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História Primavera de Rulim - Vou virar um arco-íris?


Escrita por: yuriPsouza

Capítulo 10 - Vou virar um arco-íris?


Na segunda-feira eu me tranquei no quarto, minha mãe veio me acordar para a escola, mas eu disse não sentir vontade. A depressão tinha essa utilidade, mesmo livre dela eu ainda podia usar como desculpa e embora até pouco tempo atrás eu não tivesse tal coragem, hoje tinha. Talvez porque um segredo mais pesado havia surgido e eu tivesse vergonha de olhar minha mãe ou meu pai pensando sobre o que eles poderiam pensar de mim.

Elise mandou mensagens, chamou no Skype, mas não atendi ela, não na primeira ligação. Quando finalmente aceitei as ligações, me arrependi!

— David é um gato mesmo. — Foi a primeira coisa que ela disse.

E continuou com as insinuações… normalmente eu teria ignorado, ou até participado, eu mesmo fazia essas insinuações sem perceber, ou sem me importar. Mas então depois daquela afirmação… depois daquilo, como continuar com aquelas brincadeiras sabendo que Elise não levava mais elas como simples brincadeiras? E pior, eu não levava mais como simples brincadeiras!

Acho que esse foi o pior erro, porque eu comecei a realmente considerar aquilo como uma possibilidade.

— Você tá incomodado. Precisa descobrir porque está incomodado. Eu estou certa?

— Eu vou desligar agora. — Elise sempre se achou a dona da razão.

Fiquei no quarto por boa parte do dia e ignorei tudo tentando encontrar meu centro de novo. Dessa vez, porém eu não tive nenhuma vontade absurda de chorar ou me cortar ou qualquer coisa parecida. Só fiquei pensando, usei aquele dia para pensar.

Elise normalmente me ajuda, mas na segunda-feira ela foi a causa desse desequilíbrio todo, talvez fosse só tentando ajudar, mas ela sempre passava dos limites, era o estilo Elise de fazer as coisas e embora desse certo, vez ou outra, não era a melhor forma de lidar com todos os problemas. Levar tudo ao extremo e fazer explodir não é a melhor solução e ela tem que aprender isso.

Eu mesmo havia ajudado ela com o problema dela sem levar tudo ao extremo…, mas isso é um problema? Outro problema é que eu não conseguia descobrir o que isso é! A meu Deus, quantos problemas!

Então na terça, 5 de agosto, eu decidi que não seria saudável continuar trancado no quarto. Foi esse tipo de comportamento que me colocou em tal situação em primeiro lugar, então acordei de manhã antes do meu pai ou da minha mãe.

Como não tinha tomado banho na segunda-feira (resquício da vontade de não fazer nada, ou da falta de vontade de fazer qualquer coisa), eu tomei banho, voltei para o meu quarto para me trocar e me arrumar. Achei incrível que um dia de volta naquele estado de completa inércia e eu tinha caído de novo nos braços da depressão, ao menos desta vez tive força o bastante para pôr um basta ainda nas primeiras horas.

O dia estava frio, do tipo que choveria mais tarde. Joguei a toalha na cama e foi quando encarei o meu terço pendurado na cabeceira desta, presente da minha tia. Na minha família temos essa coisa de não existir “comprar bíblia” ou “comprar terço”, essas coisas têm que ser dadas não compradas para si mesmo. Então eu tinha presenteado ela e ela me presenteado com os mesmos presentes… Era como se eu tivesse comprado no final das contas.

— Com homem não te deitarás como se fosse mulher; é abominação! — Repeti aquilo que já tinha lido tempos atrás na Sagrada Bíblia. Eu não podia ser isso e ainda ser amado.

Nem mesmo olhei para minha bíblia na parte de baixo do criado-mudo, só ia me sentir mais culpado.

Coloquei o jeans, a camisa da escola e fui para a cozinha, mas percebi que o tempo era curto, então peguei mais um pacote de bolacha para ir comendo no caminho e fui para o ponto de ônibus pulando o café da manhã, mesmo tendo planos de fazer ovos batidos com pão e um copão de Ovomaltine.

O ponto de ônibus não era na minha rua, mas sim na esquina, o que não é problema algum. Lá, Dona Clarice estava esperando condução também. Perguntei-me o que uma velha aposentada fazia ali, no ponto de ônibus, as seis da manhã de uma terça-feira! E pior, perguntei-me por quanto tempo conseguiria fingir que eu não estava ali até que o inevitável acontecesse.

