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História Primavera de Rulim - Todos, vez ou outra, precisam de ajuda!


Escrita por: yuriPsouza

Capítulo 9 - Todos, vez ou outra, precisam de ajuda!


Tinha pedido que meu pai me levasse até lá.

Não sabia os motivos de Elise, mas não podiam ser bons. Ela parecia triste estranhamento necessitada como raramente ficava, normalmente ela era tão independente e forte.

Como a igreja estava praticamente vazia o Padre Silviano permitiu que meu pai fosse (isso e também porque eu parecia realmente preocupado com o estado de Elise ao telefone) então entramos no carro e partimos, ia ser rápido, da igreja para a casa de Elise podia-se subir pela rua da igreja até uma avenida e então seguir até o fim, e lá estava a casa de Elise.

— A mãe E o pai dela sabem que você está indo? — Meu pai me perguntou enquanto dirigia, lançou um rápido olhar para mim e voltou a focar na pista, mesmo parado no semáforo. Eu tamborilava os dedos na perna, ele fazia o mesmo só que no volante (era coisa nossa isso de ficar batucando, vinha com a ansiedade).

— Claro que não, pai. Ela tá desesperada, alguma coisa séria aconteceu. — Eu disse de forma rápida como se ele pudesse entender assim que não havíamos tido tempo para avisar pai e mãe. — É uma emergência!

— Tudo bem, só não fique lá mais tempo que precisa, não queremos mais rumores, Jorge…

— Que rumores? — Eu perguntei com as sobrancelhas franzidas olhando pra ele, mas ele olhava pra pista.

— Hoje duas senhoras estavam falando sobre você ter sido preso, eu, claro, esclareci a situação. — O carro voltou a andar, estávamos perto e ele estava ficando sem tempo para sermão. — Mas não preciso te falar como isso é ruim pra sua reputação, certo? Elas vão continuar espalhando essa história, mesmo sabendo ser mentira…

Minha reputação, ou a sua reputação, pai? Poderia ter questionado.

— Eu não me importo. — Disse sendo o mais sincero que poderia ser sem falar o que realmente queria dizer. Eu realmente não me importava para o que eles falavam de mim, nem queria ir lá mesmo.

— Tem mais que apenas você, Jorge. Se pensarem que o filho do diácono está indo preso e sua mãe tira você da cadeia, o que vão pensar da sua educação? E pior, o que pensaram sobre o preparo da igreja em ajudar as famílias? — E aí está, retornamos para você! Pensei respirando fundo olhando para a vista pela janela, então olhei de novo para o meu pai.

— De novo, pai. Não me importo! Sabe que não fiz nada de errado, Deus sabe! Já não é o bastante? — Disse sabendo que era exatamente aquilo o que ele não queria ouvir.

Por um momento ele não respondeu, mas então o carro entrou na rua da casa de Elise, para que não fosse eu a dar a última palavra ele emendou.

— Para Deus sua ação foi louvável, meu filho, mas o filho do Senhor morreu entre ladrões, tão inocente quanto você nessa situação. Não deixe que o mesmo aconteça com você ainda tão jovem, não custa nada acabar com boatos antes que eles comecem. Quanto tempo levou para que Jesus fosse absolvido e quantas guerras e vidas custaram, tudo por causa de boatos infundados, mentiras.

De novo, eu não me importo! Poderia ter dito, ninguém faria guerra por mim. O carro parou na frente da casa de Elise, olhei para o portão dela e tentei imaginar o que me esperava lá dentro.

— Está bem pai. — Disse por fim em um tom de concordância que deixa muito a desejar. — Obrigado pela carona…

— Liga quando for voltar…

— Não precisa. — Apalpei meus bolsos enquanto descia do carro. — Tenho dinheiro, volto de ônibus. Sei como fica ocupado depois das missas.

— Tudo bem então. — Ele me olhou um tempo e eu percebi que faltava algo ser dito, então esperei pelo conselho final. — E, Jorge, juízo.

— Sempre! — Eu sorri em resposta, então fechei a porta.

Em seguida o carro voltou a andar e lá estava eu, sozinho na rua novamente, olhando para o portão trancado esperando que um milhão de cenários se profetizassem. Na verdade, eu sequer conseguia imaginar um motivo real para Elise me chamar. Talvez a gripe tivesse piorado e ela precisasse de real ajuda, mas sua mãe não estava e eu fosse o único que Elise conseguiu contatar… essa, por mais alegórica que pareça, foi a coisa mais plausível que pensei, afinal, é Elise!

