O corredor da delegacia é grande e frio, com o piso escurecido e com grades bancos de concreto. O exame foi... Bem, vergonhoso. Arthur agora está com a polícia na sala do delegado. O boçal está em outro lado da delegacia, nas celas provisórias. Enquanto o pobre coitado de meu pai está desolado, sentado no banco frio ao lado da porta da sala do delegado.
Lhe entrego o copo de água que ele pediu e ele me agradece. Ele está desolado. Deve estar se sentindo fraco, por ter falhado comigo, na ausência de minha mãe. Meu Deus... A minha mãe! Como minha mãe está? Como ela reagiu? Logo agora que ela teve essa hemorragia!
-Tem notícias da mãe, pai?
-Não. Ainda não.
Ele checa as horas no celular e eu volto minha atenção para a sala do delegado. Arthur sai pela porta cabisbaixo e o delegado também.
-Eu sinto muito professor! Nosso desejo também era prendê-lo, mas infelizmente o cafajeste foi mais esperto e conseguiu um habeas corpus pra responder ao processo em liberdade!
-O que? Como assim? - Meu pai se levanta do banco ao ouvir a voz do delegado.
-O resultado do corpo de delito apontou que não há vestígio de sêmen na sua filha, senhor! Nem sêmen, ou sangue, ou pele, ou qualquer outra evidência de violação à ela!
-Não interessa! É a honra da minha filha! Ele tentou estuprar ela!
-Disse bem senhor Roberto! Ele tentou. Graças ao professor Arthur que chegou na hora e impediu essa desgraça maior!
-Mas e agora? O que vai acontecer com ele? - Meu professor pergunta, ainda esperançoso.
-Esse cafajeste conseguiu um... - O delegado se cala quando uma sombra aparece no corredor.
Acompanhado de um outro homem de cabelos grisalhos e magro com uma maleta, o abominável passa com seu ar de superior. O homem grisalho caminha ao seu lado e aparenta serenidade, enquanto ele estampa seu melhor sorriso de deboche nos lábios.
-Covarde! Canalha! - Meu pai tenta acerta-lo mas é contido por Arthur.
-Alto lá! Alto lá! - O homem grisalho ordena que meu pai se afasta - O senhor Rafael é inocente, desde que não foram encontrados vestígios de sêmen na garota! A sua permanência nesse local é completamente desnecessária, e ele tem o total direito de responder a essa acusação injusta em liberdade!
-O que? Quem você pensa que é pra falar assim comigo! Seu maldito! - Meu pai se solta de Arthur
-Mais uma palavra e será preso por desacato! - O homem grisalho ordena – Alto lá! Vamos embora senhor! Isso tudo será resolvido em breve! - Ele coloca as mãos nos ombros de Rafael - Com licença!
O homem grisalho e Rafael continuam a andar. Ele vira o pescoço para mim e me manda um beijo.
-Nojento! - Meu pai grita.
-Mas e agora? Se ele não foi preso, pelo menos ele precisa de outra punição!
-Vamos restringir uma ordem de aproximação! Se ele estiver perto de você, num raio de 500 metros, ele será imediatamente detido! Sem direito a liberdade e sem direito a revogação do processo!
-Só isso? É tudo que podem fazer? Uma ordem de aproximação?
-Se fosse em outras circunstâncias senhor Roberto, poderíamos prendê-lo! Porém não há nada que realmente incrimine ele! Entende? Não cabe a mim, é a lei!
-Lei! Lei! E essa lei vai tirar o trauma da minha filha?! Hein?!
-Por favor senhor Roberto, calma! Calma! Vou colocar uma viatura na esquina da rua de vocês, como segurança? Tudo bem?
-Eu sei que é revoltante... Mas pelo menos é alguma coisa. - Arthur diz e abaixa os braços de meu pai.
O delegado balança a cabeça, frustrado, quando Arthur descruza os braços de meu pai, decepcionado. Me viro e o pavor toma conta de meu estomago, causando aquela sensação de medo de antes. Por ele estar tão confiante e tão desaforado, tenho certeza que ainda não estou livre. E não sei por quanto tempo ainda estarei em paz.
Deitada em minha cama, a cada canal que eu pulo na televisão é sempre a mesma reportagem passando: Professor tenta estuprar aluna em sala de aula. Professor é pego tentando estuprar aluna em sala de aula. O estupro não chegou a acontecer graças a um outro professor do mesmo colégio, que chegou bem na hora e impediu o ato. Desligo a tv e suspiro. Agora todos vão me conhecer assim: A aluna que quase foi estuprada pelo professor de Biologia.
