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História Uma Vez Mais - Revelações


Escrita por: RafaelaRuna

Notas do Autor


Hey, pessoal!
Antes de mais nada, quero agradecer pelos novos favoritos e pelos comentários de vocês! Significam muito para mim :3
Apesar de ter demorado um pouco mais do que o planejado, e estar trazendo um capítulo mais longo que o planejado também, quero compartilhar minha felicidade com vocês. Estou amando demais escrever essa fic <3
Aqui as coisas começam a ficar românticas e assustadoras ao mesmo tempo. Ênfase no "assustadoras".
Espero que apreciem!
Boa leitura ^o^
Kisses :***

Capítulo 3 - Revelações


Após Shaka lhe pedir que fosse o ouvinte dele, Ikki abandonou a postura defensiva e deixou os punhos fechados relaxarem. Olhava o mais velho com os olhos semicerrados, reconhecendo a aflição pela qual o outro estava passando. Tentava apurar algo no semblante etéreo do cavaleiro de ouro, porém este muito pouco revelava.

- Eu realmente gostaria que Athena não tivesse escolhido você para ser o meu fardo, digo, única companhia nesses dias. – Zombou Shaka, se esforçando para não rir. – Mas já que é você, não tenho escolha a não ser dividir com o infame Ikki de Fênix o que venho passando.

- Por que não foi falar com um dos seus respeitáveis colegas de Santuário? – O leonino retorquiu o tom desdenhoso do outro, embora com certo humor. - Saori disse que ressuscitou você e os demais cavaleiros de ouro há alguns dias.

- Porque eles possuem uma fraternidade que, às vezes, chega a ser irritante. Contar algo a um é o mesmo que contar a todos. – O loiro explicou, passando os dedos por uma mecha de cabelos desalinhada. - Prefiro descrição.

- Então fale logo! Eu não tenho o dia todo! – Ikki tentou camuflar sua curiosidade apelando para seu temperamento forte.

- Educado como sempre... – Shaka bufou, pronto para dar início à sua narrativa.

Apenas para situar o mais jovem, o loiro descreveu as circunstâncias que o permitiram alcançar o Oitavo Sentido três anos antes. Ikki somente assentiu, quase entediado, uma vez que já conhecia aquela história detalhadamente graças aos cavaleiros de bronze.

Os dois cavaleiros jaziam sentados na entrada da sexta Casa, atrelados à conversa que, para a sua própria surpresa, conduziam pacificamente. O clima de desentendimento de minutos antes fora substituído por um mais suave, menos explosivo.

- Após nossos sacrifícios no Muro das Lamentações, eu e os meus companheiros de Santuário tivemos nossas almas guiadas para um descanso final, de acordo com nossas ações em vida. – O virginiano explanava com invejável desenvoltura. Parecia ser um encantador de palavras nato, capaz de seduzi-las como amantes mesmo em suas frases corriqueiras e que não lhe pareciam elaboradas.

- Você deve ter ido para um dos Seis Mundos. – O cavaleiro de bronze comentou sem muita pretensão, quase a esmo, apenas para mostrar que estava atento.

- Muito pelo contrário. – O indiano encarou-o por alguns instantes, ainda de olhos fechados. Gostaria de ver a reação do outro à notícia de forma literal, sem o empecilho de suas pálpebras.

- O que disse? – Fênix crispou as sobrancelhas, naturalmente derrubadas no sentido do interior dos olhos, em um espasmo. Realmente considerara aquela possibilidade em seus pensamentos anteriormente, mas nunca suspeitou que estivesse certo. Não era de seu feitio supor coisas.

– Eu fiquei esse tempo todo em um lugar semelhante ao Campo da Morte. Ele se chama Horizonte das Memórias Quebradas. - O mais velho ponderou por alguns segundos e finalmente deu segmento ao assunto. - É para onde os sábios que já distorceram seus valores são enviados. Considerando que já matei inocentes, devemos concordar que foi merecido.

- Horizonte das Memórias Quebradas? – Ikki franziu o cenho. Jamais ouvira falar do local em questão.

- Sim. Como o próprio nome sugere, é uma porção da memória coletiva da humanidade, porém somente das lembranças esquecidas. Normalmente, essas informações são irrelevantes para seus geradores, a ponto de serem prontamente descartadas. – O virginiano tentou ser eloquente, por mais que aquele assunto fosse uma tortura para o seu orgulho inatingível. Gostaria de continuar parecendo a rocha que todos o consideravam, mas não tinha mais forças para sustentar aquela ilusão. Estava perturbado. - Outras, no entanto, acabam nessa dimensão por conta da morte de seus geradores. Essas eram, sem dúvida, as memórias mais difíceis de lidar. Algumas delas, confesso, me comoveram verdadeiramente...e se tornaram a minha fraqueza.

 Shaka suspirou, refletindo sobre elas. Grandes amores, amizades eternas, laços familiares, viagens, conversas, risadas, conquistas...que o fizeram enxergar que, por mais que tenha acreditado a vida toda que aqueles sentimentos não passavam de ilusões que o afastariam da iluminação, ele não era tão diferente daquelas pessoas.

Apreciava ser a pessoa pura e desprovida de apegos carnais que era. Contudo, será que também não apreciaria ser alguém totalmente diferente e vivenciar experiências como aquelas?

Porém, para alarma-lo ainda mais, havia outra faceta de memórias. Estas o feriram, desarmaram, fizeram o seu ser beirar o desespero. Por mais que as outras tenham sido o motivo de questionar a sua missão, foram estas que abalaram suas estruturas. Elas lhe mostraram que alcançar sua iluminação pessoal não mudaria em nada o sofrimento da humanidade, e que esta era a sua real missão. Por isso era cavaleiro.

Ele já sabia disso. Havia feito essa escolha há muito tempo. Apenas deixou de se recusar a aceitar o próprio destino.

- Existiam também as lembranças sórdidas. Elas me revelaram todo tipo de atrocidade que acomete a humanidade. Por mais que eu tentasse evita-las, me recusar a vê-las, não havia para onde ir. Tive que suporta-las dia após dia. Toda a dor, todo o horror, todo o medo...sentimentos esses que meu treino espiritual havia me ensinado a sobrepujar. Sendo assim, foi tudo terrivelmente novo. – O loiro seguiu com a descrição para Fênix, que assentiu com a cabeça em positividade. Conhecia bem o sofrimento que Shaka vira, e entendeu o quanto essa percepção deveria ser difícil para ele, que sempre idealizou um mundo diferente. - Fora as poucas lembranças maravilhosamente belas que tive a honra de presenciar, todo o resto foi um inferno.

