Miojo, macarrão ou lasagna congelada? Tudo comida instantânea. E tudo massa, eu sei. Fazer o quê... Tomy sabe que saio tarde da redação, não dá pra ter uma ceia de ação de graças no jantar. E contando com meus dotes culinários... Peguei a lasagna.
Cheguei em casa, em nosso apartamento ligeiramente privilegiado com uma ótima vista do lago do Central Park. Logo ao fechar a porta e me virar ao hall de entrada, dei de cara com uma Tomy de feições nervosas.
- Onde a senhora estava? - ela colocou as mãos na cintura.
- Na redação. Onde mais estaria? - ela bufou.
- Sakura, você só vive pra esse trabalho! Só se importa com ele! - ela gesticulava com as mãos. - Uma prova disso é que preferiu deixar sua melhor amiga morrendo de fome a chegar um pouco mais cedo. - franziu o cenho. Pus a mão na testa por um instante e fui em direção a cozinha. Ela me seguiu.
- Você não pode falar nada que eu vivo para o trabalho. E você? Trabalha tanto que nem come, por isso está esquelética desse jeito. - Tomy odiava quando explicitava sua magreza de modelo.
- Kinomoto, tenho que ser magra. Sou modelo, se não lembra. – respondeu seca.
- Então acho que a modelo não vai gostar muito da minha janta. - tirei a embalagem da sacola e ela gruniu.
- Lasagna? E ainda por cima congelada?
- O que não mata engorda. E se você engordar, não tem problema. – a morena fez um bico tomando o pacote de minhas mãos e colocando no microondas. - E não fica preocupada não. Preocupação dá rugas. - eu ri irônica. Ela suspirou de raiva sem me dizer uma palavra. E assim foi nosso jantar “agradável”.
Eu e Tomy podemos parecer antipáticas e incompatíveis, mas não é assim. Essas briguinhas acontecem todo dia, e não são sérias. Juro que quando não brigamos é até estranho. Parece que algo faltou no dia, sabe? Depois do jantar, a fiz lavar a louça e fomos nos deitar em nossos respectivos quartos. Eu e Tomy dividíamos esse apartamento há 3 anos, desde que mudamos juntas de Washington para New York, com o objetivo de brilharmos em nossas respectivas carreiras. Desde a escola, Tomoyo sempre se destacou em fotografia. Fez faculdade de cinema e fotografia, mas não demorou muito para perceber que sua verdadeira vocação era estar na frente das lentes da câmera - de preferência em uma capa de revista.
Já eu sempre fui mais retraída. Quer dizer, não retraída do tipo tímida, não. Há tempos que mudei. Sou retraída do tipo de me expressar através das palavras. Fiz faculdade de jornalismo e com boas indicações de meus professores fui recomendada para meu primeiro emprego, logo no jornal mais famoso dos EUA, o New York Times.
Acordei na outra manhã ao som do meu rock matinal. Não entendo uma palavra do que eles falam, mas a música é ótima para acordar.
Depois de trocada, me encontrei com Tomy na cozinha para o café da manhã.
- Meu Deus, quer um pedaço? - ofereci minhas panquecas de chocolate à Tomoyo que só tinha uma barrinha de cereal na mão.
- Obrigada, mas me preocupo com minhas veias, e gosto de ter sangue circulando nelas, não gordura. – respondeu encarando meu bacon frito ao lado da panqueca. Revirei os olhos. Tomy era uma menina um tanto relaxada. Fora do estúdio era uma molecona que adorava um moletom. Mas era muito complexada com a comida. Depois que virou modelo, ela ficou impossível. Sem contar que morre de raiva por eu comer tudo que quero e ainda ter um corpo perfeito. Sou modesta, eu sei.
- Como quiser. Mas se desmaiar por falta de açúcar no corpo no meio da rua, não diga que não avisei. – e voltei minha atenção para as panquecas.
Cheguei ao escritório no horário, como sempre, e fui direto para a sala de Lisa, já que ontem ela tinha me falado algo sobre novas contratações.
- Bom dia. - disse ao entrar em sua sala e sentar na cadeira em sua frente.
- Bom dia, dona Sakura. - ela respondeu com um grande sorriso.
- Então... Aqui está a matéria. - entreguei um pendrive para ela. Finalmente terminei aquele texto do francês pervertido.
- Muito bem. Já abro, mas antes tenho que lhe dar uma notícia.
- Tudo bem. - respondi calma.
- Está demitida, Sakura Kinomoto. - ela falou com um sorriso comum nos lábios. Gelei e deixei minha expressão de indignação à mostra.
O quê? Foi tudo que pensei na hora. Lisa era uma pessoa muito gentil. Acho que se fosse para ela me demitir, seria com um rosto sério, e não um sorriso que tornava a situação um pouco fria.
- Como? Quer dizer, Lisa, o que fiz de errado? Sei que a matéria não está muito boa, mas você nem abriu ainda... Isso é muito injusto e-
- Ei, ei, calma Sakura. Um minuto. Disse que estava te demitindo, mas não que queria que saísse da empresa. - fiquei realmente confusa.