Enquanto esperávamos o ônibus ela olhou para trás e me viu, sorriu. Como pode uma hora dessas só ter nós dois no ponto? Era como se o universo quisesse me pregar uma peça de péssimo gosto.

— Jorginho. — Ela praticamente gritou. Talvez porque a idade tenha deixado ela meio surda de uma orelha, talvez porque era tão cedo que qualquer barulho acima de um cochicho parecesse um grito ou então só porque sua voz é estridente mesmo. — Indo para a escola, filho?

Não, para o parque! Pensei puxando a respiração e tomando folego como se fosse paciência.

— É… estou. — Respondi sem entender a necessidade daquela conversa, mas não entendia nenhuma conversa ultimamente, então…

— E esse tempo de chuva, menino. Trouxe guarda-chuva? Essa garoinha… é pneumonia na certa, filho!

Eu fiz que sim com a cabeça.

— Sabe, minha filha tem um cunhado que morreu de pneumonia depois de trabalha na obra num dia de chuva, para você ver né. Um dia…

Então subiu o ônibus que ia para o centro da cidade. Olhei esperançoso para que ela desse sinal, mas isso não aconteceu. O ônibus passou apinhado de gente, virou na esquina seguinte e eu o acompanhei com o olhar tristonho.

— Era o seu? — Ela perguntou de forma curioso.

— Não. — Respondi sem poder estar mais triste por tal fato.

— Ainda bem né? Esses ônibus estão caindo aos pedaços, e só lotam mais e mais. Sabe o que eu acho? Que esses políticos não se importam com a gente! Olha o preço dessa passagem? Até onde vai isso?

— Pois é né! — Só faltava eu rezar para outro ônibus passar, mas antes que começasse o Pai Nosso ali no ponto, o Barra Funda subiu.

Eu ia dar sinal, mas nem precisei. Dona Clarice estendeu o braço flácido coberto por uma mantinha que parecia um poncho mexicano com menos cores. O Barra Funda não vinha tão lotado por três motivos, era um percurso menor, era sentido contrário ao de pico pelo horário e o ponto final era quatro pontos para baixo deste.

Se eu não pegar esse vou me atrasar. Nessas horas eu odeio ser uma pessoa pontual.

Esperei que Dona Clarice subisse as escadas, e ela parou em seguida para dar bom dia ao motorista e comentar sobre o tempo chuvoso. Eu, sem costume de fazer isso, salvo raras ocasiões quando o motorista ou cobrador eram conhecidos de várias viagens daquela linha, segui meu caminho para a catraca.

— Bom dia. — Disse baixinho ao cobrador após este acenar com a cabeça, então passei pela catraca barulhenta.

Tinha apenas um banco com ambos os assentos vazios, fui para lá, abri a janela um pouco e me sentei. Estava sem livro para ler então peguei o fone e comecei a desembolar, como sempre. E foi quando Dona Clarisse surgiu de novo e se sentou do meu lado. Tinha mais quatro lugares vazios, e um deles era preferencial. Quer dizer, eu nem me incomodaria se ela só sentasse ali e pronto, mas quando é simples assim com os idosos?

— Eu vou ir pegar a aposentadoria do meu velho. — Ela informou com um sorrisinho alegre de quem aproveita uma agradável manhã. Quem aproveita manhãs?

Eu sorri de volta e virei a cabeça para a janela. Eram poucos pontos, logo eu ia descer. Não sabia o que falar, não queria ser rude e nem queria responder, mas o que dizer quanto aquilo?

O ônibus começou a andar e ela tirou um saco de pipoca doce da bolsa. Claro. Por que não?

— Quer, filho? — Perguntou colocando o saco na minha frente.

— Obrigado. — Fiz que não com a cabeça. Só aquele cheiro me enjoava.

Então no ponto seguinte um grupo de pessoas aleatórias entrou, passaram a catraca, primeiro uma menina da minha idade de mochila que já tinha visto no ônibus outros dias, duas mulheres, um senhor de idade que se sentou no preferencial, e um outro adulto, então um jovem adulto. Como as outras pessoas já tinham ido para o fundo ele, o jovem adulto, parou do lado de Dona Clarice, com sua mochila de lado pendurada no ombro.

— Quer que eu segure? — Dona Clarice perguntou prontamente. Eu olhei para ela achando que até era uma boa pessoa, eu nunca pedia para segurar as coisas de ninguém. Uma vez Dido fez isso e a menina acusou ele de tentar roubar a carteira de dentro da bolsa… Dido tinha aquele tipo desleixado, mas era culpa da maconha, não de ser ladrão… o que, aliás, ele não é! E embora eu não tivesse tal aparência ainda assim não sentia confiança em segurar a bolsa de uma pessoa desconhecida.