 A angústia se remexeu no peito do indiano ao ter seus pensamentos remetidos a algumas delas. Se não fosse um iluminado, e tivesse se mantido firme em suas convicções de desapego a ilusões, certamente teria enlouquecido. Preferia esquecer, e caso não fosse capaz, superar.

Porém, reconhecia que a experiência naquele lugar assombroso, no decrépito banco de memórias do mundo, se tornara um homem melhor. Mais humano, mais compreensivo, menos egocêntrico.

Sua mente sempre fora faminta por sabedoria e indiferente às pessoas. Esteve sempre ávido por iluminar seu espírito com a meditação e exílio emocional, e deixou os valores aplicados a suas próprias ações de lado. Um comportamento conflitante, que demorara demais para identificar.

 Não bastava chegar ao nirvana se todos ao redor permaneciam em colapso. Seria negligência para com sua função de protetor da humanidade.

Com a prolongada demonstração de que ele não era o centro do universo, Shaka aprendeu a valorizar os pequenos bons momentos. Sua atitude não mudara em nada, no entanto ele tinha a sensação que o japonês já havia detectado isso nele. Se conheciam pouco, mas se entendiam muito.

 - Posso não ter conhecido esse lugar, mas compreendo perfeitamente a sua dificuldade de se reestabelecer aqui. Você nunca mais sente que pertence a lugar algum após a morte. – Disse, sem entrar em maiores detalhes. Não queria que o outro sentisse que estava sendo julgado.

 Virgem suspirou, consternado com o ponto em que chegara. Estava se sentindo melhor com uma simples frase de reconhecimento vinda do pirralho de Fênix. Ele estava mudado, parecia mais perspicaz...

 - Você mudou, Ikki. – Comentou, deixando que a estranheza ao fato repercutisse em seu tom de voz.

- Não se engane, Shaka. Ainda sou o mesmo. – O mais jovem riu levemente, encarando o cavaleiro de ouro.

O indiano abaixou o cabeça, escondendo um sorriso. Estava sendo divertido conhecer o seu rival preferido mais a fundo. Secretamente, torcia para que não acabassem brigando de novo...mas caso brigassem, seria emocionante, de qualquer forma. A presença do japonês já era emocionante por si só.

- E como você se sente quanto a tudo isso? – A pergunta do cavaleiro de bronze surpreendeu Shaka. Ele pareceu tão...atencioso?

- Posso dizer que estou desolado. O homem que eu era foi parcialmente destruído e minhas certezas inabaláveis estão despedaçadas. – Respondeu com receio, sem saber muito bem como reagir àquela gentileza por parte do outro. - Então, perdoe-me pela franqueza, minha última preocupação no momento é ser agradável. Mesmo assim, gostaria que soubesse que estou tentando.

Outra dose de silêncio se fez entre eles. O constrangimento de Shaka se abrandou lentamente, enquanto a curiosidade de Ikki crescia.

- Como acabou num lugar como aquele? – O japonês perguntou, sem cerimônias. - Não deveria ter ido parar em algum dos Seis Mundos, como seria esperado do representante de Buda?

Shaka empalideceu visivelmente, e Ikki se arrependeu do próprio questionamento. O virginiano certamente não queria se estender naquele assunto...então por que insistira? Por que queria tanto entender?

“Não é da minha conta”. – Concluiu, analisando a expressão do loiro.

- Eu já não era mais a reencarnação de Buda, Ikki. Fui julgado pelos atos meramente meus, feitos sem a instrução dele. – O loiro respondeu num fôlego só, ciente do impacto que tal informação causaria. – Eu não precisava mais ser enviado necessariamente para um dos Seis Mundos.

- O que? Você deixou de ser a reencarnação de Buda? Como isso é possível? – O japonês quase caiu para trás, aturdido com a notícia.

Parte dele, a mais racional, ficou transtornada. A outra o remeteu a um cenário mais despudorado.

“Eu não estaria mais profanando a alma de um sábio sagrado caso...o que? O que estou pensando?” - Tratou de focar na primeira reação, caso contrário coraria miseravelmente.

- Ouviu algum boato sobre eu ter ficado diferente após o despertar do oitavo sentido? – O loiro, inconscientemente, interrompeu os pensamentos do leonino, e formulou uma maneira de explicar aquela loucura toda ao cavaleiro de bronze. Decidiu fazê-lo refletir por si só.

- Me é familiar...disseram algo sobre você parecer confuso e fora de si. – Ikki estranhou o rumo da conversa, porém permaneceu firme e tentando se recuperar de um surto de constrangimento interno.

- E se eu disser que estavam certos? – A resposta fora outra pergunta, porém com um objetivo capcioso. Era visível que pretendia guiar as conclusões para um sentido específico.

Ikki encarou o outro duramente, intrigado. Detestava aquele suspense e preferia que lhe fosse explicado tudo de uma vez.

- Não sou tolo, Shaka. Me explique direito. – O mais jovem se incomodou com a ignorância que o outro pareceu atribuir-lhe.

- Quando percebi as proporções que a guerra contra Hades estava tomando, eu tomei ciência que precisaria fazer um grande sacrifício para levar Athena até ele, no Submundo. - Shaka entoou calmamente, como se estivesse aliviado por finalmente dividir aquilo com alguém. Guardara aquele segredo por três árduos anos. - Porém, por ser a reencarnação de Buda, eu não seria capaz de entrar nos domínios de Hades, uma vez que este foge às Seis Existências. Contudo, como cavaleiro, eu sabia que deveria encontrar uma maneira. E, por mais que desdenhasse a possibilidade, só havia uma forma de fazer isso.

Ikki o mirou com curiosidade, observando seu semblante estremecer por um milésimo de segundo e tornar à expressão intocável em seguida. Aquela mísera fração de tempo, no entanto, fora extremamente reveladora. Shaka estava sofrendo.

- Sabe como o Buda original morreu? – Voltou a explicar, sem esperar uma resposta de Fênix para as suas considerações. - Dizem que ele se deitou sob as Árvores Salas Gêmeas. No momento de sua partida, elas floresceram fora de época, e as flores se desprenderam e cobriram seu corpo. Num nível espiritual, sua alma se elevou a outro plano. Entende o que estou dizendo, Fênix?

- Já disse que não sou tolo! – Bradou, sentindo a cabeça girar com a esmagadora quantidade de informações, e mesmo assim compreendendo cada palavra.