Apertei o interfone que havia sido consertado, silêncio, o som de estática.

— Pois não? — A voz de Elise saiu pela caixinha de som de forma delicada, sequer parecia Elise de momentos atrás. A arte de parecer uma flor quando é, na verdade, um coice de mula. Pensei, mas por que parecer tão normal, se estava tão ruim?

— Sou eu, Elise. — Disse para ela e o portão estralou se abrindo.

O interfone emudeceu.

Olhei em volta, ninguém na rua, entrei e fechei o portão, caminhei pela entrada até a porta enquanto ouvia o molho de chaves girando na fechadura.

Ela abriu a porta de metal com persianas entreabertas e pude vê-la pela cortina de entrada (aquela para impedir mosquitos e pernilongos de entrarem na casa).

— Está tudo bem? Você parecia…

— Está tudo tranquilo, era só para você vir mesmo. — Ela disse se virando e recuando para o interior da cozinha. Sério? Eu fiz a igreja toda parar porque você queria ter certeza que eu viria?

Quando cheguei na porta limpei os pés no carpete da entrada e empurrei a cortina para entrar.

— Licença… — Sabia que Elise, muito provavelmente, estava sozinha, mesmo assim mantive os costumes que a boa educação me obrigava manter.

— Para disso, só tem eu aqui. — Senti um nó no estômago. Era exatamente esse tipo de situação que meu pai queria que não acontecesse e embora eu soubesse que era exatamente essa a situação que aconteceria esperava de alguma forma estar errado. Será que tem alguma velha fofoqueira da igreja que mora nessa rua? Não que eu soubesse.

Elise estava de costas para mim, na geladeira, pegando alguma coisa.

— Quer comer?

— A… Não… você só me chamou pra conversar? — Eu começava a me sentir estúpido por estar ali. Se era só conversa podíamos usar o Skype, como fazíamos sempre.

— Não… sim… é complicado. — Pude ouvi-la rindo como se tentasse se decidir. — Senta aí. — Ela levantou e fechou a porta da geladeira com o pé indo para a pia. — Lembra que eu disse que estava precisando do meu amigo, e que você me explicava o que aconteceu e aí eu te contava uma coisa minha, que nunca tinha contado para ninguém, nem para você?

— Se for sobre o Carlinhos no começo do ano… eu já sei!

— Aí que nojo. Maldita Karla. — Ela riu de novo enquanto preparava um lanche com pão de forma, na pia. — Aquilo… foi coisa da hora, ele é bonitinho, mas não é isso… promete que vai ser sensato?

Outro nó no estômago. O que Elise está escondendo?

— Elise…

— Promete. — Ela repetiu. — Nunca contei isso pra ninguém.

— Eu sempre sou sensato! — Disse em um tom tão sóbrio que eu quase me enganei com aquilo.

Então ela se virou.

Percebi que ainda não tinha visto ela de frente, ou tinha, mas a cortina da porta estava tampando a visão completa. Agora nada bloqueava seu rosto e corpo, e enquanto eu pasmava ela simplesmente continuou a conversa.

— Disse o homem que tentou se matar por causa de um pé na bunda. — Ela me encarava com aqueles olhos castanhos poderosos, mas desta vez um deles estava enfeitado com um vergão de tons roxo e verde acima da bochecha, o braço dela tinha outro hematoma, mas já parecia apenas uma leve marca de uma pancada antiga prestes a sumir, e a boca tinha uma ferida cicatrizando no lábio inferior. Só então me dei conta que ela comumente aparecia com cortes nos lábios, dizia ser mania de “arrancas as pelinhas”, vez ou outra com marcas rochas de “bati no pé da cama” e outras coisas assim, e pensando mais a fundo, todas coincidiam com Elise tendo faltado alguns dias.

Eu fiquei sem palavras enquanto observava, catatônico, o estado dela, que embora estivesse visivelmente machucada, sorria como se nada tivesse acontecido, inclusive falava como se nada tivesse acontecido!

— Elise… O quê…

— Sensato, seja sensato! — Ela me recordou levantando o indicador e sorrindo, mas o ato de abrir a boca e esticar os lábios para sorrir deve ter doído porque a língua instantaneamente deslizou sobre a ferida lambendo o que poderia ser sangue, e o sorriso sumiu. — Não vá bancar o mané.

