Não estava acreditando que aquele cara, bem na minha frente, tomando um frappuccino de caramelo, era Eriol Hiragizawa: o arrogante desprovido de inteligência da escola. Ele estava completamente diferente. Mais alto, mais forte e com um rubor nas bochechas toda vez que falava. Nunca pensei que ele fosse tão inteligente. Contou-me que após sair da escola, enquanto todos entravam direto na faculdade, ele se descobriu atraído pela medicina, e percebeu que teria que mudar totalmente seu jeito de ser, para se tornar um médico respeitável. Então passou um ano inteiro estudando, por si, em casa, e conseguiu entrar em Oxford, uma das melhores universidades de medicina do mundo, na Inglaterra. Tenho que admitir que seu mais novo sotaque britânico deixou o novo Eriol ainda mais atraente.
- Desde que entrei, meus professores me elogiaram muito, e eu meio que comecei a participar de algumas experiências da universidade. - olhei curiosa para Eriol.
- Que tipo de experiências?
- Digamos que, conforme o meu desempenho agradava meus professores, eu comecei a ter mais liberdade em opinar e participar de atividades que outros alunos da minha sala ainda não tinham o preparo necessário para participar, como o estágio. O meu foi bem precoce, começou no segundo ano. – olhei-o perplexa.
- Mas que professores eram esses? Vai me dizer que deixaram um aluno do segundo ano operar pacientes?
- Claro que não. – ele soltou um pequeno sorriso. – Sempre fui supervisionado e comecei com coisas bem pequenas. Hoje sou cirurgião, e embora não tenha autonomia de operar sem orientação, meus superiores não interferirem praticamente em nada no meu trabalho.
- Pelo jeito, a mudança foi radical.
- Não vejo isso como uma mudança. Eu, na verdade, sempre fui assim. Desde pequeno, responsável e estudioso. Sou de uma tradicional família japonesa, como você aliás. – sorri concordando – Mas sei lá, depois que me mudei pra Washington tudo começou a mudar, mas acho que foi no ensino médio mesmo que relaxei, para parecer “descolado”. Shaoran me influenciou muito sabe... - ele dizia rindo. Shaoran. Ele ainda conhece Shaoran? Parei de rir subitamente, infelizmente demonstrando meu nervosismo ao ouvir aquele nome.
- Hm. Juro que se não me contasse, jamais me consultaria com um médico tão jovem. - disse mudando de assunto.
- Tenho mais esse ano de residência, mas já trabalho no Hospital Haddinson Burk aqui perto. Conhece?
- Ah, sim. Sempre vou lá quando me descuido. - disse tomando um gole de meu frappuccino de chocolate. Até nisso éramos parecidos, não gostávamos de café. - Parece que dos anos de residência não conseguiu escapar, certo? - ele riu e eu ri junto.
E lá se foi minha manhã toda, gasta com o mais novo cirurgião Eriol Hiragizawa, o ex-bad boy da escola.
- Ah, minha nossa. Realmente tenho que ir. - ele disse olhando o relógio de pulso alarmado.
- Por que, que horas são?
- Nove e meia. Tinha que estar no hospital às nove.
- E eu as nove na redação. - disse com o semblante preocupado.
- Então o que ainda estamos esperando? - ele levantou depressa e saímos do Café.
- Desculpe a pressa. Sabe como é, vida de médico. - ele ruborizava mais uma vez. E por mais que essa cena já tenha se repetido inúmeras vezes hoje, ainda estava desacostumada a vê-la.
- Tudo bem. Também estou um tanto atrasada. - ele se aproximou de mim.
- Hm, então... Será que...
- Quer meu telefone? - eu perguntei e o rubor de suas bochechas aumentou ainda mais.
- É. Para não perdermos o contato. - abri minha bolsa e lhe dei meu cartão. Ele fez o mesmo.
- Bom, agora realmente tenho que ir. - disse apressada.
- Eu também.
- E isso não é um adeus, certo?
- Não. Só um até logo. - nos despedimos com um beijo na bochecha e seguimos nossos caminhos, diferentes, para nossos respectivos trabalhos.
Saí apressada com o cartão de Eriol ainda em minhas mãos.
“Doutor Eriol Hiragizawa
Cirurgião
Hospital Haddinson Burk de New York”
Virei o cartão e encontrei o telefone, escrito a caneta.
Doutor Eriol Hiragizawa. Sinceramente, alguém que eu não esperava conhecer.
...
Cheguei a minha sala e tudo o que encontrei foram caixas.
- O que está havendo aqui? - perguntei para Claire, que estava na porta.
- Lisa saiu hoje do cargo, Sakura. Sua sala será a dela a partir de hoje.
- Mas já? Onde ela está?
- Agora, provavelmente no meio do oceano. Seu vôo para Paris era ás 9:15. Ela passou aqui as nove para se despedir de todos, mas você não estava. – droga, repeti mentalmente. Olhei para o relógio: 9:43. Eu estava muito atrasada. Não acredito que não me despedi de Lisa.