- Mas...-
- Me deixe explicar. Estou me desligando da empresa. Uma proposta de emprego apareceu no Le Paris, e você sabe que meu sonho foi sempre trabalhar em um jornal parisiense. Assim que aceitei a proposta de emprego, não pensei em ninguém melhor do que você para assumir o meu cargo. Vejo em você uma versão mais nova de mim mesma, Sakura. Confio a você essa responsabilidade. Se aceitar, claro. - nossa. Não acredito! Demorei um pouco para processar a informação, afinal Lisa estava me oferecendo o cargo mais importante do jornal: o seu cargo.
- Lisa, nem sei o que te dizer.
- Um "sim" ajudaria bastante. - ela riu.
- Bem...
- E não se preocupe, te dou carta branca para escolher quem quiser para te substituir na sua coluna. - ainda tinha isso.
- Eu aceito. - sorri. - Aceito sim! - e nos abraçamos. Sei que como chefe e empregada deveríamos apenas dar as mãos, mas com Lisa, me sentia a vontade pra abraçar. - E por favor, gostaria de manter Claire como minha secretária, acho que sua secretária Halley não vai muito com a minha cara. - disse torcendo o nariz.
- Aquela lá, não vai com a cara de ninguém. - nós rimos e ela me deu os currículos dos candidatos á minha vaga.
Cheguei em casa com minha bolsa e um bolo de papéis enfiados numa pasta em minha mão. Não são poucas as pessoas que queriam meu emprego, todos os papéis eram currículos.
- Cheguei! Tá ai Tomy? - deixei as chaves na mesinha do hall e fui para a sala. Lá encontrei minha velha amiga em seus velhos moletons assistindo o velho filme “Um Amor Para Recordar”.
- Tô. - ela respondeu numa voz chorosa com uma caixa de lenços de papel e um pote de sorvete no colo.
- Só assim pra você tomar sorvete, certo? - falei me sentando ao seu lado em nosso grande sofá.
- É. Com filme triste não há dieta que aguente. - ela fungou enxugando o canto dos olhos lacrimejantes.
- Bem, que tal animar um pouco? Trouxe uns currículos! - disse e ela iluminou. Deu pause no filme e se virou para mim.
- O que está esperando? Para a mesa já. - ela ordenou.
Tomy e eu sempre nos divertíamos muito olhando currículos. Quando Lisa ainda era a chefe ela sempre me mandava currículos para analisar e Tomy fica feliz com o simples fato de encontrar todos os defeitos possíveis na foto, que nunca sai boa. Além de avaliar as habilidades do candidato. Uma vez, só pela foto e pelo o conteúdo escrito, ela chegou a sair com um dos “candidatos”. Mas no final, não deu certo. Nem todos os currículos são verídicos.
- Ai meu deus! – a morena gritava horrorizada. - Isso é uma espinha ou uma segunda cabeça? – disse apontando para Allan Mancusi, um concorrente a vaga.
- Espere Tomy, olhe as qualidades: ele fala francês e espanhol fluentemente; é graduado em duas faculdades e está sendo indicado por um dos professores de... Harvard. - disse impressionada.
- Não interessa. Foto ruim, péssima. Se ele fosse tão inteligente quanto seu currículo diz teria o mínimo de noção do que é uma boa iluminação, uma câmera descente e programas editores de fotografias. E além do mais, queremos um jornalista, não um advogado de Harvard. - revirei os olhos, mas ri junto com minha amiga.
E assim se passou uma longa noite.
- Sakura! Pelo amor de Deus! Essa aí é Debbie Stewart, aquela fútil que me seguia pela escola lembra? - realmente não tinha mudado nada. O mesmo cabelo louro falso e o ar superior.
- E o currículo dela não é nada impressionante.
- Além do mais, estamos procurando um candidato, certo? - sorriu maliciosa.
- Não Daiouji, estamos procurando alguém qualificado, enquanto damos umas risadas.
- Sakura, há quanto tempo não namora? Um, dois anos? - já conhecia essa conversa.
- Tomoyo, não preciso namorar, me prender a alguém para ser feliz. Na verdade, homens estão em segundo plano para mim neste momento. Se vou a uma festa e fico com alguém, tudo bem. Mas não sou daquelas que espera o telefonema na manhã. Sou daquelas que dá um número falso, para não receber telefonemas. - ela parecia me ouvir ao mesmo tempo que me ignorava. Estava entretida em um currículo. - Posso ver?
- Acredite em mim, você vai querer ver.
Peguei o papel de suas mãos e assim que passei meus olhos sobre ele o soltei imediatamente, como se estivesse pegando fogo, deixando-o pousar sobre a mesa. Tomoyo me encarou.
- Não pode ser. - eu disse num sussurro. - Não pode ser.
- Mas é. E pelo currículo, é a melhor escolha.- murmurou. - Sem contar na foto, está perfeita. - olhei para ela espantada. - Eu sei, nem acredito que disse isso, mas pela minha visão de fotógrafa, a foto está perfeita. - voltei a encarar a mesa e peguei o papel com minha mão trêmula.
- Shaoran Li. - pronunciar aquele nome em voz alta novamente me causava arrepios.