Ela virou de novo, fechou o lanche que fez com requeijão e presunto e apontou para o cômodo ao lado.

— Vem… não é bonito de olhar, eu sei.

Acompanhei ela até a sala onde nos sentamos no sofá de três lugares, mantendo o lugar do meio vazio entre nós com uma almofada jogada lá.

— Elise, você foi… assaltada?

— Claro, todo mês inclusive! — Ela respondeu irônica.

— Eu… — A verdade é que eu não queria aceitar a óbvia verdade.

— Você é muito educado pra falar o que tá vendo, Lucas. É isso. — Ela resumiu, e era verdade, eu acho. Não tinha coragem de falar o que… A única coisa que poderia ser. — Meu pai as vezes… me bate. Por isso não fui pra escola esses dias.

— Mas ele estava viajando…

— E quando voltou suas roupas cheiravam a perfume de mulher e tinha três sacos de camisinha, vazios, na mala. Minha mãe e ele discutiram, e o resto…

— O que você tem a ver com isso? — Eu me precipitei, zangado, confuso, não entendia, mas era algo bem simples de se entender. Na verdade, eu só não queria aceitar. O pai de Elise era uma pessoa tão legal, um homem que sempre foi gentil, educado, simpático. Minhas mãos estavam espremendo as bordas da almofada, eu sentia raiva e frustração de não ter percebido isso ainda.

Como nunca notei antes? Ela deu sinais… eu deveria ter sabido, ela sempre me ajudou e eu nunca sequer notei que ela precisava de ajuda também. Como fui egoísta durante tanto tempo? E agora me sentia impotente, o que fazer? Como?

Elise então explicou tudo.

Ela falou que as vezes ele batia nelas, nas duas, mas Elise as vezes merecia, que ela respondia ele, se metia no meio das brigas para proteger a mãe e sabia que não devia fazer isso, e fazia, e por isso apanhava. O pai dela nem sempre era assim, ela disse que isso só acontecia vez ou outra, e que ele pedia desculpas depois, ele chorava. Ela explicou que ele levava a família em passeios, que fazem compras todos juntos, que ele é um bom pai, mas todos têm defeitos… as vezes ele pisa na bola de mais, e a mãe dela se sentia tão ofendida que esquecia que não devia reagir, e Elise não gostava de ver a mãe caída no chão, encolhida, apanhando e gritando, e por isso apanhava no lugar dela de vez em quando.

E mesmo depois de falar tudo aquilo Elise não derramou uma única lágrima. Seu rosto era de pura tristeza, mas não havia derrubado uma única lágrima!

— Isso é errado! — Eu respondi me levantando sentindo os nós dos dedos doerem de tanta força que fiz, senti de repente uma onda de asco. — Ele… não pode, Elise! É nojento…

— Ele é meu pai, Lucas. É isso que pais fazem, só que uns com mais força que outros… — Ela deu de ombros como se aquilo tornasse a ação menos reprovável.

— Ele também é pai da sua mãe?

— Seja sensato…

— Estou sendo. Sou o único sendo sensato! — Eu quase gritei, abrindo os braços em uma esperança de gesticular e fazê-la entender, mas só então entendi. Não estava ajudando Elise. Ela surgiu do nada pedindo por um amigo quando eu precisava da minha amiga… nós dois precisávamos um do outro, e ela cumpriu a parte dela da barganha, agora era minha vez de retribuir o favor implícito.

Só então eu percebi que éramos um o pilar do outro, que ela me sustentava como eu sustentava ela, mesmo sem saber pelo que Elise passava, minha simples existência ali era o que ela queria, não era eu saber disso, claro, talvez ela quisesse que eu soubesse, mas ela nunca precisou que eu soubesse.

Ficamos alguns segundos calados, eu em pé olhando para ela, e Elise comendo o pão olhando para o chão. Tínhamos chegado no ponto de tensão extremo.

Percebi que quando minha mãe chamou ela, e Elise bateu no meu quarto, ela não veio me ajudar. Ela veio procurar ajuda. Era verdade, ela precisava do amigo dela e eu, em tal função, poderia (e devo) fazer mais que acusar o pai dela.

— Te chamei aqui hoje porque sei que odeia ir na igreja. Mas acho que esperei a missa acabar, mancada minha. — Ela riu. De novo a língua foi na ferida, rosto baixo.