- Hm. Uma pena. Realmente queria me despedir. Bem Claire, já arrumou suas coisas? - a garota me olhou curiosa.
- Para que?
- Vai se mudar comigo. Lisa não te avisou? Vai continuar sendo minha secretária. - a garota iluminou as feições, geralmente neutras, e abriu um grande sorriso.
- Nossa. Obrigada Senho... Sakura. - ela se corrigiu a tempo.
- Tudo bem, vamos logo. Preciso me organizar para receber os candidatos da nova contratação. - disse pegando uma caixa de minha mesa. - Você recebeu meu e-mail?
- Sim. Todas as entrevistas estão agendadas para hoje.
- Muito bem. Vamos logo, que temos muito trabalho a fazer. - pegamos o máximo que aguentamos e fomos em direção aos elevadores.
...
Juro que se essa garota não parar de estourar bolas de chicletes vou fazê-la engoli-los.
- Então... Samanta?
- Sakura, Sta. Stone. - eu repetia meu nome pela milésima vez para Vallery Stone, uma garota com um currículo tão falso quanto seu cabelo vermelho. - Então, o que a faz acreditar que pode ser colunista do NY Times? - a questionei com os dedos nas têmporas.
- Ah, sei lá. Estou precisando de um emprego, e acho que escrever umas histórias pra ganhar uma bolada no fim do mês tá pra mim. - ela dizia agora colocando os pés em cima da minha mais nova mesa.
- Bem, sem mais perguntas. Pode se retirar. - disse seca. Ela nem se moveu.
- Mas e aí, tô empregada, ou não?
- Eu preciso mesmo responder? Será que não percebe que para uma entrevista tem que largar os chinelos, a bermuda, o chiclete e começar a tratar os móveis alheios com mais respeito? - falei em tom severo. Ela revirou os olhos e saiu de minha sala aos cambaleios. Sentei novamente na mesa bufando, já era a nona entrevista e nada.
- Claire, quem é o próximo?
- O senhor Shaoran Li. - Minha mente faiscou e meu olhar se vidrou na porta.
- Você fez o que lhe pedi?
- Sim, senhorita Kino. - ela dizia captando minha pergunta, me chamando de Kino, um abreviamento de meu sobrenome que uso em ocasiões especiais. Principalmente quando não quero ser reconhecida de cara.
- Ótimo. Mande-o entrar. - disse confiante. Desliguei o telefone.
Um misto de sensações me rodeavam agora. Estava assustada com o que poderia acontecer. Reviver o passado, e principalmente aquele passado, ia ser difícil.
O leve ranger da porta ao se abrir me deu calafrios, mas me mantive altiva e confiante. Ele entrou devagar pela porta em seu terno preto, a gravata acobreada, que destacava absurdamente seus olhos, e seus cabelos que sempre estiveram jogados para o lado. Estava em pé ao lado de minha mesa, e o analisei por completo. Shaoran tinha ficado mais forte e com feições mais velhas. E eu já estava o odiando ainda mais por continuar absurdamente lindo. Ele fechou a porta atrás de si e finalmente se virou para me encarar, completamente pasmo e abobalhado. E aqueles olhos... Cegaram-me por um minuto inteiro.
- É você... Não acredito. - ele murmurou com a voz lenta.
- Desculpe, nos conhecemos? - retruquei dando uma bela atuação cínica.
- Sakura! - ele falou meu nome alto e para minha total surpresa, correu até mim envolvendo seus braços a minha volta, colando-me ao seu corpo, me tirando o ar. Senti ondas elétricas correrem meu corpo, como se fosse a primeira vez que ele tivesse me tocado. Como se eu ainda fosse aquela adolescente ingênua do baile.
- Com licença? - disse separando-me do abraço que só ele participara. - Exijo um pouco mais de respeito comigo, senhor Li. Se for contratado, serei sua futura chefe. - disse e ele me olhou atordoado.
- Sakura, não se lembra de mim? - ele gesticulava. - Sou eu, Shaoran, de Washington, lembra? Do ensino médio. - ele me olhava esperançoso.
- Me desculpe senhor Li, mas realmente não me recordo. - disse seca. - Agora se quiser, podemos prosseguir a entrevista, ou você pode dar a vez ao próximo? - sentei-me e acenei para que sentasse. Ele me olhou melancólico.
- Claro. Podemos começar. - e se sentou.
- Bem, aqui diz que o senhor se formou em Columbia, atuou em Paris e em outros países em jornais importantes.
- Correto. - ele entrou no meu jogo e estava tão seco quanto eu.
- O que te trouxe de volta a New York?
- Uma estabilidade. Quero parar de viajar tanto pelo mundo e ficar numa coluna de jornal. Uma coisa que muda todos os dias, mas não me muda de lugar.
- Certo. - pelo menos era bom com as palavras. – Continuando com as informações de seu currículo, consta aqui que você é poliglota. Fala Francês, Italiano, Alemão, Espanhol e Mandarim fluentemente. Fora o inglês. - ele acenou mais uma vez com a cabeça, afirmando. - Poderia me demonstrar?
