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História Um Ano - Janeiro.


Escrita por: Kikonsam

Notas do Autor


Oi. Obrigado por se interessar pela história! Esse primeiro conto tem como tema "slasher", espero que goste!

Capítulo 1 - Janeiro.


Os fogos de artifício do réveillon da praia de Copacabana iluminavam milhares de olhos naquela noite. Era, ali, oficialmente o dia 1º de janeiro de 2017. Ali eram feitos planos para esse ano novo que chegava. Eram feitos desejos. Era plantada a esperança por um ano melhor.

Dentre os milhares de olhos iluminados pela imensidão dos fogos de artifício, um par deles era iluminado pela tela de seu celular. E esses eram os olhos de Amanda. Com 16 anos, Amanda pouco se importava com os fogos de artifício que eram soltados. Tampouco achava que o ano novo seria uma data tão importante a ser celebrada. Mas, ali, com toda sua família hipócrita, assim como todas as outras famílias brasileiras, Amanda abraçou-os e os desejou feliz ano novo, mesmo que de fato ela não deseje em seu interior.

A luz colorida dos fogos do céu refletidos na areia da praia e o barulho estrondoso dado por eles cessou. O barulho da imensidão de pessoas conversando e gritando, pelo primeiro e único momento naquela noite, confortou Amanda, por finalmente não ser quase ensurdecida por todos aqueles estrondos em seus tímpanos.

Os ouvidos de Amanda rapidamente foram castigados por mais barulhos estrondosos parecidos como barulho dos fogos. Por um momento, Amanda chegara a cogitar que talvez esses fossem barulhos de fogos que demoraram para soltarem-se no céu. Mas, ali, ela continuou a olhar para o céu escuro da proximidade da meia-noite.

Os barulhos jamais vieram do céu.

Eram barulhos terrestres. Eram barulhos feitos por pessoas. Para machucar e matar outras. Eram disparos de espingardas.

No momento em que Amanda percebeu isso, jamais pensara em qualquer outra coisa em sua cabeça além de fugir. Correr para bem longe. Mas Amanda sempre se orgulhara pela sua sagacidade. Poucos abaixaram-se para evitar os tiros. Aqueles tiros atingiriam suas tias hipócritas das quais ela pouco se importava.

Engatinhava pela areia com aquele vestido branco que jamais gostara comprado por sua mãe. Os grãos de areia machucavam seus joelhos enquanto os pés dos saltos altos e sapatos sociais pisavam em seus dedos magros. Ninguém parecia se importar. Apenas corriam mais rápido a cada grito que se era ouvido. Amanda aprendera a ignorara os disparos que ela escutava, e pensava apenas em se proteger. Valorizava muito sua vida. Precisava preservá-la.

Chegou no calçadão clichê de Copacabana. Ali, pôde ver que não haviam mais tantas pessoas correndo. As pedras machucavam seus joelhos. A cada engatinhada, mais a cicatriz formada pelas pedras malditas do calçadão com desenhos de ondas era aprofundada. Amanda não olhava para trás, mas percebia o sangue escorrendo de seus joelhos nus.

E, de repente, algo apareceu: uma portinha. Pequena, rodeada por um pequeno muro. Mas essa era a maior chance de Amanda. Engatinhou mais rápido para a porta, atravessou-a e fechou. Ouviu mais disparos enquanto trancava-a. E, assim, deu meia volta enquanto ainda permanecia sentada no chão e olhou aonde havia entrado.

Um pequeno cômodo, com um pequeno murinho rodeando os quatro lados, e uma janela logo acima dele. Havia adentrado em uma barraca de coco da praia de Copacabana. E, ali, caído no meio da barraca rodeada de cocos gelados e freezers cheios de cerveja, deitado, havia uma forma que a lembrava um ser humano. Era um homem.

Com uma cabeça quase explodida. Seus olhos estavam desfigurados de seu rosto, presos por apenas alguns fiapos de carne que os ligavam até o interior de sua cabeça. Sua boca estava destroçada, com sangue. Era impossível identificar onde começava e onde terminava sua cavidade bucal. O sangue de seu rosto era respingado por toda a barraca. Nas paredes, nos freezers cheios de cerveja, nos cocos, e nas pernas de Amanda.

O grito de horror de Amanda jamais saiu. Apenas olhou apavorada para aquela pessoa morta no chão, enquanto passava a mão nas cicatrizes que sangravam em seus joelhos.