Eu não tinha essa capacidade de mudar de assunto, essa era coisa de Elise, fingir que nada aconteceu, voltar a falar

— Elise, desculpa… não ter sabido…

— Não é sua culpa, Lucas. — Ela apontou o sofá. — Senta. Sabe por que eu nunca te contei isso antes?

Eu não estava tendo coragem para olhar ela nos olhos, mas Elise teve essa coragem comigo naquele instante nos momentos que já haviam passado.

Fiz que não com a cabeça, sem saber o que dizer, sem saber como ajudá-la mais.

— Imagina passar tantos anos apanhando e vendo sua mãe apanhar… eu sei como isso é errado, mas meu pai tem suas razões… eu acho. Mas eu sempre quis te contar, anos sem ver você e ainda assim eu queria te contar quando te vi de novo. Por que não contei? Porque faz parte da vida. Nossos problemas, todo mundo tem problemas, não é só você, menino chorão. E você não me vê chorando por aí, vê?

— Elise, isso é diferente…

— Nunca cheguei perto de morrer, Lucas. Você passou por coisa pior, só que sem ninguém pra jogar a culpa em cima!

Eu respirei fundo para não estourar de novo, então falei com calma;

— Você não tem culpa para jogar em cima de alguém, o culpado é ele, não você ou sua mãe. É horrível falar isso, mas vocês são vítimas!

— Eu tenho culpa. A culpa de compactuar com isso quando podia por um basta. Minha culpa é tão grande quanto a do meu agressor, só que eu escolhi ignorar e sorrir, eu estou esperando… minha mãe. Ela tem que pôr um basta, é a vida dela na linha, não a minha.

— Já pensou que pode chegar o dia que será tarde demais para pôr um basta?

— E é por isso que eu apanho por ela. — Elise sorriu de novo como se aquilo fosse a solução, mas então eu percebi que na verdade aquilo lhe enchia de honra. Ela não lutava contra a agressão, mas aceitava apanhar para livrar a pessoa que amava de mais dor. Então lembrei de minha mãe me segurando, nu e molhado no banco do carro, chorando e rezando enquanto eu vomitava, pedindo pra morrer no meu lugar. Será que não percebe, Elise, te ver sofrer machuca mais sua mãe do que as pancadas? — Nossos problemas não são assim tão diferentes. Eu não preciso de muito, só preciso do meu amigo aqui. — Ela sorriu para mim, língua na ferida, olho machucado encolhido. — E você, o que precisa para sorrir?

 

Depois daquilo percebi como idiota eu deveria parecer para Elise, com tanta história para contar, tanta coisa para aguentar, e mesmo assim ali, me dando suporte. Era como se eu tivesse negligenciado os problemas dela por anos só para poder colocar os meus na frente e agora quando olhava para ela via uma bola de neve gigante que eu simplesmente não sabia como parar, mas tinha a necessidade de fazê-lo, porque ela faria, e fez, o mesmo por mim.

Estávamos no quarto dela enquanto conversávamos sobre tudo um pouco, ela me explicou que a mãe dela e o pai agressor covarde tinham ido para uma festa de família, e que os hematomas da mãe estavam nas costelas e costas, então não era difícil esconder, por isso ela tinha ficado ali, sozinha. E que na segunda-feira já ia voltar para a escola.

— Como… assim…

— Lucas, a maquiagem é uma coisa incrível. — Ela riu abrindo a porta do guarda-roupa, dentro havia um espelho. — Olha.

Pegou uma caixa cheia de maquiagem, a maioria eu desconhecia o uso.

— Alias, e a escola, Karla falou sobre alunos novos, mas a internet dela caiu, e eu nem chamei ela de novo.

— São gringos… um só ficou na sala, os outros foram para outras turmas. — Eu disse enquanto ela começava a se maquiar… aquilo era pó? Base? Corretivo? Era alguma coisa da cor da pele dela… da cor da pele saudável, não a roxa esverdeada.

— São muitos?

— Acho que não… tem alguns, o David, o irmão, a namorada do irmão, o Kyle, tem uma gordona… qual é o nome… Lexa, eu acho, ela tem uns olhos tão bonitos…

— Cor?

— Azul. — Eu disse lembrando do rosto de Lexa.

— Claro, nunca verde.