Se foi isso que ele pretendia fazer, conseguiu. Ou não. Novamente, graças a Arthur. Ele se despediu de mim depois que a polícia nos trouxe de volta para casa, e não me ligou ou mandou mensagens. De um jeito estranho, eu me sinto culpada. Talvez, se eu tivesse aguentado o calor que estava fazendo e se não estivesse de saia, ele teria me ''resistido", e talvez nada disso tivesse acontecido. Ou não.
Minha cabeça lateja com as alternativas e os pensamentos negativos, até que o telefone toca lá em baixo, e ouço meu pai atender.
-Alo? Ah, professor! Comigo? Tudo bem, pode falar! Psiquiatra? Professor! Não seria melhor uma psicóloga? Eles não são a mesma coisa? Você vai no psiquiatra?! - Meu pai altera o tom de voz – Tem certeza? Eu só quero o bem da Julie! Tá... Eu vou falar com ela! Seu número? Só um minuto, eu vou anotar! Pode falar! Pronto! O que? Não professor! Não precisa se incomodar! Eu sei, mas você salvou minha filha! Professor... Assim você me deixa encabulado! Obrigado mesmo professor, obrigado pelo apoio viu! Assim que a Julie disser o que quer, eu aviso! Boa noite!
Não demoram e mensagens começam a chegar no meu celular.
[~Teacher Arthur~]: Oi meu amor! Acabei de falar com seu pai. Recomendei que você fizesse algumas consultas com a minha psiquiatra. Ela não é só psiquiatra, ela também e psicóloga.
[~Teacher Arthur~]: Ela é um amor de pessoa, apesar de seus sessenta anos haha.
[~Teacher Arthur~]: É um pouco respondona comigo, mas eu sei que ela vai te tratar bem. Ela se chama Elizabeth, e não se preocupa, eu pago as consultas pra vc ��
[~Teacher Arthur~]: Eu realmente espero que você esteja um pouco melhor meu amor. Qualquer coisa que precisar me ligue, estou sempre aqui! Beijos minha menina <3
-Julie! Desce aqui por favor, filha!
O meu corpo parece um pouco mais fraco, e com relutância me levanto da cama. Com o meu pijama cinza favorito, encontro meu pai na sala de jantar.
-O seu professor ligou pra mim! Ele disse que você deveria fazer uma consulta com uma psiquiatra!
-Psiquiatra? Eu? Agora eu fiquei louca de vez?
-Não Julie. Ele disse que a Psiquiatra não serve só pra pessoas loucas! E disse que essa mulher também não é só psiquiatra, mas também é psicóloga! Enfim, você vai querer ir?
-Tanto faz. Liga pra ele depois! Eu vou tentar... Dormir eu acho.
-Isso filha, vai dormir! Se precisar de alguma coisa é só gritar!
A ponta do dedão dói ao pisar no chão, e meu corpo adormece embalado pela dor. Já se passou uma semana. É segunda feira. A escola fez uma reunião na quarta-feira passada e disse que as aulas voltariam hoje, ao 12h00min. Vestida com o uniforme de inverno, espero a doutora Elizabeth terminar a sua consulta enquanto espero minha vez.
-E não se esquece! De olho nesse cachorro hein? Até a próxima! - A doutora sai da sala e aperta a mão de um homem –Agora... Julie Monteiro!
Arthur me ajuda a se levantar e eu caminho até ela. A maquiagem esconde a idade da pele mas deixa escapar algumas rugas na testa. Ela é loira, com o cabelo ondulado e os olhos verdes. A boca é rosada e bem hidratada, e ela tem um sorriso amarelado.
-Espera... Julie? Você? A garota que o Arthur tanto fala?
Olho para Arthur e ele se envergonha. Por um minuto até rio. Ele realmente se importa comigo.
-Vamos! Entre mocinha!
-Doutora, eu vou...
-Não não! Nada disso Arthur! Hoje a consulta é com ela! E apenas com ela! - A doutora loira responde a Arthur e fecha a porta na sua cara. Nossa!
-Nossa!
-Eu conheço Arthur há muito tempo. Ele é como um filho pra mim, e sabe que eu só brigo com ele porque gosto dele! Mas deixando ele de lado... Sente-se Julie! - Ela me aponta o divã preto.
Deixo a mochila ao lado do divã preto e me acomodo. Ele é macio e confortável. A doutora loira se senta em uma cadeira em frente a mim.
-Eu quero que você me diga, exatamente... Como está se sentindo agora?
-Com medo.
-Muito bonito o seu uniforme, Julie!
-Obrigada.
-Eu quero que olhe pra mim! Acha que eu estou bonita hoje?