- Quando fui morto por Saga e os outros, sob as circunstâncias que já deve conhecer, estive no Jardim, sob as árvores florescendo, assim como Buda. Escrevi meu testamento para explicar o meu plano a Athena, e meu espírito pereceu momentaneamente. O ritual semelhante à morte do Buda original fez a sua alma sagrada se elevar rapidamente e seguir o seu destino em busca de outro representante terreno. – Shaka seguiu com a história, ignorando o espanto do outro.

- Rápido o bastante para que quando você chegasse ao Submundo, não tivesse mais a alma dele. – Todas as peças se encaixaram na mente de Ikki.

- Exatamente. – O mais velho assentiu, sorrindo discretamente. Fênix era muito inteligente. Fora o único cavaleiro a entender o motivo de seus olhos permanecerem fechados. O único com inesquecível audácia. Tão inesquecível quanto a própria pessoa de Ikki.

- Então de quem é a sua alma agora? – O japonês questionou, se sentindo próximo daquela realidade. Passara por coisas semelhantes, e ao mesmo tempo completamente diferentes.

- Minha. Somente minha... – Shaka não deixou o tom de sofreguidão escapar de sua garganta. - Como um humano comum, com uma alma comum, pude conduzir Athena no Submundo. E a julgar que eu tentei matar Hades após ela me repreender por isso várias vezes, não me saí muito bem.

- No seu lugar, qualquer um teria se exaltado. – Ikki tentou soar prestativo, embora não tivesse a menor ideia do que dizer. Era uma situação bastante complexa.

- Eu nunca fui como qualquer um.  – O virginiano respondeu firmemente, sem pestanejar.

Fênix imaginou que Shaka se sentisse envergonhado, e do jeito que era orgulhoso, não aceitaria seu novo cenário facilmente.

Deduziu que o loiro só tivesse se confidenciado com ele por sua personalidade arisca e antissocial ser amplamente conhecida. Era alguém de confiança para contar segredos, e mantê-los ocultos até mesmo da Deusa. 

“Então é isso? O Shaka me contou um segredo?” – Pensou, espantado por ter sido a peculiar escolha do mais velho.  

Ambos deixaram um novo silêncio tomar forma. Ikki compreendeu a situação do virginiano. O homem com a aparente frieza mais convincente que conhecia estava desesperado.

Shaka de Virgem perdera o alicerce que o guiou ao longo de toda a sua vida. O recluso santo de ouro não estaria desabafando se não estivesse verdadeiramente transtornado.

- Eu soube que há um novo menino identificado como a reencarnação sagrada de Buda. – Shaka comentou, pensando em seu país natal por um instante.

- O que é ser sagrado, afinal? – A pergunta de Ikki abalou o mais velho. Não parecia haver uma explicação factível.

- É algo que eu gostava muito de ser. – O loiro abriu um pequeno sorriso para o leonino. Ele, pela primeira vez, não tinha uma resposta concreta. De qualquer forma, não deixaria que isso transparecesse.

– E por que acha que não é mais sagrado? – Fênix dilacerou as convicções de Shaka novamente. - E mesmo que não seja mais, isso não muda em nada o grande homem e cavaleiro que você é.

 O japonês se atreveu a levar a mão até o ombro do virginiano, lhe passando apoio, ou ao menos tentando. A armadura de ouro não permitiu que tocasse diretamente no guardião da sexta Casa, no entanto Shaka esboçou uma expressão de agradecimento ao mais jovem por sua intenção.

Obrigado, Ikki. – Virgem corou adoravelmente. O outro abriu um encantador sorriso de lado para ele, que apenas serviu para deixa-lo ainda mais vermelho.  

Ikki sentiu que o virginiano, que nunca precisava de ninguém, precisava dele. Não era autossuficiente como queria sempre transmitir.

Shaka, por outro lado, se sentia patético por estar vivendo o pior momento de sua vida e desabafando com um garoto cinco anos mais jovem. Um garoto conhecido por ser bruto e encrenqueiro...e ainda assim, possuir um excepcional bom coração.

 - Hm...você tem planos para esses dias de dispensa? – Ikki não soube de onde aquela ideia surgira, porém mandou todas as suas ressalvas para os confins do inferno. Não perderia uma oportunidade como aquela de estar perto de Shaka sem a interferência de ninguém, e ainda ajuda-lo a superar sua fase melancólica pós-Buda. - Como meus amigos estão longe, eu gostaria de treinar com você, se não se importar.

Ele sabia que a aparente fragilidade do cavaleiro de ouro era um engano, e que seria incrível treinar com o seu maior rival e, além do mais, passar algum tempo com ele. Não seria tolo de negar que seus sentimentos estavam tornando-o mais amável do que gostaria com aquele loiro arrogante...e que, provavelmente, se negaria a treinar com um cavaleiro de bronze bruto e atrevido como ele.

- Treinar comigo? - Shaka abriu os olhos em sobressalto, tamanho foi o seu espanto.

As árvores de todo o jardim da Casa de Virgem se remexeram com a força de seu cosmo acumulado, e uma rajada forte de vento quase arremessou o cavaleiro de bronze longe. Shaka o segurou pelo pulso para que não saísse de seu lugar, e mesmo assim ele fora derrubado para trás. Seus cabelos escuros ficaram repletos de folhas trazidas pelo vento, e seu corpo sujo com uma fina camada de terra, que fora erguida do chão.

 - Há quanto tempo estavam fechados?!? – Reclamou Ikki, furioso. Não que estivesse verdadeiramente irritado, mas precisava muito reclamar daquilo.

Estava, na verdade, frustrado. Aquela estava longe de ser a resposta que esperava, um redundante não, e da que desejava, um sim capeado. Ser carregado por um tufão não estava em seus planos.

“É óbvio demais que essa é apenas uma desculpa para eu revê-lo! Inferno!” - Se censurou mentalmente, levantando-se com um incômodo mau jeito nas costas, e dando de cara com um olhar azul e analítico sobre si.

Achou que estava louco com o que viu. Só poderia estar louco. Shaka de Virgem, o temível cavaleiro de ouro, estava o secando. Vermelho como um tomate, com os lábios entreabertos, mas o secando.

- O que foi, Shaka? – Questionou, sentindo suas próprias bochechas esquentarem, indicando um rubor por sua parte também.

A típica indiferença estampada nas feições do loiro se desfez. Seu semblante se revelou surpreso, confuso e até assustado.