— Você quem gosta de olhos verdes, não eu. — Eu ri deitando na cama e apoiando os pés nos ombros de Elise, que balançou as costas derrubando-os.

— Vá ser folgado assim na sua casa! — Ela me lançou um olhar e eu me assustei. A maquiagem, metade feita metade sem fazer, era estranha. Metade do hematoma tinha simplesmente desaparecido, e, no entanto, ela não parecia maquiada, não como Bianca costumava parecer (Às vezes falávamos que Bianca usava um segundo rosto de tanta maquiagem).

— Como você faz isso? — Me sentei de novo, agora para olhar o rosto mais de perto.

— Anos de prática! — Ela respondeu com um sorrisinho fraco para não machucar a ferida na boca, então voltou a olhar para o espelho, mas tudo que ouvi foi “Anos de dor”. — Ao menos maquiagem eu sempre tive da melhor…

— Não é bem uma vantagem, convenhamos…

— Não… é mais dano colateral. — Ela riu e eu também, mesmo não devendo, era um assunto sério demais para se dar risada. Mas Elise tinha esse dom natural de fazer coisas terríveis parecerem banais sem fazer com que perdessem a importância. É uma das coisas que eu mais aprecio nela. — E esses alunos novos, são bonitos?

Eu desviei os olhos para o teto, mesmo com Elise olhando para o próprio reflexo, me senti levemente desconfortável. Aquelas perguntas não eram novas, debatíamos sobre isso, várias vezes o fizemos e várias vezes eu opinei sobre a beleza dos garotos que Elise almejava ficar, ou falava de homens bonitos que tinha visto pela rua que tinha certeza que ela quereria beijar, e ela o mesmo com as garotas que apontava para mim.

Acho que esperei tanto para responder que ela voltou a falar.

— Desculpa… ainda é muito cedo para a gente conversar essas coisas?

É? Perguntei-me. Mas o desconforto era novo, não vinha da nossa relação falhada.

— Não sei… — Disse vacilante entre as palavras. — De verdade, não sei. — Então decidi fazer o que Elise teria feito. Ignorei o que passou, enchi-me de coragem que não tinha e disse. — Mas ele é bonito sim.

Elise riu, alegre e se virou me encarando, a maquiagem de um olho quase pronta, a diferença agora tornava o olho saudável sem maquiagem menor e menos atraente.

— Ele? — Ela deu uma balançadinha na cabeça me encarando. — Quem é o sortudo, Lucas?

— Para de ser besta. — Eu rebatei me esticando na cama, peguei o celular dela e desbloqueei, só tinha três senhas que Elise usava, e eu conhecia as três. Uma era o aniversário da mãe dela, a outra era do pai, e a outra, que me deixava muito honrado, era o meu aniversário! — Quer ouvir o quê?

— Zaz? — Ela perguntou mais que exclamou.

— Prefiro Girac.

— E por isso que vamos ouvir Zaz. — Ela tomou o celular da minha mão e colocou o álbum mais novo da Zaz pra tocar. Começou a primeira música e nós dois nos calamos para ouvir. Não éramos fluentes em francês como éramos em inglês, ou como acreditávamos ser, por isso precisávamos prestar atenção. Elise tinha feito curso de francês inglês e espanhol, mas nunca gostou do espanhol, e ainda no Entente ela me puxou pro francês, eu nunca fiz curso, mas gostei do idioma e busquei um pouco sobre. — Sentia falta disso.

— Ouvir Zaz? — Eu perguntei, afinal, ela podia ouvir Zaz sempre que quisesse.

— Você — Ela respondeu e eu senti as bochechas corando. — Zaz, isso… A gente aqui, conversando sem ter obrigações… Só amigos.

Ela pulou da cama se levantando.

— Onde vai…

— Vem. — Ela agarrou o celular e colocou ‎J'ai tant escamoté, sexta música do álbum, me puxou pelos braços e ficamos frente a frente de mãos dadas. Aquilo trouxe tanta coisa pra cima que eu senti o corpo esquentando enquanto a vontade de chorar voltava, mas pisquei várias vezes e fiz parar. O que você está fazendo? Pensei enquanto me controlava contando os segundos.

— Elise… Não acho que…

— Shh. — Ela me fez calar, então começou a andar em círculos conforme a música chegava na parte instrumental.

— Não é música pra dançar…

— Shh. — Ela repetiu e começamos a dançar. — Ou coloco Oublie Loulou.

