- Vitália, pare com isso, está irritando – Rick reclama, sentado à minha frente. Paro de bater as unhas na mesa por alguns instantes, então o encaro e volto a açoitar sucessivamente na madeira. Ele bate as mãos com força na mesa e praticamente berra: – Pare, porra!
Ele não está para brincadeiras hoje. Percebo isso tanto quanto percebo o odor de vodka e cigarros vindo dele. Não é tão fora do normal, já que nós dois cheiramos a cigarros e álcool, mas geralmente nós nos damos o trabalho de mascarar o cheiro com perfumes um tanto quanto caros. Ele não fez isso hoje, além de que ele geralmente bebe só cerveja. Vodka é ruim, como o vento antes da chuva, é um mal sinal.
- O que houve? – Pergunto, sem parecer dócil ou amigável, pois ele não espera isso de mim. Seria bom se minha mãe também não esperasse.
- Nada.
- Vou ser mais clara: O que aconteceu ontem à noite?
- Já disse que não é nada.
- Não torre a paciência que eu não tenho. Nós passamos a tarde no parque do bosque, então andamos juntos até sua casa, você ficou lá e eu fui para a minha casa. Foi seu pai?
- Odeio quando você fica falando do jeito gramaticamente correto.
- Não me importo. Responda.
- Não, não foi meu pai.
- Seu irmão?
- Não, você sabe que não implico com meu irmão.
- O que foi?
- Vitália...
- Pare de cu doce e diga logo, porra!
- Tá, tá, tá bom! – Ele ergue as mãos em rendição. – Minha mãe me ligou. Ela vai vir para a cidade daqui a duas semanas.
- Para quê? – Assim como a vodka, a mãe do Rick é sinônimo de problemas.
Ele me encara e me analisa como já fez várias e várias vezes. Corre o olhar por meu rosto, por meus cabelos, pelo terço comprido sobre meu busto e para além dele – para o terreno maliciosamente obsceno que ele já conhece.
- Não sei ainda. Ela não falou. Disse que vai contar pessoalmente quando chegar – ele responde e soa como uma mentira, mas não o questiono.
Nosso relacionamento só deu certo porque nos conformamos em não saber tudo um sobre o outro. Só revelamos o que queremos revelar, no tempo em que queremos revelar. Eu respeito essa regra desde que ele não fez perguntas depois de conhecer cada milímetro de mim.
- Relaxe – falo, gesticulando com a mão que reluz por causa dos anéis. – Por enquanto, só pense que a aula de história está acabando e nós não fizemos absolutamente nada sobre o trabalho em dupla que deveríamos ter começado – sorrio. Nossas notas não são nossa maior preocupação nem de longe.
Nos conhecemos seis anos atrás. Quando eu estava no fim do quinto ano e minha mãe teve a ideia miraculosa de me colocar na escola católica do bairro. Eu fiz uma prova para conseguir a bolsa de estudos e, além de ganhar uma bolsa, como eu tinha simplesmente acertado todas as perguntas, fui adiantada para o sétimo ano. Assim fui parar na turma do Rick. Ele era o vandálico, perverso, nefasto repetente da turma e, para os professores, um caso perdido em todos os sentidos.
A “turma do fundão” é dividida em três casos: as pessoas muito altas com notas medianas; as pessoas altas com notas boas e os casos perdidos que os professores preferem ignorar. Eu estava no segundo grupo. Foi assim que eu comecei a conversar com o Rick e, não, ele não me levou para o fundo do poço – eu sei como ir sozinha e não estou lá. O lado de fora do poço é um lugar muito agradável para bater um papo com a Samara sobre produtos de hidratação para cabelos tingidos como os meus e os dela.
Enfim, eu e o Rick nos tornamos amigos e começamos a fazer trabalhos juntos. Tá bom, isso não é verdade. Eu fazia os trabalhos e colocava o nome dele. Era uma amizade comprada; eu salvava ele de reprovar e ele me fazia companhia. Antes daquilo, eu era a “estranha que tira notas boas e mete a porrada em quem incomodar”. Eu continuo sendo estranha, tirando notas boas e metendo a porrada em quem incomodar, mas pelo menos eu ter um amigo fez as pessoas pararem de ter medo de mim.
Nós começamos a sair juntos no primeiro ano do Segundo Grau. Não era um namoro, até que um dia ele me levou para o Bosque do Oeste. Não o parque; o Bosque, com corujas, ratos, árvores mortas, arbustos espinhentos, cogumelos venenosos... e roseiras gigantes. Com rosas vermelhas enormes da mesma cor que a parte mais escura de meu cabelo. Naquele dia começamos a namorar.
- Sabe – fala Rick, começando a sorrir também. –, acabo de lembrar que a próxima aula é gramática e você tem que apresentar aquele texto de terror. O que você trouxe? Uma creepypasta da internet reescrita na norma-padrão?
- É claro que não! Eu nunca me rebaixaria a esse patamar. – protesto. – Sou perfeitamente capaz de escrever minhas próprias histórias. Eu vou deixar essas patricinhas se cagando de medo e os outros debilóides não vão dormir à noite.
- Sua história só será boa de verdade se fizer com que eu não durma à noite – ele fala, sorrindo torto.
- Eu conheço outros meios de fazer você não dormir à noite, querido – devolvo o sorriso e esbarro nele propositalmente por baixo da mesa, fazendo o sorriso se abrir mais. – Mas hoje não vai dar.
Ele fica sério quando pergunta:
- Por quê?
- Porque meu irmão volta para casa hoje e eu não deixaria de receber ele para transar com você.
- Nossa, como você é egoísta.
- Não sou egoísta. Ele não é obrigado a encarar meu padrasto filho da puta e minha mãe ignorante sozinho depois de três anos no exército. Além do mais, ele não sabe que eu namoro você e não ficaria feliz se descobrisse isso desse jeito – termino de falar e o sinal bate.
- Que seja.
Rick se levanta, ainda sério. Ele empurra a cadeira em que estava sentado para perto da própria carteira e me encara, novamente passando os olhos por rosto e por meu terço, então fala:
- Hora de me surpreender, ruiva louca.
Ah, mas você vai ver quem é a ruiva louca já, já, seu debilóide com cérebro feito de fumaça.
Sorrio como uma víbora e observo a professora de gramática entrar na sala. Abro minha mochila e encontro a pasta onde guardei minhas histórias de terror – uma para cada ocasião que pudesse vir a acontecer – e tiro a folha do conto mais pernicioso dentre os três.
Ah, professora Diana, eu gosto muito da senhora, você é uma ótima professora, sinto muito por destruir a ideia que a senhora tem sobre mim, mas eu preciso muito, muito mesmo, impressionar alguém, e o efeito colateral disso pode ser que ninguém além de mim vai dormir pelas próximas duas noites. Bem, uma noite apenas, no caso do Rick. Ele já está acostumado comigo.
Espero a professora anunciar que a apresentação dos textos começou e não me voluntario até ter certeza de que todos da turma já apresentaram. Então me levanto e atravesso a sala para ficar em pé na frente do quadro negro, encarando Rick, que encostou a cadeira na parede e está com os pés sobre a mesa, uma vez que ele não faz nenhum trabalho que não seja em grupo.
Hora do show, penso, e começo a ler.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.