O indiano, atônito, não conseguia acreditar no que estava vendo. Era nada mais e nada menos que um colírio para os olhos acostumados com a escuridão abissal da morte, e até para a visão conturbada que possuía de olhos fechados.

"Por Athena, como está lindo!" - Shaka repreendeu-se mentalmente pelo pensamento, por mais involuntário que tenha sido.

Não poderia deixar de se espantar do quão mais desenvolvido Ikki estava desde seu último encontro. Ainda preservava alguns traços da adolescência, apenas alguns...porque no mais, era um homem de tirar o fôlego. Quase sentiu raiva por ele ter estar ainda mais bonito do que antes.

- Você ainda era um adolescente quando o vi pela última vez. - O indiano explicou calmamente, dando uma leve tossida de vergonha.

- Isso já faz algum tempo. – Ikki comentou, despreocupado, se sentindo numa mistura de constrangimento e lisonjeio.

Silêncio. Shaka percebeu quanto tempo esteve afastado, ancorado numa realidade tenebrosa. Tempo o bastante para o adolescente revoltado se tornar um homem, e um capaz de dar conselhos astutos.

Quanto daquela evolução ele perdera? Absolutamente tudo.

 - Me responda, Shaka. –O cavaleiro de bronze sentia a expectativa consumir-lhe. - Vamos treinar ou não?

 - Ainda sou muito perigoso, especialmente para treinos que não consistam de conversa e meditação. Creio que essa não seja uma boa ideia. – O loiro buscou sua racionalidade para negar. - Somos cavaleiros e possuíamos uma notável resistência física, no entanto precisamos ser prudentes.

- Eu bem sei disso, mas ainda assim insisto. - Fênix não se deixava intimidar pelo poder do loiro. – Não sou um de seus discípulos, Shaka. Já sou um cavaleiro e não tenho medo...até porque já te derrotei uma vez.

- Se não fosse por mim, você ainda estaria vagando naquela dimensão. – O loiro abriu um sorriso debochado, quase irritado.

- Não vou contestar. – Ikki riu, descontraído.

- Está bem, Fênix. – Virgem cedeu, e acabou retribuindo o sorriso que recebeu do mais jovem. - Volte amanhã com uma roupa confortável e iniciaremos o treino.

- Obrigado. – O cavaleiro de bronze assentiu positivamente com a cabeça, tentando ocultar a onda de adrenalina que percorreu seu corpo. – Acho que agora já posso deixa-lo meditar, não é mesmo?

Shaka concordou, e se despediram com um par de “até amanhãs”. Não se olharam mais, caso contrário veriam que dividiam do mesmo rubor em suas feições, e talvez o loiro até risse das folhas que permaneceram presas no cabelo do garoto após a ventania.

Assim que o virginiano sentiu o cosmo de Ikki se afastar do Santuário, ele voltou para o interior de sua Casa. Como de costume, levitou sobre seu “trono” de flor de lótus, e tentou meditar, porém imagens recentes não lhe deixavam esvaziar sua mente.

Aquele rosto. Aquela cicatriz. Aquele corpo. Tão másculo...

Afastou os pensamentos, envergonhado. Por que estava gostando tanto de ter reencontrado Ikki e da ideia de revê-lo novamente no dia seguinte? A impessoalidade costumava lhe agradar, e o distanciamento mais ainda...então por que?

Mas depois de todo o horror que viu nos confins da morte, se sentia mal em sua típica solidão. Estava carente? Talvez. Mas o fato era que sentia uma profunda necessidade de um abraço, um olhar gentil e palavras amigas.

Se esforçou a vida toda para afastar as pessoas, e agora tudo que queria era não se sentir sozinho. A morte o tornara humano, despertara isso nele. E, caso ela não tivesse sido suficientemente eficiente por si só, rever o garoto da armadura de Fênix teria causado o mesmo efeito.

 

***** Mais tarde *****

 

A noite já havia caído, e Shaka há pouco saboreara seu jantar. Como gostava muito da culinária de seu país, sempre fazia alguma receita indiana.

Apesar de seu ventre estar confortavelmente aquecido pelo alimento, um frio percorreu seu estômago ao sentir um cosmo adentrar o Santuário. Era ele.

“O que ele faz aqui???” – Ficou com a respiração presa por alguns minutos, perdido em suposições. Seus olhos se abriram, reafirmando sua confusão.

Conforme o cavaleiro cruzou as Casas anteriores à sua, a curiosidade do virginiano só aumentava. O trâmite da travessia de Ikki parecia infinito. Era quase uma tortura esperar pela sua chegada.

Quando finalmente aconteceu, Shaka guiou o seu olhar na direção da entrada.

- Olá, Fênix. – Disse friamente, tentando esconder o nervosismo ao recorrer a seu incômodo sarcasmo. - Chegou um pouco cedo para o treino de amanhã, não concorda?

 A expressão do rapaz permaneceu a mesma, perdendo-se por um segundo na beleza de Shaka sem a sua armadura. O mais velho vestia um sári vermelho de um ombro só, preso por um broxe azulado.

O mais jovem se aproximou de Virgem e afastou uma pequena caixa de seu corpo, como se quisesse deixar Shaka ciente da presença dela. Os olhos de tonalidade céu se cravaram na embalagem cúbica envolta em papel de presente verde oliva.

Fênix estendeu-a para o virginiano, que a tomou com receio, sujando o papel com um pouco de curry remanescente, do preparo de sua refeição, em seus dedos.

- O que é isso, Ikki? – Fora direto, olhando profundamente nos olhos azuis do rapaz, mais escuros que os seus.

- Descubra.– Ikki entoou com seus péssimos modos, porém tentou se redimir em seguida. - Basta saber que é um presente de agradecimento pelo sangue que você doou para fortalecer a minha armadura.

- Não fiz nada além do meu dever como... – Shaka pretendia lhe contestar.

 – Sabemos que quatro das sagradas armaduras de bronze jamais teriam se regenerado sem o sangue que os cavaleiros de ouro doaram para ressuscita-las. - O leonino interrompeu, sem pestanejar, admirado com a forma compulsiva que Shaka piscava os olhos, sacudindo seus longos cílios escuros. - Mas ao contrário delas, a armadura de Fênix se reconstruiria de qualquer maneira, de suas cinzas ou de seus fragmentos. Com isso, só posso concluir que você fez questão de doar o seu sangue simplesmente para me conceder um pouco da sua força de cavaleiro de ouro. Eu não sei o que o levou a isso, no entanto sempre desejei retribuir. Ter um pouco de você comigo sempre me ajudou muito.