O jovem adulto agradeceu enquanto tirava a alça do ombro, lancei um olhar rápido para ele, era um bom tipo, alto, ombros largos, a camisa social denunciava o corpo em forma e a barba era extremamente desenhada e sem falhas em pelos pretos.

Então, já que encarar seria muito rude, usei o reflexo na tela apagada do celular para refletir o jovem adulto. Talvez olhos castanhos, não era uma boa resolução ver um reflexo em uma tela cheia de digitais. Mas ele era sim muito bonito, nariz não muito grande e queixo quadrado…

Então olhei para a janela suspirando. O que acabei de fazer? Fechei os olhos tentando refletir. Só então me dei conta que já fazia isso antes e então chegava em Elise e falava “Tinha um cara no ônibus que você ia muito querer pegar”. O que diabos acabei de fazer? De alguma forma, embora eu me culpasse, não era de verdade. Não em totalidade… de alguma forma eu já fazia isso antes, mas agora eu não tinha Elise como escudo e como desculpa… eu só precisava aceitar isso. E essa é a parte difícil.

Quando o ônibus parou para que eu descesse Ele ainda estava lá, e tive que passar por Ele… foi estranho porque pela primeira vez eu via em alguém… em um homem, algo mais que apenas um homem.

Assim que desci realizei outra coisa. Eu via sim a beleza nas mulheres. Mas não via desejo. É disso que Elise estava falando sobre o beijo de teatro. Então tudo fez sentido. E por mais que odiasse admitir, Elise estava certa, de novo.

 

Atravessei o portão da escola e vi Pedro junto de Dido, Guilherme não estava com eles.

— Lucas… — Dido me chamou. “Nunca olhou para o Dido? O Dido é gato! ” A voz de Elise martelou minha cabeça.

— Preciso falar com a Elise. — Passei reto pelos dois sem sequer olhar Pedro.

Guilherme estava conversando com Gabriela e Karla mais para a frente perto da entrada do prédio.

Bianca estava com seu grupinho ali também, José, João e Igor estavam do outro lado pichando o muro às pressas e aos risos. E Elise não estava em lugar algum.

Karla era uma das melhores amigas de Elise, então presumi que ela soubesse algo.

— Gui, Gabi. Karla. — Me aproximei dos três. — Viram a Elise?

— Tava com a gente…

— Banheiro. — Karla respondeu cortando Gabriela. Provavelmente Gabriela seria educada e não diria que uma dama estava no banheiro, mas Karla sabia bem o nível de intimidade que eu e Elise tínhamos.

— Valeu. — Agradeci e olhei para os banheiros ao lado de… João, Igor e José. A não, fala sério.

Esperei até que Elise saísse dali. Eles mexeriam com ela também, mas Elise já tinha dado umas duras nos três em várias ocasiões… E não era como se ela tivesse medo deles, diferente de… bem… de mim.

Quando ela saiu e me viu pareceu ficar feliz por eu ter ido à escola. Só então percebi. Cadê David e os outros? Um gringo talvez faltasse, mas todos eles?

— Lucas, você veio. — Ela me olhou um tempo enquanto se aproximava, percebi o que tramava.

— Sem abraços. — Apontei um canto isolado de todo mundo onde uma das árvores havia caído nas férias deixando um pedaço do muro rachado, o grosso tronco ainda estava lá, agora cheio de talhos com corações, xingamentos, zoeiras, etc. — A gente precisa conversar. Você me quebrou.

— Eu o quê? — Ela enrugou a testa, ajeitou o cabelo e me encarou.

— É… peguei o ônibus hoje e tava olhando um cara… E agora não consigo olhar para Dido e Pedro que nem antes.

— E o Guilherme? — Ela me perguntou.

Eu dei de ombros.

— Você me entendeu. — Respondi. Ele não é meu tipo. Passou pela minha mente em tom de piada, mas sabia que se falasse em voz alta Elise usaria aquilo contra mim de forma sádica e cruel por anos. — Eu estava te usando de desculpa. E agora isso acabou. Você quebrou aquela coisa que a gente tinha, e agora não consigo mais…

— Se enganar?

— É… não! — Primeiro eu concordei, mas percebi que não devia e tentei me corrigir, mas era tarde para isso. Elise me encarava com um sorriso alegre, mas eu estava me sentindo horrível.