Ele tinha uma família. Tinha pessoas que se importassem com ele. Trabalhava honestamente vendendo coco no calçadão para poder sustentar seus filhos. Ele era uma pessoa. Assim como Amanda também é.

Nesse breve momento, pensou em sua mãe. Sua mãe que ela abandonou no meio da praia para salvar a própria pele. O remorso tomou conta. Amava sua mãe. Ela queria fazer de sua filha algo que a própria não queria, mas ainda assim a amava como nunca amou outra pessoa. Mas, no momento em que ela saiu para se salvar não pensou em quanto amava a mulher que lhe deu a luz.

Sua mãe poderia estar no mesmo estado desse homem caído da forma mais horrível que já vira antes. Poderia estar bem. Poderia estar escondida assim como Amanda está, mas ela jamais saberá. E logo quando as últimas palavras que Amanda havia dito para sua mãe, pouco antes da virada do ano, eram que ela não passava de uma vadia controladora.

O barulho das pessoas correndo e dos disparos se sobressaiu ao Amanda ouvir a maçaneta da portinha que ela acabara de abrir se mover e tentar abrir. Alguém tentava abrir a porta. Não conseguiu da forma natural, então só restava suplicar. As batidas de mão na portinha foram sobressaídas por gritos.

- Por favor, abra! – Amanda ouvia os gritos com voz de mulher. – Por favor, eu estou sozinha, eles estão atirando para todos os lados. Por favor!

Isso não era do feitio de Amanda. Mas ela decidira que já fora suficientemente egoísta pelo ano inteiro, portanto precisava convencer para si própria que era uma boa pessoa, apesar de que o fato dela deixar a moça entrar na barraca pouco provava que ela era uma boa pessoa logo após ter matado sua família inteira para pensar apenas em salvar sua própria pele.

Amanda gira a chave, e a porta é instantaneamente escancarada, e mais rapidamente ainda fechada, para evitar que qualquer um perceba o que ocorreu.

Amanda presta atenção na menina que pulou par dentro da barraca, e olha para sua calça branca com sua blusa dourada, seus cabelos cacheados cobrindo sua pele negra. A garota olha apavorada para Amanda, enquanto ainda está deitada.

- Obrigada. – Fala a menina, as lágrimas escorrendo de seus olhos por suas bochechas. – Muito obrigada.

- Só fiz o mínimo. – disse Amanda.

- Me chamo Renata. – fala a garota.

- Amanda. – diz ela.

- Eu diria “prazer”, se não tivéssemos nos conhecido nessa situação. – fala Renata, sentando-se com as pernas cruzadas.

Amanda sente-se confortável com Renata ali após essa frase. Mostra o quanto ela é realista com as situações, e isso é algo que Amanda valoriza. É algo que ela quer em uma pessoa, que faz com que alguém entre no parâmetro de alguém decente.

- Igualmente. – responde Amanda.

Renata demorou até perceber o corpo morto e estraçalhado no chão perto dela. Só quando sentira o sangue pegajoso no chão fora capaz de olhar ao redor da barraca e ver o corpo quase decapitado.

Sua reação se assemelhou à de Amanda. Apenas um olhar espantado com uma expressão de choque. Um lve transe diante da cena horrenda que ela presencia. E isso faz com que Amanda tenha ainda mais empatia por ela.

O silêncio absoluto se faz. Os gritos e barulhos de espingardas desaparecem aos poucos, e as duas meninas se veem em meio ao silêncio da noite de um ano recém inaugurado.

- Acabei de perceber que você pode ser a última pessoa que eu conheço. – fala Renata.

- Eu já pensei nisso. – Responde Amanda, que de fato passou por sua cabeça o fato de Renata poder ser a última pessoa que ela torne a conhecer.

O silêncio se faz. Aproximadamente cinco minutos com o abafado de som, antes que Renata torne a falar:

- Bem, acho que não faz mal eu falar um pouco sobre minha vida, né? Afinal, posso morrer daqui a algumas horas...

-Verdade. – Responde Amanda, secamente.

- Bem, eu moro no Méier, tenho 18 anos, e estou no primeiro ano do curso de Publicidade na UFRJ. Tenho uma filha de 3 anos. Mas ela tá passando o ano novo com o pai em Angra.

- Quem é o pai? – Pergunta Amanda, pensando alto.