- Jamais pensei que falaria esse nome de novo, Saki. - ignorei seu comentário e continuei a ler.
- Tem experiência profissional como redator e entrevistador. Não sabe tirar fotos, mas teve sua coluna no Le Paris muito elogiada pela crítica, por ser espontânea, direta e original. - eu lia um anexo de um jornal em seu currículo. - Quem se importa? E além do mais que coluna não é original? A cada dia faço uma diferente. - Tomy pegou o currículo de minhas mãos.
- Pelo o que eu li ele se formou na Universidade de Columbia, aqui em New York e desde então tem sido notável em todos os empregos que teve. - revirei os olhos desde que tinha pronunciado Columbia. - E além do mais fala francês, italiano, alemão, espanhol e mandarim fluentemente. Além do inglês claro.
- Ele também é poliglota?
- Ele fala mais de cinco línguas, você fala mais de cinco línguas. Vocês são poliglotas. - ela explicava.
- Você está realmente acreditando em tudo isso? Por favor Tomoyo! Quem fala Mandarim? - eu começava a me exaltar.
- Se não sabe, é uma das línguas mais faladas no mundo.
- Graças aos bilhões de chineses.
- Esqueceu que ele é estrangeiro que nem a gente? Ele veio pequeno da China pra cá, assim como a gente veio do Japão.
- Grande coisa. – revirei os olhos.
- Sakura. Esqueça. Você não vai contratar ele, já sabemos. Podemos passar pro próximo e esquecer que isso aconteceu? - ela pediu. Refleti por alguns segundos.
- Não. Ele não é o “melhor” até agora? Pois então. Vai estar na minha entrevista. - senti a morena na minha frente engolir seco.
- O que está pretendendo, Sakura?
- Nada Tomoyo, só uma entrevista de emprego. - disse com meu sorriso sarcástico no rosto.
Já eram quase duas da manhã e eu e Tomy finalmente tínhamos acabado de ler todos os currículos. Já tinha selecionado os interessantes e mandado por e-mail para Claire, que agendaria as entrevistas.
Fui me deitar, mas não conseguia tirar aqueles olhos da cabeça. Aqueles olhos que um dia me enganaram, que um dia me fizeram sentir dor. E como ele estava diferente naquela foto do currículo. Infelizmente continuava estupidamente lindo.
Acordei no dia seguinte, com meu rock matinal, como sempre, mas ele estava uma hora adiantado. Troquei-me e encontrei Tomy na cozinha.
- O que faz acordada tão cedo?
- Não tem comida aqui, e quero ter tempo de tomar um café da manhã decente. - encarei sua barra de cereais que segurava.
- Que seja, te vejo à noite. E lembre-se: não faça nada que vá se arrepender depois. - e saiu pela porta. O trabalho de Tomy é muito instável. Ás vezes a chamam ás 6 da manhã, outras ás 10, outras nem chamam. Por isso prefiro o meu. Tenho que estar as 9h no escritório, todos os dias, sem exceção.
Caminhando pelas ruas em busca de uma boa e velha Starbucks, fui bruscamente impedida, pois alguém que vinha na direção oposta trombou comigo, derrubando tudo o que carregava.
- Meu deus! Me desculpe, senhorita. - o moreno de olhos claros e roupas brancas me olhava preocupado. - Quer ajuda? - ele ofereceu sua mão e eu a agarrei, me erguendo em pé novamente.
- Tudo bem, estamos distraídos hoje. - disse com um meio sorriso. Ele então se abaixou e começou a pegar suas coisas que estavam espalhadas pelo chão. Pude ver livros de medicina, e papéis escritos em uma letra ilegível e itálica. Então o olhei mais uma vez e suspirei de surpresa. Eu conhecia aquele homem.
- Eriol Hiragizawa? - o encarei curiosamente. - É você? - Ele me olhou profundamente.
- Você me conhece? - então me analisou novamente. - Não pode ser... Você é...
- Sakura Kinomoto. - disse. Ficamos parados por um tempo nos encarando, no meio da calçada, com todos passando por nós como raios.
- Da última vez em que a vi, tinha os cabelos curtos e um olhar inocente. - ele dizia acanhado. Jamais pensei que ele sentiria vergonha de algo na vida.
- Da última vez em que o vi não penteava o cabelo e ficava feliz por tirar um C. - rebati na mesma moeda.
- Realmente não é a mesma. - ele admitiu.
- Idem. O que é agora? Algum tipo de médico?
- Algum tipo não. O mais novo cirurgião de New York. - ele respondeu, mais uma vez ruborizando.
- Pensei que a faculdade de medicina tinha 6 anos de duração, e mais dois de residência.- dizia provocativa.- Não te vejo há apenas 5 anos.
- É uma longa história. Tem tempo para um café?
- É o que estava tentando fazer, antes de cair no chão. - disse sorrindo ajeitando minha bolsa no ombro.
- Vou tomar isso como um sim. Gosta de Starbucks? - ri mais uma vez. Ele pegou minha mão e caminhamos juntos pelas ruas de New York. Aquele dia não podia ter começado de forma mais surpreendente.
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