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História Primavera de Rulim - A cura.


Escrita por: yuriPsouza

Capítulo 5 - A cura.


A confusão não havia passado disso: Uma confusão.

Ou ao menos para Elise e eu, já que o menino da perna quebrada sofreria as consequências e o agressor preso também, e os foragidos também, mas para Elise e eu tudo havia acabado bem… ao menos até aquele momento.

Nossas mães foram chamadas à delegacia, o delegado parecia puto com o caso, como se fosse inaceitável que crianças como nós estivéssemos ali, e depois quando explicamos tudo e nossa história foi corroborada pelos demais presentes na cena, ele ficou uma fera com os policiais que nos prenderam de forma indevida. Então, com tudo explicado, fomos soltos e cada um foi para sua casa acompanhado com a mãe, e o menino do terceiro ano também foi solto porque a polícia não podia manter o menor de idade preso quando a mãe dele mandou soltar.

Eu queria, de verdade, ter falado com Elise naquele tempo que passamos presos, mas não deu. Primeiro foi na viatura, mas lá tínhamos dado as mãos, mas não trocamos uma palavra, depois na delegacia, então separados enquanto esperávamos nossas mães chegarem. Achei que era melhor não falar nada ali devido aquela frase “tudo que você disser poderá e será usado contra você”.

Então quando tudo foi resolvido nós nos separamos, ela foi para casa dela e eu para a minha, cada um acompanhado por nossos mães e fim. Agora, em casa, eu assistia a televisão vendo o apresentador fundamentalista do jornal policial falando de como a juventude estava perdida, e o pior é que eu não sabia se ele estava certo ou errado. Talvez se só não generalizarmos… seria bom.

O meu pai chegava sempre minutos antes do jornal acabar, e a situação se repetiu.

Eu me levantei e fui para meu quarto enquanto o carro entrava na garagem. Eu sempre fugia do meu pai porque as conversas não eram lá estimulantes e eu não estava contando em falar sobre o que aconteceu porque sabia o que ia escutar. Não tinha discutido nem mesmo com minha mãe sobre aquilo, quer dizer, falamos o básico sobre o ocorrido, mas não falei tudo que queria falar, que parecia precisar falar.

Só então percebi que estava me contendo, já fazia tempo, quanto tempo? Perguntei-me. Fazia meses que eu me controlava, evitava falar com eles para não parecer… O quê? Nem eu sabia! Mas mesmo assim evitava conversar com meus pais. Ficava na sala enquanto minha mãe estava na cozinha, então quando meu pai chegava eu ia para o quarto, minha mãe saia da cozinha para o quarto do casal evitando meu pai, a noite os dois dormiam juntos, virados para lados opostos… que situação estávamos!

Então estava no meu quarto, desenhando um unicórnio de guerra, quando ouvi a conversa dos dois. Minha mãe estava explicando sobre o que aconteceu, como fui parar na delegacia, a briga na escola, meu envolvimento tentando ajudar o menino da perna quebrada… meu pai pareceu primeiro ficar nervoso, mas ao ver a situação por completa ficou orgulhoso.

— O outro menino vai fazer serviço comunitário, pobre alma, vou rezar por ele.

Minha mãe havia dito sobre o agressor, ela é uma mulher bem religiosa.

Meu pai então veio falar comigo, bateu e abriu a porta em seguida. Eu estava sentado na minha mesa de trabalho, notebook aberto, mas em descanso, folhas, desenhos, esboços, lápis, canetas, réguas, tudo ali (com a volta as aulas eles tinham devolvido boa parte das minhas coisas, incluindo as que eu poderia usar para me causar dano).

— Sua mãe contou o que fez. Quer falar sobre?

Eu queria, mas não com eles.

— Fiz o que você me ensinou a fazer, pai. — Disse em um tom ameno. — Tentei ajudar alguém que parecia precisar de ajuda. Só isso.

— Sabe, Jorge, — Ele soltou a porta, que terminou de se abrir, e deu um passo para dentro do quarto. — Sempre tive orgulho de você pelas escolhas que tomou, mesmo um tempo atrás, você sempre foi um bom garoto, sempre foi… esperto e bondoso. Seria muito bom se mais jovens fossem como você, filho.