Jamais agira assim. Sempre se orgulhou de saber medir as palavras. Mas a incerteza de sua morte ou de sua vida a fez repensar a forma como se comunica com as pessoas. E esse momento não é o melhor para contornar perguntas que ela deseja fazer.

Renata excita um pouco. A forma como Amanda fora direta em relação a uma pergunta que ela acreditara ter deixado nas entrelinhas que não se sente confortável em falar sobre a assustou. Mas relevou, e respondeu:

- Eu o conheci na escola com 14 anos. Tivemos um namoro e eu engravidei. Éramos muito jovens para nos casarmos, então deixamos como estava. O namoro terminou e agora temos a guarda dividida de Erika, nossa filha.

- Deve ter sido difícil... – Observa Amanda. – Engravidar com 15 anos. Quer dizer, as pessoas falam, né? Não é algo que é muito bem visto pela maioria.

- Você não faz ideia... – falou Renata. – Pra evitar estresse durante a gravidez, decidi por me mudar para casa do pai da menina. Lá em casa meus pais só sabiam dizer o quanto eu os decepcionei e toda essa baboseira de sempre.

Renata faz uma pausa. E Amanda não fala mais nada.

- Mas ser mãe é uma benção. – fala Renata depois de alguns minutos em silêncio. – Não amo nada nem ninguém como eu amo minha filha. Ela é a luz da minha vida. O tempo que ela passa com o filho da puta do pai dela é uma tortura para mim. Nesse momento só queria abraçar ela mais uma vez, sabe? Dizer quanto a amo. Sei que ela ainda é muito novinha para entender ou dar valor a isso. Mas quero sentir que não deixei passar nenhum segundo para expressar o quanto ela é importante pra mim.

As lágrimas no rosto de Renata aparecem mais uma vez. Ela está em sofrimento. E Amanda consegue se relacionar com isso. O sofrimento. Não da mesma forma de ter a incerteza se verá novamente sua filha, mas sim no contexto geral de sua vida. Um sofrimento interno. Silencioso. Que está ali, mas ninguém sabe, vê, ou ao menos se importa de ver. Um sofrimento eterno.

- Eu não me despedi de minha família. – desabafa Amanda. – Simplesmente me agachei e engatinhei à procura de algum lugar. E encontrei aqui. Fui totalmente egoísta com todos. Com minha mãe, que eu amo; com minhas tias, que, mesmo sendo falsas escrotas, ainda estão ali e eu cresci conhecendo-as.... É. Eu as abandonei.

- Mas você tinha que se salvar. – fala Renata, prontamente, ainda enxugando as lágrimas de seu rosto. – Eu entendo isso.

Amanda se sentiu bem. Renata a estava fazendo se sentir bem. Nunca ninguém antes havia feito isso com ela. Por isso ela se sentiu bem para desabafar o que veio à seguir:

- Obrigada. É difícil achar alguém que me entenda. Sei que pode soar muito como aquele clichê da “adolescente rebelde que os pais nem ninguém jamais a entendem”, mas ninguém realmente me entende. Sou a estranha da família. Sou a estranha de minha escola. Sou excluída, sem amigos, apenas aquela escrota que senta no fundo da sala com um casaco preto e fones de ouvido escutando heavy metal a aula inteira. Deus, eu não consigo compensar nem com minhas notas. Minha mãe fica no meu ouvido o tempo todos. Reclamando, reclamando de como eu não consigo alcançar quaisquer expectativas dela. Isso me destrói. É. Me destrói de dentro pra fora. Talvez seja por isso que eu tenho essas cicatrizes no meu pulso. Talvez seja por isso que já tentei deliberadamente me afogar. Estou constantemente sofrendo por que ninguém, ninguém mesmo, m entende. Nem se preocupa em compreender.

Amanda percebe que as lágrimas haviam acabado de escorrer de seus olhos pelas suas bochechas no momento em que acabou seu monólogo.

Renata olhou para ela com olhos assustados, mas compreensíveis. E isso confortou Amanda. Jamais alguém olhou para ela desse jeito.

- Eu sei como se sente. – falou Renata, após um momento de silêncio. – Eu me senti assim durante toda minha gravidez O mundo estava contra mim. Ninguém me entendia. Eu também tenho cortes nos pulsos pra provar isso.

