Não consegui dormir.
Passei horas deitada na cama com as mãos cruzadas sobre o peito,como um cadáver,apenas fitando o teto branco à frente.A lua estava cheia lá fora,e eu conseguia vê-la pela janela enquanto lançava sua luz pálida sobre o quarto.
Numa hora comecei a passar calor.Abri a janela.E não demorou tanto tempo para Sr.Tapete,o gato rajado cinza da vizinha,invadir meu quarto.De início me assustei com a sua figura peluda sobre o parapeito branco da janela,mas logo me acalmei ao ver que era o gato.
-Mas que susto,Sr.Tapete - sussurrei quando o gato pulou para minha cama enquanto meu coração desacelerava.
Ele apenas Miou e se enroscou sobre meu colo.
Fiquei acariciando seu pelo por pelo menos uma hora até eu decidir ler.Depositei o gato sobre o pé da cama o mais cautelosamente possível e fui até a estante,pegando Eragon.Abri numa página aleatória e li,li até o céu mergulhar no sombrio escuro que antecedia o amanhecer.
Quando realmente amanheceu,já estava na página cento e quatorze.
Fechei o livro e me joguei para trás.Sr.Tapete ergueu sua cabeça e me encarou com seus olhos verdes.
-Nem vem,gato.
Passei mais quase quatro horas deitada ali,ainda sem conseguir pregar os olhos até que papai bateu na porta.Sr.Tapete guinchou quando a porta se abriu e a cabeça dele brotou no vão da porta.
-Gato idiota - ele grunhiu,ainda no torpor do sono - Bom-dia,Ian.Dia de fazer compras.
-Eu sei - respondi com nem um pingo de entusiasmo.
Eu queria ficar em casa fazendo absolutamente nada.Vendo TV,talvez,esperando o sono me derrubar.Antes que pudesse negar eu já havia falado.
-Estou indo tomar um banho.
Papai assentiu e antes que eu me corrigisse já havia sumido,fechando a porta atrás de si.
Suspirei,me sentando.Olhei pela janela aberta,vendo o dia ensolarado lá fora.A parte boa era que eu não veria nenhum vampiro pelo caminho,pelo menos.A parte ruim era todo o resto do dia.
Me levantei,esticando os braços e torcendo o pescoço.Peguei Sr.Tapete no colo e o coloquei no parapeito da janela,o afugentando logo em seguida.Abri a porta e fui ao banheiro,tomando um banho rápido e escovando os cabelos embaraçados.Saí,me troquei e encontrei papai sentado à mesa da cozinha,já trocado,mas com a cara ainda amassada pelo sono.
Não sei o porque de ele acordar cedo para ir ao supermercado apenas para ficar como um zumbi.
-Acorda,senhor Albert - falei,abrindo a geladeira e pegando a caixa de leite.
Ele só grunhiu,engolindo o enorme gole de café que tinha na boca.Papai era viciado em café.Mamãe dizia que É melhor seu pai ser viciado em café do que drogas,não é?
-Quero ver se compro pilhas.O controle da TV está sem.Aquelas merdas acabaram ontem - falou rouco.
Apenas assenti,mexendo o cereal e o leite.
Acabando o café,fui ao banheiro para terminar de me arrumar.Coloquei algumas pulseiras de couro e metal e voltei para a sala.Papai estava enfiado no banheiro,escovando os dentes numa lentidão quase estressante.
-Ande logo,pai! - apressei,sentada na poltrona da sala enquanto o esperava.
Ele grunhiu algo em resposta,mas não o compreendi.
Depois disso não demorou muito para chegarmos ao mercado ainda por abrir.Papai estacionou o carro na vaga bem ao lado das portas fechadas.Ainda sequer havia aberto.
-Mas que merda - resmunguei.
-Vamos sair rápido,pelo menos - papai tentou ser positivo.
Ficamos mais vinte minutos parados dentro do carro esperando o mercado abrir.Um grupo de idosas muito parecidas parou perto da porta conversando animadamente.Quase todas elas tinham cabelos branquíssimos e os dedos e os pescoços com várias jóias que sequer combinavam.
Velhas ricas e suas manias.
Me perguntei se alguma delas seria alvo de um vampiro,e qual seria o motivo.Afugentei o pensamento logo em seguida,colocando em seu lugar a hipótese de que seu maior pecado pudesse ter sido ter derrubado chá numa conferência do Grupo de Idosas de Graylake Falls.
Eu tinha que pensar o mínimo possível em vampiros,aliás em qualquer coisa ligada à palavra sobrenatural.
Um começo ótimo era pensar em velhinhas ricas derrubando chá.Sobre toalhas de mesa brancas,de preferência.
Grande pecado.
⚪◽⚪
Abri a porta da biblioteca de Eleanor pontualmente às sete horas,como ela havia pedido.A primeira coisa que fiz foi sair do alcance da luz do sol que adentrava pelas vidraças,e a segunda coisa foi tirar a blusa que usava por cima da regata azul-cobalto.
Olhei para o balcão onde Eleanor ficava,mas a feiticeira não estava ali.
-Eleanor? - chamei rouco.
A resposta não veio,porém,a feiticeira logo apareceu de detrás de uma das altas estantes.Era a que levava a Grimorland.
Não queria voltar lá tão cedo.
-Algus - ela disse.Um sorriso fraco e cansado enfeitava seus lábios finos - Bom-dia.Desculpe fazer você se expor ao sol.
Balancei a cabeça.
-Está tudo bem - Eleanor sabia que minha aversão ao sol era fraca,o que me permitia sair durante o dia,mas não por muito tempo - Mareena está aí?
A feiticeira negou com um movimento leve.