A música era, no fim das contas, até que dançável.

— Sua pronuncia é horrível. — Eu disse enquanto de mãos dadas e braços erguidos balançávamos os esqueletos em passos não ensaiados fazendo o ridículo parecer incrível e rindo enquanto só deixávamos o tempo passar sem se preocupar com nada além de nós, do momento.

— Você nunca mais fez francês comigo! — Elise respondeu como se aquela fosse a razão de termos parado o francês que fazíamos pela internet enquanto namorávamos.

Ela girou, e então eu girei. Enquanto a música conduzia nossos passos sem que sequer notássemos, ganhávamos fluência e praticamente dançávamos por conta própria como profissionais de araque. Especialistas de pantomineiro.

— Eu nunca mais fiz francês! — Respondi a ela.

— Então está na hora de começarmos de novo, não acha?

Quando a música foi pra acabar, aumentamos as piruetas e aumentamos as risadas, e no fim nós dois fizemos reverências um para o outro, mas eu chutei o abajur dela sem querer ao levantar o pé, este caiu no chão. Eu me virei apressado para impedir a queda, mas a lâmpada quebrou, embora o abajur fosse de plástico.

Após me abaixar para impedir a queda e falhar, me levantei apressado e girei para olhar Elise, que me encarava com um rosto extremamente sério e zangado.

— Desculpa. — Eu disse sentindo esquentar o corpo, comecei a sentir culpa, mas o rosto zangados dela se desfez conforme a risada surgia e ela se apoiou no meu ombro, rindo.

— Nem usava mesmo. — Deu de ombros se sentando na cama. — Que saudade disso, sério.

— Quebrar as coisas? Sim, maior nostalgia. — Eu ri me sentando ao lado dela sem sequer considerar distância, sentia calor, era como andar de skate, só que com minha melhor amiga, então era bem melhor!

— Vou ir pegar a pá e o aspirador.

— Está bom. — Eu respondi enquanto ela saiu.

Puxei o tapete e juntei os cacos maiores na mão mesmo, enquanto Elise não voltava. Deixei os cacos todos juntos e senti a lágrima escorrendo pela bochecha e nariz, sorri, porque essa lágrima era de alegria. De voltar a fazer o que sempre fizemos. De sermos o que sempre fomos antes de tudo.

Assim que ela chegou, ela brigou comigo por pegar os cacos na mão, e depois começou a aspirar o restante, nem percebeu que havia chorado uma única lágrima, e eu nem falei nada, só estava grato por estar ali com ela.

Enquanto limpávamos me dei conta que estava sendo aquela ajuda que Elise precisava. Eu estava ali, fazendo ela rir enquanto as feridas se curavam.

Quando terminamos de limpar a bagunça e reorganizar tudo o assunto tinha morrido de novo. Mas é minha melhor amiga, então achei que podia falar sobre aquilo.

— Eu posso te perguntar umas coisas?

— Que coisas?

— Sobre quando a gente estávamos juntos… Tipo, juntos. — Insinuei com uma voz mais romântica.

Elise me olhou sem entender.

— É só curiosidade… não quero voltar tá, só pra deixar claro. — Esclareci.

— A, é tipo pesquisa de qualidade pra saber como é a performance do produto de acordo com as opiniões dos usuários?

— Eu não sou um produto. — Eu corrigi ela, sério. Então sorri. — Mas é tipo isso.

— Manda. Mas olha, agora que sou só sua amiga vou ser brutalmente honesta, está?

— Não poderia pedir menos! — Disse sério, então pensei no que perguntar, tinha várias coisas que queria questionar ela, mas, de repente, a maioria sumiu e eu só conseguia pensar em perguntas triviais. Para não manter aquele silêncio cruel eu fui no trivial mesmo. — Eu beijo mal mesmo?

— É essa sua grande pergunta?

— Uma delas, sim. Problemas? — Eu dei de ombros rolando os olhos. — Disse que seria brutalmente honesta, quero uma resposta pra decidir que ciclo de produção melhorar, preciso agradar a clientela…

— Sim, você beija muito mal. — Ela anuiu balançando a cabeça positivamente me interrompendo no meio da piadinha e eu abaixei a cabeça. — Mas acho que é coisa de principiante mesmo, já brincou de pegar o gelo no copo?

— Você não é nenhum Mc Catra também. — Eu rebati.