Nesse momento, Renata levanta lentamente seus braços com pulseiras brilhantes e as tira de onde estavam, revelando cicatrizes em seus pulsos. Cicatrizes de navalha bastante afiadas. Amanda consegue reconhecer esse tipo de cicatriz em qualquer lugar.

- Às vezes. – continua Renata, abaixando o braço e se deixando chorar. – O mundo nos dá as costas, e simplesmente não sabemos como reagir. Apenas concordando com ele e nos machucando também.

Amanda se identifica. Se identifica com tudo que Renata fala. Sente, ali, nesse momento inoportuno, com assassinos querendo mata-las, que tem alguém junto com ela.

Mas, naquele momento, percebeu que o fato de ter querido salvar sua pele é um indício do quanto ela ama viver. O mundo lhe dá as costas, mas ela também dá as costas ao mundo. E quer viver. Nem que seja sobrevivendo. Mas ela quer. Quer estar ali, e quer continuar viva. E por isso que ela mudou drasticamente de assunto:

- Precisamos nos salvar. – fala ela, prontamente.

- O que? – perguntou Renata, sem entender a bruta mudança de assunto.

- Eu amo minha vida. Mas pelo visto o resto das pessoas não compreende o quanto eu amo. Por isso estamos aqui a horas, com esse silêncio absoluto, sem entender o que está acontecendo, nem ninguém vem nos salvar. Precisamos arranjar um jeito de sair daqui. Agora.

Amanda olha para o rosto pensativo de Renata e se pergunta o que pode estar passando na cabeça dela. O que pode ser que ela considere, se acha Amanda louca, ou se simplesmente pode estar pensando que a ideia de sair por conta própria desse inferno é algo válido. Mas os pensamento de Amanda acerca do que Renata pode estar pensando são interrompidos por uma fala de sua companheira de cativeiro.

- Vou olhar o twitter! – exclama Renata, tirando o celular do bolso da calça e mexendo nele freneticamente.

- Oi? – exclama Amanda. Não sabe o que pensar. Num momento desses alguém pensa em olhar uma rede social. Nessa fração de segundo passou, sinceramente, a reconsiderar seus pensamentos e todo seu julgamento sobre Renata.

- Sim, nos Moments! Com certeza estão falando desse massacre no ano novo de Copacabana. – Falou Renata, abrindo o Twitter no celular. – A gente pode usar umas informações.

Ok, nesse momento ela passou a considerar novamente todos os julgamentos já formados acerca de Renata.

- Genial. – falou Amanda, apenas se aproximando da colega e olhando seu celular. – Mas por que não pensamos nisso antes?

- Por que talvez nós achássemos que iríamos morrer, de qualquer forma. – fala Renata, olhando bem fundo nos olhos negros de Amanda. – Mas eu percebi que não. Não vale a pena desistir. Nunca vale.

Amanda se instiga pelo que ouve Renata falar. Quer sair dali. Nunca sentiu tanto amor por sua vida antes. Agora ela pode lutar por ela.

- Achei! – falou Renata, olhando para o celular em uma manchete expressa, seguida por uma notícia:

 

“Massacre em Copacabana é o maior da história do Brasil.”

 

Já foram confirmados mais de 500 mortos e 700 feridos no que se tornou o maior massacre da história do Brasil, que sá do mundo.

Um ataque terrorista organizado por um grupo desconhecido formado por mais de 100 pessoas com espingardas e facões marcou eternamente a noite de ano novo da praia de Copacabana. Nada se sabe sobre o grupo, nem tampouco acerca de seus ideais nem as motivações que cercam os seus integrantes. Centenas de reféns ainda estão mantidos nos parâmetros do calçadão.

Especialistas afirmam que o grupo organizara-se bastante previamente, com todos os detalhes do ataque planejados, provavelmente, à meses.

Só nos resta rezar pelos que ainda estão mantidos reféns, e apoiar as forças armadas que ainda estão auxiliando para libertação dos mesmos.

 

 

Amanda estra em choque. Sente as lágrimas caindo de seus olhos novamente. 500 mortos? 700 feridos? Centenas de reféns?