— E isso não é uma coisa boa?

Eu grunhi para ela, Elise me irrita tanto.

— Dá pra você parar um pouco. Olha o que você… que merda, Elise! Eu… eu não posso ser… ser gay. — Praticamente não pronunciei som nas últimas palavras, deixando que Elise entendesse por leitura labial.

— Por que não? Adam Lambert é, e ele diva muito.

— Por coisas assim. Eu não quero divar muito. Eu nem quero isso…

— Você acha que alguém quer? — Ela riu em resposta. — Eu não escolhi gostar de pinto, Lucas. A gente é o que é, gosta do que gosta… Só temos que fazer uma coisa. Aceitar o que somos!

— Eu não sei o que eu sou, está bem…

— Olha. — Ela apontou com os olhos para o grupinho de José. Entre os três ali, Igor era o alvo dos olhares de Elise… Como eu sabia? Não sei! — Você já viu o Igor sem camisa?

— Elise…

— Lucas. — Ela me cortou.

— Não é lugar pra isso, alguém…

— Relaxa. Só escuta. — Ela se aproximou um pouco. — Ele é forte, bem forte. Já o vi jogando no campo do bairro, Ele tem essa barba de merda, mas o peitoral é sem pelo algum enquanto no tanquinho tem aqueles pelos lisos e finos descendo até a cueca e você sabe onde, naquele dia ele estava suado e eu quase esqueci que ele é um completo idiota de tão gostoso que ele ficou todo brilhando. Ele tem uma cicatriz na costela, acho que se machucou sério quando era mais novo, mas eu gostei mesmo assim, as costas são largas e bem definidas também, tava meio sujo de terra, mas quem se importa? Aquela pele bronzeada, o penteado bem badboy mesmo. Ele deve ter uma pegada forte, só olhar aqueles braços… sabe qual a melhor parte? — Elise parou de falar por um tempo, eu não respondi nada, estava em transe. — O volume dele. Lucas é enorme… — Ela apoiou as mãos no meu ombro e eu me virei de volta para ela me desvencilhando das mãos dela.

— Chega. — Joguei a mochila para a frente segurando pela alça. — O que você quer provar?

— Que você está excitado já é um começo. Mas a longo prazo quero provar que esse é exatamente o tipo de homem que você costumava descrever para mim. E também quero citar que nunca vi Igor sem camisa.

— Porque você gosta de caras assim…

— Assim como você, bobão. — Ela disse fazendo o gesto de uma arma como se estivesse atirando na própria cabeça. — Por isso citou o Dido, que é uma delícia, e o Pedro, que tenta, mas não o Guilherme, que estuda. Você sabe que é verdade, e eu não preciso que confirme, sabe por quê? Um: Eu sei que tipo de macho eu gosto. Dois: Eu te conheço, Lucas!

— Elise, eu não sei mais o que fazer. Como vou falar com eles? Pedro vai vir falar comigo uma hora ou outra… E David…

— Ele é tão fofo né? — Ela mudou o tom de voz repentinamente para o de uma garota teen. Quem é você? Bianca?

— Elise! — Eu a repreendi e ela mesma pareceu sair de um transe hipnótico. — Foco aqui.

— Desculpa… então, é a mesma merda de sempre, Lucas. Eles não sabem de nada, se você não falar, e não der pinta, ninguém vai saber… não é como se estivesse escrito, sou Gay, A Louca, na sua testa. Ainda não pelo menos…

— Como?

— Às vezes… sei lá, tem gay que é mais… Gay, outro que são mais machinho… que tipo você vai ser?

O sinal me impediu de responder, o sinal me salvou.

— Acho bom irmos pra sala.

— Também acho. — Ela sorriu e se virou para a frente, então olhou para mim de novo. — Duas coisas antes: Primeiro; a barraca já desarmou? Segunda; Você não precisa responder pra mim essas coisas. O que eu to falando… você tem que se responder! Te vejo na sala!

Então saiu na minha frente em passos apressados.

Acho que essa era a primeira vez que Elise falava alguma coisa que eu já sabia. Já sabia que eu tinha me responder, já sabia que eram dúvidas que eu mesmo tinha que sanar. O que não sabia era como fazer isso.

Sai em seguida, se esperasse mais um pouco encontraria Pedro e Dido, ou Guilherme e Karla, e eles me arrastariam para a sala com qualquer conversa… E embora isso não fosse ruim, com a minha cabeça explodindo de ideias também não era exatamente bom.