— Acho que não ia ser uma boa. — Eu disse abrindo um sorriso de canto imaginando se todos tentassem se matar, eventualmente alguns conseguiriam.

— É só que os tempos são tão ruins, estamos sob tanta maldade… Pessoas boas e justas como você são raras, filho. Não perca isso! Continue esse bom garoto…

Então o computador saiu do modo de descanso, a tela se iluminou e começou a tocar. Meu pai olhou para mim e para a tela.

— Quer continuar? Eu desligo…

— Não, pode atender! Só queria falar isso mesmo. — Ele disse, sorriu, um sorriso cansado e fraco, se virou e saiu fechando a porta atrás de si.

Olhei para o monitor do notebook, aceitei a chamada de vídeo com Elise.

— Lucas…

— Espera. Vou colocar os fones. — Pedi para ela enquanto caçava meus fones.

Olhei em baixo da mesa, na gaveta, na estante de livros, na mesa em baixo das folhas, mas então me lembrei da mochila, corri para a cama e tirei o fone de dentro da mochila junto da bolinha de papel, que virei e joguei contra o monitor. Elise viu a bolinha vinda contra ela e recuou, um movimento involuntário.

— Ninguém me chama de babaca, falou! — Disse para ela enquanto voltava à cadeira, conectei o auricular e me sentei. — Pronto.

— Estava pensando em conversar sobre o que aconteceu, já que a gente não conseguiu se falar e minha mãe teve que ir embora depressa.

— É, minha mãe ia convidar a sua para ir na igreja esse domingo, sorte sua que foram embora. — Eu dei risada, e Elise também, a família dela não era exatamente religiosa, e Elise era praticamente sem religião ou crença alguma.

— Se você não gosta, por que vai? — Ela perguntou.

— Porque tenho que ir. Oras. — Eu respondi de forma prática, mas sabia que essa resposta era simplesmente falsa, e tinha me feito a pergunta que Elise fez várias vezes durante a depressão. — Sabe quem eram os caras? O da perna, o que foi preso com a gente. Sei que um dos que estavam batendo era o Bruno.

— Você não disse nada para polícia.

— Claro que não. Já viu o pessoal que o Bruno anda junto? Cruz credo eu abrir o bico. — Disse em um tom sério, a chamada via Skype tremeu e teve delay, acho que a internet estava ruim, nós dois ficamos quietos enquanto a chamada estabilizava. Então vendo que ela não tinha algo a dizer eu completei com a voz solene — Elise, eu to com medo.

— Agora? Precisava estar com medo lá na viatura. Pensei que iam matar a gente ali, ainda bem que não somos negros se não estávamos ferrados!

Ela riu e eu também, mas aquilo era errado.

— Isso não é engraçado. — Eu disse, ainda mais sério, mas Elise pareceu não se importar, ela nunca se importava, não era racista ou preconceituosa, muito pelo contrário, mas fazia piada das desgraças do povo e da própria, era isso uma forma de minimizar o impacto negativo sobre o espírito, de amenizar o tamanho da ferida sofrida.

— Claro que não é! — Ela rebateu gesticulando. — É horrível pra caralho. Mas é verdade, não é?

Decidi ignorar isso. Nossa sorte herdada pela genética era uma herança de uma cultura preconceituosa, eu sabia, ela sabia, não precisávamos continuar nessa vereda. Não era isso que queria discutir.

— Ele disse xis nove. Do quê? O que ele estava falando? — Eu perguntei. — O que será que o cara da perna estava falando? O que eles estão fazendo?

— Relaxa, Lucas. Tudo isso já era. Quer dizer, não importa, não é mesmo? E assim, o que eles estão fazendo… isso não interessa para a gente, né? Quanto menos souber melhor. Convenhamos! É que nem meu pai sempre fala. Pássaro bicudo pode até comer mais, mas também canta mais bonito.