Será que elas são mais reféns, será que estão se enganando esse tempo todo achando e pensando que estão de fato escondendo-se desse grupo imenso de pessoas que espalham o terror pelo calçadão? Podem estar vigiando-as nesse momento. Vigiando-as enquanto acham que estão por cima, que jamais serão encontradas por que estão em uma barraquinha de praia com um homem destroçado à sua frente. Amanda se sente impotente. Vulnerável. Sempre orgulhou-se de ser uma pessoa que sabe esconder e controlar seus sentimentos, mas nesse memento não passa de uma desesperada. Uma desesperada por uma resposta. Uma desesperada por um sossego em meio a essas horas e horas sentada em sangue podre e velho de um desconhecido. Quer sair dali. Quer correr e correr até atingir um campo aberto onde pode ser livre. Quer de fato viver. Não pensa. Não raciocina. Só quer correr.

Amanda levanta. Está de pé. Qualquer um do lado de fora da barraca, nesse momento, pode vê-la. Mas ela não liga. Só quer sair. Renata olha para ela com uma face de susto. De desespero de quem pode ser descoberta. Mas Amanda jamais chegara a olhar para o rosto de sua colega de cativeiro. Apenas correu. Tirou a tranca da portinha e saiu correndo para o calçadão de Copacabana.

Tudo vira um borrão claro quando Amanda percebe que o céu está a amanhecer. Nesse momento ela percebe a quanto tempo está lá dentro. Provavelmente mais de seis horas seguidas. Seus olhos queimam a medida que ela sente mãos segurarem seus ombros. Vira-se, e seus olhos começam a se acostumar com a claridade na medida em que ela olha para o rosto suave de Renata, que fala algo para ela, com um rosto assustado, mas Amanda não consegue identificar. Apenas balança a cabeça enquanto sente seus cabelos serem levados pelo vento da brisa do mar.

- Você está bem? – ela ouve, finalmente, um frase que sai da boca de Renata.

Amanda apenas balança a cabeça em concordância enquanto finalmente consegue identificar o calçadão em formato de onda de Copacabana. Vazio.

- Está tudo vazio. – Observa ela, ainda um pouco grogue.

Amanda anda um pouco, com Renata logo atrás dela, enquanto observa o calçadão e toda a beleza da praia que ela simplesmente esquece de apreciar. Continua a andar enquanto sente o vento bater em seus cabelos e seu vestido branco. Olha para trás e vê claramente Renata fazendo o mesmo que ela. A apreciação do calçadão não é algo que muitos cariocas costumam fazer.

Amanda para, e se vira para a praia. Olha aquela imensidão do mar enquanto aprecia a beleza do nascer do sol. Ela, particularmente, sempre preferiu mais o nascer do que o pôr do sol. O nascer, para ela, proporcionava sensação de esperança de mais um dia. De um futuro que ela pudesse fazer a diferença. Apesar de, todo dia, jamais suas esperanças corresponderem à sensação que sente ao ver o sol raiar.

Entra em êxtase vendo o espetáculo da natureza. Entra em êxtase ao ver tudo aquilo que o mundo proporciona e ela jamais pensara em considerar. Algo que ela esquece que existe, algumas vezes.

- É lindo. – fala Amanda, enquanto abre os braços. Naquele momento ela simplesmente esquece de tudo que está acontecendo. Esquece do massacre, esquece de sua família, esquece até que é ano novo. Esquece tudo. Pensa, ali, que tudo está bem. Simplesmente tudo está bem.

- Sim. – Amanda ouve a voz de Renata concordar às suas costas. Não se vira. Não pensa em se virar para olhar Renata. Apenas fecha os olhos e abre os braços, sentindo a brisa do mar balançando seu vestido branco e embaraçando seus cabelos.

Talvez, se naquele momento, naquela fração de segundo, Amanda tivesse apenas pendido sua cabeça um pouco para o lado, ela poderia impedir o que viria a acontecer. Algo que, de primeira, ela não entendeu. Apenas sentiu uma mão pressionar um pano com um cheiro muito forte em sua boca e nariz.

Não esboça nenhuma reação. Apenas se sente fraca. E leve como uma pena. Desce, lentamente, caindo. Cai num buraco sem fim enquanto sente seu corpo ser segurado por alguém. E desaparece. Apenas dorme. E some do mundo.

Em seu sono forçado, ela sonha que tudo aquilo não passava de um pesadelo. O pior pesadelo que ela já tivera em sua vida. E naquela manhã que viesse depois desse pesadelo, ainda seria dia 31 de dezembro de 2016, e, naquela noite, o ano novo seria em paz.

Mas não.