Quando entrei no prédio, o grupo de gringos estava se dispersando e David estava parado na porta da diretoria.

— Lucas, hey. — Não tinha como ele não me ver… Era como se estivesse me esperando.

— Oi. O que fazia aqui? — Perguntei sentindo a mão tremer de insegurança enquanto enfiava os dedos nos bolsos da caça e tentava parecer normal, mas tinha a sensação de falhar absurdamente nessa tarefa.

— A diretora chamou todos nós para saber como estamos nos… Nós… Adaptando, esse e a palavra. — Ele pareceu engasgar um pouco na fala e esquecer de pronunciar o acento. Elise tinha razão, ele era mesmo um fofo, mas eu não devia achar isso.

Começamos a subir as escadas.

— Elise, a menina bonita, disse pra esperar, que você queria falar comigo. — Ele completou então. Elise, eu te mato!

— Viagem dela. — Respondi quase de imediato.

— Como? — Esqueci que David não entendi muitas das nossas gírias.

— É tipo… acho que você entendeu o que ela disse errado, eu disse pra ela que não tinha visto vocês no pátio e aí acho que ela pensou que queria falar com você… Elise é assim mesmo. — Menti, mas Elise também havia mentido, eu não queria falar com David, ou com qualquer um do sexo masculino.

— A, então… Tá. — Ele deu de ombros fazendo um bico comum que me chamou a atenção, continuamos subindo. — Por que não veio ontem?

A primeira coisa que me ocorreu foi: Elise, o que mais você falou em tão poucos segundos na minha frente?

— Eu… não tava bem, acho que essa mudança no clima… — Deixei o resto sem falar, como se a voz morresse no ar. De repente a conversa sobre o clima no ponto de ônibus era tão mais agradável!

— Entendi. — David respondeu como para completar a conversa, e não tentou iniciar outro assunto. Acho que ele percebeu que eu estava desconfortável.

Então silêncio mortal até a sala.

Chegando lá cada um foi para seu lugar. David tinha ficado na cadeira da minha frente, algumas pessoas tinham mudado de lugar. Percebi que aquela era a nova organização definitiva da turma, provavelmente feita na segunda, dia que faltei.

Ainda não tinham todos se sentado quando Judite Garcia, professora de matemática, entrou, hoje ela usava um coque apertado que parecia puxar a pele enrugada do rosto novo, mas sempre cansado, mantendo assim seus olhos sempre abertos. O coque me lembrou a professora de literatura e quando Judite escreveu na lousa o horário do dia minhas suspeitas se confirmaram. Após ela seria literatura.

— Vou começar pela chamada, se não se importarem, já que estão todos aqui mesmo. — Só então eu me importei em olhar ao redor, e nenhuma carteira estava vazia. — Levantem a mão quando ouvirem seus nomes. Alvo. Andréa. Bianca. Bruna. Carlos. David. Desirré. Dionísio. Elise. Gabriela. Gean. George. Guilherme. Gustavo. Igor. João. José. Karla. Larissa. Lucas. — Levantei minha mão, mesmo sem haver necessidade, se todos estávamos ali, porque não marcar presença para todos? A chamada continuou — Luiz. Mikael. Natasha. Pâmela. Pedro. Priscila. Rafael. Rebeca. Rogério. Samuel. Sofia. Tomas. Vitória. William. E Yam. Yam! — Ela gritou. O menino do fundo, penúltima carteira da fileira de Elise, acordou assustado arrancando os fones da orelha.

— Presente. — Disse alisando o cabelo, se ajeitando na cadeira.

— Só de corpo né, mané? — Natasha, a bagunceira do fundão, disse rindo enquanto brincava com o cabelo nos dedos.

— É comédia mesmo. — Igor completou enquanto riam de Yam, o asiático burro, como chamavam ele.

Ouvir a voz do Igor me fez relembrar o que Elise havia dito, então virei para a frente e tentei me concentrar na matéria por vir. Ela nunca o viu sem camisa, não é como ela disse! Não sabia o que era pior, estar desconsiderando o modelo de beleza que Elise havia criado sobre a fisionomia de Igor, ou eu esperar que fosse realmente daquele jeito.

— Tudo bem, já chega. Vamos à aula. — A professora pegou sua apostila e abriu…

Tão logo o fez e começamos a sofrer.

Dobradinha de matemática, ou não. Na verdade, uma aula foi matemática e a outra geometria, mas para mim ambas são praticamente a mesma coisa, cheias de números, X perdido, e eu mais perdido que o X!

