e sensível. Até o Cartman chegando com aquele corpo enorme, empurrando Kyle ao colar nele e causando um efeito dominó em que nós quatro topamos pro lado... Até isso começa a me deixar mal. Com saudade. Ou melhor dizendo, nostálgico pra diabo.

-Porra, Cartman, vai tomar no seu cu! - Kyle berrou, e foi bem nessa hora que Butters tirou a primeira foto: Kenny com a cabeça jogada pra trás, gargalhando com a lata de cerveja na mão, os piercings da língua e do lábio bem à mostra. Kyle virado na direção de Cartman, os dois discutindo de boca aberta, brigando um com o outro como se não tivesse passado dez anos desde que nós éramos crianças. Essa é a merda da nostalgia. Você começa a sentir falta de coisas que nem eram tão boas assim na época.

Eu sinto o cheiro do cabelo de Kyle; não o cheiro do shampoo, o cheiro do cabelo dele mesmo, é o cheiro do travesseiro e da cama dele onde eu dormi tantas vezes desde que eu era pequeno. A cama mudou, o cheiro sempre continuava o mesmo.

-Stan, sorria! Você tem 21 agora, não tá feliz? - Butters gritou. E ele está feliz pra cacete, um sorriso de orelha a orelha. Sempre fica meio rosado quando bebe, com o rosto quente, os olhos azuis brilhando na luz verde e vermelha que pisca sobre a gente.

Eu respondo com um sorriso tímido, mas honesto, porque tenho mesmo vontade de sorrir aqui com todos eles. Não só os quatro que foram meus amigos mais próximos durante toda a minha vida, mas Token e Craig e Clyde e Tweek e Bebe, todas essas pessoas que estão espalhadas por aí, bêbadas, e já apareceram em fotos que Butters tirou mais cedo. Nessa, especificamente, Token aparece no plano de fundo conversando com uma garota oriental linda pra caralho que eu não conheço, mas podia conhecer.

Que que eu tô dizendo?

Quando Kenny retoma a pose pra foto, passa o braço sobre o meu ombro enquanto segura a cerveja, virando a lata sem perceber até cair o líquido gelado na nuca de Cartman. Ele berra imediatamente alguma blasfêmia, mas Kenny nem percebeu ainda que o negócio é com ele. Butters começa a gargalhar na hora e o riso só se intensifica quando ele vê a foto e mostra pra gente.

-É essa que eu vou postar. - Butters diz empolgado, já mexendo de novo no celular. - Olha a sua cara, Eric.

-Vai se foder! Kenny, eu vou te matar, sua bicha!

Mas Kenny já está longe dançando com a Bebe, entornando a cerveja direto da lata. Deve ser o êxtase que ele tomou, mas alguma coisa no Kenny é sempre inquieta, agitada. Terminada a sessão de fotos - pelo menos por enquanto, porque eu nunca vi uma pessoa tão obcecada por registrar momentos especiais quanto o Butters - Kyle sai de perto do Cartman parecendo perfeitamente são, mas eu sei que ele não está. Ele tem uma capacidade extraordinária de parecer menos bêbado, desenvolvida depois de anos chegando em casa após as festinhas e tendo que fingir para a mãe dele que só bebeu coca-cola.

-Ei. - eu chamo antes que ele se afaste muito para ir até o bar buscar outra bebida. Coloco a mão em seu ombro e o puxo pra trás, o que faz com que ele tropece de leve. Só assim ele vira o rosto na minha direção, porque a música está alta demais para que ele me ouvisse antes. Ele soluça e sorri de um jeito caloroso que entrega o seu estado. Eu aproximo a boca do ouvido dele. - A gente pode conversar?

-Quê?! - Ele grita, mas sua voz é abafada por alguma música indie ridiculamente alta. Ele coloca a mão na minha nuca e seus dedos estão gelados de segurar uma garrafa recém saída da geladeira do bar.

Sabendo que isso tudo seria contra-produtivo, eu o seguro pelo braço e começo a puxá-lo pra passar entre as pessoas dançando. Levo uma cotovelada no peito nesse processo esquisito de atravessar um mar de gente. O acúmulo nem é por uma quantidade absurda de gente, e sim porque o espaço é muito pequeno e é sexta-feira.