Suas sensações voltaram à aflorar aos poucos. A areia em sua perna e seus braços foi a primeira coisa que conseguiu sentir. Estava sentada na areia. Suas mãos, amarradas por cordas. A dor do sangue não circular de forma apropriada pelos seus braços era algo que ela sentia intensamente. Assim como em seus tornozelos. Simplesmente sentia uma dor inigualável enquanto os grãos de areia roçavam em sua perna.

Sente a luz do sol queimar seus olhos novamente. Mas a silhueta à sua frente é mais vívida do que qualquer luz que queime seus olhos. Reconheceu instantaneamente sua companheira de cativeiro, Renata, de pé na areia da praia, olhando para ela de cima para baixo, com um leve sorriso em seu rosto. Mais pessoas estavam ao seu lado. Muitas pessoas. De pé. Olhando Amanda.

- Pode acordar, Bela Adormecida. – fala Renata, olhando para Amanda.

- Mas... O que... – Amanda balbuciou falar expressões que dissessem que ela não compreendia o que acontecia naquele momento. Mas Renata a interrompeu:

- Vamos pular a parte que você não sabe o que está acontecendo e vamos logo ao ponto. – falou Renata, e Amanda percebeu que ela segurava uma pistola em sua mão. Visualizou Renata andando de um lado para o outro na areia, enquanto começava seu discurso: - Sabe, Amanda, você é inteligente. Eu percebo essas coisas nas pessoas. E você não tem nada de besta. Você é esperta. Sagaz. Dá pra perceber isso. Mas você foi incapaz de perceber que eu, que passei a noite inteira ao seu lado, não passava de uma integrante do grupo que lançou o “Massacre do ano novo em Copacabana”.

Amanda não crê no que vê. Apenas olha desacreditada enquanto os outros que estão em volta de Renata gargalham. E, então, Renata continuou:

- Sabe, nós nos organizamos para cada um estar em certo perímetro da praia, e aí cada um de nós iria ser encarregado de massacrar as pessoas que estivessem no perímetro. E você estava no meu, Amanda. Mas você me chamou a atenção. Enquanto todos corriam desesperados, você se abaixou e engatinhou a procura de abrigo. Isso que aguçou minha curiosidade. Tanto que, depois de matar uns 10, eu simplesmente me agachei e fui até você. E você caiu feito um patinho! E, assim, descobri que você seria perfeita para causa.

Amanda fica sem entender. As lágrimas em seus olhos caem de novo, por mais que ela tente segurar. Queria mostrar confiança. Queria mostrar que era maior do que aquilo. E Renata continua:

- Mas, por que, você pergunta? Bem, somos todos quebrados, Amanda. – Renata aponta para as pessoas que estavam em pé à sua volta. – Quebrados pelo governo. Quebrados pela família. Por essa sociedade de merda que vivemos. Simplesmente rachados. Nossos pedaços jamais vão se juntar novamente. Mas podemos impedir que isso aconteça com outros. Por isso fizemos isso. Por isso queremos esse tipo de atenção. O mundo todo está noticiando o “Massacre de Copacabana”. Sabe, você se surpreenderia com a quantidade de gente quebrada por esse país. Não são poucas. A diferença é que agora não vamos mais sofrer em silêncio. Vamos agir. Mais de dois anos planejando isso. Cada detalhe. Cada coisinha que pudesse dar errado, nós planejamos e nos precipitamos. Aquela história triste que lhe contei, sobre minha filha, ela não é mentira, por mais que, nesse momento você tenha todos os motivos para pensar que tudo que eu lhe falei era mentira. Por isso você é perfeita. Você é rejeitada, Amanda. Assim como todo nós. Você é quebrada. Por isso, aqui, agora, lhe convido para entrar no grupo. E, assim, revolucionar esse país, esse mundo.

Amanda para. Absorve lentamente cada palavra que Renata disse. É muita coisa de uma só vez. A verdade é que Renata não está errada. Amanda é quebrada. É rejeitada e sente que está sozinha no mundo. E isso a faz considerar a proposta. O mundo está fodido. Pessoas são injustiçadas diariamente. Precisa-se de uma mudança. E, pelo visto, essa mudança está dando muito certo.

Mas Amanda pensa novamente. Era só uma questão de tempo até o governo acionar o exército, se é que não já acionou. Isso tudo iria acabar. Não importa o quanto eles se prepararam, agora iria acabar. E as pessoas iriam somente focar na forma como eles massacraram centenas de pessoas numa praia mundialmente conhecida. A controvérsia dos meios iria ofuscar o fim supostamente nobre.