Virgem estava abobalhado. Ele se perguntou se deveria retrucar a última argumentação de Ikki ou apenas se render àquela massacrante verdade e abrir o presente. Olhou Fênix com certa desconfiança, constatando algo incomum.

"Céus, o Ikki está corando?" – Ficou ainda mais perdido. O que estava acontecendo com o grosseirão de Fênix e com ele, o impassível cavaleiro de Virgem?

 O loiro finalmente se decidiu, e rasgou o papel de presente sem zelo algum. Abriu a aba superior da caixa, de onde tirou um objeto de tom bronze. Ficou surpreso pela escolha do mais jovem. Muito surpreso.

- Eu fiz algumas pesquisas e...acho que isso pode te ajudar a esquecer um pouco do Buda e se reencontrar consigo mesmo.  – Foi tudo que Fênix disse antes de uma pausa dramática, que incomodou o loiro. Ele queria entender melhor o que aquilo significava.

- Prossiga, cavaleiro. – Exigiu mais explicações, com os lábios discretamente trincados.

- As pessoas costumam agradecer quando são presenteadas. – Ikki desconversou, envergonhado com as circunstâncias. Será que Shaka não percebia que ele não era de sair presenteando ninguém e que isso já estava sendo demasiadamente estranho para ele?

- Ninguém nunca me deu um presente formal antes. – Shaka fora seco, enquanto encarava a bela estátua de Shiva em suas mãos, com a qual o garoto lhe presenteara tão nobremente. – Agora explique-se, Fênix.

- De nada. – O leonino debochou, sentando-se com certa relutância diante de Shaka e se preparando para descrever suas razões.

E diante do loiro emburrado, e visivelmente mexido com o presente recebido, elaborou uma forma de simplificar a sua escolha. Não contaria a parte em que passou horas pesquisando tudo que pudesse sobre cultura indiana e Budismo...somente diria o necessário. E isso também não inclua mencionar que revirou Atenas procurando por lojas de artigos hindus.

- Achei que seria adequado ao momento que está vivendo. – Disse simplesmente, cruzando os braços.

- Entre tantos deuses, por que optou por Shiva? – Shaka estava ficando irritado. Por que o garoto não se justificava de uma vez?

- Ele me lembra você. – Ikki bufou, fugindo do olhar do indiano, que clamava por explicações.

- O que Shiva fazê-lo se lembrar de mim significa? Diga de uma vez, Fênix!  – Protestou o mais velho, fazendo o cavaleiro de bronze finalmente se dar por vencido.

- Shiva normalmente é representado dessa forma, na posição de lótus. Ele possui enormes cabelos, que não corta por serem a fonte de seus poderes. E ele tem um jarro de água na cabeça, que é uma simbologia do Ganges. Na testa, leva o terceiro olho, como sinal de sua sabedoria e inteligência. E tem também alguma coisa relacionada à lua crescente, que representa o recomeço e a renovação. Ele destrói o universo para criar um novo, num eterno ciclo, e usa o seu tambor para emitir o som que dá origem a tudo, “ohm”.  – E Fênix logo estava irritado por ter deixado transparecer todas aquelas informações.

- Você deve ter pesquisado feito um condenado para descobrir isso tudo. – Shaka zombou dele, morrendo de vontade de rir. Ikki estava tão certo de cada palavra que ele chegava a se perguntar se o japonês já não sabia mais de Hinduísmo do que ele mesmo.

Assim como Shiva, o virginiano se encontrava constantemente na posição de lótus, dotado de enormes cabelos e a marcação do terceiro olho. Seu treinamento aconteceu na beira do Ganges, e realmente detinha exímia sabedoria. Entre outras coisas, era realmente muito semelhante a Shiva. E, ao que lhe parecia, o ênfase de Fênix fora na questão dos recomeços. Da extinção de um ciclo para originar outro.

- Eu te dei isso porque você está passando por essa renovação que sucede a destruição. Está perdido nesse recomeço, mas não deveria.  – Ikki pretendia prolongar seus dizeres, porém um sorriso brando no rosto do mais velho o fez compreender que nada mais precisava ser dito. O recado fora dado.

- Você tem razão. A dança cósmica continua, então basta seguir em frente e enfrentar esta nova etapa. – Shaka concordou, sentindo uma nova força brotar dentro de si. Gostava de ser reencarnação de Buda, porém não mais o seria e precisava lidar com isso.

- E de bronze para que se sempre se lembre de quem lhe deu. – Fênix acrescentou, já se arrependendo por ter se metido naquela situação constrangedora. Se Shaka já desconfiasse de seus sentimentos nada profissionais, agora teria certeza absoluta. O acharia um traste ridículo, certamente.

 Para a sua surpresa, o indiano lhe abriu um sorriso que quase lhe assustou. Era tão doce...quase surreal.

- Obrigado, Ikki. É um gesto bastante atencioso da sua parte. – Shaka finalmente se pronunciou, ainda aturdido. Em seus olhos azuis brilhava o reflexo da chama da vela, já parcialmente derretida sobre um castiçal de ouro, que iluminava o recinto e era o único empecilho para que um breu se instalasse na Casa.

- Apesar de você ser um completo metido, fico muito feliz que esteja de volta, Shaka. – O japonês brincou, tentando ocultar a melosidade de seus próprios atos, e abriu um amplo sorriso também, que o deixou ainda mais belo aos olhos do loiro.

- Por sua causa, agora sinto que posso ficar feliz também. – O cavaleiro de ouro analisou a estátua novamente, porém deixando que um ar de desafio tomasse forma em seu rosto. - E não sou metido. Sou imponente.

 Ambos riram, desconcertados. Shaka concluiu que Ikki era uma pessoa muito especial, e Ikki concluiu que, apesar de tudoShaka era tímido. Ganharam o dia pela simples constatação de algo que não sabiam um sobre o outro.

- Sei que nunca vai admitir que foi você, mas agradeço também pelas flores. São as minhas preferidas. – O loiro tentou envergonhar Fênix em retaliação por suas próprias emoções. Se sentia juvenil e patético, e o pior era que estava se divertindo com isso.

- Por que acha que eu não admitiria? – Ikki fingiu irritação, porém sua face não se fechou. Estava mais que satisfeito pela surpresa que viu em Shaka com a sua resposta. - Não sou homem de me envergonhar das minhas ações.