Nós finalmente conseguimos abrir caminho até a porta. A temperatura do lado de fora chega a ser quase quinze graus mais baixa e o choque térmico é ainda mais forte pelos nossos corpos terem absorvido o calor humano lá de dentro. Além disso, acho que o álcool contribui bastante pro calor interno que eu sinto agora. Pode ser só nervosismo. Não sei o quão preparado eu estou para ter essa conversa.

Tem coisas que eu preciso contar a ele. E não quero. Porque uma parte muito grande de mim já sabe como isso vai se desenrolar, conhecendo Kyle desde que nós dois usávamos fralda.

-Cara. - Kyle pergunta, seu rosto claramente confuso. Eu começo a correr as mãos pelo topo da cabeça, alisando os cabelos para trás e respirando fundo, um pouco afastado dele. - Você está bem?

-Sim, sim. Eu só… - Faço uma pausa sem saber direito porquê, virando de frente para ele. Nós ainda estamos bem perto da porta, com pessoas entrando e saindo o tempo inteiro. Isso me incomoda. Eu sinto a cabeça mais leve do que de costume. - Tem uma coisa me incomodando.

Kyle parece preocupado por um momento, mas eu só vejo seu rosto pela luz vagabunda do poste que lança esse foco de luz cegante sobre nós. Isso faz com que eu sinta um aperto esquisito no coração. Eu não quero que ele se preocupe, ou talvez eu queria, porque isso é muito melhor do que a expressão que vai surgir em seu rosto quando eu contar o que tenho pra contar. Respiro fundo, sentindo o ar gelado invadir meus pulmões (caralho, que frio da porra). Por algum motivo bizarro, minhas mãos estão suando. Toda vez que algo me deixa nervoso, o primeiro órgão a ser atingido é meu estômago e ele já se revira por dentro, ciente de que tem algo errado.

-Fala, cara. - Kyle finalmente responde, entendendo que eu não ia prosseguir antes que ele dissesse alguma coisa. Ele morde um pouco o lábio e cruza os braços, provavelmente tentando se aquecer.

-Sabe… - Chego mais perto dele devagar, conduzindo-o a dar alguns passos para o lado, fazendo assim com que nos afastemos da porta. Nós saímos do foco de luz do poste, mas ainda está iluminado o suficiente para que eu veja muito bem os desenhos do seu rosto. A música que vem lá de dentro é alta e parece pulsar debaixo dos nossos pés. Ele se encosta na parede e espera. - Esse lance a distância com a Wendy não está mais dando certo.

Ele ergue as sobrancelhas de imediato, curioso. Às vezes é tão difícil saber o que ele está pensando. Talvez ele se sinta tão anestesiado pela bebida que nem consegue reagir imediatamente, seu cérebro parece processar alguma coisa.

-Vocês terminaram?

-O quê? Não, cara. - É aí que meu coração começa a bater mais forte. Ele fecha a expressão para a minha resposta, pensativo.

Wendy acabou de completar seu primeiro ano na Califórnia. Ela estuda Direito em Stanford, como todos nós sempre soubemos que faria. Quando Wendy planeja alguma coisa, essa coisa acontece. Eu poderia dizer que ela e Kyle tem isso em comum, enquanto a maioria dos mortais - eu, por exemplo - seguem mais o fluxo dos acontecimentos. É claro que ela nunca me perguntou o que eu pensava sobre isso, não por ser uma pessoa egoísta, mas porque ela não queria correr o risco de abrir a porta para que eu pedisse que ela não fosse. O que, honestamente, eu não acho que eu teria feito.

Mas chegou naquele ponto crítico em que Kyle declara abertamente que acha que nós já deveríamos ter terminado há muito tempo, e eu não o culpo por isso. Eu entendo o que ele diz. Nesse último ano, aconteceram diversas coisas que me fizeram acreditar nisso também às vezes. Quando você namora alguém a vida inteira, como é o nosso caso (entre idas e vindas, outras tentativas, mas sempre acabávamos voltando um pro outro), é muito dificil conseguir desapegar e saber quem você é fora daquela relação. É claro que essas coisas só se tornam admissíveis pra mim quando eu estou bêbado. E eu não diria isso ao Kyle, porque ele nunca mais pararia de jogar na minha cara que eu sei que ele tem razão. Amanhã, eu vou acordar acreditando que Wendy e eu fomos feitos um pro outro e eu só estava sendo covarde e inseguro hoje. Para me sentir menos covarde, eu finalmente digo:

-Eu vou me mudar pra lá.