Mas Amanda sabia que não sairia viva dali se não concordasse com o que Renata acabou de falar. A pistola na sua mão não estava ali por acaso. Então, Amanda utilizou o que chamou a atenção de Renata nela: a inteligência.

- Ok. – falou Amanda, apenas.

- Ok? – perguntou Renata, sem entender direito.

- Sim. – responde Amanda, friamente. – Eu concordo com tudo isso. Esse mundo está uma zona. Não podemos deixar isso ir adiante. Temos que agir. Agora. Você está certa, Renata. Vocês todos, dessa causa, estão certos.

Amanda olha a expressão facial de alívio de Renata. Ali, ela vê que ela provavelmente era desacreditada por querer trazer uma vítima para dentro do grupo. Aquilo talvez não fosse algo que os outros concordassem. Então, Amanda vê Renata virar-se para seus colegas do grupo e falar:

- Soltem ela.

Sem pensar duas vezes, os dois homens pegam facões que eles, de alguma forma, esconderam na calça, ajoelham-se, e logo soltam Amanda.

Amanda levanta-se.  Sente a areia em seus pés e o sangue voltar a circular livremente. Sente-se forte.

Amanda abre os braços. Renata também. Elas se abraçam. Um abraço forte e caloroso. Amanda de fato sentiu que talvez fosse sincero.

Mas a rapidez de Amanda pegou todos de surpresa. A pistola na mão de Renata, de repente, foi puxada de sua mão. Assim, naquele momento, Amanda estava com a pistola na mão. E não excitou em puxar o gatilho.

Dessa vez não houve borrão. Apenas viu o sangue se espalhar na roupa dourada de Renata do lugar onde localiza-se seu coração. Assim, Renata caiu na areia da praia. Conseguiu visualizar, ali, sua dita colega de cativeiro morta.

Não excitou em puxar o gatilho mais vezes. Atirando para todos os lados. Acertando quem fosse. Mais de dez pessoas.

Mas uma, apenas uma, fora capaz de acabar com o que Amanda estava a fazer.

A única mulher em pé, que Amanda ainda não havia atirado. Uma mulher mais velha, com idade de, provavelmente, ser sua mãe. Com um revólver na mão apontado diretamente para Amanda, mas que já havia sido usado. Jamais descobriria quem era aquela moça, nem por que ela estava quebrada. Apenas olhou para ela, com aquele rosto um pouco enrugado e a arma apontada ainda para ela, essa mulher mudaria a vida de Amanda de formas que ela jamais saberia. Amanda olha para baixo, vendo claramente o contraste do vestido branco que sua mãe comprara com o sangue que escorria nele.

Mas ela ainda tinha forças para puxar o gatilho pela última vez.

O som a ensurdeceu. Pela primeira vez a ensurdeceu naquela manhã, mesmo depois de ter disparado diversas vezes. Amanda estava surda do som do tiro. Ali, ela visualizou a mulher cair na areia da praia, morta.

Amanda estava sozinha. Provavelmente mais pessoas do grupo apareceriam em breve. Mas ela estava fraca demais para pensar demais nisso.

Saiu andando lentamente. A imensidão azul do mar estava cada vez mais próxima. Amanda não sabia como conseguia dar mais passos. Conseguia sentir o sangue que escorria de seu vestido bater em seus pés. Naquele momento, Amanda sentiu a água do mar batendo em seus pés, lavando o sangue quente.

A água fria da praia de Copacabana a lavou. Lavou de formas inexplicáveis, à medida que ela ia adentrando ainda mais no mar. Em certo ponto, a água estava em sua cintura. Atingiu o ferimento da bala que ela havia acabado de tomar.

As forças acabaram. Amanda não conseguia enxergar nada além da luz do sol, que também batia em sua pele. Deixou-se flutuar pelo mar do Rio de Janeiro. Deixou seu corpo ir.

Assim, Amanda viveu eternamente na imensidão azul, boiando para longe, para um lugar onde ninguém vivo jamais consegue compreender qual a dimensão de onde ela foi parar.


Notas Finais


Obrigado por ler! Próximo conto sem previsão de entrega, mas adianto que terá uma temática sobre lobisomem. Comente suas impressões! Até a próxima ;)


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