 Virgem ficou atordoado por alguns segundos com a brava declaração do mais jovem. Estava impactado por ter a confirmação que fora ele e, principalmente, por ter sido tão facilmente desarmado pela sinceridade do leonino. Não se lembrava de alguém possuir tal habilidade de rasgar suas palavras como meros papéis de seda. Somente ele...

- Algum dia lhe trarei outras pessoalmente, se você quiser. – O japonês não se contentou em deixar o loiro embasbacado somente. Queria vê-lo enrubescer. - O que acha disso?

 - O que? – O virginiano engasgou de vergonha e desviou seu olhar para um canto remoto da Casa Zodiacal.

- Se não me xingou, vou tomar como um sim. – Ikki debochou, sem medo de parecer um bobão apaixonado. Talvez porque Shaka parecia mais abobalhado do que ele.

“Ele só pode estar brincando comigo. Moleque inconsequente!” – Shaka praguejou em pensamentos, odiando os pequenos calafrios que percorreram seu corpo ao concluir que Fênix estava flertando com ele.

Não negaria que o garoto o interessou mesmo antes de conhecê-lo. A fama de Fênix, o cruel cavaleiro de bronze treinado na Ilha da Rainha Morte, o deixara verdadeiramente curioso. Por isso ficou satisfeito quando o Grande Mestre lhe pediu que mandasse dois de seus melhores discípulos atrás deles, na Ilha Canon.

E a batalha que travaram depois disso...e que batalha! Ela o deixou pasmo. E nunca se sentia assim. Nunca duvidava, nunca deixava a compaixão vencer o seu orgulho...e fez tudo isso ao solicitar a ajuda de Mu para trazer o turrão de volta daquela estranha dimensão em que foram parar.

Mas li, à sua frente, estava um Ikki completamente diferente daquele que os boatos descreviam. Um perfeito amálgama entre um homem desvairado e grosseirão, um manipulador charmoso e uma doce criança perdida na tempestade. Rude, sensível e agoniado. Da forma que só ele conseguia ser...

- Eu não entendi o que quer saber, Fênix. – Shaka se pronunciou, ciente que passara tempo demais calado olhando aquele infeliz.

- Esqueça. Já obtive a minha resposta. – Fora a resposta de Ikki, com um quê de segurança.

- Por acaso virou telepata? – O mais velho ralhou. A presunção do leonino era uma das únicas coisas que odiava insanamente nele. - Afinal eu não falei absolutamente nada. O que pôde extrair de conclusões desse nada, Fênix?

- Estou bem longe de ler mentes, Shaka. – Ikki rebateu, sendo lindamente iluminado pelo tom alaranjado da chama da vela. Sua voz parecia mais rouca e seus lábios mais tensos do que antes. - Apenas saiba que, para mim, seu silêncio diz mil palavras.

- O meu silêncio é apenas silêncio. Não tente encontrar mensagens subliminares onde não há. – Já desconfortável, Shaka se levantou e lhe deu as costas, caminhando na direção da entrada de sua Casa. Precisava de ar fresco ou mandaria aquele garoto para o inferno...se bem que ele retornaria facilmente de lá.

- Desculpe, mas não consigo acreditar em você! – Ikki o seguiu, a passos longos e ruidosos, puxando-o pela braço e obrigando que o loiro o encarasse. - Seus olhos me dizem exatamente o contrário!

 Irritado, Shaka fechou os olhos e se desvencilhou dele, continuando seu trajeto em direção à inerente saída.

- Então é por isso que os escondeu de mim? – O cavaleiro de bronze não desistiu, voltando a segui-lo. - Porque são expressivos demais?

- Você não sabe de nada. – Virgem cortou, com mais vontade de lhe dizer um singelo “cala a boca”, porém ciente que era educado demais para tais palavras.

 O loiro se sentou ao lado de uma das estátuas de Buda, desejando profundamente estar só. Mirou rapidamente o céu, e notou uma estrela cadente cruzando-o, todavia sem nem sequer considerar a chance de prestar atenção nela. Sua mente já estava excessivamente ocupada.

Não conseguia entender aquela oscilação de emoções que sempre o acompanhavam quando estava com Fênix.

- Não fique zangado. – A voz grave e intimidadora, do jovem que logo estava em pé perto dele, cortou o seu desejado silêncio. Achou que se enfureceria com isso, porém teve que contemplar os efeitos dela em seu corpo por alguns instantes.

- Se você ainda está vivo, é porque não estou. – Sério, respondeu. Estava um pouco zangado, sim, mas não a uma proporção relevante. Não conseguia se irritar verdadeiramente com Fênix.

- Sei que está. – O mais jovem se sentou ao seu lado, numa proximidade perigosa. Perto demais, alcançável demais. - Olhe para mim.

- Não gosto desse seu tom mandão, Fênix. – Tentou afastar as sensações que aquela proximidade estava despertando em seu corpo, reclamando. Não poderia aceitar que estava tão atraído por ele. A alma casta e sagrada de Buda já lhe fazia profunda falta, a ponto dos desejos de seu corpo se manifestarem intensamente...ou quem sabe sempre estivessem lá, porém agora possuíssem maior permissividade?

- Apenas olhe. Não precisamos discutir por isso. – Ikki se aproximou um pouco mais, tentando resistir à tentação de quebrar a respeitosa distância necessária para não se tornar inconveniente.

Para a sua surpresa, os olhos de Shaka se abriram, e os dois pares de orbes azuis se fixaram um no outro. Analisaram-se solenemente, dizendo coisas inaudíveis para os ouvidos, e que somente as almas escutariam.

Aquele memorável encontro entre os olhos calmos e brilhantes, como um dia ensolarado de verão, com os olhos intensos e profundos, como um mar revolto, jamais seria esquecido. Era como o mais belo encontro entre o céu e o mar.

Aquela estranha comoção que assolou Shaka foi mais do que ele conseguia compreender no momento, e Ikki entendeu. Sentimentos eram um mundo muito novo e inóspito para ele.

- Obrigado. Agora vou deixa-lo em paz, antes que essa nossa trégua acabe. – Levantou-se e se dirigiu à escadaria, com um sorriso indecifrável adornando seu belo rosto anguloso.

- Vai finalmente embora? Já conseguiu me perturbar o suficiente? – O loiro confessou que aquilo estava sendo muito atípico para ele. Não se incomodava em ser sincero, assim como o outro não se envergonhava de suas emoções.

- Não se anime, eu voltarei amanhã, esqueceu? – Ikki respondeu calmamente, sem olhar para trás, e partiu do Santuário. Queria deixar o virginiano sozinho e confuso com seus próprios pensamentos. Sabia que o impactara.