- Como assim? - lhe entreguei um papel que continha uma coluna antiga que eu tinha escrito.
- Traduza essa coluna para cada uma das línguas que fala, e depois leia em voz alta para mim. - ele me olhou espantado.
- Mas isso pode demorar.
- Por quê? Que eu saiba, os fluentes são rápidos. - disse provocativa.
- Minha fluência não interfere na velocidade em que escrevo. - ele retribuiu, me encarando.
- De qualquer jeito, eu tenho tempo. - ele revirou os olhos e começou sua escrita. Alguns minutos depois, ele leu, em sotaque perfeito, e me entregou os papéis.
Todos começavam com a mesma frase. Em francês :“La vengeance est représailles contre une personne en réponse à quelque chose quiest nuisible”; Em italiano: ” La vendetta è ritorsione contro uma persona in risposta a qualcosa che è statodannoso.”; Em alemão: ”Rache ist Vergeltung gegen eine Person in Reaktion auf etwas, das schädlich sei.“; Em espanhol: “La venganza es una represalia contra una persona en respuesta a algo que eradañino.”; Em mandarim: "復仇是報復一個人在回應這一點是很有害的。"
A frase significa: “A Vingança é a retaliação contra uma pessoa em resposta a algo que foi prejudicial.” Muito oportuno, não? Um texto sobre vingança, que escrevi há anos, vir à tona bem agora? Pura coincidência.
- Muito bem. Parece que esta parte era verdadeira. - disse com minha feição monótona.
- Acha que minto? - ele me perguntou um pouco fora do seu tom de voz usual. - Que eu saiba, não sou eu quem invento nomes. - ele piscou para mim.
- Pra sua informação, meu nome é Sakura Kinomoto. Kino é o começo do meu sobrenome e eu uso como eu bem entender. - senti seus olhos espremerem e sua boca contrair.
- O que aconteceu com você? - ele indagou numa voz sem vida.- Está diferente, para pior.
- Me desculpe senhor Li, mas eu já disse que realmente não te conheço. Acho que estamos saindo do assunto principal de nosso encontro, a entrevista. Então se me der licença, vou prosseguí-la.
Continuei a entrevista da mesma forma seca, direta e profissional de sempre.
- Bem, acho que isso é tudo. - disse a Shaoran depois de fechar a pasta onde seu currículo se encontrava. Vi que seu olhar era confuso e triste, para a Sakura seca que ele acabara de conhecer.
- Sem mais perguntas? Nenhum interrogatório, como o que fiz no verão passado, ou algo do tipo? - ele ironizou e seus olhos faiscavam de sarcasmo para mim.
- Senso de humor. Gosto disso. - disse apoiando as mãos na mesa e inclinando minha cabeça para frente.
- Deve ser porque não tem nenhum, certo? - ele fez o mesmo se inclinando bruscamente ao meu encontro.
- Não me provoque. - disse sorrindo cética. Inclinei-me mais em sua direção.
- Ou o que? Vai me tirar a oportunidade maravilhosa de trabalhar no New York Times? - ele ironizou em uma voz irritante enquanto se aproximava mais de meu rosto sem tirar seus olhos dos meus. Estávamos a centímetros de distância agora. Se nossos olhares secos, diretos e fulminantes pudessem falar... Provavelmente, estariam se xingando.
O silêncio pairou por um segundo. Nós não falávamos nada, mas nossas mentes trabalhavam a mil. Por um momento, perdi o controle da situação e me vi perdida. Não acredito que depois de todo este tempo, depois de tudo que passei, ele ainda ganharia. Ganharia a chance de se tornar melhor do que eu, novamente.
- O que foi? Perdeu a fala, senhorita Kino? - ele provocou mais uma vez em sua voz insuportavelmente cínica e rouca. Aproximou-se mais, fazendo com que as pontas de nossos narizes se tocassem.
- Ora seu... - fui interrompida pela porta de minha sala sendo aberta.
- Sakura? Desculpe-me o incômodo... É que todos estão reclamando lá fora. Está há mais de duas horas com o senhor Li e eles tinham horários. - eu e Shaoran voltamos bruscamente para nossas posições originais, ele em sua cadeira e eu na minha, separados por uma mesa que há segundos atrás pareceu não existir.
- Certo, acho que está é sua deixa senhor Li. - disse me levantando e dando a volta na mesa. Ele se levantou.
- Claro, muito obrigada senhorita Kino. - ele disse com deboche, apertando minhas mãos.
- Entraremos em contato. - disse apenas retribuindo o aperto de mãos. Ele saiu da sala. - Claire, pode pedir para o próximo candidato esperar mais alguns minutos? Preciso ir ao banheiro.
- Claro, Sakura. - ela disse fechando a porta. E como em câmera lenta, pela fresta da porta que ainda existia pude ver Shaoran entrar no elevador, me olhando com um sorriso convencido no rosto. Então piscou pra mim e entrou no elevador. A porta de minha sala finalmente fechou, e então soltei o ar que estava preso em meus pulmões há algum tempo.
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