— Lucas, se eu não te conhecesse e não tivéssemos brincado de verdade ou desafio anos atrás eu diria que você ainda era BV. — Ela falou séria, e aquilo doeu lá no fundo. Mas ela disse brutalmente honesta… Elise era assim mesmo. — Mas você aprende a beijar com o tempo, só pegar as bocas certas. Era essa a sua dúvida?

Gelei. Não era essa. Eu precisava da coragem que Elise tinha.

— Na verdade não. Por que a gente não deu certo? — Perguntei quase num sussurro.

— Você sabe que estamos repetindo isso né? Já te falei…

— Não, você deu um motivo bem fraco. Eu sei que eu não sou lá essas coisas, mas né… você quer dizer que foi por isso que terminamos? Porque eu não sabia beijar… Tipo, eu te conheço, Elise! Não é essa a razão real.

— Não sabe beijar, ou apalpar, não tem pegada, é frio feito pedra, não dá tesão…

— Está bom, eu entendi!

— Acho que não entendeu não, Lucas. — Elise se aproximou de mim, me olhou nos olhos e ficou respirando por um tempo, parecia até eu quando… Ó não. — Sabe porque você não tem pegada, é frio, não dá tesão, beija ruim, e o resto?

— Isso é parte de ser brutalmente honesta?

— Essa é exatamente essa parte. E você não vai gostar nem um pouco! — Elise fez que sim com a cabeça e eu vi que agora era tarde demais para parar. — Eu não te falei isso até agora, mas você quer tanto saber então lá vai… até porque você é muito lesado para ver isso por si mesmo pelo que parece.

— Eu não sou…

— Você é gay! — Ela me cortou e cuspiu as palavras na minha cara sem nenhum rodeio ou receio do efeito daquilo em mim.

— Não… sou. — Travei.

Elise me olhou por um longo período enquanto eu, de boca aberta, esperava acontecer alguma coisa incrível. O que diabos acabou de acontecer aqui?

Então me refiz e fingindo que não estava confuso disse;

— Eu? — Falei em tom de deboche. — Claro que não, como? Eu fiquei com você…

— Se você tivesse a menor ideia do tanto de viado comendo mulher…

— Que rude da sua parte falar assim. — Tentei apelar para o sarcasmo como defesa.

— Com quantas outras meninas ficou, por iniciativa própria?

— Teve… — Ó Droga. Percebi que todas as meninas que havia beijado tinha sido ocasionalmente e beijos do tipo selinho, nenhuma havia sido um caso de verdade, Elise havia sido a primeira…

— É disso que eu to falando! — Ela completou. — Você ficou comigo porque eu sou a mais fácil próxima a você, nós já nos conhecemos, você sabia que eu era a única que poderia dizer sim, não porque não tem chances com outras meninas, mas porque você sabe que é o que é, Lucas. O que fez foi cumprir seu dever de macho da sociedade. Cumpriu, e não deu certo. A culpa não é sua, não é minha… A culpa é da sociedade que te obriga a ficar com uma mulher. Entende?

— Acho que você tá imaginando coisas…

— Agora pouco eu perguntei se tinha alunos bonitos entre os gringos. Você me respondeu “Ele é bonito”. Ele quem? Quem é o bonito que te chamou atenção?

— A, você sabe que quis dizer eles… é um deslize…

— Você nunca olhou pro Dido? O Dido é gato…

— Elise…

— O Pedro, vocês dois são bons amigos, nunca rolou…

— Elise! — Ela parou e me encarou

— Lucas. — Eu congelei pensando no que ela havia falado. Que merda aconteceu aqui? Era para eu vir te ajudar. — Isso é normal, amigo. Você queria sabe porque não demos certo… porque você nunca se excitou de verdade comigo… nem eu com você para falar a verdade, e isso não é ofendendo está. É que não dá para ascender fogo só com pólvora. Precisa da faísca. A gente foi só beijo… como em um teatro. O que te deixa duro?! Essa é a pergunta que você precisa se responder.

E naquele instante eu não tinha mais respostas, só mais e mais perguntas, perguntas que Elise jamais poderia me responder. Eu deveria me responder agora.

Eu sou gay? Nunca pensei nisso, nunca tive essa dúvida… E agora sequer me preocupava na afirmativa, e sim nas consequências desta. O que vou fazer quando chegar em casa?



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