Conforme suas suspeitas, o cavaleiro de ouro estava estupefato. O comportamento de Fênix era inacreditável. Inconcebível. Inaceitável. E tudo porque não era capaz de sentir sua típica indiferença por ele.

Com um simples dia de visita, uma profunda troca de olhares e um presente atencioso, Ikki conseguiu fazê-lo se esquecer das trevas que se formaram em seu peito durante todos aqueles anos na morte e se concentrar somente nele, ainda que o irritando.

Quando estava com aquele leonino sagaz, não se via mais em uma continuidade anti-natural do fim, mas sim no epicentro de um grande recomeço.

Aquele garoto abalou suas estruturas uma vez mais. E, embora a parte ainda apegada às suas crenças de recato lhe recriminassem por isso, Shaka estava grato. Se sentiu vivo novamente, pela primeira vez desde que voltara.

Se rendeu. Sabia até onde aquilo o conduziria, e não estava se importando. Já não era mais o homem cheio de resistências que um dia fora, então estava disposto a ver o que Ikki estava disposto a fazer.

Daria uma chance para aquele garoto tempestuoso, quente, avassalador e apaixonado. Se ele queria uma chance com o sagrado cavaleiro de Virgem, esta não lhe seria negada...mas teria que fazer por merecer.

Teria que conquistar o homem mais próximo de Deus.

Decidido, Shaka retornou ao interior de sua Casa e levou o presente de Ikki para a ala domiciliar. Ele posicionou o Shiva de bronze sobre a mesa da sala de jantar, que combinou perfeitamente com todo o ambiente da morada de Virgem.

Sorriu. Era como se sempre tivesse pertencido ao lugar que passara a ocupar, não só na mesa, mas também em seu coração...assim como sua atração pelo imprestável de Fênix, de quem seus pensamentos não se afastaram pelo resto da noite.

 

***** Roma – Simultaneamente *****

 

Saori reunira todos os seus cavaleiros em um dos muitos hotéis herdados de seu avô. Cada um teria o seu quarto, e quando não estivessem aproveitando a hospedagem cinco estrelas, poderiam treinar nos antigos campos de batalha romanos das proximidades, completamente funcionais e muito bem conservados.

Ela pediu que, naquela agradável noite, se dirigissem a um salão de reuniões do hotel. Fora a ilustre presença dos defensores de Athena, não havia mais ninguém lá.

A jovem, quando constatou que estavam todos presentes no imenso cômodo, tomou fôlego para explicar uma parte do que estava acontecendo. Ela ainda investigava alguns fatos que se sobressaíram aos demais, em suas buscas, e desejou revelar somente aquilo que já considerava confirmado.

- Cavaleiros... – Requisitou a atenção de todos, que a fitaram com curiosidade. Tanto os cavaleiros de bronze quanto os de ouro aguardavam com apreensão as notícias. - Mais uma vez, a humanidade e a justiça contam com vocês. É hora de conhecerem sua nova missão.

Ela hesitou um pouco em continuar, tentando organizar suas ideias. Com apenas um descuido poderia falar demais e assustar seus cavaleiros. Pretendia que eles descobrissem certos fatos por si mesmos.

- Há algumas semanas, senti um cosmo ameaçador sendo emanado de Roma. Para averiguar o que estava acontecendo, pedi que alguns agentes da Fundação viessem avaliar a situação...e o que descobriram não foi nada bom. – Saori observou os olhares de aberto interesse por parte dos guerreiros.

Por um instante, apenas abriu um sorrisinho contente por estarem todos lá. Seus bons cavaleiros e amigos.

- Espectros gladiadores romanos. Eles foram despertos por uma poderosa força maligna que ainda não fomos capazes de identificar. – Ela prosseguiu, ouvindo alguns comentários animados por parte dos guerreiros.

- Não parece muito difícil. – Aldebaran comentou, tentando não subestimar o inimigo, mas não sendo capaz de se conter.

- Quem dera fosse só isso. – A jovem respondeu, enquanto o sorriso desaparecia das feições do taurino.

- Desculpe. – Ele salientou, abaixando a cabeça e voltando a ouvi-la, cordialmente.

- A questão é que houve um cosmo, em particular, que eu consegui identificar. Um cosmo grego, em contraste com todos os outros, provavelmente romanos.  – A reencarnação de Athena se martirizou antes de concluir. – Era o cosmo de Prometeu.

- Aquele que roubou o fogo do Olimpo e entregou à humanidade? – Milo se pronunciou, exibindo seu conhecimento da mitologia de sua pátria.

- Dizem que o fogo é uma metáfora também para o conhecimento. – O libriano Dohko complementou, ficando levemente afito pelo rumo que aquela explicação da Deusa estava tomando.

- Sim, ele mesmo. E devo dizer que ambas as conotações estão corretas. – Athena ponderou novamente, e seu olhar se desviou para o fundo da sala. – Bem...Prometeu foi trazido de volta à vida por uma força sombria. Como titã, ele não precisa de um receptáculo humano para se manifestar, embora seu retorno em tempos de descrença nos olimpianos o obrigue a se adequar à aparência humana. Ele pode estar em qualquer lugar.

- Prometeu se desdobrou pela humanidade sempre, a ponto de coloca-la à frente de sua própria segurança e sofrer a penitência de Zeus. Por que ele se tornou nosso inimigo depois de tanto sacrifício? – Saga continha uma expressão indecifrável no rosto, como quem não estava plenamente convencido.

- A humanidade não era mais a mesma. – Ponderou Milo, acrescentando mais observações. - A caixa de Pandora fora aberta, e grandes males já espreitavam o mundo.

- Exatamente. Não era mais o mundo que ele queria, nem os humanos que ele queria. – Athena assentiu com a cabeça, passeando o olhar rapidamente em todos os presentes. – E ele também estava mudado. Depois de séculos de tortura, acorrentado no monte Cáucaso e tendo seu fígado devorado diariamente por uma águia, ele se tornou um homem cruel e revoltado.

- E o que ele quer, afinal? – Máscara da Morte, até então pensativo, se pronunciou.

- Vingança. – A jovem deusa desviou seu olhar para a janela sem cortinas daquela sala, de onde viu um brilho preocupante lampejar no céu. – Vingança de mim e da humanidade. De mim, por ele nunca ter recebido justiça perante Zeus, considerando que tudo que fez foi para o bem das pessoas. E dos humanos por terem sido sua ruína, sua fraqueza, a ponto de trair o Olimpo e ser castigado brutalmente.