Rio da pergunta feita pela psicóloga. Ela está com as mãos nas cinturas e faz pose, enquanto eu olho para ela deitada no divã aconchegante.
-Isso é uma brincadeira ou...
-De jeito nenhum! Eu estou sendo seríssima! Eu quero que você me diga! Eu estou bonita?
-Sim!
-Gostou da minha saia? Meu marido me deu ela semana passada! - Ela diz e foco em sua saia midi floral.
-É muito linda.
-Acha que eu estou depravada? Sabe? Apesar da minha idade, eu tenho pernas lindas!
-Olha doutora, eu sei que a senhora tá tentando me animar, mas...
-Aqui tome! - Elizabeth me entrega algumas imagens - Olhe para essas mulheres, ou essas meninas! Todas estão sendo ''depravadas''. É assim, que alguns machistas dizem! Se fossem por eles, as mulheres andavam de burca! Agora, eu quero que você Julie me diga: Você me acha depravada por usar uma saia ou acha alguma dessas garotas depravadas?
Observo as imagens que Elizabeth me entregou. Olho uma por uma, e ainda consigo sentir o terror. As mãos grossas de Rafael subindo minha saia, me segurando... É como se a presença dele estivesse lá. Minhas mãos tremem de pavor e as lágrimas pulam de meus olhos.
-Não. Não, elas não... - O soluço me atrapalha de continuar e ela percebe que foi longe demais.
A doutora loira se aproxima e se ajoelha até o divã.
-Nenhuma mulher é depravada Julie! Nós temos o direito de ser quem nós quisermos! Em todos os âmbitos! Não é uma saia, - Ela pega na ponta da saia e a balança - que define o caráter de alguém! Não é a maquiagem... É a pessoa, o interior, que define alguém! E eu sei, que você pode estar se sentindo culpada, principalmente pela sua saia! Mas não se sinta! - Ela aperta minha mão e a beija, e se junta ao meu choro.
Limpamos as lágrimas e continuamos a consulta. Deixo a sala dela mais leve e tranquila e Arthur e meu pai estão me esperando do lado de fora.
-E ai, como foi? - Meu professor pergunta e me olha de cima a baixo.
-Foi bom. Estou mais leve!
-Que ótimo meu anjo! Agora vem que eu vou te deixar na escola, e depois vou trabalhar. Vem! - Roberto pega minha mão e me puxa com um pouco de pressa.
Suspiro pegando a corrente de ar do corredor e vejo Arthur se distanciando. O celular dele toca e ele para para atende-lo:
-Mãe agora eu não posso falar, eu tenho que... - O sorriso desaparece dos lábios dele - AVC? Quando!? Porque você não me ligou, mãe?! - Ele aumenta o tom de voz e olha para os lados desnorteado - Leva ele pro hospital! Chama uma ambulância! Eu to indo!
Meu pai e eu nos viramos e Arthur passa por nós com o rosto corado e as veias saltadas.
-Art... - Digo, mas ele não me escuta e passa pela porta de saída.
Após o fim da aulas, Melissa abre a porta de sua casa pra mim. Não a sua casa onde ela mora, mas a sua futura casa. A casa que o Marcus, o namorado de Carmen, comprou pra ela. A casa é pequena, e foi projetada para uma família simples. A sala é pequena e tem as paredes em tom azul marinho, com os pisos de granito em cinza. O sofás são tradicionais e cinzas e com os pés de madeira. Moderno e ao mesmo tempo fofo, como Melissa.
-Porque você tem uma casa, e ainda mora com sua mãe? - Tassiane arrisca a pergunta.
-Porque eu ainda não tenho um emprego fixo pra pagar as contas? - Ela indaga.
-Mas você trabalha com sua mãe no salão! - Felipe menciona.
-A minha mãe quer me colocar pra fora de casa! Se um dia ela casar com o Marcus, ela não me quer por perto. Acho que... Ela quer... Ter mais filhos? Ou... Simplesmente não me quer por perto pra atrapalhar.
Melissa respira fundo e se encosta no sofá.
-Igor e eu brigamos hoje de manhã. Acho que a minha aventura de aluna está perto de acabar.
Tassiane desabafa e também se encosta no sofá, atônita.
-Meu pai e minha mãe vão se separar. Mas eu não sei se meu pai ainda vai falar comigo, depois de ser tão homofóbico.
Felipe se alivia e também se encosta no sofá, respirando frustrado.
-O pai do Arthur morreu. E a minha mãe tá internada no hospital por conta de uma hemorragia.
Sou a última a se encostar no sofá. E estamos nós quatro ali: Olhando para o nada, pensando no futuro, frustrados. Perdidos. É o início de uma tempestade.
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