Depois disso Florentina Medeiros, a professora de Literatura, veio. A aula dela foi mais discussão sobre as Lusíadas que real estudo. Luiz e Guilherme, nossos nerds, puxaram assunto por esta vereda, e mantiveram a fogueira alimentada com muitas questões, e afirmações, as vezes a professora parava e falava “Viram aqui uma boca pergunta? Olhem, turma…” E então explicava o ponto em questão que debatia com Gui e Luiz. Mas tão rápido explicava para todos, sua atenção retornava para aqueles dois.

Aproveitamos disto para conversar… A sala toda se aproveitou.

Em seguida foi intervalo, o que só ajudou a manter o fluxo da conversa.

Dido falou sobre skate, David falou sobre já ter tentado andar, mas preferir patins. Elise e Karla conversavam só as duas, as vezes dando pitaco, Pedro e eu, por fim, decidimos ir na cantina… Ele, na verdade, eu estava sem dinheiro nenhum, só o bilhete único para condução e um pacote de bolacha na mochila.

A fila, porém, era infernal, e ficamos lá um bom tempo até o sinal bater e boa parte da turma desistir e voltar para as salas.

— Vamos… — Disse.

— Tá brincando, agora é dois palitos e a gente tá lá.

— O professor vai chegar primeiro. — Aquilo, para Pedro, não significava nada, mas para mim era uma grande coisa!

— Relaxa. Já vamos comprar…

— Balas.

— Vou pegar um refri também. — Ele afirmou. Então ficamos lá esperando até Pedro disparar: — E aí, qual o lance com o David?

Olhei para o outro lado… como assim? Senti o corpo esquentar, estava corando.

— Que? — Perguntei tentando soar causal olhando para trás, ver se não tinha ninguém se aproximando.

— Ele estava na diretoria, falou com você primeiro… Ele se meteu em encrenca, ou a encrenca encontrou ele? — Chegamos no balcão. — Dá seis balas de hortelã e uma latinha de coca.

Ele contava o dinheiro.

— Foi só para ver se eles estavam se dando bem aqui… A diretora chamou todos eles.

— Só vi o David…

— Ele ficou esperando alguém da turma passar… eu fui o primeiro… Bem, Elise passou primeiro, mas acho que ele não a viu, sei lá. — Menti de novo, mas não podia contar para Pedro, já estava bem desconfortável ali com aquela situação toda.

— Tá explicado. — Pedro deixou o dinheiro em cima do balcão. — Tá certinho aqui.

— Tranquilo, Pedrão. — O tio da cantina, um homem gordo que gostava de pastel, acenou enquanto virávamos e voltávamos à sala.

Voltamos para a sala o mais rápido que pudemos, comigo apressando Pedro, que queria primeiro tomar a coca dele. Eu poderia até esperar, tolerando o atraso, mas estava me sentindo desconfortável não só pelo atraso como também pelo fato de estarmos apenas eu e Pedro e meus pensamentos estarem rodando em cima do fato de Pedro fazer academia para ficar sarado. O que eu estou me tornando?

— Você toma na sala. — Insisti.

— Aí com isso você não se importa de o professor não gostar…

— Se ele não gostar vai brigar com você, não comigo.

— Que belo amigo você é! — Pedro riu enquanto entravamos na sala. — Licença.

— Desculpa o atraso, professor. — Me desculpei enquanto entrávamos.

O professor de história é Erasmo Menendel, chamam ele de tio da Xuxa, e isso o deixa bem nervoso. Tirando os cabelos loiros eles não têm semelhanças.

A aula foi uma introdução sobre os temas que o semestre abordaria. Passamos uns vinte minutos lendo o capítulo um da apostila, ou alguém passou (Guilherme deve ter lido), porque eu só foliei.

Foi ações assim que fizeram minhas notas baixarem tanto, mas não tinha vontade de estudar, e além disso, estava muito confuso para estudar!

Conforme nós liamos o professor deslizava a caneta de lousa no quadro branco escrevendo termos que eu hora ou outra via nos textos, mas na maioria eram termos que estavam como legenda das imagens.

Quando ele terminou de escrever, eram vários! E em cima, como uma cereja no bolo, o professor ornamentou a lousa com “Trabalho semestral”. Isso me assustou, e não apenas a mim, eram tantas coisas escritas que o trabalho sairia algo no mínimo de cinquenta páginas. E no semestre passado haviam sido trabalhos bimestrais simples… não um só semestral.