-O quê? - Kyle diz imediatamente, desencostando-se da parede. Por mais que ele queria fazer parecer que está muito chocado, eu posso ver dentro desses olhos verdes que ele já sabia que chegaria a esse ponto. - O que você cheirou lá dentro? Eu quero também.

-Para. Por favor, não começa com isso.

-Com o quê?

-Com sarcasmo. Eu tô falando sério, não queria ficar escondendo isso de você.

-Stan. Você não pode estar falando sério. - Ele está rindo, mas não é um riso realmente alegre. É aquele riso que Kyle solta quando tudo o que ele quer dizer é “meu deus, como você é idiota”. E é exatamente assim que eu me sinto quando ele me olha desse jeito. Um idiota.

-E por que não?! Ela é minha namorada, eu a conheço a minha vida inteira, qual é o problema de eu querer estar com ela?

Eu sei exatamente o que ele quer me responder, e talvez parte de mim queira desafiá-lo a isso mesmo, pra saber se ele teria coragem de jogar na minha cara que Wendy me traiu no quarto mês em que esteve lá. E também, como é que isso não teria acontecido? Em um lugar completamente novo, com tantas pessoas diferentes, essa gente alternativa de campus que tem os mesmos interesses e as mesmas ideologias que ela, que defende as mesmas coisas, tudo isso. Wendy nunca foi uma pessoa descontrolada, mas sempre foi muito livre e eu nunca pude (nem deveria querer) fazer nada a respeito. Claro que isso não vale pra quando nós ainda temos um compromisso. Enfim, o que quero dizer é que ela fazia com que eu me sentisse mal por ter ciúme no começo, dizendo que ela não estava lá para encher a cara e fazer orgias ou coisa do tipo.

Mas ela conheceu uma garota em uma festa e alguma coisa aconteceu. Ela me contou pelo telefone no dia seguinte. Eu mal consigo me lembrar exatamente o que ela contou e procuro pensar nisso o mínimo possível. Ela mesma disse que era melhor nós darmos um tempo pra que nós descobríssimos o que queríamos, e que ela tinha coisas a resolver consigo mesma, com a própria sexualidade. Na hora, eu sei que tive uma reação infantilóide e que joguei meu orgulho pela janela. Eu gritei com ela, vomitei todos os pensamentos egoístas que eu tinha, toda a humilhação necessária, e jurei que nunca mais queria ter nada com ela.

Mas as coisas mudam. E nós sentimos falta um do outro. Isso aconteceu no início de dezembro do ano passado. Quando ela veio visitar no natal e nós nos reencontramos, tudo ficou diferente. Ela pareceu horrivelmente arrependida. Só tinha sobrado a saudade, eu achei que já tivesse curado as minhas dores com porre, sexo insignificante com uma ou outra estranha, mas principalmente, chorando no colo do Kyle. Essa sempre foi a terapia mais efetiva pra mim. Não preciso dizer que ele ficou muito puto quando nós voltamos e não queria mais ouvir falar o nome da Wendy.

Kyle não tem coragem de dizer exatamente o que está pensando agora, então tudo o que ele diz é:

-Vocês não são bons um pro outro.

Surpreendentemente, a preocupação na voz dele quase chega a sobrepôr a raiva que eu sei que ele está sentindo.Talvez o álcool realmente ajude a domar o temperamento Broflovski.

-Nós somos, Kyle. Ela foi o meu amor de infância, cara, quando é que eu vou achar outra garota que vai me conhecer tão bem quanto ela? A gente tem que ficar junto.

-Olha a merda que você tá falando. Como é que você vai jogar pro alto a sua vida inteira aqui por causa de uma mina que te chifrou?!

Ah, aí está. Não demorou pra ele perder a vontade de ser gentil.

-Que vida inteira, Kyle?! O que eu tenho em South Park?

-O que você tem em South Park? - Agora ele se afasta mesmo da parede, agitado, com aquele fogo nos olhos que faz com que eu me arrependa imediatamente de ter perguntado. - Que tal a porra da sua família? Você tem uma irmãzinha de quatro anos que você não vai ver crescer se você se mudar pro outro lado do país pra lamber o chão que a Wendy pisa. Isso é motivo suficiente? Porque os seus amigos certamente não são, né? Eles gastaram dinheiro que não tinham pra estar aqui comemorando a porra do seu aniversário, quando você queria estar em casa chorando no Skype com ela porque ela está ocupada demais pra vir comemorar contigo.