- Ele deve estar louco. – Comentou Aiolia, cruzando os braços. Ficava cada vez mais intrigado conforme as notícias eram anunciadas.

- Quanto à sua sanidade, podemos apenas fazer suposições. Porém, uma coisa é certa: ele quer destruir a Terra e encontrou uma forma ardilosa de fazê-lo. – Saori sentiu um arrepio percorrer seu corpo pelas palavras que estavam por vir. - De alguma forma, os astros do Sistema Solar estão fora de controle. No ritmo em que suas órbitas estão se movendo, um alinhamento acontecerá em breve...e sabemos que isso nunca é algo bom.

- Não é possível que ele esteja fazendo isso...ou será que é? – Hyoga empalideceu, chocado com a evidente quantidade de poder que se faria necessária para uma manobra como aquela, de proporções inéditas.

- Eu descobri que, de alguma forma, sua ligação com a queda do fogo do Olimpo para o mundo dos mortais se tornou mais literal do que se desejaria. Ele... agora detém poderes de manipulação de asteroides. – Ela desviou o olhar para baixo, fitando a barra comprida de seu vestido.

- Estamos muito fritos. – Afrodite comentou, permitindo que seus lábios adornados por gloss rosado se movessem quase imperceptivelmente.

- Temo que em breve múltiplos asteroides comecem a invadir a atmosfera terrestre, e estes certamente serão cada vez maiores. – A moça de cabelos lilases explicou. Os cavaleiros emudeceram e apenas a observaram, atônitos, por alguns instantes. Aquilo estava ficando verdadeiramente perigoso. - Conforme Prometeu desloca-os do cinturão do Sistema Solar, os menores chegam mais rapidamente...por isso ainda temos tempo até que os mais ameaçadores cheguem. Precisamos detê-lo antes disso.

- Quem esse palhaço pensa que é para fazer algo tão insano? – Vociferou Aiolia, indignado com o tamanho desaforo do titã.

- Essa não é a questão. Como ele está sendo capaz de fazer isso? – Camus mirou os demais com apreensão, sentindo que havia uma conspiração acontecendo. Ninguém, deus ou semelhante, seria capaz de fazer algo tão grandioso por si só.

- Mover um asteroide já demandaria um poder inacreditável, mas coagir um alinhamento celeste vai muito além. Ele não pode estar sozinho nesse plano. – Aiolos concordou com o aquariano. – Se ele controla asteroides, deve haver alguém com poderes de controlar os planetas o ajudando.

 - É provável que realmente haja uma associação maligna trabalhando nesse plano. E seja lá quem estiver o ajudando, tem trabalhado em uma forja. Creio que estão fazendo armaduras a partir dos asteroides ferrosos...elas são extremamente resistentes e dotadas de poderes sombrios. – Saori seguiu com sua explicação, ocultando parte do que sabia naquele momento.

- Hefesto? Ele seria o único com tal capacidade, não seria? – Shun observou algo estranho na feição suave da Deusa.

- Não. Eu teria reconhecido o cosmo dele. – Ela desconversou, rapidamente. - Com o alinhamento dos planetas, a gravidade fará cada vez mais asteroides convergirem no sentido da Terra. Por isso precisamos deter Prometeu e quem quer que o esteja ajudando antes que seja tarde demais. Se conseguirmos desestabilizar essa influência sobre os astros, a própria gravidade mandará os asteroides para outro lugar, uma vez que estejam livres do controle orbital de Prometeu.

- O que faremos? – Seiya olhou-a com apreensão, temeroso pela resposta.

- Temos, inicialmente, que entender o que está acontecendo. Ele está tentando tirar o nosso foco com espectros gladiadores...mas sinto que as armaduras galácticas não são para eles. – Ela prosseguiu, sentindo que os jovens tirariam suas dúvidas sobre o assunto.

- Eles são como os espectros de Hades? – O ariano Mu questionou, tentando entender a natureza daquela ameaça.

- Estranhamente semelhantes. – Ela respondeu-lhe friamente, temendo que estivesse ligando os pontos antes do momento devido.

"Semelhantes a Hades? Será que...Plutão?" – Ele compreendeu, no entanto tratou de disfarçar. Se estivesse certo, a luta que estava por vir seria uma carnificina.

- Vamos acabar com esses espectros e tentar apurar a quem estão encobrindo. – Aldebaran concluiu, servindo de encerramento ao anúncio de Athena e deixando que os cavaleiros passassem a comentar entre si o que achavam a respeito de todo aquele estranho cenário.

Saori, vendo-os distraídos, decidiu se retirar e continuar suas investigações. Ela cruzou o corredor, cujo chão era coberto de carpete vermelho e as paredes de placas de madeira, e chegou até uma sala social, onde sentiu que estava acompanhada.

Ela olhou para trás e se deparou com o guerreiro de Andrômeda, carregando um olhar misto de ansiedade e medo. Os olhos verdes focaram nos da jovem diante dele, que temia pelo que ele iria dizer. Tinha certeza que seria sobre a ajuda que solicitara a ele em relação a Ikki.

- Saori, onde o meu irmão e o Shaka se encaixam nessa história? – Fora direto, sem cumprimentos ou ressalvas. Era aquilo que queria saber e ponto final.

A jovem não soube o que responder. Como diria a ele que o irmão e o cavaleiro de Virgem provavelmente morreriam por causa da parte da história que ela ocultara? Como explicaria, considerando que pedira ajuda ao próprio Shun para aquilo?

- Está escondendo coisas de nós. Não deveria fazer isso. – Andrômeda cortou o silêncio, sentindo-se miseravelmente usado.  - Arriscamos nossas vidas em seu nome. Merecemos, ao menos, compreender onde estamos nos metendo.

 O cavaleiro deixou-a, sem dizer mais nada, entregue a seus próprios pensamentos. Ela não estava feliz em fazer aquilo, e gostaria muito que houvesse outra forma.

“Me perdoem.” – Pensou, antes de entrar num corredor recluso e se dirigir a seu escritório de investigações.

Shun, que avançara para o lado oposto ao que a Deusa se dirigiu, teve seus olhos guiados para uma janela da sala de recepção anexa àquela que estava. Um brilho ofuscante cruzou o céu, e se assemelhava muito a uma estrela cadente. Seu coração se apertou com aquilo. Sabia que estava começando. 


Notas Finais


Adoraria saber o que você achou do capítulo :3


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