— Muito bem, vamos explicar o trabalho. — Ele disse se sentando enquanto tirava um saquinho cheio de papéis de dentro de sua mochila e no mesmo momento senti o alívio. — Fiz isso hoje mais cedo no caminho à escola. São todos os temas que estão na lousa. Vamos sortear! Mas calma lá… quero duplas ou, no máximo, trio. E qualquer piadinha de trio de quatro, dupla de cinco é meio ponto a menos. — Aquilo por si só era uma piada. O tom de voz do professor era sarcástico e amigável. — Formem os grupos, venham escolher o tema, pegue a caneta, risque o tema da lousa. Quem riscar o tema errado perde meio ponto também! — Mais uma risadinha.

— Diretas já! — Alguém disse do outro lado da sala.

Erasmo riu em resposta.

— Só assim mesmo. Só assim! — Disse enquanto as discussões surgiam e a sala se tornava pura balburdia.

No mesmo instante vi Pedro chamando Guilherme, como de costume, ainda dava para eu falar com eles. Olhei para Dionísio que fazia o mesmo que eu, esperava ver quem ia sobrar. Não olhei para Elise porque sabia que ela tomaria aquilo como um pedido para sermos dupla e eu estava zangado com ela, mas Elise era a primeira pessoa em quem tinha pensado em me juntar, depois Pedro.

Então ela me cutucou.

— Lucas… — Nos inclinamos para falar um com o outro sem sermos ouvidos. Sim, eu estava nervoso com ela, mas não, não consigo não falar com Elise. — Ninguém vai chamar o David.

— A Bianca provavelmente vai. — Eu disse e Elise me deu um peteleco no braço.

Olhei então para o aluno gringo, e ele estava como eu, esperando ver quem ia restar. Não posso negar que isso me deu um pouco de dó, era como ver um cachorro de rua esperando para pegar as sobras. Senhor, é assim que todos vocês me enxergam? Aquilo era terrível.

Por outro lado, aquilo podia ser só mais armações de Elise para me jogar de um lado para o outro, brincando com minha sexualidade enquanto eu mesmo não ousava fazer isso, mas o tempo estava se esgotando e Pedro já tinha formado dupla com Guilherme e Luiz, o que garantia para Pedro total descaso e nota alta. Dionísio tinha acabado de ser interpelado por Karla, que ao ver que eu e Elise nos inclinamos para conversar foi correr atrás do prejuízo, e sendo assim só havia sobrado eu, Elise e David no nosso grupo de amigos.

— Você é uma cobra peçonhenta…

— Chama logo…

— Não vá morder a língua e morrer! — Eu disse para Elise enquanto me virava para a frente e cutucava o ombro de David que se virou e me encarou com aqueles olhos claros incríveis, a janela era do nosso lado, sendo assim a luz iluminava o rosto dele… eu devia só ir direto ao assunto!

— Sim? — A voz dele tinha esperança, era visível a preocupação em não ter um grupo.

— Eu e Elise pensamos em você entrar no nosso grupo. O que acha?

Ele olhou para Elise que balançou a cabeça para o lado levantando um dos ombros.

— Só se quiser, claro. — Ela disse, toda delicada, como se fosse aquele amor de pessoa e não uma víbora que planeja cada movimento.

Então escolhemos os líderes dos grupos, ou só aqueles que buscariam o tema mesmo.

— Vai você…

— Por que eu?

— Porque o David é novo, e eu dei a ideia de formarmos o grupo. Você está de inútil aqui. — Elise me disse, puxando meu braço e me colocando de pé. — Anda logo, vão pegar os melhores temas.

— Como se algum tema fosse bom. — Reclamei enquanto ia para a mesa do professor onde os alunos se aglomeravam e David e Elise se aproximaram e começaram a conversar. Não fale com ela, David! São mentiras… Só mentiras! Quis voltar e puxar David comigo para a mesa do professor, mas consegue imaginar o quão estranho isso pareceria?

Pedro ia na minha frente.

— Vocês se ferraram. — Ele disse.

— Como?

— David… É peso morto. Quer dizer, eu gosto do cara, mas ele nunca ouviu falar da história do Brasil… vai só atrapalhar. — Pedro deu de ombros como se estivesse apenas atestando um fato. — Se fosse qualquer outra matéria eu teria escolhido ele… inclusive me ajudaria com a Bianca.

— Como se um quatro olhos que nem você fosse catar ela. — João passou por nós dois e deu um pescotapa em Pedro, que teve que segurar os óculos. O estralo fez alguns rirem, outros olharam preocupados com a reação de Pedro.