-Eu não quis… Eu não disse que… - Porra, como é que ele consegue ser tão eloquente bêbado desse jeito? Eu tenho certeza de que ele está pior do que eu. - Eu não falei que vocês são descartáveis. Mas cada um tem a sua vida, cara, cada um cuida das suas coisas. Todas essas pessoas vão ficar muito bem sem mim.

-Ah, Stanley, vai tomar no olho do seu cu. - Ele se afasta de mim trotando, gesticulando com a mão na minha direção. - Você acha que lá você é indispensável?! Ela tá cagando pra você.

-Você é um babaca, Kyle. Você nunca consegue apoiar o que eu quero quando é inconveniente pra você.

-É?! Pelo menos eu não sou trouxa!

-Isso é a minha vida, cara. Eu não estou pedindo a sua permissão, eu quis te contar por consideração e só. Você não tem direito nenhum de falar essas merdas como se você soubesse o que existe entre a gente.

-Ótimo, Stan. Ótimo. Vá pra merda da Califórnia então, vai lá ser largado sozinho porque ela não vai parar a vida dela por sua causa. Vai tomar quantos chifres você quiser, e quando você voltar chorando, nem pensa em me ligar. Porque não é da minha conta, né? Eu não tenho que aturar os seus problemas, então.

-Você só tá se doendo porque uma vez na vida as coisas não vão ser do jeito que você queria. - Eu grito com a mesma amargura que ele, bêbado demais pra me dar conta do quão patética essa cena deve ser vista de fora.

Algumas pessoas fumam ali perto e param a conversa para nos olhar, nem um pouco preocupados em ser discretos. Acho que Kyle nem se dá conta de que tem gente encarando. Ele está naquele estado em que passa por cima de qualquer coisa, inclusive da própria dignidade.

Mas que filho da puta, como é que ele se atreve? Que tipo de amigo é esse?

Ele tenta voltar lá para dentro, mas para na metade do caminho e se vira bruscamente na minha direção, apontando o dedo na minha cara. Os sentidos dele estão tão alterados que ele precisa se apoiar na parede para não cair.

-Sabe o que é pior? Você nem é apaixonado por ela. Você é um cagão, Stan, é isso que você é. Se borra todo de medo de abrir mão das coisas que já acabaram, você não aceita. Você é apegado a ela, mas não a ama mais, há anos.

-Meu Deus, como você é arrogante. Você acha que sabe mais sobre o que eu sinto do que eu mesmo?!

-É só por isso que você não se mudou pra Califórnia com ela logo que ela foi. A carta de aceitação você tinha, seus pais teriam dado um jeito de pagar, mas você ficou com o cu na mão de sair de South Park.

-Você não queria ir!

-O que isso tem a ver?!

-Você sabe o que tem a ver! Foi por sua causa que eu fiquei. Tecnicamente, é culpa sua que ela me chifrou pra começo de conversa, porque eu não estava lá!

Eu sei que isso não faz sentido nenhum, mas a diarréia verbal é forte demais pra ser contida. Mas Kyle só ri, e ri alto, sacudindo a cabeça como se estivesse muito são. Tem um brilho tão raivoso nos olhos dele. Eu só me sinto frustrado. Tudo o que ele diz é um soco no meu estômago atrás do outro, eu não estou acostumado a ser a pessoa que Kyle encurrala desse jeito cego e injusto. Não consigo pensar direito, só quero que ele cale a boca. Eu não devia ter dito nada, não hoje, não assim.

Sem dizer mais nada, ele segue o caminho de volta para dentro. Quando ele empurra a porta, eu posso ouvir alguma coisa de Imagine Dragons tocando. Não sei o nome da música.

Cubro o rosto com as duas mãos e apóio as costas na parede, escorregando um pouco para baixo, esfregando minha própria cara para me manter acordado, ciente do que acabou de acontecer. Eu não consigo me lembrar da última vez que nós brigamos desse jeito. Sei que eu vou acordar amanhã me sentindo diferente - muito pior, é possível - mas agora, me parece que isso é eterno. Que Kyle é incapaz de entender porque eu preciso estar perto dela, que ele sempre acha que sabe o que é melhor pra mim e eu odeio isso nele.

Me sinto pior depois de brigar com ele do que depois de todas as brigas que já tive com a Wendy.



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