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História Uma Estadia no Inferno - Capítulo único


Escrita por: MidoriShinji

Capítulo 1 - Capítulo único


Cigarros apagados e queimados até o fim transbordavam do cinzeiro como um oceano. As cinzas haviam sido levadas pelo vento, e estavam agora espalhadas por aquele minúsculo apartamento-quarto, em algum lugar que jamais poderia encontrá-las novamente. Era a primeira noite de lua minguante, que estava quase toda encoberta e permitia que apenas um filete prateado iluminasse a noite. A fumaça do cigarro que ardia em seus dedos dançava pelo ar gelado e aquecia sua pele enquanto não estava tragando-o.

A essa altura da madrugada, o mundo era silêncio ensurdecedor, e parecia esmagá-lo. Pain Sato era apenas uma única pessoa nesse mundo, e ainda sim, sentia-se menos que isso, uma metade que não pode mudar nada. Uma metade que era uma falha e que não era boa em nada, e estava apenas vagando por aí em um emprego desprezível, uma rotina desprezível, uma vida desprezível. Despedaçado entre escolhas, sentia que estava desapontando a criança que fora. As ilustres figuras do Incidente Kotoku, com quem dançara noites e noites a fio, estavam agora esquecidas sobre sua mesa, embaralhadas como cartas de baralho. O projeto de uma vida inteira, de revisitar o século das revoluções com a mais soterrada delas, estava agora parado e ameaçado de cancelamento. O imperador mudara, mas o Império permanecia, e falar daqueles que tentaram derrubá-lo não poderia trazer outros resultados, pensou por fim. No momento, o único sonho que tinha era que amanhecesse de uma vez.

Estava andando em círculos novamente no apartamento. Um vento gélido entrava pela varanda; estava nevando há tempo suficiente para que o chão estivesse tingido de branco. Decidiu sair de casa, vestindo por cima um casaco já surrado, não podia mais ficar ali. Aquele ambiente estava ficando cada vez mais insuportável de tão quente, mesmo que o aquecedor estivesse desligado e a porta para a varanda aberta. Se ficasse mais tempo ali, era capaz de jogar todas as pesquisas fora, antes mesmo de obter uma resposta definitiva sobre seu futuro.

Saiu pelas ruas desertas andando perdido. Acabou encontrando por um mero acaso um parque decadente e abandonado, com um único banco solitário, que não estava coberto de neve. Não havia postes de iluminação por perto, e por conta disso a única coisa que era visível era a silhueta do banco, e por razões que não compreendia, sentiu-se impelido a sentar-se.

— Um tanto tarde para um passeio num parque abandonado.

A voz que falou consigo o surpreendeu, pois imaginava estar sozinho. Na verdade, ao seu lado estava sentada uma mulher, e ele apenas não havia percebido sua presença silenciosa ali. O vento fazia com que seu cabelo tingido de azul voasse, ainda que estivesse parcialmente preso pela touca acinzentada. Ela já estava ali há mais de uma hora, remoendo à meia-luz as palavras do livro que trazia, enquanto tentava pôr em ordem suas ideias. Era no mínimo incomum que outra pessoa passasse por ali e resolvesse se sentar naquele banco decadente.

— Desculpe, não tinha percebido que você estava aqui, eu... — ele falou, de maneira confusa.

— Não precisa ir embora. — a mulher respondeu, fechando o livro que lia. Na capa, o ruivo pôde ler mesmo com a pouca luz o título "Uma Estadia no Inferno" — Noite ruim?

— É, acho que sim. — Pain desconversou, dando de ombros — A sua também não deve estar das melhores, para estar lendo poesia simbolista nesse escuro.

Ela sorriu, de maneira quase desafiadora. — Se você conseguiu ler, então não está tão escuro assim. Além do mais... Não é nada tão ruim assim, todo mundo tem lá seus problemas e inseguranças. Eu só... Não queria ficar em casa. Gosto da neve, mesmo minha opinião sendo contrária a do Simbolismo.

— Como assim?