-Não.E não achei um indício sequer de Ian.
Ian,a humanazinha imune a tudo.
Fechei a cara.
-Procuramos por horas em toda Grimorland.Ela simplesmente sumiu,e eu sinceramente prefiro assim - rebati com certa irritação na voz.
Eleanor fez uma expressão de decepção.
-Você deveria se preocupar mais com isso,Algus - falou - Não é todo dia que uma humana some em Grimorland.Uma humana imune,para completar a situação.
-Humana imune - repeti,me apoiando no balcão - Nem sabemos se ela é mesmo humana.
Eleanor se aproximou,depositando a magra mão sobre meu ombro.Encarei seus olhos roxos.Era incrível como ela agia,como se fosse minha mãe.Incrível e ao mesmo tempo estranho.
-Vou dar um jeito de descobrir isso,não se preocupe - falou,com uma decisão enorme na voz.
Assenti,lentamente.
-Não duvido,Elie.
Passei a tarde inteira enfiado na biblioteca,atolado em livros sobre seres sobrenaturais desconhecidos pela maioria e protegido da fatigante luz do sol.
⚪◽⚪
Um dia normal sem pensar em Ian Aust.
Um dia normal sem problemas.
Um dia normal.Como todos os outros.
Fiquei repetindo isso o trajeto inteiro de casa até o American Bunker.Papai ao volante parecia um tanto tenso,com a testa enrugada de preocupação.Estava assim desde ontem à noite,quando lhe falei resumidamente o ocorrido e a história sobre Ian Aust.
-Se a polícia aparecer no Bunker,estamos ferrados - falou sério.
-Eu sei - respondi no momento.
Ian não ia até a polícia.Ian ficava quieta sobre o que havia descoberto.Ian ficava normal,como se nada acontecesse.Era isso o que ela teria de fazer para me deixar em paz.Se pudesse,pediria isso de Natal.
Yara estava repousada sobre meu colo.Eu acariciava seu pelo cor de café com leite em gestos automáticos dos dedos,imersa em meus próprios pensamentos.Às vezes papai me deixava levar Yara até o Bunker,para me acalmar ou animar.Hoje era um dia ótimo para ela.
Nunca havia ficado tão preocupada assim em toda a minha vida.Nem a presença da gata me acalmava. Papai e eu éramos duas montanhas de preocupação.
Fiquei aliviada em ver a figura de Kim encostada na parede perto das portas duplas do Bunker.Digitava algo no celular com polegares hábeis.Seria bom ter alguém para conversar enquanto ficava no caixa.
-Oi,Kim - saudei,tentando não parecer uma pilha de nervos como estava por dentro assim que desci do carro e fechei a porta.
Kim levantou rapidamente os olhos da tela do celular mas logo voltou a focar o aparelho.
-Eaí - respondeu distraída.
-Bom-dia Kim - papai cumprimentou,tirando o molho de chaves do bolso e abrindo a porta.
-Bom-dia senhor Miller.
Soltei Yara no vão da porta aberta e a incitei a entrar.Me aproximei de Kim,olhando a tela do seu celular.
-O que está fazendo aí?
Kim deu de ombros.
-Conversando com um amigo - respondeu.
Revirei os olhos e entrei,enquanto Kim me seguia mergulhada na conversa virtual.
-Não é um daqueles seus amigos coreanos que fazem parte de alguma boyband qualquer,né?
Kim me fuzilou com o olhar.
-Boyband?Jung Look não faz parte de uma boyband qualquer - respondeu emburrada.
Sorri.
-Também te amo.
Comecei a ajudar papai a arrumar o American para hoje enquanto os funcionários chegavam.Eddie e Sam,os dois vampiros que trabalhavam para nós, chegaram pelos caminhos subterrâneos,como sempre,erguendo o alçapão de metal no canto da sala de bebidas.
-Bom-dia,Sam,Eddie - saudei,fechando o alçapão.
-O dia nunca é bom - Sam retrucou,batendo nas vestes para tirar a poeira e as teias de aranhas que haviam se prendi a ele nas galerias.
-Você entendeu o que quis dizer - falei,revirando os olhos.
-Aham.Claro.
-Hoje é dia de deixar o alçapão aberto,Meg - papai disse enquanto entrava na sala e puxava um engradado com cervejas malte - Bom-dia garotos.
-Senhor Miller - Eddie saudou,sombrio.
-Oi senhor.
Papai saiu,carregando a caixa de cerveja,deixando nós três na sala abafada e gélida.
-Pois bem,ao trabalho - falei,me retirando da sala.
Kim conversava com Beana,a outra única ghoul fêmea de Graylake.A conversa parecia estar empolgante,pelos gestos de Beana e a expressão de Kim.Quando me viu,a jovem ghoul acenou para mim e logo gesticulou para que me juntasse a elas.
-Megan!Caramba,não nos vemos a quase um mês! - exclamou com um sorriso radiante.Me estudou com o olhar - Nossa,está horrível.Devia passar algo nessas olheiras.
Vi Kim lhe lançar um olhar de reprova e Beana pareceu paralisar.Olhou de mim para Kim várias vezes.
-Está tudo bem? - acabou perguntando.
Beana era uma ótima companhia em certos momentos,mas em outros era extremamente irritante e excêntrica.
-Beana! - Kim repreendeu entredentes.
-O que?
-Não há nada de errado,fique tranquila - falei,com um sorriso que eu sabia ser nada convincente no rosto - Apenas uma noite mal dormida.
Uma noite mal dormida e uma humana que pode acabar com a minha vida e a vida de meu pai a qualquer momento.Acabar também com você,com Kim,eu e todo mundo,quis acrescentar.
Apenas me afastei.
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