— Não entendi. — Ela me olhou pela tela do computador e fez que não com uma expressão de decepção humorada.

— Quem sabe de mais tem muita coisa para falar. É melhor ter bico grande para comer mais, mas quando a gente prende o passarinho, então para que serve o bico grande? Entendeu?

— Acho que sim. — Eu disse. — Alias, cadê seu pai, sua mão não gosta de dirigir…

— Ele… Ele tá de viagem… A trabalho. — Elise engasgou para falar. — Vai voltar na quarta. — Então subitamente ela mudou de assunto. — Eu to com fome, acho que vou jantar.

Eu olhei para o relógio do computador e pensei no que ainda podia fazer.

— E eu vou ir tomar banho e dormir. — Disse para Ela. — Boa noite!

— Bom banho. — Elise piscou com um olho só, e a chamada foi encerrada no outro instante antes que eu respondesse.

Então a mensagem de texto no chat “É brincadeira tá. Boa noite também”.

Olhei para a tela por mais alguns segundos até decidir levantar sem responder.

Juntei uma troca de roupa e fui para o banheiro.

Lá eu parei na frente do espelho e respirei fundo olhando meu reflexo. Fechei e tranquei a porta, comecei a me despir.

Eu nunca fui alto ou forte ou musculoso, percebia isso quando me olhava no espelho. Um menino de dezesseis anos com 71 quilos distribuídos em 1,77 de altura. Eu até gostava do meu corpo, mesmo sem ser o “corpo ideal”.

Tirei a calça e a cueca juntas deixando ambas no chão, chutei-as para o lado. Me encarei por um momento, a pele branca, os pelos por nascer no peito, os pelos pubianos finos e aparados, minhas pernas, axilas e braços nunca tinham visto lâmina ou cera, mas fora isso tinha poucos pelos. O rosto era outra coisa, eu tinha essa barba que nascia mais no queixo e no inferior e lateral dos maxilares que nas bochechas, bigode e costeletas, onde o que existia era apenas uma penugem disforme que crescia mais ali que aqui, então por isso sempre tirava todos os pelos do rosto (até mesmo durante as férias, quando não saia de casa, essa penugem me incomoda, se fossem pelos reais seria outra coisa).

Então percebi que começava a ficar excitado conforme analisava meu próprio corpo, peitoral, abdômen, coxas… passei a mão pelo meu peito e desci pela barriga até o meu pênis enquanto sentia algo que não acontecia fazia quase dois meses. Suspirei agarrando o pênis e foi quando olhei para minha mão, e os pulsos, braço… Toda a excitação passou no mesmo instante quando vi as cicatrizes dos cortes que tinha feito tempos atrás. Ainda tinha um corte com casca, cicatrizando.

Toda a vontade que surgiu, aquele prazer crescente de algo que nunca fiz de verdade se não com minhas mãos, sumiu. A tristeza me atingiu junto das lembranças enquanto abria o chuveiro e me enfiava debaixo d'água, começava a me lavar.

Naquele instante eu estava triste pelo que havia feito. Pela primeira vez me arrependi de ter me cortado, e isso era bom, soube naquele instante que era algo bom. Pela primeira vez em meses eu estava voltando a ser eu mesmo e então, mesmo triste, eu comecei a sorrir, eu voltava a ser quem eu era antes do término, e por quê? Tudo voltava a ser como antes, tudo estava se ajeitando.

Olhei para o vidro trincado de quando quase me matei, e aquilo doeu.

Eu senti o coração apertado no peito enquanto chorava de dor (não física, uma dor que vinha do cerne do meu ser) pelo que fiz, e sorria por poder finalmente entender o que fiz! E só então percebi que estava curado daquela maldição que eu mesmo havia me colocado. Eu sorria e chorava, confuso nos próprios sentimentos soltando pequenas gargalhadas que tentava conter com os soluços, abafando meu próprio som para não ser detectado pela minha mãe no quarto ao lado.

Em dezenas de dias este foi um dos melhores de 2014, foi o dia em que percebi; estou pronto. Posso, finalmente, voltar a viver!



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