— No Simbolismo, a brancura está associada à pureza, à elevação do espírito. O que é bom é branco, o que é ruim é negro, sombrio, obscuro. Não acho que seja assim. A neve é branca, e é linda, mas também é morte, o inverno. As plantas, quando não recebem luz do sol, embranquecem. Os cadáveres empalidecem logo após a morte, pallor mortis. — a garota explicou, de maneira pausada — E a escuridão às vezes pode ser conforto, a noite.

— Sabe, você leva jeito para ser escritora, não sei. Isso é mesmo uma ideia muito bonita.

Ela deu de ombros. Não sabia exatamente como responder àquilo: escrevia, sim, mas se podia ser uma escritora de fato, ficava à cargo da editora decidir ao publicar seu manuscrito ou recusá-lo, e a resposta viria ainda até o fim do dia. Era o compromisso de um rótulo que não sabia se poderia assumir ou não. — Eu me arrisco. Escrever ajuda, e minhas melhores ideias vieram quando estava nesse banco, por isso estava aqui.

Ao redor deles, a neve continuava a cair, em flocos cada vez maiores. Tirando do bolso do casaco um maço de cigarros e um isqueiro, Pain puxou um cigarro e parou, antes de acendê-lo: — Se importa se eu fumar?

— De maneira alguma.

Permaneceram em silêncio por ainda alguns bons segundos, enquanto ele dava a primeira tragada no cigarro. Fumar era apenas um péssimo hábito que havia desenvolvido na adolescência: a nicotina passa a fome, e acalmava. Em um momento desses, precisava mesmo se manter calmo, ou acabaria cometendo uma besteira antes mesmo de saber se sua pesquisa seria mesmo cancelada ou não. Foi apenas aí que tornou a se lembrar dessa fatídica decisão; por um momento, havia se esquecido dela, e agora que se lembrara parecia que iria explodir se não dissesse nada. Estava tão próximo de estourar quanto a chama de queimar seus dedos. — Eu sou historiador. Meu projeto de vida, uma pesquisa em detalhes sobre o Incidente Kotoku, está para ser cancelado porque desagradaria o Império.

— Eu sinto muito. É mesmo uma resposta definitiva? — ela questionou.

— Ainda não me deram uma resposta.

— Então ainda existe esperança. — a recusa não era sua desconhecida. Precisara ser recusada para que finalmente aceitassem olhar seu trabalho. Talvez não quisessem publicá-lo, ainda sim... Mas a derrota amarga mais quando se sabe que não se fez tudo que poderia ser feito.

Aquela resposta o surpreendeu muito mais do que imaginava. Talvez por que, durante todo esse tempo, tivera como certo seu fracasso. Talvez ainda houvesse como salvar esse projeto. Subitamente, sentiu uma estranha gratidão em relação àquela mulher, que não fazia ideia do seu sentimento que parecia transbordar. Talvez de fato transcendesse apenas a gratidão. — Obrigado. Mesmo, você nem imagina. Aceita tomar um café?

— Eu nem sei o seu nome, senhor historiador misterioso. — ela ironizou, rindo.

— Pain Sato. Mas eu também não sei o seu, acho que agora você me deve essa.

— Konan Shimizu.

— Tenho a impressão de já ter ouvido seu nome antes.

— Eu já consegui publicar um artigo em um jornal há uns dois anos. Me impressiona que você se lembre disso.

— Você ainda não aceitou meu convite. — ele falou, estendendo a mão. Konan aceitou a mão, levantando-se do banco. O horizonte começava a clarear, anunciando a chegada da manhã, mas a lua minguante permanecia alta no céu de inverno.


Notas Finais


"Uma Estadia no Inferno", que dá título à fic, é um livro do Rimbaud, que é meu poeta favorito. O Incidente Kotoku, aqui referido, foi uma conspiração anarquista para tentar matar o imperador Meiji, mas que na verdade os acusados eram inocentes e foram perseguidos politicamente (mais informações: https://pt.wikipedia.org/wiki/Incidente_K%C5%8Dtoku).

Um drabble meio ????. Sei lá.


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