— João, menos meio ponto. — Erasmo, o professor, disse, dessa vez sério e sacou o diário de classe e a caneta. — E não é brincadeira. Faz de novo e perde um ponto inteiro.

— Professor… — João abriu a boca, mas não teve tempo de terminar.

— Vá sentar. Manda outro vir buscar o tema.

— Professor…

— Não quero saber… — Erasmo desdobrou um papel para Alvo (é um nome estranho, Igor vive fazendo piada com ele, coitado). — Setembrada, Alvo. Próximo.

Pedro quem enfiou a mão no saquinho plástico. O professor desdobrou o papel e entregou para Pedro de volta.

— Revolta das Carrancas, Minas Gerais, 1833, Pedro. Próximo.

Teria sido eu, mas Andréa se pôs na minha frente como um muro.

— Abrilada, Pernambuco, 1832, Andréa. Próximo. — Ainda bem que foi Andréa, sequer sabia o que infernos era Abrilada.

Então enfiei a mão no saquinho e tirei um papel dobrado.

— Guerra dos farrapos. Lucas. Próximo.

Sem ano? Sem local? Você me odeia? Perguntei-me enquanto virava e saia.

Karla foi a seguinte e saiu com insurreição do Crato no Ceará. E depois teve Bianca que pegou Revolta dos Malês.

Os temas ainda tinham Carneiradas, Setembrada Novembrada, Revolta de Manuel Congo, Cabanagem, Balaiada, Rusgas, e muitos outros.

No final os grupos ficaram Pedro, Guilherme e Luiz com Revolta das Carrancas. Dionísio e Karla com Insurreição do Crato. Eu, David e Elise com Guerra dos Farrapos.

O professor nos permitiu trocar entre nós os temas e até a próxima aula ter tudo acertado, então ele passaria todas as especificações para fazer o trabalho, até lá já podíamos começar a pesquisar tudo o que conseguíssemos, porque precisaríamos, provavelmente, pesquisar muito mais que isso.

Quando o sinal tocou a discussão sobre o trabalho continuou mesmo depois do professor ir embora da sala e quando Roberta Carta, nossa professora de química, entrou na sala a gente meio que ignorou ela e ela pareceu entender. Afinal não era bagunça generalizada, era bagunça acerca da lição.

— Como a gente vai se encontrar pra fazer isso? — Elise perguntou, ela tinha arrastado a carteira para perto da minha, e David estava virado de costas para a lousa, encarando nós dois.

— Já falei, a gente pode usar a biblioteca, chegar mais cedo, o que desaprovo fortemente, ou ficar até mais tarde.

— Não dá. — Elise se apressou em me corrigir. — Não podemos mais ocupar a escola no período de aula da turma da tarde, não depois da briga passada e a escola abre vinte minutos antes do sinal, o que dá pra fazem em vinte minutos?

Antes das férias as turmas da manhã e da tarde tinham quebrado mesas e cadeiras em uma briga épica, desde então ambas estavam proibidas de se verem por assim dizer.

— A gente podia ir na sua casa, Lucas… sua mãe adora visitas.

Eu normalmente teria dito “Super, é verdade! Vai ser muito divertido”, mas invés disto me limitei a lançar um olhar de “Sério? Na minha casa? Você quer enfiar um homem na minha casa com meu pai diácono de guarda? ” E Elise parece ter entendido.

David mudou de expressão no outro instante, era como se uma lâmpada tivesse se ascendido sob sua cabeça.

— What about… I mean… Minha casa. Que tal lá? — Ele pareceu sério e confiante. — Minha mãe vai gostar de saber que fiz amigos tão rápido… quer dizer, eu já falei de vocês, mas assim ela vai acreditar!

Elise deu um tapa no meu ombro enquanto apoiava a cabeça na mão como um pilar.

— Viu só, somos amigos! Na sua casa então, David. — Eu deveria parar de ver tudo que Elise faz como uma afronta direta sobre nossa conversa anterior na casa dela, mas parecia que tudo que ela fazia era pra atiçar alguma coisa que eu sequer queria que existisse em mim. Então por que ela queria tanto? Aquilo me deixava nervoso, principalmente porque Elise tinha a odiável mania de estar certa, mesmo quando eu acreditava piamente o contrário. Então ela completou com a pergunta que ainda não tinha resposta. — Aonde é sua casa!?

E advinha minha surpresa ao saber que a casa dele era perto da minha! Nem a desculpa de ser longe eu tinha… estava tudo armado. Elise, eu te mato!



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